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1 Ciência em Marx: a importância da ciência na rota da emancipação humana Rodrigo Prado Evangelista (ALMA) * Marlon Garcia da Silva (UFSC) ** RESUMO O objetivo deste trabalho é contribuir para as discussões e debates no sentido de buscar uma interlocução sobre a importância da elaboração teórica e da pesquisa para a emancipação humana, para a revolução social radical. Discorrer sobre a perspectiva de Marx em relação à ciência nas obras de 1843-1846, identificar se existe ou não em sua obra uma proposta de ciência, assim como, saber qual o seu posicionamento acerca do modelo de ciência proposto, elaborado e difundido no interior da sociedade burguesa. As principais referências para a realização deste trabalho foram as obras de Karl Marx produzidas na década de 40, a saber, A Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (1843), a Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (1843), As Glosas Críticas ao Rei da Prússia (1843), a Questão Judaica (1843), o Manuscritos Econômicos- Filosóficos (1844), a Sagrada Família (1845) e a primeira parte da Ideologia Alemã (1846). Qualquer remissão a outros autores, como Feuerbach e Hegel, seja no sentido de indicar a influência, a convergência, ou a discordância, foi feita de acordo como esses outros autores aparecem no texto de Marx, como ele os cita, os indica, se refere a eles. Dessa forma, busca-se compreender a particularidade da obra marxista e os caminhos propostos por ele, inclusive na relação entre o seu posicionamento sobre o fazer científico e a luta por emancipação humana. Palavras-chaves: emancipação, ciência e interlocução. * Graduado em Psicologia pela UEL – Universidade Estadual de Londrina, em 2011, atualmente membro do cineclube Ahoramágica e do Núcleo de Comunicação Popular e Comunitária da ALMA – Associação Intercultural de Projetos sociais. Email: irreversí[email protected]. ** Mestrando em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina, atualmente docente da Faculdade Católica de Uberlândia. Email: [email protected].

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Ciência em Marx: a importância da ciência na rota da emancipação

humana

Rodrigo Prado Evangelista (ALMA) *

Marlon Garcia da Silva (UFSC)**

RESUMO

O objetivo deste trabalho é contribuir para as discussões e debates no sentido de buscar

uma interlocução sobre a importância da elaboração teórica e da pesquisa para a

emancipação humana, para a revolução social radical. Discorrer sobre a perspectiva de

Marx em relação à ciência nas obras de 1843-1846, identificar se existe ou não em sua

obra uma proposta de ciência, assim como, saber qual o seu posicionamento acerca do

modelo de ciência proposto, elaborado e difundido no interior da sociedade burguesa.

As principais referências para a realização deste trabalho foram as obras de Karl Marx

produzidas na década de 40, a saber, A Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (1843),

a Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (1843), As Glosas Críticas ao

Rei da Prússia (1843), a Questão Judaica (1843), o Manuscritos Econômicos-

Filosóficos (1844), a Sagrada Família (1845) e a primeira parte da Ideologia Alemã

(1846). Qualquer remissão a outros autores, como Feuerbach e Hegel, seja no sentido

de indicar a influência, a convergência, ou a discordância, foi feita de acordo como

esses outros autores aparecem no texto de Marx, como ele os cita, os indica, se refere a

eles. Dessa forma, busca-se compreender a particularidade da obra marxista e os

caminhos propostos por ele, inclusive na relação entre o seu posicionamento sobre o

fazer científico e a luta por emancipação humana.

Palavras-chaves: emancipação, ciência e interlocução.

* Graduado em Psicologia pela UEL – Universidade Estadual de Londrina, em 2011, atualmente membro

do cineclube Ahoramágica e do Núcleo de Comunicação Popular e Comunitária da ALMA – Associação

Intercultural de Projetos sociais. Email: irreversí[email protected].

** Mestrando em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina, atualmente docente da

Faculdade Católica de Uberlândia. Email: [email protected].

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Introdução

Método é um modo de proceder, é uma maneira de traçar um caminho, um meio

para atingir um fim. Para Maquiavel, os fins justificam os meios. Na ética deontológica

burguesa e iluminista, um indivíduo deve agir em relação a outro de acordo com

princípios e fundamentos que foram determinados na elaboração de um contrato social.

Na psicologia, não há uma convergência de métodos, tanto no sentido de sua aplicação

profissional, como no viés de suas investigações teóricas. Essa distinção e tensão para

Vigotsky seria um dos principais empecilhos para considerar a psicologia como uma

ciência, de acordo com o mesmo transformá-la num saber científico seria fundamental

para a sua contribuição no sentido de uma revolução socialista, ou melhor, para que

encontrasse um lugar frutífero na sociedade “comunista” incipiente na segunda década

do século passado. Não é apenas no projeto de uma sociedade comunista que se falou da

necessidade e da importância da ciência, esta afirmação é, inclusive, mais comum nos

modelos burgueses, implica no status de um modo de conhecimento que tenha função e

possa auxiliar na eficiência e na produtividade. Talvez por isso, que para alguns a

qualificação científica é uma busca incessante, enquanto para outros não é tão relevante.

Contudo, a diferença de métodos psicológicos também implica numa diversidade de

teorias e de vertentes psicológicas. Em outras áreas do conhecimento, também é assim.

Na tradicional filosofia ocidental, diferentes formas de buscar a verdade, ou o

conhecimento, ou ambos, estiveram intrinsicamente concatenados a diferentes posições

na vida. Para Vigotsky1, o materialismo histórico dialético seria a filosofia que melhor

poderia fornecer as possibilidades de elaboração de um método para uma ciência

destinada a desvendar e a definir os fenômenos psíquicos, ou melhor, psicológicos. De

acordo com esse autor russo, Marx se apropriou do materialismo histórico dialético de

Hegel, e o utilizou de uma maneira invertida, ou seja, colocou a concretude, a realidade

como ponto de partida deste vislumbramento idealista. Dessa forma, iniciou uma

maneira autêntica e peculiar de aplicar o sistema hegeliano. É importante ressaltar que

1 VIGOTSKI, L.S .O Significado Histórico da Crise da Psicologia. Em L. S. Vigotiski, Teoria e

Método em Psicologia (pp.201-417). São Paulo: Martins Fontes, 1999

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as principais referências de Vigotsky para falar sobre Marx são Friederich Engels e

Plékhanov2.

A afirmação desse teórico bastante difundido entre as vertentes psicológicas,

como também, na pedagogia, é extremamente polêmica. Se posicionar a favor ou contra

ela, ou simplesmente tentar manter uma postura neutra diante de tal questão, indica,

ainda que indiretamente, a trilha escolhida para se aproximar da obra marxista. Marx,

sabemos, não é considerado necessariamente um filósofo, ainda que possa ser estudado

neste domínio de conhecimento. Ele é bastante propagado na sociologia, na história, na

política, na economia, entre outras disciplinas. É até difícil qualifica-lo, saber se é

melhor chama-lo de filósofo, de sociólogo, de historiador, de economista, de político,

sem citar as outras atribuições possíveis. A própria história de vida dele teve caminhos

bastante tortuosos. Se formou em direito, durante a graduação participou de grupos

poéticos, fez uma tese de doutorado em filosofia, quando recém-formado trabalhou num

jornal, jamais exerceu a profissão na qual conseguiu o título, passou a maior parte da

vida desempregado, sendo ajudado por amigos como Engels, e viu a sua família

desmoronar diante de condições tão precárias de existência. No entanto, durante todo

esse tempo, não há qualquer relato ou registro que indique o distanciamento de Marx de

seus estudos, de suas pesquisas, mesmo fora do circuito acadêmico. Existem, inclusive,

publicações referentes ao que precisou fazer para continuar frequentando a biblioteca do

Museu Britânico em Londres, cidade onde passou a maior parte de sua vida, depois de

ter sido expulso de várias outras, assim como, de diversos países. Durante toda a sua

peregrinação, ele nunca conseguiu uma renda constante que pudesse lhe ajudar a ter o

mínimo de estabilidade, de segurança e conforto para si e para a sua família.

A obra de Marx, nas mais variadas publicações e traduções, mesmo depois de

sua morte, continuou a ser difundida, propagada. Até hoje, existem instituições e

entidades destinadas a este fim ou que, pelo menos, possuem esta finalidade entre seus

fazeres. Depois de tanto tempo ainda é difícil definir em qual área de conhecimento ele

é mais pertinente e coeso. Talvez porque não se trata de simplesmente adequá-lo a um

objeto de estudo, talvez porque o seu não enquadramento na via acadêmica quando

vivo, a inexistência de lucros e remunerações a partir da produção e publicação de sua

teoria para o próprio Marx sugere que ele era incabível, ainda é. A época vivida por ele,

2 Plékhanov foi autor russo marxistas, um dos pioneiros do marxismo na Rússia.

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o contexto no qual surgiu, as circunstâncias em que viveu, as instituições que

frequentou, os grupos que integrou, a maneira como se aproximou de todos os autores

que estudou, tudo isso pode nos ajudar a entender a elaboração e o sentido de sua obra,

como foi possível que ela acontecesse, como foi possível que ela pudesse acontecer e

ser preservada, convertida, traduzida, publicada, mudada, respeitada, etc. Além disso,

também demonstra a estranheza de suas veredas na sociedade burguesa, a dificuldade de

nomear, de classificar, própria de não haver um lugar confortável, cômodo para as

pesquisas, os estudos e os escritos marxistas, enfim, o trabalho para o qual direcionou a

sua vida.

O desafio marxista de realizar estudos e pesquisas, de dedicar o maior tempo de

sua vida para algo que não foi qualificado como produtivo, eficiente, em sua época, do

ponto de vista mercadológico, até mesmo por ser a busca de uma ruptura com a

sociedade capitalista, já indica a dificuldade de situá-lo num eixo de conhecimento, num

ramo profissional.Se propor a compreender a sua obra já é uma postura polêmica, por

isso, também é espinhosa e não consensual a afirmação vigotskyana referente a uma

simples apropriação do materialismo histórico dialético – oriundo do sistema filosófico

idealista de Hegel – por Karl Marx. Como também, é difícil qualquer biógrafo, ou

estudioso de sua obra, que não indique a importância de Hegel na filosofia, de uma

maneira geral, e na geração de Marx, como também, o conhecimento deste pela teoria

daquele. No entanto, de que maneira aconteceu essa apropriação? Pois Marx também se

refere a outros como Feuerbach, Adam Smith, David Ricardo, Proudhon[...] e será

sempre no sentido da influência que tiveram em sua obra? Em todo momento existe

uma convergência ou uma divergência? Todos são igualmente importantes para a

elaboração marxista? Responder a essas questões não nos leva apenas para a procura de

um estatuto de veracidade, significa, também, saber sobre a particularidade e a

singularidade da obra marxista, seja ela boa ou ruim. Percorrer este caminho depende do

envolvimento que possuímos com a teoria de Marx, da maneira com ela nos afeta, da

importância que adquiriu nos encontros que ambicionamos a cada porta aberta, a cada

esquina dobrada, a cada face de nossa própria vida desvendada. Para enxergar, no

horizonte, a intersecção entre nós e a perspectiva marxista é necessário saber qual era o

sentido do caminho traçado por Marx, quais foram as diretrizes que serviram como

referência para as questões colocadas por ele, para as suas afirmações, suas pesquisas,

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suas investigações. De modo sintético e direto, liberdade, a busca por esta, pelo

caminho para alcançá-la. A sua produção teórica, as questões colocadas para si mesmo,

a pesquisa, a investigação, tiveram como principal sentido desvendar os limites e

possibilidades da liberdade humana. Com certeza, ele não foi o primeiro a procurá-la, a

querer enxergar ou ajudar a criar oportunidades para que ela acontecesse. Seu principal

desafio era diagnosticar, cotidianamente, os limites relativos à liberdade humana e

universal em sua época, saber quais eram as origens da sociedade, da qual fazia parte,

assim como, as dimensões de existência da mesma.

Veredas

Na Gazeta Renana, em 1842, Marx escreveu e publicou artigos referentes à

liberdade de imprensa. Um dos assuntos debatidos na Dieta Renana, uma reunião que

acontecia entre representantes de diversas classes sociais como a nobreza, a burguesa, o

clero e a monarquia. Também era um espaço para articulações relativas à possibilidade

da formação de um Estado alemão. Os principais interessados na unificação alemã eram

oriundos da classe burguesa, ou aliados dela. Era esse segmento social que, também,

financiava o jornal, de orientação neo-hegeliana, no qual Marx trabalhava. Nesse

período, ele ainda acredita na constituição do Estado e na inserção a este, como uma

realização libertária. Como podemos perceber no trecho abaixo.

[...]Enquanto os direitos consuetudinários dos nobres são costumes

contra o conceito de direito racional, os direitos consuetudinários da

pobreza são direitos contra o costume do direito positivo. Seu

conteúdo não se opõe à forma legal, resiste muito mais contra a

própria ausência de forma. A forma da lei não se opõe aos mesmos,

mas eles ainda não a alcançaram. Basta refletir um pouco para

compreender com que parcialidade as legislações iluministas trataram

e tiveram que tratar o direito consuetudinário da pobreza, cuja fonte

mais rica podem ser considerados os diversos direitos germânicos. (In:

EIDT, 1998, p.259)

Na citação acima, Marx aponta diferenças entre a nobreza e a pobreza no sentido

dos direitos consuetudinários, mas afirma que os pobres podem alcançar a forma legal,

ou seja, terem os seus direitos contemplados na esfera estatal, da qual faz parte o corpo

legislativo. No Debate Acerca da Lei Sobre Roubo de Lenha, ele começa a notar

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algumas peculiaridades do estado moderno, inclusive no sentido da relação deste com a

propriedade privada, porém, não o compreende como generalização, mas como uma

especificidade. Percebe alguns indivíduos que se posicionam na constituição de uma lei

a favor de seus interesses privados, assim como, da classe a qual pertencem, e que essa

posição, para ele, é uma contradição à essência do direito racional. Como na citação a

seguir.

[...]Uma vez que a propriedade privada não possui os meios para se

elevar ao ponto de vista do estado, o estado deve se rebaixar, contra o

direito e a razão, aos meios da propriedade privada, que são contrários

ao direito e à razão.(In: EIDT, 1998, p.266)

Para esclarecer melhor a situação, em um das sessões da dieta renana,

proprietários rurais se manifestaram contra a apropriação da lenha caída de seus bosques

por camponeses. Buscavam o apoio institucional e legislativo para punir os indivíduos

que resolvessem apanhar a lenha caída presente sem suas propriedades. Marx argumenta

contra a punição, até mesmo pela consideração do ato como um crime, pois, para ele, tal

apropriação acontecia de acordo com as condições vividas pelos camponeses. Ele

defende que a pobreza deve ser o alvo de maior preocupação, assim como, a

necessidade de dispositivos institucionais e legislativos para mudar as condições da

classe camponesa, ou seja, a resolução dessa situação é desenvolvida na esfera estatal,

como se pode perceber no trecho abaixo.

[...]O legislador sábio previnirá o delito para não precisar puni-lo, mas

não o previnirá entorpecendo a esfera do direito, mas eliminando a

essência negativa de todo impulso jurídico, abrindo com isso, uma

esfera positiva de atividades. Não se limitará a remover a

impossibilidade dos componentes de uma classe integrarem uma

esfera de direitos mais amplos, mas elevará a própria classe à

possibilidade real de ter direitos. E se o estado, para isso, não é

bastante humano, rico e generoso, é, ao menos seu dever

incondicional não transformar em crime aquilo que só as

circunstâncias tornam uma transgressão. Deve proceder com maior

moderação, encarando como desordem social o que só com maior

injustiça poderia castigar como delito anti-social, senão combaterá o

instinto social crendo combater a forma anti-social do mesmo. Numa

palavra, quando se reprime direitos consuetudinários do povo, o

exercício destes só podem ser tratados como simples contravenção

policial, e nunca punidos como crime. A pena policial é o caminho

contra atos que as circunstâncias convertem em desordem externa,

sem que impliquem uma violação da ordem eterna do direito. A

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punição não deve infundir mais horror do que a transgressão; a

infâmia do delito não deve transformar-se na infâmia da lei. A base do

estado está minada quando a desgraça se torna delito ou o delito uma

desgraça. Bem distante desse ponto de vista, a dieta não observa nem

mesmo as primeiras regras da legislação.(In: EIDT, 1998, p.262)

Marx se refere a “instinto social”, e crê na possibilidade da promoção da justiça

pelo Estado, no sentido de leis que garantam o sucesso da sociedade de direito, de uma

maneira geral, ou seja, que nenhuma classe, nenhum indivíduo, seja mais beneficiado do

que outro, tenha privilégios que resultem no desprovimento do outro. Ele vai ainda mais

fundo, e estabelece uma relação entre humanidade e direito racional, entre a liberdade

humana e o acesso a direitos. “[...]O mundo da não-liberdade comporta direitos da não-

liberdade. Enquanto o direito humano é a existência da liberdade, o direito animal é a

existência da não-liberdade[...]”(In:EIDT, 1998, 257)

A posição de Marx diante da elaboração de uma lei que considere a apropriação

da lenha caída nos bosques dos proprietários rurais um crime, os argumentos utilizados

para defender a oposição a esta elaboração legislativa não são inéditos, autênticos. É um

Marx bastante influenciado pela filosofia iluminista burguesa, que se manifesta a favor

de resoluções, que ele próprio vai apontar como hegelianas, em suas obras posteriores.

O importante são as elucidações de Marx que demonstram, claramente, que as leis são

feitas por pessoas, são inventadas por seres humanos, assim como, a percepção de uma

relação possível entre a propriedade privada e o Estado, mas que ainda não é

compreendida como essência estatal, e como particularidade desta esfera na sociedade

burguesa, no modo de produção capitalista.

Em 1843, por determinação do regime político prussiano, a gazeta renana, da

qual Marx inclusive havia assumido o posto de redator, foi fechada devido a

enfrentamentos políticos. Ele se muda para Paris, e juntamente com Arnold Ruge, a

pessoa que havia lhe convidado para participar da gazeta Renana, se dedica à publicação

de um novo jornal chamado Anais Franco-Alemães, no qual pela primeira vez a

Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, também conhecida como

Introdução à Crítica de Kreuznah e A Questão Judaica foram publicadas. Nesse mesmo

ano, ele se casa com Jenny Von Whestphalen, com quem já mantinha um romance há

bastante tempo. Durante a lua de mel do casal, Marx redige a Crítica da Filosofia do

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Direito de Hegel, resultante dos seus estudos da obra Os Princípios da Filosofia do

Direito de Hegel.

Provavelmente, os enfrentamos políticos durante a publicação dos artigos de

Marx na Gazeta Renana, suas elucidações referentes ao Debates Acerca da Lei do

Roubo de Lenha, afetaram a perspectiva que Marx tinha sobre o Estado e a política,

como também, chamaram a sua atenção para os conflitos e cisões entre Estado, família e

sociedade civil. O que contribuiu também para que começasse a traçar um caminho

distinto de Hegel, para a elaboração de uma proposta de desvendamento da natureza

humana e das possibilidades de liberdade humana. De acordo com Marx, Hegel também

percebe a separação entre família, sociedade civil e Estado, e enxerga na união entre

estas esferas, no sentido de uma subordinação da família e da sociedade civil ao Estado,

a resolução para os conflitos entre elas. Como se pode perceber abaixo.

[...]Por “necessidade externa” pode-se entender somente que “leis” e

“interesses” da família e da sociedade civil devem ceder, em caso de

colisão, às “leis” e “interesses do Estado; que aquelas são

subordinadas a este, que sua existência é dependente da existência do

Estado; ou também que a vontade e as leis do Estado aparecem à sua

“vontade” e às suas “leis” como uma necessidade. (MARX, 2005,

p.28)

O Estado é, para Hegel, de acordo com Marx, a possibilidade mais concreta de

realização da liberdade humana. Esta é materializada quando os interesses particulares

correspondem exatamente aos interesses universais, os primeiros podem ser

encontrados na família e na sociedade civil, enquanto os outros fazem parte da esfera

estatal: existência corpórea da Idéia Absoluta e Real. A liberdade, portanto, é a

identidade entre o particular e o universal, assim todos se tornam igualmente livres.

[....]a liberdade concreta consiste na identidade (sein sollende,

zweschlachtige) do sistema de interesses particulares (da família, da

sociedade civil) com o sistema do interesse geral (do Estado). A

relação dessas esferas será, agora, determinado mais de perto.

De um lado, o Estado é, em face das esferas da família e da

sociedade civil, uma “necessidade externa”, uma potência à qual

“leis” e “interesses” são “subordinados” e d qual são

“dependentes”.(MARX, 2005, p.27/ grifo do autor)

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Na subordinação da sociedade civil e da família ao Estado, ocorreria um

movimento de retorno para si da Idéia Absoluta e Real, encarnado na figura estatal, ou

seja, a própria origem dessas outras esferas é um desdobramento da Idéia Real. Por isso,

Marx indica que, de acordo com a lógica hegeliana, as particularidades da sociedade

civil e da família são negadas, precisam ser para que os indivíduos pertencentes a estes

segmentos sociais possam se libertar, serem livres.

[...]A passagem da família e da sociedade civil ao Estado político

consiste, portanto, em que o espírito dessas esferas, que é em si o

espírito do Estado, se comporte agora, também, como tal em relação a

si mesmo e que ele seja, quanto a sua interioridade, real em si. A

passagem não é, portanto, derivada da essência particular da família

etc. e da essência particular do Estado, mas da relação universal entre

necessidade e liberdade. É exatamente a mesma passagem que se

realiza, na lógica, da esfera da Essência à esfera do Conceito. A

mesma passagem é feita, da filosofia da natureza, da natureza

inorgânica à vida. São sempre as mesmas categorias que anima ora

essas, ora aquelas esferas. Trata-se apenas de encontrar, para

determinações singulares concretas, as determinações abstratas

correspondentes. (MARX, 2005, p.32/ grifo do autor)

Na citação acima, Marx aponta uma arbitrariedade na filosofia idealista de

Hegel, no sentido de uma desconsideração da essência particular das coisas, de uma

maneira geral, para adequá-la a abstrações universais, essa é a lógica utilizada para

elaborar seus posicionamentos políticos. Portanto, a perspectiva política de Hegel é

intrinsecamente concatenada com o seu ponto de vista filosófico. Marx não se opõe ao

filósofo idealista apenas no âmbito político, mas, também, a sua doutrina filosófica.

Para Marx, o Estado é uma invenção humana, foi concebida por pessoas, a partir de suas

individualidades particulares, assim como, a sociedade civil e a família. Todas essas

esferas são desdobramento da existência humana, do fazer humano.

[...] As funções e atividades do Estado estão vinculadas aos indivíduos

(o Estado só é ativo por meio dos indivíduos), mas não ao indivíduo

como indivíduo físico e sim ao indivíduo do Estado à sua qualidade

estatal. É, por isso, ridículo quando Hegel diz: elas estão “unidas à sua

personalidade particular como tal de uma maneira exterior e

acidental”. Elas estão, antes, unidas ao indivíduo mediante um

vinculum substantiale, por uma qualidade essencial do indivíduo. Elas

são a ação natural de sua qualidade essencial. Esse disparate advém do

fato de Hegel conceber as funções e as atividades estatais

abstratamente para si, e, por isso, em oposição à individualidade

particular; mas ele esquece que tanto a individualidade particular

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como as funções e atividades estatais são funções humanas; ele

esquece que a essência da “personalidade particular” não é a sua

barba, o seu sangue, o seu físico abstrato, mas sim a sua qualidade

social, e que as funções estatais etc. são apenas modos de existência e

de atividade das qualidades sociais do homem. Compreende-se,

portanto, que os indivíduos, na medida em que estão investidos de

funções e poderes estatais são considerados segundo suas qualidades

sociais e não segundo suas qualidades privadas. (MARX, 2005, p.42/

grifo do autor)

Mas o quê está sendo considerado humano por Marx? O que significa a

humanidade para ele? Nesse momento, é possível perceber a oposição a Hegel, como já

dita anteriormente, tanto no sentido filosófico, como no político. Ao se deparar com

conflitos empíricos, na própria constituição de leis no estado prussiano, Marx começa a

se questionar referente à relação entre sociedade civil e Estado. Na Gazeta Renana, de

42, a sua resolução para estas tensões era extremamente amparada pela perspectiva

hegeliana. No entanto, quando revisa uma das grandes referências para os seus

posicionamentos políticos e na vida, nota uma incoerência entre a filosofia de Hegel e a

realidade. Compreender “as determinações singulares concretas” torna-se fundamental,

principalmente para trilhar o caminho da liberdade, para buscar a emancipação. Marx

propõe o desvendamento da lógica da coisa, e não a adaptação da coisa à lógica

filosófica, como Hegel o faz para ele. E é na busca da determinação concreta do Estado

que o afirma como invenção humana, para o homem, este como ponto de partida para a

existência estatal. No entanto, ainda procura um movimento que seja para si, ou seja,

um retorno a uma essência. A essência do estado é humana, é o homem, o melhor modo

de alcançá-la é a efetivação da democracia. Na figura humana avista o povo, e o que é o

povo? Onde estão nesta entidade, as particularidades singulares e sociais ausentes, ou

consideradas acidentais, na perspectiva de Hegel? Não as enxerga ou as defini

claramente ao se referir diretamente ao humano, ainda não contempla a separação e o

conflito entre classes sociais. Como pode ser conferido abaixo.

[...] Na monarquia o todo, o povo, é subsumido a um de seus modos

de existência, a constituição política; na democracia, a constituição

mesma aparece somente como uma determinação e, de fato, como

autodeterminação do povo. Na monarquia temos o povo da

constituição; na democracia a constituição do povo. A democracia é o

enigma resolvido de todas as constituições. Aqui, a constituição não é

somente em si, segundo a essência, mas segundo a existência, segundo

a realidade, em que fundamento real, o homem real, o povo real, e

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posta como a obra própria deste último. A constituição aparece como

o que ela é, o produto livre do homem; poder-se-ia dizer que, em um

certo sentido, isso vale também para a monarquia constitucional, mas

a diferença específica da democracia é que, aqui, a constituição em

geral, é apenas um momento da existência do povo e que a

constituição política não forma em si mesma o Estado.(MARX, 2005,

p.50)

O Estado não é pedra angular na busca por liberdade, não é afirmação da

universalidade humana em si, é mais um desdobramento da humanidade, identificada na

figura do povo por Marx. Como bem observado, o Estado é diluído, deixa de existir,

quando a democracia é bem sucedida, o povo não precisa mais dele para mediar,

controlar ou legislar relações. A vida política se torna igual a vida do povo, a esfera

estatal não é mais necessária. O que os franceses modernos, tais como o filósofo

iluminista Rousseau, já tinham concluído, de acordo com o próprio Marx. Entretanto,

essa identidade entre o povo e a política, esta igualdade, esta correspondência, diferente

da proposta de Hegel, não é para Marx a efetivação da liberdade, ele inclusive

demonstra um exemplo ilustrativo para esta conclusão.

[...] Na Idade Média, a vida do povo e a vida política são idênticas. O

homem é o princípio real do Estado, mas o homem não livre. É,

portanto, a democracia da não-liberdade, da alienação realizada. A

oposição abstrata e refletida pertence somente ao mundo moderno. A

Idade Média é o dualismo real, a modernidade é o dualismo abstrato.

(MARX, 2005, p.52)

Na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Marx deixa pistas para o caminho

que virá a ser desenhado. O seu ponto de partida é a realidade, são as determinações

singulares concretas, a lógica da coisa. São também seus principais referenciais. O

sentido de sua trajetória é saber quais são os alcances e os limites do ser humano, as

possibilidades de liberdade humana. Diante das tensões e dos conflitos, a liberdade

humana é a resolução mais radical, como ficará ainda mais nítido em suas obras

posteriores, desse mesmo período, na própria Introdução à Crítica, que foi realizada e

publicada depois dessas primeiras observações e conclusões oriundas de sua leitura

referente a Hegel. Além disso, A Questão Judaica, também publicada em 1843 e Glosas

Críticas Marginais ao artigo “O Rei da Prússia e a Reforma Social”, escrito em 1844,

configuram um adensamento, um aprofundamento na perspectiva marxista, inclusive

em sua autenticidade.

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O Estado já deixou de ter a relevância que havia para Marx nos artigos da

Gazeta Renana de 42. Não escreve mais sobre instinto social, como também, deixa de

identificar uma relação entre humanidade livre e plena realização do direito racional. Na

Introdução à Crítica, a esfera estatal passa a ser vislumbrada de outra maneira. Ao estar

inserido nela é possível sim, se emancipar, mas de um modo muito mais restrito e

limitado do que os alcances da efetivação da liberdade humana. Adentrar o Estado, de

acordo com um determinado contexto, pode contribuir para se libertar humanamente,

mas não é um princípio fundamental e incondicional. É necessário entender as

dimensões do potencial humano, em escala global, assim como, as particularidades do

contexto vivido. Pode-se, inclusive, encontrar a própria visão marxista relativa à

situação da Alemanha, ou do que hoje é considerado o país alemão, naquele momento.

[...] Enquanto na França e na Inglaterra, o problema se põe assim:

economia política ou o domínio da sociedade sobre a riqueza, na

Alemanha apresenta-se deste modo: economia nacional ou o domínio

da propriedade privada sobre a nacionalidade. Portanto, na Inglaterra e

na Alemanha trata-se de abolir o monopólio, que se desenvolveu até

as últimas conseqüências ao passo que na Alemanha se trata de

caminhar para as conseqüências finais do monopólio. Ali, é uma

questão de solução; aqui, apenas uma questão de colisão. A partir do

exemplo referido podemos ver como os problemas modernos estão

presentes na Alemanha; o exemplo mostra que a nossa história, tal

como o recruta principiante, até agora só teve de fazer exercícios

adicionais em assuntos históricos velhos e banais. (MARX, 2005,

p.149/ grifo do autor)

Também aqui podemos notar como a história começa a ganhar importância no

ponto de vista marxista, não só como um olhar direcionado para o passado, mas que

busca a compreensão dos caminhos e das possíveis tendências no devir humano,

principalmente no âmbito particular e singular, como no caso da Alemanha, onde

inclusive a inserção ao Estado, a tomada do poder da esfera estatal não é condição para

a liberdade humana, para a emancipação humana, diferente da França, onde

“[...]emancipação parcial é o fundamento para a completa emancipação. Na Alemanha,

a emancipação total constitui uma conditio sine qua quom para qualquer emancipação

parcial[...]”(MARX, 2005, p.154). Poderíamos, aqui, acrescentar, que ambos os países,

ambos os contextos, em suas particularidades, fazem parte ou precisam fazer da

sociedade capitalista, mas a maneira como o modo de produção capitalista é

desenvolvido é diferente, são histórias distintas dentro de uma grande história, a do

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capítulo do capitalismo como um momento da trajetória universal humana. A

emancipação total, plena, é a realização completa da liberdade humana, em todos seus

alcances, possibilidades, potencialidades, enquanto a emancipação parcial é a política,

ou seja, quando uma camada social se desloca da posição ocupada na sociedade para

tomar o poder configurado na esfera estatal, como nos esclarece Marx.

[...] Qual é a base de uma revolução parcial, meramente política?

Apenas esta: uma seção da sociedade civil emancipa-se e alcança o

domínio universal: uma determinada classe empreende a partir de uma

situação particular, uma emancipação geral da sociedade. Tal classe

emancipa a sociedade como um todo, mas só no caso de a totalidade

da sociedade se encontrar na mesma situação que esta classe, por

exemplo, se possuir ou facilmente puder adquirir dinheiro ou cultura

([...]) Para que a revolução de um povo e a emancipação de um classe

particular da sociedade civil coincidam, para que um elemento seja

reconhecido como o estamento de toda a sociedade, outra classe tem

de concentrar em si todos os males da sociedade, um estamento

particular tem ser o estamento de repúdio geral, a incorporação dos

limites gerais. (MARX, 2005, p.154/ grifo meu)

Além disso:

[...] Toda a emancipação constitui uma restituição do mundo

humano e das relações humanas ao próprio homem.

A emancipação política é a redução do homem, por um lado, a

membro da sociedade civil, indivíduo independente e egoísta e, por

outro, a cidadão, a pessoa moral.

A emancipação humana só será plena quando o homem real e

individual tiver em si o cidadão abstrato; quando como homem

individual, na sua vida empírica, no trabalho e nas suas relações

individuais, se tiver tornado um ser genérico; e quando tiver

reconhecido e organizado as suas próprias forças (forces propres)

como forças sociais, de maneira a nunca mais separar de si esta força

social como força política. (MARX, 2009, p.63)

Mas qual seria o “estamento de repúdio geral”, aquele que incorpora os limites

gerais, ou seja, que as suas barreiras não podem ser rompidas sem uma emancipação

geral? É o proletariado, o segmento social imanente à sociedade burguesa, formado no

interior dela, na consolidação da burguesia como classe dominante, cujo lugar social

ainda será, na obra de Marx, melhor esclarecido, desvelado. “[...]A dissolução da

sociedade, como classe particular, é o proletariado[...]”(MARX, 2005, p.155). Entender

a particularidade desta classe social é fundamental, pois, a partir do momento que o

indivíduo busca saber qual a importância de si e da classe, da qual faz parte, na

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sociedade, começar a desatar nós do emaranhado de relações, de conexões que

configuram a vida conhecida por ele. Como ela é produzida, reproduzida, como ela se

tornou possível. Nesse viés, que a procura por conhecimento torna-se fundamental, no

horizonte da emancipação humana. O mesmo sentido, enfatizado aqui, do trabalho de

Marx, do trabalho para o qual direcionou a maior parte da sua existência. A sua

elaboração teórica é a proposta de compreender a vida, a sociedade, em sua essência,

isto é, suas particularidades singulares concretas, como também, a conexão existente

entre elas. Interessa a Marx a vida possível de ser reinventada pelo ser humano, a

sociedade realizada por ele, entendê-la é fundamental na rota da emancipação humana,

pois “[...]A teoria é capaz de se apossar das massas ao demonstrar-se ad hominem, e

demonstra-se ad hominem logo que se torna radical. Ser radical é agarrar as coisas pela

raiz. Mas, para o homem, a raiz é o próprio homem[...]” (pg.151). Por isso, a filosofia

idealista hegeliana é considerada por ele como insuficiente no caminho da edificação da

liberdade humana, não consegue apreender a importância do humano como sujeito

histórico, ou seja, ativo em sua própria história, capaz de realizá-la, de transformá-la,

em toda sua diversidade, heterogeneidade. Quanto mais Marx é esclarecido da

sociedade burguesa, mais percebe suas particularidades, como, por exemplo, as classes

sociais, as quais serão melhor definidas por ele próprio. Saber elas chegaram até aqui,

como foram constituídas é enveredar pela história desta sociedade e da humanidade,

como um todo. A filosofia, assim como, outros modos de conhecimento, podem

contribuir, desde que as suas principais referências sejam as particularidades singulares

concretas. “[...] A tarefa imediata da filosofia, que está a serviço da história, é

desmascarar a auto-alienação humana nas suas formas não-sagradas, agora que ela foi

desmascarada na sua forma sagrada [...]”(MARX, 2005, p.146). Trata-se da história da

humanidade, do devir humano, de seus limites e suas múltiplas potencialidades, trata-se

de realizar uma pesquisa, uma investigação por essas veredas. Marx não se refere à

história no âmbito disciplinar mais restrito, mas àquela que os outros modos de

conhecimento fazem parte, enquanto desdobramentos do potencial humano.

[...] Conhecemos apenas uma única ciência, a ciência da história. A

história pode ser examinada sob dois aspectos: história da natureza e

história dos homens. Os dois aspectos, contudo, não são separáveis,

enquanto existirem homens, a história da natureza e a história dos

homens se condicionarão reciprocamente. A história da natureza, a

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chamada ciência natural, não nos interessa aqui; mas teremos que

examinar a história dos homens, pois quase toda a ideologia se reduz a

uma concepção distorcida desta história, ou a uma abstração completa

dela. A própria ideologia não é senão um dos aspectos desta história.

(ENGELS &MARX, 1999, p.23)

“Eu, caçador de mim”3

Nos Manuscritos Econômicos-Filosóficos de 1844 - data de sua escritura -

também conhecidos como os Manuscritos de Paris, obra somente publicada em 1932, na

União Soviética, Marx lança passos demasiados largos e profundos na singularidade da

natureza humana. Traça uma relação entre a liberdade e essa particularidade. Se

emancipar, se libertar é, para Marx, extremamente concatenado com a possibilidade da

vida humana. Na história da humanidade, a partir de seu cotidiano mais imediato, no ato

de buscar a satisfação de suas necessidades e desejos, se tornou imprescindível alterar o

meio vivido, afetar o ambiente de uma tal maneira, que esse não fosse apenas um lugar

a ser almejado, a ser alcançado, mas, também, a ser edificado.

[...] o homem não é apenas um ser natural, mas natural humano, isto é,

ser existente para si mesmo (fur sich sebst seiendes wesen), por isso,

ser genérico, que, enquanto tal tem de atuar e confirmar-se tanto em

seu ser quanto em seu saber. Conseqüentemente, nem os objetos

humanos são objetos naturais assim como estes se oferecem

imediatamente, nem o sentido humano, tal como é imediata e

objetivamente, é sensibilidade humana, objetividade humana. A

natureza não está, nem objetiva nem subjetivamente, imediatamente

disponível ao ser humano de modo adequado. (MARX, 2004, p.128/

grifo do autor)

É necessário transformar a natureza, no ato de transformação o homem faz a si

mesmo. A particularidade de cada momento histórico é definida de acordo como a

natureza é transformada, assim como, o próprio homem, ou seja, como a vida é

produzida e reproduzida. O trabalho humano é o modificação da natureza e de si mesmo

como modo de tornar possível a existência humana e as circunstâncias que configuram a

maneira como as pessoas vivem. No Manuscritos, Marx afirma a natureza como

contínua invenção e re-invenção, assim como, nos convida a entender a ponte entre os

3 Música composta por Luiz Carlos Sá e Sérgio Magrão, gravada por Milton Nascimento em 1981 no

álbum Caçador de Mim.

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grilhões de uma época e a maneira como a vida é realizada, inclusive, no próprio

fortalecimento desses grilhões. Nos conflitos cotidianos, empíricos, políticos,

percebidos por Marx, no decorrer de sua trajetória. Na cisão entre família, sociedade

civil e estado, na separação entre o particular e o universal, na incorporação ao espírito

livre hegeliano (de acordo com Marx) como necessária e simultânea negação das

particularidades singulares concretas, Marx percebe uma divisão e colisão ainda mais

intensa, quando se depara com o contínuo devir do potencial humano em decorrência da

re-invenção e da contínua sustentação das barreiras relativas à liberdade humana.

Escravo de si mesmo, de sua própria força, o que produz se torna e é difundido

enquanto mercadoria, inclusive ele próprio. Todo valor que seja vendável, todo valor

que seja comprável, que possa ser adquirido.

[...] O trabalhador se torna mais pobre quanto mais riqueza produz,

quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O

trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais

mercadorias cria. Com a valorização do mundo das coisas

(Sachenwelt) aumenta em proporção direta com a desvalorização do

mundo dos homens (Menschenwelt). O trabalho não produz somente

mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma

mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em

geral. (MARX, 2004, p.80)

Enquanto Marx aponta em Hegel o geral, a universalidade, como esfera a ser

alcançada para poder acessar a liberdade. Aqui, ele demonstra a generalidade como

categoria social, expressa no fazer humano, inclusive na vida cotidiana em seu modo

mais imediato. O indivíduo é ser social, a sua particularidade singular é desenvolvida

quando se relaciona socialmente. De acordo com Marx, em qualquer forma de

sociedade, em qualquer época é assim. Mas varia a configuração desta sociabilidade, no

modo de produção capitalista, o devir cotidiano do indivíduo, do ser social, se torna

meio de vida. Ele vive para poder trabalhar, e trabalha para poder viver. O próprio

processo produtivo para ele é estranho, assim como, o que é produzido mediante o seu

trabalho. O lugar que ele ocupa na sociedade é nebuloso, a conexão que existe entre si e

os outros se perde na linha do horizonte. Produz a si mesmo, cotidianamente, em seu

trabalho, em seus fazeres, de modo geral, mas não se reconhece.

[...] o estranhamento não se mostra somente no resultado, mas

também, e principalmente no ato da produção, dentro da própria

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atividade produtiva. Como poderia o trabalhador defrontar-se alheio

(fremd) ao produto de sua atividade se no ato mesmo da produção ele

não se estranhasse a si mesmo? O produto é, sim, somente o resumo

(Resumé) da atividade, da produção. Se, portanto, o produto do

trabalho é a exteriorização, então a produção mesmo tem de ser

exteriorização ativa, a exteriorização da atividade, a atividade da

exteriorização. No estranhamento do objeto do trabalho resume-se

somente o estranhamento, a exteriorização do trabalho mesmo”

(MARX, 2004, p.82)

O trabalhador só pode acessar o produto de seu trabalho, se tiver poder

aquisitivo para isso, ou seja se puder pagar por ele. A propriedade privada é produto do

trabalho, para acessar o que produzo preciso ter. Esse é o verbo mais conjugado na

sociedade burguesa. Nesse momento, do Manuscritos Econômicos-Filosóficos, Marx

enxerga o começo do domínio da propriedade privada na posse fundiária, pois nesta,

valores morais, individualidades, personificações são afirmadas. A pessoa se define não

pelo que é, mas sim pelo tem. A propriedade privada se tornou um fenômeno histórico-

mundial (MARX, 2004, p.102), ela é um modo de apropriação de si mesmo e do outro,

é uma maneira de se relacionar socialmente. É possível de ser sentida como cerceadora,

limitadora, restringente, não só pelo distanciamento entre o produto e seu produtor, mas,

também, nas esferas consideradas mais pessoais, mais íntimas de nossas vidas. Mesmo

em propostas com a pretensão de serem libertárias, como o comunismo considerado

rude por Marx, inconscientemente ela é fortalecida, ou seja, tais comunistas não

conseguem se relacionar socialmente de uma maneira autêntica, inédita e nova em

detrimento do modo de relação que configura a sociedade burguesa (MARX, 2004,

p.103). Nos alerta Marx. “[...] O lugar de todos os sentidos físicos e espirituais passou a

ser ocupado, portanto, pelo sentido do ter. A esta absoluta miséria tinha de ser reduzida

a essência humana, para com isso trazer para fora de si sua riqueza interior [...]”(

MARX, 2004, p.103)

A espiritualidade humana, a sua maneira de sentir o mundo também é lugar

elaborado, inventado, oriundo de sua relação social. Nesse sentido, é possível

percebermos a amplitude do que é a sociabilidade, e saber que não é apenas estar entre

pessoas, interagir com ela. Nos nossos momentos mais solitários, mais isolados,

trancafiados, ainda vivemos, a nossa vida ainda pulsa, nossos sentidos ainda existem e

se expressam. Aprendemos a sentir o ambiente construído ao nosso redor e a nós

mesmos na nossa relação com o outro, com a natureza que é apropriada, não porque

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usamos um pronome possessivo para nos referir a ela, mas porque dialogamos com as

suas particularidades concretas. A natureza é re-inventada, tudo o que faz parte de quem

somos é oriundo dessa interlocução que é um ato de transformação, de um novo devir

que não nega a história, que não nega o que um dia foi, o que um dia houve. É preciso

saber da diferença, das particularidades, para nos situarmos entre elas, para lançá-las em

novo horizonte.

[...] assim como a música desperta primeiramente o sentido musical

do homem, assim como para o ouvido não musical a mais bela música

não tem nenhum sentido, é nenhum objeto, porque o meu objeto só

pode ser a confirmação de uma das minhas forças essenciais, portanto

só pode ser para mim da maneira como a minha força essencial é para

si como capacidade subjetiva, porque o sentido de um objeto para

mim (só tem sentido para um sentido que lhe corresponda) vai

precisamente tão longe quanto vai o meu sentido, por causa disso é

que os sentidos do homem social são sentidos outros que os não os do

não social; [é] apenas pela riqueza objetivamente desdobrada da

essência humana que a riqueza da sensibilidade humana subjetiva, que

um ouvido musical, um olho para a beleza da forma, em suma as

fruições humanas todas se tornam sentidos capazes, sentidos que se

confirmam como forças essenciais humanas, em parte recém

cultivados, em parte recém engendrados. Pois não só os cinco

sentidos, mas também os assim chamados sentidos espirituais, os

sentidos práticos (vontade, amor, etc.), numa palavra o sentido

humano, a humanidade dos sentidos, vem a ser primeiramente pela

existência do seu objeto, pela natureza humanizada. (MARX, 2004,

p.110/ grifo do autor)

A pessoa que estranha a si mesmo naquilo que faz, assim como, lhe é estranho e

alheio o produto realizado por ela, não percebe a conexão de sua essência, de sua

particularidade individual com a força essencial humana, como parte da força essencial

humana. A propriedade privada, enquanto fenômeno histórico mundial do modo de

produção capitalista, é um modo de relação social baseada nas trincheiras, é a própria

confirmação das barreiras para a liberdade humana. Marx demonstrará, com bastante

clareza, em obras posteriores, como, por exemplo, na Ideologia Alemã, uma tensão

entre a relação social e a força essencial humana, portanto produtiva, na sociedade

burguesa. Por isso, a Ideologia Alemã é uma obra de aprofundamento, integra a

arqueologia marxista na conexão conflituosa entre o potencial humano e os limites para

a liberdade humana neste momento histórico. Mas, diferente do comunismo

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considerado rude por Marx – embrutecido – ele não propõe a negação da propriedade

privada no alvorecer da emancipação humana. Saibamos.

[...] A supra-sunção da propriedade privada é, por conseguinte, a

emancipação completa de todas as qualidades e sentidos humanos;

mas ela é esta emancipação justamente pelo fato desses sentidos e

propriedades terem se tornado humanos, tanto subjetiva quanto

objetivamente. O olho se tornou olho humano, da mesma forma como

o seu objeto se tornou um objeto social, humano, proveniente do

homem para o homem ([...]) Eu só posso, em termos práticos,

relacionar-me humanamente com a coisa se a coisa se relaciona

humanamente com o homem. A essência ou fruição perderam, assim,

a natureza egoísta e a natureza a sua mera utilidade (Nutglirhkeit) na

medida em que a utilidade (Nutzen) se tornou utilidade humana.

(MARX, 2004, p.109/ grifo do autor)

É preciso conhecer, portanto, a particularidade singular da propriedade privada,

saber como ela se tornou um fenômeno histórico-mundial. Enxergar o seu enraizamento

em nosso ser, nos nossos fazeres, nas nossas relações. Não é possível simplesmente

ignorá-la. Por esse motivo, a necessidade de fazer ciência, de encontrar conscientemente

a conexão entre a propriedade privada e o advento do modo de produção capitalista,

saber da importância que ela ocupa na sociedade contemporânea. Marx viveu num outro

século, há muito tempo já faleceu, a escritura de suas obras datam de um período

bastante distante, mas ainda vivemos num mesmo momento histórico, na época

capitalista, na época da sociedade burguesa. Fazer ciência na rota da emancipação

humana é conhecer a si mesmo, o que só pode ser verdadeiro se implica no

conhecimento de todo o emaranhado de relações sociais, do qual fazemos parte e somos

conseqüência. “[...] A crítica arrancou as flores imaginárias dos grilhões não para que o

homem os suporte sem fantasias ou consolo, mas para que lance fora os grilhões e a flor

viva brote [...]” (MARX, 2005, p.146)

Não retrocedamos, não neguemos que o próprio conhecimento também adquiriu

a forma mercadológica, que a ciência foi apropriada no sentido de um aperfeiçoamento

da propriedade privada. Possuir qualificação científica na atualidade significa a garantia

ou, pelo menos, a preocupação de garantir a renovação e continuidade deste modo de

relação social, da maneira como a vida é efetivada. É nesse sentido que eficiência e

produtividade científicas são julgadas, são medidas. E para julgar, e para medir, não

existe apenas uma ciência, mas pacotes de conhecimento, cada um com um objeto, com

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uma especificidade funcional contribuem tanto para o desenvolvimento da força

essencial humana (logo produtiva), como para a manutenção dos grilhões do atual

momento histórico, ou seja, da maneira como as pessoas se relacionam. Cada indivíduo

situado num modo de conhecimento, como profissional do ramo, torna o seu meio de

vida uma afirmação de sua identidade, vê a sua potência no aperfeiçoamento de sua

especialidade, confia nesta como confirmação de sua existência, a sua maior garantia de

vida é transitar cotidianamente como mercadoria.

[...] As ciências naturais desenvolveram uma enorme atividade e se

apropriaram de um material sempre crescente. Entretanto, a filosofia

permaneceu para elas tão estranha justamente quanto elas

permaneceram estranhas para a filosofia. A fusão momentânea foi

apenas uma ilusão fantástica. Havia a vontade, mas faltava a

capacidade. A própria historiografia só de passagem leva em

consideração a ciência natural como momento de esclarecimento

(Aufklarung) da utilidade de grandes descobertas singulares. Mas

quanto mais a ciência natural interveio de modo prático na vida

humana mediante a indústria, reconfigurou-a e preparou a

emancipação humana, tanto mais teve de completar de maneira

imediata, a desumanização. (MARX, 2004, p.111)

Futuro Presente

Toda forma de conhecimento, todo modo de ciência, é oriundo das múltiplas

potencialidades do devir social. Entendê-lo é saber o que é a particularidade da natureza

humana. Todas as obras de Marx, todo o trabalho de toda uma vida, independente de ter

sido publicado durante a sua existência, ou postumamente, segue um mesmo sentido, a

busca do máximo florescer das potencialidades humanas. É possível considerar a

perspectiva marxista em fragmentos, cada um deles assumindo a vestimenta de um

objeto de estudo, mas, se pretende buscar o amanhecer da liberdade, da emancipação

humana, a ciência pretendida, a de convergência dos diversos saberes, é a história, não a

historiografia, não a disciplina inscrita no âmbito acadêmico, mas aquela referente ao

percurso da humanidade, que nos ajuda a compreender como o trabalho humano, as

relações sociais, as forças essências humanas adquiriram a atual configuração. Não é

somente uma análise social, é uma pesquisa, investigação constante, realizada

cotidianamente, possível em nossos mais variados pensamentos e ações. Constatar no

ato de fazer uma comida, de compor uma canção ou de tecer uma roupa, a intrínseca

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heterogeneidade desvelada quanto mais nós aproximamos de algo ou de alguém. Saber

que a nossa personalidade, nossa individualidade singular, é conseqüente de nossas

relações sociais, da maneira como nos posicionamos todos os dias. Posições re-

inventadas, participantes de uma história que nos precede, somos herdeiros da riqueza

humana, mas, também, da atual miséria. Esta, além do desprovimento mais alarmante,

se dá na própria condição de existência na sociedade burguesa, os grilhões desse

momento histórico são as correntes em nossos atos. Se somos o que fazemos e como

fazemos, o limite do nosso vôo é sentido no trabalho que é condição para que tenhamos

condição de viver, é nas mediações que não enriquecem a nossa sensibilidade, e sim

configuram abismos e sombras que restringem a nossa visão sobre as nossas próprias

vidas. A proposta de ciência elaborada por Marx é a de saber de si ao conhecer o outro,

ao conhecer aquele não é idêntico a ti, é perceber que a corda bamba, bem afiada, em

baixo de seus pés, não é exclusivamente tua. Esta tensão, explícita ou implicitamente

está presente em toda sociedade, às vezes sentida a flor da pele, às vezes sem conseguir

romper a barreira da aparente indiferença. A teorização é uma maneira de compartilhar

o seu conhecimento, e se abrir para o espaço a ser preenchido que constantemente

haverá nele. Se não puder responder a todas as dúvidas, a todas as questões possíveis de

serem levantadas, erguidas, haverá o ímpeto do seu levante, expresso na sua busca, não

para saber mais, não para conseguir acumular mais informações. Tornar a consciência

de sua própria existência uma sonda por fendas que ainda te permitam sonhar, e que o

sonho seja motivo para prosseguir. “[...]Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo

de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo[...]”(ENGELS & MARX, 1999,

p.14/grifo do autor)

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O CAVALEIRO E OS MOINHOS4

Acreditar

Há existência dourada do sol

mesmo que em plena boca

nos bata o açoite contínuo da noite.

Arrebentar

a corrente que envolve o amanhã,

despertar as espadas,

varrer as esfinges das encruzilhadas.

Todo esse tempo

foi igual a dormir num navio:

sem fazer movimento,

mas tecendo o fio da água e do vento.

Eu, baderneiro,

me tornei cavaleiro,

malandramente,

pelos caminhos.

Meu companheiro

tá armado até os dentes:

já não há mais moinhos

como os de antigamente

(Aldir Blanc/João Bosco)

4 Música composta por Aldir Blanc e João Bosco, gravada pela primeira vez no álbum Galos de Briga, em

1976

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Referências

EIDT, Celso. O Estado Racional: Lineamentos do Pensamento Político de Karl

Marx nos Artigos da Gazeta Renana (1842 - 1843). Belo Horizonte: UFMG, 1998.

Em: <http://www.verinotio.org/di/di4_racional.pdf>. 10 mar. 2012, 14:38:30.

ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. A Ideologia Alemã. São Paulo: Hucitec, 1999.

MARX, Karl. Manuscritos Econômicos-Filosóficos. São Paulo: Boitempo,2004.

__________. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005.

__________. Para a Questão Judaica. São Paulo: Expressão Popular, 2009.

VIGOTSKI, L.S .O Significado Histórico da Crise da Psicologia. Em L. S. Vigotiski,

Teoria e Método em Psicologia (pp.201-417). São Paulo: Martins Fontes, 1999