Cidadania e Sustentabilidade

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CONSUMO SUSTENTÁVEL: utopia? Odla Cristianne Patriota Albuquerque 1 Resumo: Reflete-se sobre o impacto do consumo e do desuso orquestrado sobre o meio ambiente. Apresentam-se os estudos de Baudrillard (2011), Lipovetsky (2009) e Campbell (2007) sobre sociedade de consumo, valor signo, busca do self e obsolecência programada, bem como, os conceitos de desenvolvimento sustentável (BIDONE, ? e MONTIBELLER-FILHO, 2001) e direito e dever fundamental ao meio ambiente protegido (MEDEIROS, 2004). O objetivo é discutir sobre a ideia de consumo sustentável para que a equidade intrageracional e intergeracional não seja utopia. Palavras-chave: Consumo. Sociedade de consumo. Desenvolvimento sustentável. Direito fundamental. Dever fundamental. Abstract: The impact of consumption and orchestrated disuse on the environment are reflected upon. The studies of Baudrillard (2011), Lipovetsky (2009) and Campbell (2007) on consumption society, sign-value, search for self and planned obsolescence are presented. As well as the concepts of sustainable development (BIDONE, ? and MONTIBELLER-FILHO, 2001) and fundamental right and duty regarding the environmental protection (MEDEIROS, 2004). The aim is to discuss the idea of sustainable consumption for intragenerational and intergenerational equity not being utopia. Keywords: Consumption. Consumption society. Sustainable development. Fundamental right. Fundamental duty. 1 INTRODUÇÃO Uma das entrevistas 2 mais comentadas na revista Exame da primeira quinzena de Julho de 2014 foi sobre as 1 Mestranda do programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal do Maranhão. [email protected] 2 ROSSI, Lucas. Modelo de consumo americano é inviável, diz cientista. Disponível em <http://exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/1068/noticias/inovar- nao-basta > Acesso em 10.Jul.2014 0

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artigo sobre a utopia da sustentabilidade em tempos de globalização e capitalismo

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CONSUMO SUSTENTÁVEL: utopia?

Odla Cristianne Patriota Albuquerque1

Resumo: Reflete-se sobre o impacto do consumo e do desuso orquestrado sobre o meio ambiente. Apresentam-se os estudos de Baudrillard (2011), Lipovetsky (2009) e Campbell (2007) sobre sociedade de consumo, valor signo, busca do self e obsolecência programada, bem como, os conceitos de desenvolvimento sustentável (BIDONE, ? e MONTIBELLER-FILHO, 2001) e direito e dever fundamental ao meio ambiente protegido (MEDEIROS, 2004). O objetivo é discutir sobre a ideia de consumo sustentável para que a equidade intrageracional e intergeracional não seja utopia.Palavras-chave: Consumo. Sociedade de consumo. Desenvolvimento sustentável. Direito fundamental. Dever fundamental.

Abstract: The impact of consumption and orchestrated disuse on the environment are reflected upon. The studies of Baudrillard (2011), Lipovetsky (2009) and Campbell (2007) on consumption society, sign-value, search for self and planned obsolescence are presented. As well as the concepts of sustainable development (BIDONE, ? and MONTIBELLER-FILHO, 2001) and fundamental right and duty regarding the environmental protection (MEDEIROS, 2004). The aim is to discuss the idea of sustainable consumption for intragenerational and intergenerational equity not being utopia.Keywords: Consumption. Consumption society. Sustainable development. Fundamental right. Fundamental duty.

1 INTRODUÇÃO

Uma das entrevistas2 mais comentadas na revista Exame da primeira quinzena de Julho de 2014 foi sobre as constatações ambientais do cientista canadense Vaclav Smil, o qual traz à tona os números que chocaram o mais novo ativista do século XXI, Bill Gates: a China consumiu mais cimento nos últimos três anos do que os Estados Unidos em todo o século 20.

Os números vêm do livro Making the Modern World: Materials and Dematerialization (“Fazendo o mundo moderno: materiais e desmaterialização”, sem tradução para o português), onde Vaclav Smil defende que o atual modelo de consumo impede que os avanços tecnológicos minimizem o impacto ambiental das indústrias no mundo.

Para Vaclav Smil, a sociedade contemporânea não é sustentável à medida que o modelo da economia atual está baseado em crescimento 1 Mestranda do programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal do Maranhão. [email protected] ROSSI, Lucas. Modelo de consumo americano é inviável, diz cientista. Disponível em <http://exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/1068/noticias/inovar-nao-basta> Acesso em 10.Jul.2014

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econômico, o que significa aumento de consumo per capita. Percebe-se, então, que os países em desenvolvimento, como a China, por exemplo, não estão interessados em crescer apenas 1% ou 2%, mas sim, buscam um crescimento de dois dígitos.

Daí surge o dilema deste século: como equilibrar consumo e sustentabilidade? Como deter a obsolescência programada, tão comum entre as grandes marcas que dominam a publicidade? Como evitar que os países em desenvolvimento não consumam? E como dessacralizar o consumo?

Sim, o homem contemporâneo encontra no consumo a satisfação do self. O ato de consumir passa a ser a forma de afirmar, confirmar e construir a sua identidade. (CAMPBELL, 2007). O consumo é a resposta à crise de identidade deste homem que se autodefine quase sempre exclusivamente em termos de seus gostos. Parafraseando Campbell (2007, p. 47): eu consumo, logo sei que existo.

Pensando-se em consumo, Vaclav Smil aponta em sua obra os números do consumo da China no que tange até produtos de luxo. O cientista diz que a China já compra mais produtos de luxo, como Louis Vuitton, Gucci e Prada - do que todo o resto do mundo junto. Além disto, o país é o maior importador de petróleo no mundo e o maior consumidor de energia. Para Vaclav Smil, isso é inviável em escala global. Compreende-se a preocupação do cientista, especialmente em se tratando de toda a escassez de matérias- primas nos dias atuais – mas, como culpar a China pela escassez? Como acusar os Chineses de consumistas se vivemos em uma sociedade de consumo? Como apontar a China como responsável por fazer algo que todo o mundo desenvolvido vem fazendo desde o boom da Revolução Industrial?

Como afirmou Baudrillard (2011, p. 13): “[...] os homens da opulência não se encontram rodeados, como sempre acontecera, por outros homens, mas por mais objetos.” E são estes objetos que identificam o homem contemporâneo, que o fazem ser aceito na sociedade. Como negar isso à China?

2 CONSUMO E FELICIDADE

Observa-se que o título traz “consumo” antes de “felicidade” e é exatamente isto que representa o século XXI. Baudrillard (2011, p. 49) nos lembra que todo o discurso sobre as necessidades assenta em uma antropologia ingênua: a da propensão natural para a felicidade, sendo esta felicidade a referência absoluta da sociedade de consumo, revelando-se como o equivalente autêntico da salvação.

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Mas, seria o consumo o caminho para a igualdade entre os povos? O modelo americano de consumo - criticado por Vaclav Smil – transformaria a China em uma potência mundial?

A resposta pode até ser afirmativa, no entanto, as práticas consumistas e a ânsia pela posse e pela distinção, acabam conferindo uma estratificação social dos consumidores o que contradiz a proposta inicial: consumir para ser aceito, ser reconhecido. Os mesmos objetos que levam à “felicidade” são o limite das possibilidades das pessoas, e sendo assim, marcam também seus lugares na sociedade.

Vaclav Smil (2014) exemplifica este limite quando expõe o consumo e a pobreza na China:

“A China é um exemplo perfeito disso. Tudo lá é gigante. Os carros, as casas, os prédios... A China tenta ser maior do que os Estados Unidos. Não é uma questão de buscar o desenvolvimento humano. É uma questão de ser o primeiro animal na cadeia. Ainda há milhões de chineses pobres, enquanto uma fatia da população vive melhor do que americanos ricos.”

Vemos assim que a questão do consumo como justificação pela busca da “felicidade” é algo independente de ocidente ou oriente, é uma questão humana e social. Na verdade, passa pela idéia de modernidade. Kumar apud Campbell (2007, p. 49) diz que uma das principais características da modernidade é a individualização, o que quer dizer que as estruturas da sociedade moderna consideram como sua unidade o indivíduo, ao contrário do que ocorria nas sociedades agrárias e rurais, que consideravam o grupo ou a comunidade.

Quando se pensava no grupo ou na comunidade, pensava-se em consumo para a satisfação das necessidades básicas dos seus integrantes: comida, água, aquecimento, etc. No entanto, o consumidor moderno em vez de se preocupar em satisfazer necessidades, está mais interessado em saciar vontades: comer fast food no McDonald’s, tomar uma Coca-cola e ligar o aquecedor da marca “X”. Não importa se a conquista desta “felicidade” gerará mais lixo, usará alimentos transgênicos e se o aquecedor gastará mais energia não-renovável. O importante é a afirmação do self na aldeia global.

3 O MERCADO CONSUMIDOR E O DESUSO ORQUESTRADO

O homem apresentar necessidades e desejos é uma máxima em qualquer livro básico de marketing. Segundo Kotler e Keller (2006) as necessidades resultam de situações de privação por itens básicos ao passo que os desejos são a forma que as necessidades humanas assumem quando

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são particularizadas por determinada cultura e pela personalidade individual. As demandas existem quando tais desejos são apoiados pelo poder de compra.

O poder de compra é que possibilitará a realização dos desejos. E é esta a mola que movimenta o mundo em que vivemos, o qual se ordena sob a lei da renovação imperativa, do desuso orquestrado, da imagem, da solicitação espetacular e da diferenciação marginal. (LIPOVETSKY, 2009)

E para que haja a oferta de itens que venham a realizar estes desejos, as empresas fazem de tudo: pesquisa de mercado, estudos do comportamento de compra, contratam antropólogos urbanos e psicólogos sociais, etc. Vale tudo para ser o primeiro a satisfazer o desejo do mercado consumidor. E assim, o consumidor, nunca saciado, alimenta o ciclo do desuso orquestrado, e não percebe que

A sociedade de consumo é programação do cotidiano: ela manipula e quadricula racionalmente a vida individual e social em todos os interstícios; tudo se torna artifício e ilusão a serviço do lucro capitalista e das classes dominantes. (LIPOVETSKY, 2009, p. 182)

Inegavelmente percebe-se que tanto a oferta quanto a procura por bens funcionam pelo que é “novo”. As publicidades giram em torno das novidades dos produtos: a inovação é condição sine qua non para se manter em um mercado tão competitivo e assim o desuso se acelera. O aparelho celular que foi lançado há menos de seis meses já possui o seu substituto, o qual traz algumas inovações que fazem toda a diferença: a tela que era pequena passa a ser maior, assim como já foi maior há cinco anos e passou a ser pequena, e assim por diante. E não adianta, o consumidor vai trocar o seu aparelho que tem menos de um ano de uso. Isso acontecerá porque todos os integrantes do seu grupo de referência já possuem o novo modelo e ele não se sente “incluso” ou porque ele percebeu que não conseguirá mais se comunicar com os demais uma vez que o aplicativo que todos usam agora não existe para o seu modelo de aparelho.

Mas, por que as empresas orquestram este desuso? A verdade é:

[...] uma firma que não cria regularmente novos modelos perde em força de penetração no mercado e enfraquece sua marca de qualidade em uma sociedade em que a opinião espontânea dos consumidores é a de que, por natureza, o novo é superior ao antigo. (LIPOVETSKY, 2009, p. 185)

E serão as instâncias burocráticas especializadas que definirão os objetos e as novas necessidades. Serão as grandes da tecnologia, como Apple e Samsung, por exemplo, que dirão o que satisfará o consumidor e o quanto

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ele deverá pagar para encontrar a “felicidade”. E isso acontecerá para a toda a aldeia global já que os lançamentos a partir de então são mundiais.

E se pensarmos que o homem contemporâneo se afirma pelo que consome, trataremos de um conceito importante trabalhado por Baudillard (2011): valor-signo. A idéia é que não se consome o objeto em si, pela sua utilidade e sim pelo que ele representa. O objeto, então, remete o indivíduo a certa posição, a um determinado status. E assim, Baudillard nos faz entender que a lógica do consumo provoca algumas ilusões, pois o consumidor não conquista a satisfação “real”. E assim, segue em busca de mais objetos.

[...] a sociedade de consumo, com sua obsolescência orquestrada, suas marcas mais ou menos cotadas, suas gamas de objetos, não é senão um imenso processo de produção de “valores signos” cuja função é conotar posições, reinscrever diferenças sociais em uma era igualitária que destruiu as hierarquias de nascimento. (LIPOVETSKY, 2009, p. 199)

A questão que nos chama a atenção e nos faz refletir é onde este acúmulo de objetos vai parar? Onde todos os objetos em desuso serão “enterrados”? Se a busca de satisfação do self não tem fim e as empresas buscam satisfazer este consumidor ávido pelo “novo”, como se pensar em crescimento econômico sem aumento de consumo?

Confrontar o crescimento das necessidades e o aumento da produção equivale a pôr em evidência a variável da “intermediária” decisiva, que é a diferenciação. A relação deve estabelecer-se, portanto, entre a diferenciação crescente dos produtos e a diferenciação crescente da procura social de prestígio. Ora, a primeira é limitada, mas não a segunda. Não existem limites para as “necessidades” do homem enquanto ser social (isto é, enquanto produto de sentido e enquanto relativo aos outros em valor). A absorção quantitativa de alimento é limitada, o sistema digestivo é limitado, mas o sistema cultural da alimentação revela-se como indefinido. E, sem embargo, representa um sistema relativamente contingente. É precisamente aí que residem o valor estratégico e a astúcia da publicidade; atingir cada qual em função dos outros, nas suas vaidades de prestígio social reificado. (BAUDRILLARD, 2011, p.71- 72)

Resta-nos questionar se o desenvolvimento sustentável é apenas um mito ou se é algo ainda possível no mundo globalizado.

4 CONSUMO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

O homem consome desde o momento em que nasce, sejam alimentos e água, seja o próprio oxigênio que é necessário para mantê-lo vivo. Na verdade, ele consome ainda no ventre da mãe, a qual compra vitaminas e ácido fólico para uma gestação saudável, escolhe o enxoval e mobília para recebê-lo, etc. Assim vemos que o consumo faz parte da natureza humana, seja o consumo em virtude de necessidades básicas ou mesmo o consumo de

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valores-signos como comentado anteriormente. O ponto crucial é: como continuar esse ciclo sem acabar com o meio-ambiente?

Se o objetivo das empresas é atender às necessidades e desejos do mercado consumidor e se, por outro lado, os recursos são limitados, a administração dos recursos existentes deverá ser feita de forma racional, econômica e eficiente.

Segundo Bidone (?, p. 5) o desenvolvimento econômico e a conservação ambiental não são objetivos mutuamente excludentes. Como qualquer sistema produtivo depende(rá) diretamente ou indiretamente de recursos naturais. Dessa forma, nada mais racional do que aliar desenvolvimento à sustentabilidade.

O conceito de “desenvolvimento sustentável” foi usado a primeira vez por Robert Allen em 1980 no artigo intitulado How to save the world. O conceito trazido era de “desenvolvimento requerido para obter a satisfação duradoura das necessidades humanas e o crescimento (melhoria) da qualidade de vida”. (BIDONE, ?, p. 5) No entanto, o conceito mais divulgado e utilizado é o do Relatório Brundtland (1987) que diz: “desenvolvimento sustentável é aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem suas próprias necessidades”. Vemos aqui a diferença crucial no que tange a preocupação com as futuras gerações (equidade intergeracional), além de visar à demanda da geração presente (equidade intrageracional). Mas, quem seria responsável por garantir esta equidade? O Estado? Ou as empresas que produzem os “objetos”?

Montibeller-Filho (2001) nos lembra que há o predomínio do pensamento segundo o qual as empresas são capazes de encontrar as melhores soluções, mesmo para a crise ecológica global. Entretanto, o cientista Vaclav Smil ressalta que na medida em que a inovação nos permite fazer um produto de forma mais eficiente, com menos materiais e energia, os preços caem e o consumo sobe. E cita um exemplo: usar-se-á menos metal por telefone, só que mais telefones serão comprados, então haverá mais metal no balanço final. E agora? As empresas por si só encontrarão a solução para o desenvolvimento sustentável?

Acserald et al (2009, p. 14) observa que

a estratégia da modernização ecológica é aquela que propõe conciliar o crescimento econômico com a resolução dos problemas ambientais, dando ênfase à adaptação tecnológica, à celebração da economia de mercado, à crença na colaboração e no consenso. (GRIFO NOSSO)

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E assim, mais uma vez, volta-se à idéia de que desenvolvimento econômico e conservação ambiental não são objetivos mutuamente excludentes. Ou não deveriam ser.

De fato, o Estado tem o dever de proteger o ambiente. Medeiros (2004, p. 109) frisa que em decorrência desse novo anseio comunitário e universal acabou sendo reconhecido um novo direito fundamental, tendo como objeto a proteção jurídica do meio ambiente, na condição de bem fundamental. A autora nos lembra que pelo prisma constitucional o ambiente constitui-se em bem jurídico tutelado pela nossa Carta Maior, por exemplo.

Dessa forma, ao incluir o meio ambiente como um bem jurídico passível de tutela, o constituinte delimitou a existência de uma nova dimensão do direito fundamental à vida e do próprio princípio da dignidade da pessoa humana, pois é no meio ambiente o espaço em que se desenvolve a vida humana. E deste ambiente são extraídos os recursos que, direta ou indiretamente, serão transformados em bens de consumo.

Medeiros (2004, p. 113), no entanto, nos lembra que a proteção ao ecossistema no qual estamos inseridos, e do qual fazemos parte, foi concebida para respeitar o processo de desenvolvimento econômico e social, ou seja, com o escopo de conservação/alterações produzidas por decisão democrática socioindividualmente constituída para que o ser humano desfrute de uma vida digna. E a vida aqui mencionada engloba a satisfação de necessidades básicas do ser humano, bem como sua auto-realização (a qual supõe a satisfação de desejos, e não apenas de necessidades). Assim, mais uma vez, percebemos que o consumo encontra-se no campo da complexidade humana – envolve seus valores, desejos, hábitos, gostos e necessidades.

No entanto, uma vida humana não pode cercear outra vida humana, para que assim todo e qualquer ser humano desfrute de uma vida digna. Vemos assim, a ratificação da importância da equidade intergeracional. O consumo desta geração não pode degradar os recursos do ambiente impondo limites à vida de gerações futuras.

Medeiros (2004, p. 125) frisa que esse dever fundamental está suportado em uma base de solidariedade para que haja a sua execução uma vez que é exigida a participação de todos para que esse mesmo todo tenha vida. Portanto, o dever fundamental de defesa do ambiente é um dever conexo ao direito fundamental de desfrutar um ambiente saudável.

Estamos, assim, diante de um dever fundamental que possui como titular muito mais do que somente o Estado, mas sim toda a coletividade. Caracterizando-se como um dever que afeta mais do que uma comunidade nacional, afeta toda a comunidade humana, toda a humanidade. (MEDEIROS, 2004, p. 139) Humanidade constituída pelos consumidores e pelos fabricantes

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e vendedores. Independente da função que cada um destes indivíduos exerça na sociedade, todos devem entender que a proteção ao meio ambiente é não só um direito, mas também um dever fundamental.

Dessa forma, o dever fundamental se caracteriza pela obrigação incumbida ao Estado e a cada um dos indivíduos integrantes de nossa sociedade em manter um ambiente saudável, sadio e equilibrado para as gerações presentes e futuras. Enfatiza-se a dependência humana da qualidade ambiental.

4 PARADIGMAS A SEREM VENCIDOS

Uma vez entendendo que a proteção ao meio ambiente é um direito, mas também um dever fundamental; percebemos que não há como transferir a responsabilidade da degradação do meio ambiente a um só indivíduo, ou a uma só empresa, ou mesmo, só ao Estado.

Vaclav Smil nos lembra que se antes usávamos o mesmo aparelho telefônico por 20 anos, agora temos um novo a cada seis meses. Jogamos fora bilhões de equipamentos todos os anos, o que não faz sentido algum se temos, também, o dever de proteger o meio ambiente. Portanto, para tornar as coisas mais sustentáveis, precisamos ser mais radicais e reformular a forma como consumimos. Não se pode transferir esta responsabilidade só para o fabricante. O consumidor também é ator fundamental nesta história.

Outro ponto a ser lembrado é o papel exercido pela Economia, bem como pela Ciência e Tecnologia. O caso chinês ilustra como ocorre a pressão: a urbanização intensa usa muitos recursos naturais (principalmente cimento). Mas, isto gera renda, que gera consumo, o que por sua vez também aumenta a demanda por recursos. E como proteger os recursos naturais que são limitados? Como diminuir o consumo ou torná-lo sustentável?

Segundo Caleiro (2014), para Vaclav Smil e Bill Gates, o ritmo de aumento do consumo e do padrão de vida não vai diminuir tão cedo. Por conseguinte, a única solução para evitar uma escassez no futuro é melhorar a eficiência e encontrar substitutos, além de apoiar fontes sustentáveis de energia.

Entretanto, Bidone (?, p. 13), enfatiza que

[...] os ambientalistas insistem que a capacidade de nosso planeta em receber nossos resíduos e dejetos e em prover matéria bruta e energia é limitada, e que esta limitação não pode ser desconsiderada pela crença em que os avanços tecnológicos são verdadeiros saltos que eliminam nossos problemas.

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No que tange a perspectiva de um consumo mais consciente, Vaclav Smil não é muito otimista, pois para ele, o consumo é uma ferramenta para mostrar que estamos à frente socialmente. O cientista afirma que somos animais buscando uma gradação social. Sendo assim, os indivíduos seguem comprando brinquedos a vida toda para mostrar superioridade: é o carro maior, a casa maior e milhões de aparelhos eletrônicos. Bens de consumo que são valores-signos, como já comentado anteriormente.

Baudrillard (2011, p. 69) afirma que

Uma das contradições do crescimento consiste no fato de produzir simultaneamente bens e necessidades, mas não com o mesmo ritmo – uma vez que o ritmo de produções dos bens é função da produtividade industrial e o ritmo de produção das necessidades, função da lógica da diferenciação social.

Destarte, as empresas sempre estarão percorrendo um longo caminho na tentativa de satisfazer este indivíduo que em um mundo globalizado tenta afirmar o self através do consumo. E, mais uma vez, o consumo exercido desta forma, não é sustentável, pois não se consome por necessidades básicas, mas sim por desejos, os quais não têm limite. Baudrillard (2011) demonstra tal pensamento quando nos adverte que a lógica do consumo provoca algumas ilusões, a começar pela idéia de satisfação “real” dos indivíduos. Os meios “realizadores” das pessoas, sugeridos pelo consumo, nunca encontram lugar fixo, estão sempre em “coisas” diferentes e inferiores às expectativas geradas.

E o ciclo de degradação dos recursos naturais limitados segue. E a pergunta persiste: como equilibrar consumo e sustentabilidade? Não é algo local, é global. O exemplo da China só nos faz lembrar de onde viemos e para onde iremos.

Vaclav Smil adverte que em algum momento, os recursos vão ficar mais caros, as questões ambientais complicarão o consumo e possivelmente teremos novas crises econômicas. A China, por exemplo, tem altos níveis de consumo de água, o que fará com que esse recurso fique mais caro no futuro, assim como já é no Oriente Médio.

Além do mais, a China também já importa muita comida. Mas, enquanto tudo isso ainda é controlável, o crescimento de consumo deve se manter alto. E onde isso irá parar?

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Impossível não concordar com Bidone (?, p. 15) quando ele diz que o crescimento da renda e a proteção do meio ambiente e dos recursos naturais, apesar de não excludentes, são dois fins conflitantes.

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O indivíduo que possui a renda para consumir, irá consumir. Ele terá em mente que suas necessidades e desejos deverão ser satisfeitos, faz parte da complexidade humana. O desenvolvimento econômico ainda terá no aumento do consumo per capita seu motor. Entretanto, o uso sustentável dos recursos naturais, requer uma mudança nas prioridades deste crescimento. (BIDONE,?, p. 15)

Como também já alertado por Vaclav Smil, a tecnologia por si só não dará conta de diminuir a degradação do meio ambiente, uma vez que mesmo com a substituição de matérias-primas mais poluentes por outras menos poluentes, o aumento do número de bens de consumo acarretará em uma maior quantidade de dejetos. E, claro, reconhecer que o desuso orquestrado contribui para a degradação.

E quem são os culpados? Somos todos nós. Todos os que consomem para auto-afirmação e auto-realizarão, que são movidos pela publicidade e pelo consumo desenfreado. Todas as empresas que produzem bens de consumo sem ter a responsabilidade pela logística reversa. Todo o poder público que não fiscaliza as empresas em sua manufatura, não controlando a produção e comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem riscos para a vida, para a qualidade de vida e para o meio ambiente e assim, não resguarda o direito fundamental das gerações atuais e nem futuras a um meio ambiente protegido.

Da mesma forma que a proteção ao meio ambiente é um direito fundamental, é também um dever. Falta-nos conhecer a lei e segui-la, tanto no que tange a exigência do seu cumprimento pelo Estado, como de nossos deveres como pessoa humana dependente deste ambiente.

REFERÊNCIAS

ACSELRAD, Henri, MELLO, Cecília. C. do A., BEZERRA, Gustavo das N.. O que é Justiça Ambiental. Rio de janeiro: Garamond, 2009.

BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 2011.

BIDONE, Edison D.. Introdução à Questão Ambiental e à Noção de Desenvolvimento sustentável: aula I. ?. 17 f. Notas de aula. Instituto Militar de Engenharia. Xerocopiado.

CALEIRO, Pedro J. Veja a comparação entre EUA e China que chocou Bill Gates. Disponível em < http://exame.abril.com.br/economia/noticias/veja-a-comparacao-entre-eua-e-china-que-chocou-bill-gates> Acesso em 10.Jul.2014

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CAMPBELL, Colin. Eu compro, logo sei que existo: as bases metafísicas do consumo moderno. In: BARBOSA, Livia; CAMPBELL, Colin (org). Cultura, Consumo e Identidade. RJ: Ed. FGV, 2007.

KOTLER, Philip, KELLER, Kevin Lane. Administração de Marketing. 12. ed. São Paulo: Prentice Hall, 2006.

LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

MEDEIROS, Fernanda L. F. de. Meio Ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado editora, 2004.

MONTIBELLER-FILHO, Gilberto. O mito do desenvolvimento sustentável: meio ambiente e custos sociais no moderno sistema produtor de mercadorias. Florianópolis: Editora da UFSC, 2001.

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