CHUVA OBLIQUA E A HETERONÍMIA

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ARTIGO A RESPEITO DE CHUVA OBLÍQUA, DE FERNANDO PESSOA.

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Universidade Estadual de Maringá – UEM Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350 _________________________________________________________________________________________________________

PESSOA EM PESSOA

“Chuva Oblíqua”, poema fundador da heteronímia?

Maria Natália Gomes Thimóteo (UNICENTRO)

1. “Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...”

A partir de Rimbaud, a poesia passa a ser “um sopro que abre brechas nos muros”

(Illuminations). Assim, entramos num mundo onde o real foi destruído, em que a única

realidade é a própria linguagem. O conteúdo de um poema já não depende do assunto ou

do argumento que o estruturava, mas confunde-se com todos os acidentes sonoros e

semânticos que se integram na sua verdadeira substância.

A matéria poética de grande parte da obra de Fernando Pessoa é constituída por

estados anímicos, cuja fluidez, sutileza e instabilidade são perfeitamente traduzidos e

transpostos por um processo eminentemente intelectual. Não há ruptura do pensamento

lógico e o fio discursivo segue, num continuum, todos os meandros psicológicos que se

lhe deparam. Nesse sentido, apesar de ser uma poesia moderna, Pessoa é um poeta

“clássico”, por submeter toda a matéria poética a um exercício racional, a um discurso.

No entanto, seus poemas possuem um sentido oculto, figurado, cifrado, onde o eixo

semântico sentir/pensar, sobre o qual ele coloca toda a força da sua obra, é somente um

dos seus aspectos, ou talvez o mais aparente... O leitor é convidado a jogar e

permanecer num eterno jogo de esconde-esconde, ou melhor, na semântica do

mostrado-oculto, das expressões de sentido multívoco, como nos diz Paul Ricoeur e

nós, intérpretes temos o nosso papel:

Quando o autor elabora seu texto e o entrega ao público como texto significante e alguém, na qualidade de leitor, resolve empreender uma viagem de leitura, completam-se as duas margens do processo dialético. A leitura passa a ser, segundo palavras de Ricoeur, um "phármacon" ou um remédio, através do qual um indivíduo, assumindo o papel de leitor tenta vencer o distanciamento e o estranhamento do texto, passando ao ato de domesticação, tornando-o mais caseiro e mais próximo mediante a busca da "significação". A

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proximidade que o leitor busca no texto suprime a "distância cultural" no momento em que tenta incluir a alteridade na ipseidade, ao mesmo tempo que preserva a alteridade do texto como "outra realidade" que evidencia o "ser do outro". (FERREIRA, 2000)

Na “Autopsicografia”, Pessoa nos fala da função do leitor de proceder a um trabalho

mais profundo, se quiser chegar à sua significação mais ampla. Sujeito/obra/leitor são

racionalizados pelo poeta e deverão ser pensados pelo intérprete, se este quiser alcançar

o sentido oculto no sentido aparente. Ao texto literário, Ricoeur atribui quatro

dimensões: a formal, a histórica, a fenomenológica (experiência de leitura) e a

hermenêutica (autoconhecimento). (VALDÉZ,1996,p.156). Neste último nível

encontramos a tensão subjacente entre a autonomia do texto e a força assimiladora da

apropriação do leitor. Não é outra a proposta presente na “Autopsicografia”.

O estatuto do espírito moderno é o da consciência explodida, como magistralmente

o considera Eduardo Lourenço, e desse espírito Fernando Pessoa nos oferece uma das

mais trágicas e geniais visões. Inventou-se múltiplo talvez para forjar, entre os seus

“diferentes eus”, um diálogo que já não existia, tragado pela solidão e pela necessidade

de uma perdida ternura. Pessoa está fora de Ordem num tempo em que não há Ordem,

sentindo-se talvez o único que considera essa ausência. “Fui como ervas, e não me

arrancaram...” diz queixoso Álvaro de Campos. Audacioso, alma sensível assustada

pela própria audácia, faz da “pátria-língua portuguesa” sua nação mais profunda, sua

consciência, sua condição, transformando a realidade em monumento lingüístico. Um

poeta da modernidade que, ao romper com a tradição, inova-a e lhe dá continuidade.

Fernando Pessoa não é somente um poeta clássico, tampouco um poeta lírico, no

sentido de lirismo segundo a bela expressão de Brunetière: “ la reflaction de l’univers à

travers un tempérament” (a refração do universo através de um temperamento). Pessoa

inverte a relação do mundo do escritor e sua arte poética será antes a “la réflaction d’un

tempérament à travers l’univers” (a refração de um temperamento através de um

universo). Estamos evidentemente na presença de uma manifestação da crise do sujeito

onde a consciência e, em particular, a consciência do “eu”, não é mais a medida de toda

a certeza”. (CHANDEIGNE, 1990, p. 316)

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2. “Esta paisagem (...) entra por mim dentro e passa para o outro lado da minha

alma...”

Em l914, Fernando Pessoa funda o interseccionismo, episódio fulcral no processo da

constituição heteronímica. Numa carta a Armando Cortes-Rodrigues, de 4/10/1914, o

poeta comenta sobre o seu projeto sobre o Interseccionismo e que o Engenheiro Campos

colaborará, numa Antologia a ser publicada, com a série de poemas “Chuva Oblíqua”.

Teresa Rita Lopes considera que “o primeiro poema verdadeiramente “moderno”,

“europeu”, sintonizado com as experiências da modernidade no domínio das artes

literárias e plásticas, foi a “Chuva Oblíqua”, pois “Paúis” e todo o Paulismo é ainda uma

ressonância do Simbolismo e do Decadentismo.”(LOPES, 1997, p.48)

O Interseccionismo dará lugar, meses mais tarde, à nova doutrina do Sensacionismo,

à qual Pessoa ligará os seus três heterônimos. O Interseccionismo representa uma

tentativa mais elaborada de construção de uma linguagem poética, capaz de exprimir a

complexidade de sensações visadas pelo Paulismo. Com esta corrente, o poeta pretende

exprimir a complexidade e a intersecção das sensações percepcionadas, aproximando-se

do Cubismo, que exprime a interpenetração e sobreposição dos planos dos objetos. Essa

corrente faz a apologia da sensação como a única realidade, que Fernando Pessoa

considera cosmopolita e universalista e que corresponde a uma arte sem regras,

conforme o texto datado de 1916:

A uma arte assim cosmopolita, assim universal, assim sintética, é evidente que nenhuma disciplina pode ser imposta, que não a de sentir tudo de todas as maneiras, de sintetizar tudo, de se esforçar por de tal modo expressar-se que dentro de uma antologia da arte sensacionista esteja tudo o que de essencial produziram o Egipto, a Grécia, Roma, a Renascença e a nossa época. A arte, em vez de ter regras como as artes do passado, passa a ter só uma regra - ser a síntese de tudo. (PESSOA, s/d, p.124, grifos nossos)

Toda a base do Sensacionismo de Campos se encontra nessa afirmação, fundada no

exercício interseccionista do ortônimo. No fim da sua vida, no rascunho da famosa e

“esclarecedora” carta a Adolfo Casais Monteiro, de 1935, Pessoa assim se define: “Hoje

já não tenho personalidade; quanto em mim haja de humano, eu o dividi entre os autores

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vários de cuja obra tenho sido o executor. Sou hoje o ponto de reunião de uma pequena

humanidade só minha” (PESSOA, 1990, p.92). Tudo leva a crer que a carta sobre a

gênese dos heterônimos conta uma ficção, que se trata de um conto previamente

rascunhado e que só depois, compôs. Esse conto, o do “romance-drama-em-gente”

inclui o poeta como parte ativa. Seria história esse “dia triunfal”, em que escreveu todo

o livro do seu mestre, O Guardador de Rebanhos? Muitas teses têm se construído sobre

essa carta. Causadora de desassossegos, dúvidas, leituras, desconfianças nas ironias

disfarçadas, citamos Teresa Rita Lopes: “Não sei se o Casais Monteiro acreditou na

ficção, se só sorriu como nós...”, diz a exegeta pessoana, revelando detalhes

microscopicamente descobertos:

De facto, só os dois primeiros poemas de Caeiro são de 8 de março, o tal ‘dia triunfal’. Por outro lado, a “Ode Triunfal” só nasceu três meses depois (...). A “Chuva Oblíqua” andará, aliás, de mão em mão: e, estranhamente, as primeiras em que esteve foram... as de Caeiro! De facto, uma lista de poemas atribuídos a Caeiro apresenta-se assim: 1. O Guardador de Rebanhos. 1911-1912; 2. Cinco Odes Futuristas. (1913 – 1914); 3. Chuva Oblíqua – 1914. (LOPES, 1997, p. 46).

Para sorrir, é preciso antes, depois e ao mesmo tempo, olhar a sério. Por mais que

se queira abrangê-la inteira, a história contada é sempre traçada em paradoxo, feita de

choques, recusas, afastamentos. Num fragmento da “Carta sobre a Gênese dos

Heterônimos”, a Adolfo Casais Monteiro, Pessoa narra a criação do poema “Chuva

Oblíqua”, que, segundo ele, foi produto da reação ao surgimento de Caeiro:

“(...) escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, os seis poemas que constituem a “Chuva Oblíqua”, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente. Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa...” (PESSOA, 1990, p. 96)

A partir daí, houve a criação dos “discípulos” tardios. Por quê vão ter lugar os

“diferentes”, adeptos das categorias opostas – consciência/sensação, sonho/vida,

eu/outros, uma vez que o Mestre as aboliu? Seria mais lógico que este só aparecesse no

fim, como a solução de todos os conflitos que os sustentam, fechando assim a

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“problemática” heteronímica. No entanto, Caeiro vai inaugurar a série, quase que uma

convergência de elementos dispersos e heterogêneos que continham já os componentes

unificadores, segundo a opinião de José Gil (2000, p.44)

No caso de Pessoa, falar-se em “alma dividida” parece-nos minimizador. O

ortônimo não se configura o mesmo de antes desse fenômeno, dessa volta a si-mesmo,

mas Outro. Muitas questões surgem daí: como Fernando Pessoa voltou a si mesmo?

Instalado-Outro, o “ortônimo”, ele próprio tornado variante de si mesmo. Portanto,

“Chuva Oblíqua”, poema-labirinto que abrange dois universos psíquicos, de

espaços/realidades interiores e exteriores torna-se um ritual terapêutico primitivo, de um

mergulho num tempo profundo, no caos, na morte, para além de toda a memória e a fase

última de renascimento. É a manifestação do nascimento de um novo heterônimo com o

alcance total da centralização da paisagem no espaço interior e fortes oposições entre

sensação e pensamento – antes apenas esboçadas. O interseccionismo alcançado em

“Chuva Oblíqua” é o divisor de águas daquilo que se convencionou chamar de “eu

poético” e provocar em Pessoa a posição de distanciamento do sujeito descentrado do

seu eixo para poder se constituir em sua multipluralidade. “A heteronímia é a negação

do eu empírico, mas também a sua extensão. Este é o paradoxo que afirma e exorciza o

ser alienado da modernidade, nas palavras de Fernando Pessoa: “Fingir é conhecer-se”.

(ORDOÑEZ, 1994, p.25).

3. “Entre mim e o que penso , uma diagonal difusa...”

Esse regresso supõe a mediação de Caeiro na sua própria revelação enquanto poeta,

ao mesmo tempo em que permite ao ortônimo situar-se dentro do poetodrama. A sua

emergência da nebulosa primitiva só pode realizar-se através da sua inserção no sistema

heteronímico. Tratar-se-ia, em outros termos, daquele Fernando Pessoa que se define,

antes de mais, por oposição a Alberto Caeiro, no outro pólo do sistema. Esse seu

movimento de regresso a ‘ele-mesmo’, em reação à sua inexistência naquele que em si

surge naquele “dia triunfal”, far-se-ia acompanhar, não apenas da influência do Mestre,

e de cada um dos poetas que, como Reis e Campos, se situam entre si-mesmo e Caeiro’,

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mas também do movimento pelo qual o Pessoa ortônimo se desdobraria numa

pluralidade de derivações poéticas que não chegam a autonomizar-se por completo,

como o Pessoa “paulista” e “interseccionista” da época heróica de antes do “Orpheu”.

Assim se expressa José Augusto Seabra, em Fernando Pessoa ou o Poetodrama:

A sua obra ortônima poderia com efeito distribuir-se por vários sub-heterônimos, se esta designação não inculcasse (como é o caso do semi-heterônimo Bernardo Soares) uma hierarquia no grau de diferenciação das suas linguagens. Melhor será, pois, tomar Pessoa como suporte de outros heterônimos virtuais que não chegaram a despegar-se d’ele-mesmo. (SEABRA, 1988, p.204)

O Pessoa orto-heterônimo interseccionista se situaria, ainda assim, no limite da

sua necessidade de regresso a ele-mesmo, e que a sua auto-rejeição poderia explicar-se

pelo imperativo de, para retomar os seus próprios termos, em si ou a si-mesmo,

restabelecer ou “pôr um profundo conceito, gravemente atento à importância misteriosa

de existir” que o colocasse ou o reconhecesse, ortonimamente, a par dos heterônimos

sem contudo, de si-mesmo se perder. Nota-se, no entanto, a ambiguidade da formulação

de Pessoa: por um lado, trata-se de um regresso a si-mesmo, por outro, de uma reação

contra a sua inexistência em Caeiro, que coloca “Chuva Oblíqua” como “manifesto e

lógico resultado da influência de Caeiro sobre o temperamento de Fernando Pessoa”.

(LIND, s/d, p.103). Eis o testemunho do poeta:

Estou quase convencido de que nunca estou desperto. Não sei se não sonho quando vivo, se não vivo quando sonho e o sonho e a vida não são em mim coisas mistas, interseccionadas, de que meu ser consciente se forme por interpenetração. Se sonho parece que me escrevem. Se sinto, parece que me pintam. (LIND, 1970, p.49)

Esta paisagem, que vê e que sonha, ao mesmo tempo, é simultaneamente escrita e

pintada. Como se o mundo fosse já, para si-mesmo, pintura e escrita, percepção e

sonho.Verifica-se em “Chuva Oblíqua” uma intersecção de realidades físicas e

psíquicas, de realidades interiores e exteriores; uma intersecção dos sonhos e das

paisagens reais, do espiritual e do material; uma intersecção de tempos e de espaços;

uma intersecção da horizontalidade com a verticalidade. Entre o material e o sonho, a

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realidade e a idealidade são tentativas para encontrar a unidade entre a experiência

sensível e a inteligência. Daí a intelectualização do sentimento para exprimir a arte, que

fundamenta o poeta fingidor. O sonho é um estado (subjetivo) de coisas (sinais, signos)

que se objetivam na cena dessa consciência, (uma paisagem vista do lado de fora do

lado do dentro do sujeito), marcada pela impressão de que, por um lado, é o próprio

sujeito que, ‘outrado’, perante si-mesmo se figura texto escrito e, por conseguinte, a si

mesmo se descentra, numa incomensurável abertura do seu devir-outro. Não seria o

Pessoa ortônimo de “Chuva Oblíqua” o Maestro de batuta, do VI poema? O dono do

caleidoscópio que o gira como e de que maneira quer? Com certeza não é mais o

Fernando Pessoa anterior a esse “dia triunfal”. Portanto, não foi nenhum regresso... e

sim, transformação.

Se é verdade que em “Chuva Oblíqua” ainda estamos diante de uma fragmentação,

um esforço titânico para regressar a si-mesmo, enquanto totalidade e símbolo

unificador; e se, por outro lado, como escreve Yvette Centeno, na impossibilidade de

regressar à inconsciência inocente da infância, como propõe Caeiro, regressa o poeta a

si próprio para sempre consciente e dividido (CENTENO, 1978, p.124). Se tudo isto é

verdade, contudo, pensamos ser sintomática a indecisão pessoana em assinar esse

manifesto interseccionista (expressão que, só por si, implicita o desmembrar e

fragmentar de que as intersecções pretendem ser a sua efetivação) com o nome de

Álvaro de Campos. É que coube, precisamente, a este heterônimo realizar a “ponte”

com o Pessoa ortônimo. Daí ser Campos aquele que se encontra mais perto dele, o

único que Pessoa conhecia, e ser o seu “mais histericamente histérico”. Em suma,

Álvaro de Campos é, verdadeiramente, o seu alter ego.

As cenas descritas nos seis poemas que compõem a “Chuva Oblíqua” são de

extrema nitidez, encaixam-se umas nas outras, com a duplicação de cada pormenor. O

primeiro poema evoca a imagem de um porto marítimo, com um caminho submerso

ladeado de renques de árvores. “Liberto em duplo”, nas duas encostas de suas

sensações: as que se referem a um porto e as que patenteiam uma outra paisagem com

árvores e estrada. Sensações que se sobrepõem e se interpenetram oriundas de estímulos

diversos ou de pré-estímulos ou de estímulos mentais, porque tudo se passa no “meu

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sonho”. Como diz o poeta: “os navios passam por dentro dos troncos das árvores/ com

uma horizontalidade vertical”. O espírito comanda a realidade e lhe dá forma

E a sombra duma nau mais antiga (...) (...) chega ao pé de mim, e outra por mim dentro, E passa para o outro lado da minha alma...

O poema é uma tentativa de patentear um momento do espírito que transporta o

sonho para a vigília e a transmuta em sonho. Seu “conteúdo” é a revelação de um

pretendido “conteúdo de alma”.

O segundo poema narra a dupla paisagem de um dia de chuva com uma estrada por

onde corre um automóvel e uma igreja com fiéis, um padre, um altar e o coro; tudo isso

é visto por uma “vidraça” – obstáculo que se interpõe entre o “fora” e um “dentro”, ao

mesmo tempo ligando-os. As duas paisagens se unem fortemente quando “é o eu não

poder quase ver” porque o estado de síncrese une tudo num abraço de cores e de sons

que extingue a nitidez das formas. O poema acaba quando se apagam as luzes da igreja,

há o impedimento do ver e o som da chuva cessa.

No terceiro poema, a “Grande Esfinge do Egipto”, encontramos o paralelismo entre

o interior da pirâmide de Quéops e o interior do quarto onde o poeta, à luz de um

candeeiro, escreve. Há um terceiro interior: a cabeça do poeta onde tudo se passa, pela

pré-visão: “o cadáver do rei Quéops, olhando-me com olhos muito abertos, e entre os

nossos olhares que se cruzam corre o Nilo...”. O rio, como a vidraça do primeiro

poema, é um olho outro que permite ver. O sonho aqui pertence não ao autor, mas a

Quéops, situação curiosa que leva o poeta a afirmar que há algo nele que escreve

enquanto faz versos: “ (...) todo o Egipto me esmaga através dos traços que faço(...)”

O quarto poema contém um dos versos mais conhecidos de Pessoa: “Que

pandeiretas o silêncio deste quarto!...” Irrompendo o silêncio, pandeiretas andaluzas a

tinir e a vibrar, sensuais e quentes, fazendo cair ramos de violetas como se houvesse lá

fora uma noite de Primavera. São várias sensações que, plurais e múltiplas, o poeta

consciente faz entrar no poema: “(...) Uma noite de Primavera lá fora / Sobre o eu estar

de olhos fechados...”. O quarto é a realidade e o sonho a Andaluzia? Pode ser o

contrário, pois o eu é o verdadeiro produtor das sensações que escolhe, divide e une o

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conjunto de sinais que é o conhecer. Andaluzia e pandeiretas, o poeta apenas as pré-

sentiu...

A noite e o dia enlaçam-se na “hora dupla” que o quinto poema espelha. A noite traz

uma visão de feira com carroussel, barracas, luzes; e o dia é reduzido a uma percepção

de ranchos de raparigas, sob o sol, com bilhas à cabeça, árvores copadas, pedras,

montes. Tudo se processa pelo mesmo encadeamento de sensações, com a mesma

antinomia “fora” e “dentro de mim” e “noite-dia”, que se fazem um: “E os dois grupos

encontram-se e penetram-se / Até formarem só um que é dois...”. O final do poema

finge a realidade: as mãos do poeta confundem-se com os passos da rapariga que

abandona a feira: sozinha e contente. Como o poeta, que está sempre a sair...

E por fim, o sexto poema traz um eu, uma maestro com batuta, e “de um lado” as

imagens de um cão verde e uma bola branca e, “do outro lado / um cavalo azul a correr

com um jockey amarelo”. Como fundo, uma música que sugere o passado, a infância

vivida e repensada. Temos duas ordens de imagens: a bola e o cão, cavalo e jockey; e

temos um eu frente a uma quarta instância, um alter-ego que é o maestro com a batuta,

que, fazendo romper a música, provoca o retorno à idade antiga. É este alter-ego que

desencadeia e quem termina o rol de recordações: (...) a música cessa (...) A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos, E (...) o maestro (...) Agradece (...) E curva-se, sorrindo...

O maestro é o mago que provoca e interrompe os sonhos; é ele que faz rodar o

caleidoscópio; é a pré-visão voltada para trás; o lugar onde tudo se confunde, como o

cosmos criado que retorna ao caos e se revela um caos cósmico, uma desordem

poeticamente harmonizada. E como se dá a sua despedida? Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro, E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça, Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...

A infância foge simbolicamente, pondo fim à rememoração e ao poema, a bola

rolando “pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos”. A rememoração é,

talvez, o ponto axial do “regressado” que escreveu a “Chuva Oblíqua”, contendo já e

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espalhando, como num “vaso que se parte em mais cacos do que havia...”, como dirá

Álvaro de Campos em “Apontamento”, em 1929...

Nos seis poemas surgem, em cada um, duas paisagens, ou exteriores ou interiores,

ou ambas. Algo liga essas paisagens, duas realidades que se interseccionam: a mente do

poeta, o sonho de realidade que opera a mágica de fundir o infundível e o inconfundível.

Numa experiência de pré-visão, que funciona como a sensibilidade e o entendimento

para Kant: o mundo é um caos de fenômenos (fulgurações) que o entendimento

seleciona, ordena e co-ordena com os seus instrumentos próprios. “A pré-visão é um

dos modos do pré-sentir, faculdade que permite o conhecer. O poeta que pré-sente e

pré-vê é um demiurgo (construtor, artífice), é um criador que parte do caos para o

cosmos, isto é, que ordena e harmoniza.”(LAGO e REGALA, 1982, p.113). Com essa

pré-potência, o poeta demiurgo, não conseguindo materializar no mundo real essa sua

potestade, cria um mundo ideal onde isso acontece, o mundo poético.

Intersecção por via de uma pré-visão, que é obra do pré-sentimento demiúrgico e

ordenador do caos fenomênico, este é o modelo teórico da poética de Fernando Pessoa.

Tinha razão o poeta quando não sabia a quem atribuir a “Chuva Oblíqua”, pensando em

coloca-la nas mãos dos orto-heterônimos. De um subjetivismo extremo, em oposição

clara ao “objetivismo absoluto” de Caeiro, o poema é “um mergulho extremo num

tempo profundo, para além da memória da infância, para além mesmo de toda a

memória.(...) O tempo profundo é a o tempo do caos. E se nele se mergulha é para

poder de novo criar um cosmos, um mundo novo” (GIL, 2000, p. 52)

No entanto, arriscamos uma leitura: despindo-lhe a forma interseccionista,

projetada a priori para acompanhar os movimentos de vanguarda, qualquer um deles

pode ser reconhecido no poema: o ortônimo que diz “a criança que fui chora na

estrada”, ou o choro convulso de Campos quando diz, com a mesma intensidade e pré-

visão, em “Casa Branca Nau Preta”: “Há só janelas abertas de par em par encostadas

por causa do calor que já não faz, / E o quintal cheio de luz sem luz agora ainda-agora, e

eu”. Até mesmo o estóico Reis, repete o mesmo sentimento do eu reconstruindo o

cosmos no caos: “Nem sei de quem recordo meu passado / Que ontem fui quando o fui,

nem me conheço / Como sentindo com minha alma aquela / Alma que a sentir lembro”.

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Quanto ao Mestre Caeiro, projetado para ser o oposto do ortônimo, não deixa passar em

branco a sua marca subjetiva de objetividade: “(...) Numa casa a uma grande distância/

Brilha a luz duma janela. Vejo-a, e sinto-me humano dos pés à cabeça (...)”.

4. “A minha infância está em todos os lugares”

Fernando Pessoa, o sujeito criador, criou-se a “si-mesmo” para opor-se a Caeiro,

fazendo um trajeto que o transforma em heterônimo, “graças à operação da consciência

que, refletindo-se sobre si, se toma a ela própria por objeto” (GIL, s/d, p.201). A este

“outro-eu-mesmo” coube desencadear o dispositivo central da heteronímia literária de

Pessoa – o tempo da infância. Foi preciso uma viagem a um tempo profundo – o do

Egito, conectar o presente com o passado para chegar ao mergulho no tempo da

infância, que é todo o poema VI da “Chuva Oblíqua”, fechamento dessa viagem. Como

uma âncora, a infância – esse espaço imaginário e esse tempo vertical - é a sua proteção

contra a sua incapacidade de viver, contra o nada existencial que nutre sua poesia.

Simbólica, mítica, na passagem de um heterônimo a outro, a infância é comum a todos,

construída como uma topologia que atravessa verticalmente o tempo cronológico.

O suporte da poesia pessoana está na “dramatização lírica”, como ele mesmo a

formula, nos seus vários níveis, e que no quarto grau entra o poeta em plena

despersonalização. Nesse grau, “certos estados de alma, pensados e não sentidos,

sentidos imaginativamente e por isso vividos, tenderão a definir para ele uma pessoa

fictícia que os sentisse sinceramente”. (PESSOA, 1990, p.275). Ou seja, o artifício do

sentimento cria o artefato da personalidade poética.

Numa outra carta de Fernando Pessoa a Casais Monteiro, de 20 de janeiro de 1935,

Pessoa explica a espantosa capacidade de definir as várias pessoas fictícias que formam

a sua personalidade poética fragmentada, “a capacidade de criar personalidades novas,

novos tipos de fingir que se compreende o mundo, ou antes, de fingir que se pode

compreendê-lo” (PESSOA, 1990, p.101). Um fingimento dentro de um fingimento,

dentro de um fingimento...

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Em 1918, Fernando Pessoa descreve todo o seu intuito de despersonalização, e,

paradoxalmente, toda a tentativa frustrada de esconder-se nos múltiplos eus: “Por

dramatização da emoção entendo o despir a emoção de tudo quanto é acidental e

pessoal, tornando-a abstrata – humana” (PESSOA, 1990, p.294). Perfeita é a visão de

Robert Bréchon, biógrafo de Pessoa, que diz: “Qualquer grande obra de arte é um auto-

retrato em forma de espelho, onde cada um descobre sua verdade escondida na

consciência profunda do outro” (BRÉCHON, 1988, p.540). Pessoa realmente queria

“sentir tudo de todas as maneiras” e ser “toda a gente e toda a parte!” Parece que

conseguiu.

Diante disso, não há nada para esclarecer. Tratando-se de Fernando Pessoa, o nada é

tudo. O poeta e sua obra continuam a encarar-nos por detrás do espelho e a

desassossegar-nos...

Referências

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