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CASO EXTRAORDINáRIO CAPíTULO 1 A RUA DESERTA Rua Caminho do Imperador é um dos mui- tos endereços em Petrópolis, cidade da região serrana do Rio de Janeiro, que homenageiam a família real. Ali os monarcas fizeram sua residência de veraneio. “Petrópolis é o lugar da Terra que talvez melhor mereça, do que qualquer outro, ser intitulada de paraíso terrestre”, escreveu o francês Carlos Augusto Taunay, que chegou ao Rio com 20 e pou- cos anos, em 1816, e fez-se um dos nomes da história da cidade. Contam os moradores que o Caminho era parte do trajeto de Dom Pedro II até um poço, onde se banhava. O local foi também a escolha de uma dezena de famílias para ser seu caminho de casa. As primeiras chegaram ao Cami- nho há 30 anos. A beleza do cenário com que depararam era muito parecida à que fora encontrada pela realeza, e que ainda pode ser admirada nos quadros do Museu Imperial, no centro da cidade. De um lado, encostas íngre- mes. Do outro, abismo. A rua era só um caminho estreito de terra cortando a Mata Atlântica. Com o tempo e os moradores, a via ganhou cascalho, sacos de areia e s Thais Lazzeri, de Petrópolis (RJ) DEPOIS DA CHUVA A história de uma rua fantasma em Petrópolis, no Estado do Rio, resume o drama dos brasileiros que vivem em áreas de risco: para onde ir depois de uma tragédia? A CASO EXTRAORDINáRIO 40 I éPOCA I 3 de março de 2014

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capítulo 1

a rua desertaRua Caminho do Imperador é um dos mui-tos endereços em Petrópolis, cidade da regiãoserrana do Rio de Janeiro, que homenageiama família real. Ali os monarcas fizeram suaresidência de veraneio. “Petrópolis é o lugar

da Terra que talvez melhor mereça, do que qualquer outro,ser intitulada de paraíso terrestre”, escreveu o francêsCarlos Augusto Taunay, que chegou ao Rio com 20 e pou-cos anos, em 1816, e fez-se um dos nomes da história dacidade. Contam os moradores que o Caminho era parte dotrajeto de Dom Pedro II até um poço, onde se banhava. Olocal foi também a escolha de uma dezena de famílias paraser seu caminho de casa. As primeiras chegaram ao Cami-nho há 30 anos. A beleza do cenário com que depararamera muito parecida à que fora encontrada pela realeza, eque ainda pode ser admirada nos quadros do MuseuImperial, no centro da cidade. De um lado, encostas íngre-mes. Do outro, abismo. A rua era só um caminho estreitode terra cortando a Mata Atlântica. Com o tempo e osmoradores, a via ganhou cascalho, sacos de areia e s

Thais Lazzeri, de Petrópolis (RJ)

depoisda chuvaA história de uma rua fantasma emPetrópolis, no Estado do Rio, resume o dramados brasileiros que vivem em áreas de risco:para onde ir depois de uma tragédia?

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sem destinomaria José

carvalho (de rosa)e sua família, da

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permanecemna rua

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terra para conter a erosão. O asfalto nunca chegou. Do altodo morro, os moradores viam Niterói pegar no sono eouviam o canto dos pássaros ser encoberto pela algazarradas cigarras. Depois de um tromba-d’água, em 17 de mar-ço de 2013, o Caminho do Imperador deixou de ser cami-nho para a maioria dos moradores. Na tragédia que alcan-çou a rua, oito pessoas morreram. Restaram no Caminhoduas famílias, uma senhora com problemas psiquiátricos(que recolhe lixo para decorar a própria casa) e uma porçãode casas interditadas pela Defesa Civil. A primeira casa darua não deixa ninguém esquecer o mar de lama que desceua encosta e invadiu a vida das pessoas naquele domingo ànoite. Do que já foi um quarto, restou parte das paredes. Alama abriu um buraco no 2o andar do sobrado. Na janela,permanece debruçado o colchão envolto numa colcha cor-de-rosa. Logo após o almoço, com o sol no alto, o cheirode urina invade a rua.As casas destruídas pelo barro, dizemos moradores, tornaram-se ponto de uso de drogas. À noi-te, o abandono é acentuado pelos poucos postes que emi-tem luz. Hoje, a rua é chamada de cemitério.

capítulo 2

a casa 150Das muitas afirmações que se fazem sobre Maria José

Carvalho, uma, por certo, é mentira. Ela não é teimosa.Ganhou essa fama por não arredar do Caminho. Ela senteque não tem alternativa. Não é a casa que Maria José nãoquer deixar para trás. É a história de uma vida inteira. É alembrança de sua mãe, que ficava na janela todas as manhãse a quem pedia bênção antes de ir trabalhar. São as irmãs,com quem dividia o dia a dia. Um ditado comum na regiãoé:“O mato cresce, o povo esquece”. Maria José faz a memó-ria da rua resistir em meio à solidão que calou o Caminho.A casa dela é uma das últimas da rua, no número 150, numadas muitas esquinas que contornam um morro do bairroIndependência.Acompanhada do marido, do filho e de umafilhado, Maria José ali permaneceu. Deu abrigo a um so-brinho, que vive de favor numa casa anexa a sua. Ela passousem luz os três primeiros meses após a chuva. Teve de pu-lar a lama e o poste caído, que interrompeu a energia. Com-prava gelo para acomodar o que a geladeira não podiaresfriar. A casa dela foi interditada pela Defesa Civil – oimóvel anexo ao seu, não. Se tivesse saído, talvez hoje rece-besse o aluguel social, uma ajuda de custo de R$ 500. Oaluguel social é destinado a famílias removidas de áreas derisco ou desabrigadas, cuja renda familiar total não ultra-passe cinco salários mínimos. No país, há 15 localidades(entre municípios e Estados) beneficiadas. Maria José dizque o problema não é apenas que os R$ 500 sejam insufi-cientes para alugar uma casa como a dela, com três quartos,sala, cozinha, banheiro e uma varanda.“Isto aqui é meu. Seeu quiser pôr um prego na parede, posso. Sairia daqui sepudesse comprar uma casa para mim. (A prefeitura) deixoueu morar aqui por 30 anos e agora vem dizer que não pode?”

rua fantasmao que sobroudas casas docaminho doimperador.interditadas em2013, se tornaramponto de drogas

No dia 17 de março de 2013,Maria José comemorou comum dia de antecedência seu aniversário.Ofereceu o tradicio-nal churrasco na laje aos mais chegados – e são muitos oschegados de Tia Zé, como é conhecida. Naquele dia, ela con-tou que a chuva começou a cair com o avanço da tarde. Pio-rou com o fim da luz do dia.Ao contrário de alguns vizinhos,que diziam observar o morro para não ser surpreendidos pordeslizamentos, Maria José dormiu. O barulho da chuva for-te se misturava ao som distante da sirene instalada pela De-fesa Civil no bairro Independência em 2011, depois da tra-gédia que vitimou mais de 900 pessoas na região serrana.Quando a sirene toca, as pessoas devem se dirigir para oabrigo mais próximo. Os moradores do Caminho contamque não saíram de casa porque não sabiam que ali era umaárea de risco. Todos repetem a mesma versão da história:nunca ninguém da prefeitura ou da Defesa Civil informouque o local oferecia risco. O secretário de Proteção e DefesaCivil, Rafael Simão, diz que a prefeitura colocará, neste ano,mapas nos bairros da cidade que ilustram as áreas de risco.

As construções do Caminho, como em tantos locais dopaís, não têm autorização da prefeitura. Surgiram com oformigueiro que costuma reger urbanização do Brasil. Amudança do campo para a cidade aconteceu com tamanhavelocidade a partir da década de 1940, que as pessoas foramconstruindo moradias onde podiam. Famílias como a deMaria José alcançaram as encostas ou as beiras de rios – im-próprias para habitação, pelos riscos de desastres naturais.Hoje, contam-se no Brasil 500 áreas de risco de deslizamen-to e 300 de inundações. Em 2011, o governo divulgou que 5

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O último trabalho de Douglas, que abandonou a escoladepois do ensino médio, foi como caseiro. Talvez por isso,ele diga que vai roçar com a naturalidade que jovens damesma idade falam em baladas. Laís estudou até o 6o anoe também está desempregada. Douglas é veterano das en-chentes. Foi salvo de um deslizamento por um vizinho em1988, quando tudo o que sobrou da casa onde vivia foramos pais. No dia da tragédia no Caminho, ele teve sorte, denovo. A família e ele não estavam em casa. Douglas voltoupara resgatar a irmã, isolada com outros moradores pelobarro que tomava a rua. Hoje, Douglas tenta salvar Munaydas águas. Eles se cadastraram no site da Defesa Civil parareceber mensagens, no celular, de alertas contra chuvas.Criar um sistema de alerta contra desastres naturais é umcompromisso recente dos governos, em todas as esferas.Douglas diz que, se a mensagem chega, ou se ele e a mulheracreditam que vai chover, pegam a filha, uma mala comalgumas peças de roupas e vão para a casa da mãe dele. São15 minutos a pé. Antes de sair, trancam a máquina de lavarroupa na cozinha. Desde que a rua foi abandonada, saquestornaram-se rotineiros. Se a tempestade vem na madruga-da ou se cai granizo, a qualquer hora do dia, fogem comMunay embrulhada num cobertor.

capítulo 4

a casa 136A primeira lição que Maximiliana Correia Carvalho

Mendonça, de 35 anos, aprendeu sobre as chuvas foi coma mãe, Sônia de Fátima Carvalho, antes de completar 10anos. Por ordem da mãe, Maxi deixava na porta de casa,permanentemente, sua bicicleta e uma mala com umamuda de roupa. Se chovesse forte, ela deveria usar a bicicletapara fugir do temporal. Maxi nunca imaginou que a liçãovoltaria a ser parte de sua vida. Naquele dia 17, ela estava emcasa comemorando seu aniversário de casamento. Preparouum jantar especial na cozinha, revestida de azulejos depastilhas verdes e brancas. Às 22 horas, a luz acabou.A casade Maxi foi tomada pela água da chuva, represada na lajeem construção. Maxi pediu socorro à mãe. Os vizinhos, dizela, começaram a gritar que a terra cedia. Maxi encaminhoutodos para a casa da tia Maria José. Ela mesma não saiu embusca de abrigo. Por ser estudante de enfermagem, pensouque era seu dever ajudar no resgate de vizinhos soterradospela lama. Maxi coordenou a tentativa de resgate, quedurou toda a madrugada. O primeiro bombeiro chegouao Caminho por volta das 10 da manhã.

Essa é uma das lembranças que Maxi tem quando voltapara casa. Por isso, tem evitado ir ao sobrado que construíacom o marido, Marcio Machado Mendonça, de 35 anos.Maxi diz ter comprado o terreno há seis anos. Conta quepagou R$ 4 mil e que investiu R$ 60 mil na construção dacasa de três andares, ao lado do número 136, onde moravasua avó.A escada íngreme dá acesso aos andares. O último,onde ficariam os quartos, não foi finalizado. A sala, no 1o

s

milhões de brasileiros viviam nessas áreas. A ocupação, afalta de planejamento do Poder Público para habitação, odesmatamento e as mudanças climáticas extremas aumen-taram os riscos – e a quantidade de atingidos. Todo ano, oresultado dessa conta toma as redes de notícias. Neste verão,a tragédia chegou primeiro ao Espírito Santo e a Santa Ca-tarina, depois se mudou para a Região Norte. No ano passa-do, Petrópolis foi uma das cidades atingidas. No Caminho,quem não fugiu da lama de carro ou de moto buscou abrigona casa de Maria José.

capítulo 3

a casa 151Se Maria José tivesse deixado seu lar,o sobrinho,Douglas

Carvalho Leal, de 28 anos, não teria onde morar com a mu-lher, Lais da Costa Mattos, de 22, e a filha Munay, de 1 ano e7 meses. O nome Munay, de origem indígena, foi escolhidopela avó paterna, descendente de alemães. Significa amoreterno. Na época da tragédia, Douglas construía uma casano terreno da mãe.Como a casa dele e a casa da mãe dividiama mesma entrada, conta Douglas, a Defesa Civil fez um lau-do, como se ali morasse uma única família. Por isso, a mãede Douglas recebeu auxílio para o aluguel,mas Douglas não.“E por isso tenho de morar na rua?”, diz ele. O casal e a filhavivem na casa 151, de quatro cômodos, numa espécie de 2o

andar da casa da tia. Os cobertores estão espalhados, bemcomo peças de roupa. O casal dorme com a filha no quarto,na mesma cama. Munay nunca quis dormir em berço.

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andar, transmite a sensação de que alguém ainda vive ali.Talvez pelo par de chinelos de Marcio em cima do tapete.No sofá, está o quadro com uma foto do casamento, comassinaturas de amigos e parentes. Na parede, um painel decortiça com imagens do casal.Ao lado, o calendário do anode 2013. A casa está lá, interditada pela prefeitura.

Maxi é uma entre as 1.536 famílias de Petrópolis quedependem do aluguel social. Apesar de ter feito o cadastrona Secretaria de Trabalho, Assistência Social e Cidadania(Setrac), como as vizinhas Carla da Silva e Rosiane dosSantos, cujas casas também foram interditadas, Maxi nãorecebeu o benefício logo após a tragédia. Ela e outras11 famílias precisaram recorrer à Defensoria Públicado município. Para Maxi, a ajuda de custo chegou setemeses depois. Os moradores dizem que o secretárioda Setrac, Jorge Maia, não queria conceder o aluguelsocial. Contam que Maia visitou as casas interditadas egarantiu que os moradores poderiam morar lá, porqueas estruturas eram boas. ÉPOCA tentou conversarpessoalmente com ele. Maia desmarcou a entrevista, esua assessoria informou que ele responderia por e-mail.Na resposta, disse apenas que a decisão sobre aluguelsocial é de responsabilidade da Defesa Civil.

Maxi é uma mulher alta, loira, de pele morena dosol. Está sempre maquiada, unhas feitas e o cabeloimpecável, cujos fios resistem, esvoaçantes, às altastemperaturas fluminenses. Maxi formou-se como técnicaem enfermagem no mesmo mês em que recebeu o aluguelsocial pela primeira vez. De março até outubro, diz ela,acordava sem saber onde passaria a noite. Passou a viverna casa de amigos e parentes. O estresse acumulado, naspalavras de Maxi, marcou feito cicatriz. “Parece que vocênasce de novo para viver outra vida”, diz. Ela desenvolveuestresse pós-traumático, e calombos pipocaram em seucorpo. Se chovesse, entrava em pânico. O casamento,fruto de um relacionamento de nove anos, balançou. Porfim, Maxi não consegue engravidar. Desde dezembro de2012, parou de se proteger. Os exames não mostraramnenhum impedimento. A obstetra que a acompanha dizque o trauma bloqueou a fertilidade, mas que um anotentando é normal. O fato de Maxi já ter 35 anos tambémpode ser uma dificuldade. Para ela, a culpa é da tragédia.

capítulo 5

a casa 165O costureiro Edson Manuel dos Santos Silva, de 27 anos,

morava no Caminho, sozinho, havia quatro anos. Sua avó,a caseira Maria do Carmo Santos, de 63, deu a casa, nonúmero 165, para ele morar. Edson imaginou que a maiormudança em sua vida seria abandonar baladas e viagenspara receber o primeiro filho, Yam. Não foi bem assim.Na noite do dia 17, Edson e sua mulher, grávida de setemeses, fugiram da lama. Apenas o enxoval de Yam não seperdeu. Os moradores do Caminho não sabiam, mas o

vidaimprovisada

maximilianacorreia e o

marido, marciomendonça, dacasa 136. eles

ficaram setemeses sem ter

onde morar

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bairro Independência tem um dos cinco maiores índicespluviométricos da cidade, segundo levantamento realizadopela prefeitura em 2007. Há muito tempo a prefeiturasabe do poder da chuva naquela área. Os moradores sódescobriram quando a lama desceu sobre suas vidas.

Agora, Edson vive na rua ao lado à de sua antiga casa,interditada. Seu novo endereço é na Rua Caminho doPríncipe, uma ladeira tão íngreme que exige de quem sobevárias paradas para manter o fôlego. Edson mora no 2o

andar de um sobrado. Aparece na varanda carregando ofilho, com 7 meses. Por dentro, o imóvel é espaçoso, masconta pouco a história da família. Enquanto tenta fazer ofilho dormir – e ao mesmo tempo sintoniza uma rádiode notícias –, Edson mostra os laudos da Defesa Civil.Um, de março de 2013, em seu nome. O outro é de agostodo mesmo ano. Edson diz que pediu um segundo laudopara apressar o pagamento do aluguel social. Até hoje,não foi beneficiado. Ganha R$ 870 líquidos e paga R$ 400no aluguel. Sua mulher está desempregada. Sobrevivemcom a ajuda da avó dele, Maria do Carmo, que cuida dasdespesas com o bebê, e da sogra dele, que paga algumasdas contas do mês. A assessoria da Secretaria de Trabalho,Asssitência Social e Cidadania de Petrópolis, responsávelpelo pagamento do aluguel social, disse a ÉPOCA queEdson não procurou ajuda depois da tragédia, mas que aSecretaria o procuraria.

capítulo 6

a casa 120Um visitante desavisado pode imaginar que o terreno

baldio no Caminho sempre foi apenas um terreno baldio.O mato crescido esconde pedaços de concreto. Quem faza visita guiada por um morador antigo descobre a piortragédia que alcançou a rua. No abismo, do outro lado,notam-se potes de mantimentos, brinquedos e até partesde móveis. Sinais de que já houve vida ali. Elsa SantosOliveira, de 43 anos, pouco sabe sobre a brutalidade daterra e da chuva que acabou com sua casa e sua família.No dia 17 de março, Elsa não estava em casa. Os celulares,afirmam os moradores, também não funcionaram porfalta de sinal. Elsa descobriu, no dia 18, que a sua foi a únicacasa completamente destruída na rua. O sobrado, comduas lajes, foi empurrado pela barreira de lama. Se fosseapenas isso, diz ela, conseguiria ir em frente. Foi muitopior. Ela participou de oito velórios em 15 dias. “Deiteicom uma referência de vida e acordei sem ter ninguém”,diz Elsa. Na casa em que ela não estava, moravam filhose netos. No andar de baixo, ela vivia com os filhos maisnovos, Diego e Jéssica. No 2o piso, como é costume emconstruções desse tipo, moravam o filho mais velho,Rodrigo, a mulher dele, Drucelaine, e os filhos RodrigoJunior e João Vitor, de 4 e 2 anos. Os vizinhos contamque a família de Elsa não fugiu, porque considerava acasa segura. Lembram também que Rodrigo, parcialmentesoterrado, pediu ajuda e deu a localização exata de cadaum na casa. As crianças dormiam no sofá, e a mulherdele estava prensada, contra a geladeira, com dificuldadepara respirar. Os irmãos estavam acompanhados dosrespectivos namorados. Foram achados perto da porta, dizuma moradora – um sinal de que tentavam fugir quandoa casa desabou. Drucelaine e Rodrigo foram resgatadosno dia 18. Drucelaine morreu três dias depois, quando oscorpos de seus filhos foram encontrados. Rodrigo resistiupor duas semanas. Elsa afirma que pediu a uma amiga dafilha caçula que imprimisse fotos de cada um dos mortos.Colou-as em cima de cada caixão lacrado.

Quem a conheceu fala de uma Elsa que não existemais. A morte da família arrancou-lhe a vaidade, acapacidade de dormir e acordar sem remédios e até umpouco da fé. Na época do desastre, a prefeitura ofereceuatendimento psicológico. Elsa não gostou do tratamento.“Os profissionais não estavam preparados para lidar comsituações extremas.” Uma psicóloga ofereceu tratamentogratuito, que ela faz até hoje. Elsa diz que não é justoque só ela tenha sobrevivido. “Eu tinha de estar lá”, diz.Na mão direita, leva o anel de namoro que a filha usava.Desempregada, tenta conseguir no Instituto Nacionaldo Seguro Social (INSS) a pensão do filho Diego, queela diz que trabalhava com carteira assinada. Conseguiuquatro testemunhas, fez uma carta de próprio punhocontando tudo o que lhe foi tirado, mas o INSS pedeoutros documentos que a lama levou. s

sonho alagadoa cabeleireira rosa

maria soares(de blusa preta), da casa

126. o novo salão nãocomporta suas clientes

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O prefeito de Petrópolis, Rubens Bomtempo, do PSB,comanda a cidade pela terceira vez. Ele fora barrado pelaLei da Ficha Limpa. Por causa de uma liminar do TribunalSuperior Eleitoral, em 2012, Bomtempo pôde concorrer– ainda que suas contas na administração da prefeiturade 2001 e 2008 tivessem sido rejeitadas pelo Tribunal deContas do Estado. Nesta terceira gestão, transformou aCoordenadoria da Defesa Civil em Secretaria, para darmais autonomia à Pasta. A Defesa Civil é fundamentalpara os municípios lidarem com os desastres naturais. Emmenos da metade dos municípios, a Defesa é organizada.No ano passado, ela formou 400 voluntários em Petrópolispara atuar nos primeiros instantes da tragédia ou até osocorro chegar. Se o treinamento tivesse chegado aosmoradores do Caminho, talvez a história de Elsa tivesseoutro final.

capítulo 7

a casa 126O futuro tem um sabor amargo para a cabeleireira e

manicure Rosa Maria Afonso Soares, de 45 anos. Rosa ébatalhadora. Fala das agruras da vida enquanto faz mãose pés de uma cliente. Saiu de Paraíba do Sul, uma cidadepequena da região serrana, para construir família e car-reira em Petrópolis. Em fevereiro de 2013, realizou o so-nho de ter o próprio salão de beleza, depois de oito anoscolocando cada pedrinha na parede, como ela diz. O salão,segundo Rosa, tinha capacidade para 20 atendimentossimultâneos. Oferecia depilação e cuidados para noivas emadrinhas. Lá, trabalhava junto do marido, Rogério, de49 anos, e da filha do meio, Tainara, de 20. Ainda faltavampiso e tinta nas paredes. Rosa diz que conseguia almoçare jantar em casa, além de poupar o dinheiro do alugueldo antigo salão, onde os três trabalhavam juntos. Semtristeza no olhar, ela conta como a chuva de março de2013 acabou com seus sonhos.

Naquele fim de domingo, com a lama entrando pelasfrestas da casa do número 126, Rosa, aos berros, pediuque todos corressem quanto pudessem. Sua mãe, que serecuperava de uma cirurgia em casa, foi carregada nascostas do namorado de uma das filhas e levada, de moto,para longe da lama. A família de Rosa buscou abrigo nacasa de Maria José. Quando foram resgatados pelos bom-beiros, Rosa descobriu que os amigos do bairro pensa-ram que ela e a família tivessem morrido. Rosa soubeainda que a família de Elsa, sua vizinha, cujos netos en-traram na casa de Rosa na manhã do dia 17, comemo-rando por ter comprado biscoitos recheados, estavadestruída. Rosa diz que ficou boba, que perdeu a noçãode tempo por uma semana. Depois, mesmo sob efeitodo trauma, teve de voltar a trabalhar. Começou atenden-do na casa das pessoas. Diz que teve vontade de aban-donar seu passado e construir uma nova história emoutro lugar. Mas e as filhas, que construíam família no

bairro? E a mãe, que precisava de cuidados especiais? Eos vizinhos e amigos, que ela considera da família? E aclientela que conquistara nestes anos? Rosa não podiaperder tudo isso. Ficou.

Ainda hoje, ela não sabe nem de quem são as roupasque usa. Da casa dela, no Caminho, pouco sobrou.“Nemlembro por quanto tempo fiquei andando com saco deroupa para cima e para baixo. Não quero mais saco naminha vida”, diz ela. As filhas mais velhas, Tainara e Ta-tiana, de 25 anos, planejavam casar no mesmo dia, em 12de outubro de 2013, para dividir os custos da igreja. Dian-te da nova situação financeira da família, Tainara desistiu.Rosa mudou para uma casa menor. O aluguel social deR$ 500 não paga todo o valor do aluguel, de R$ 550.O novo salão onde Rosa atende é minúsculo. Nele cabemseis pessoas, contando ela e Tainara. O marido, tambémcabeleireiro, teve de arrumar outro espaço. Além dos R$250 com aluguel, Rosa agora gasta com almoço e jantar.Ela diz que o faturamento caiu, porque as clientes nãotêm mais onde esperar e porque não há espaço parafazer depilação. Rosa abre o salão às 7 horas e fecha às22 horas, de quarta-feira a sábado. Na segunda e na terça--feira, atende em domicílio. Ela não acredita mais queconseguirá ter casa própria novamente. O secretário deDefesa do Município, Simão, diz que dar moradias paratodos os desabrigados ou moradores de área de risco éimpossível. Como os moradores do Caminho do Impe-rador, outras 16 mil famílias vivem em área de risco emPetrópolis, à espera. u

sozinhaelsa santosoliveira, dacasa 120.ela perdeu afamília todana tragédia

Foto: Ana Carolina Fernandes/ÉPOCA

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