Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

202
7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 1/202

Transcript of Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

Page 1: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 1/202

Page 2: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 2/202

Publicação cultural da UNIRIOUniversidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Leandro Konder

Rio de Janeiro2006

Page 3: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 3/202

Page 4: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 4/202

Page 5: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 5/202

Page 6: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 6/202

No exato dia em que meu irmão nasceu,num afastado hospital coberto pela neblina de

Petrópolis, em 1936, nosso pai, o médico sanitaris-ta Valério Konder, foi preso pela política de Getúlio Vargas, então ditador. Valério ficou na cadeia du-rante dois anos (foi companheiro de GracilianoRamos e aparece algumas vezes em “Memórias doCárcere”), enquanto nossa mãe, Yone, cuidava so-zinha, aos 18 anos, daquele que era seu primeiro- e único filho, até então – Leandro.

Hoje, mais de 68 anos depois, penso na in-fluência certamente decisiva daqueles primeirosanos de vida na evolução de Leandro e na forma-

ção de sua personalidade que dominaram aquelemenino frágil, freqüentemente doente, profunda-mente introspectivo.

Nosso pai saiu da prisão modificado pela duraexperiência. “Ele era um homem antes da ca-deia, gentil controlado, afável. Depois, tornou-seoutra pessoa, outro homem, agressivo, fechado,explosivo”, conta nossa mãe. Leandro se viu pra-ticamente atropelado por aquele homem estra-nho, misterioso, que emergia sozinho no jardim,durante o dia, para “não continuar agarrado àssaias de sua mãe” - que ficava fechada dentro decasa. Outro exemplo: certa noite, Leandro chorou.Nosso pai foi ver do que se tratava e acabou porlhe aplicar a primeira palmada de sua vida, comuma advertência: “se continuar a chorar, vai levaroutra palmada”. Leandro engoliu o choro – e nun-ca mais chorou. Estava com menos de três anos– e nunca mais chorou.

A influência do nosso pai sobre ele – e sobretodos nós, eu e nossa irmã Luiza – também foi

fundamental para nos interessarmos pela leitura.Nisso, Leandro sempre se destacou. Desde menino,

ele lia muito. Leu tudo que se possa imaginar. Atéhoje, ler é sua atividade essencial. Metódico, discipli-nado, lê, organiza, registra, escreve. Já publicou quase30 livros, alguns grandes sucessos de crítica e venda,como “Marxismo e alienação”, “Kafka, vida e obra”,“Os marxistas e a arte”, “Introdução ao fascismo”,“A democracia e os comunistas no Brasil”, para citarapenas alguns títulos.

Preso e torturado em 1970 exilou-se em seguidae morou na Alemanha durante seis anos; depois, naFrança, até seu regresso ao Brasil, em 1978. Mas ja-

mais fala da prisão e da tortura – assim é meu irmãoquerido, um homem calmo, controlado, que mantémuma relação cerimoniosa do mundo.

Formado em Direito, professor de Filosofia daEducação na PUC do Rio de Janeiro, onde os alunoso adoram, mestre, doutor, confererencista, ensaísta,ficcionista, articulista do Jornal do Brasil, Leandro re-cebeu medalha do Congresso Nacional por seus “re-levantes serviços à causa da democracia” e foi eleito“intelectual do ano” em 2002. Já mereceu diversashomenagens por suas realizações, como escritor eeducador. Domina cinco línguas, além do português.

Até hoje, fala de nosso pai comrespeito, mantém-se num pata-mar quase inatingível da integri-dade. Jamais mente. Exemplar deuma espécie em extinção, é umhomem inabalavelmente ético, ge-neroso, solidário. Um filósofo quesonha. Sonha muito, sonha sempre.

Inverno de 2004 

Jornalista, escritor, diretor cultural do UniFMU, diretor do MASP,conselheiro da UBE e cronista da Rádio Cultura FM 

Rodolfo Konder

Mas nunca chora.

Page 7: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 7/202

Page 8: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 8/202

Sumário

Page 9: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 9/202

O lutadorinveste

contra o oponenteleva um soco

  – peste! –

sente a dor

(um pouco)e perde um dente.

O lutadorinsiste

(o olho tristesem cor pisca)

a mão avança e arriscaum cruzado de esquerda

pura perdaO adversário

  – salafrário! –desviadança

faz que vainão vai

e sorrindo felizmartela-lhe o nariz

O lutador cai

!!! &&& !!! ???

O lutador levantaLimpa o rosto no braçoO pigarro na gargantadá um passo à frentee ataca novamente

Mas falha: o inimigo  – canalha! –

se esquivaao perigo

e passa à ofensivaconsegue rodeá-loe golpeá-lo

no rim

O round chega ao fimcomeça o intervalo

O lutadorduro

desafiador

(o claro olhar escurode Ezra Pound)pergunta ao contendor:

– Agüentas outro round?

 L e a n d r o 

 K o n d e r

Page 10: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 10/202

   E  n  s  a   i  o  snsaioENSAIOS

Ana Maria de Bulhões-CarvalhoBeatriz Resende

Aristóteles de Paula BerinoLuiz Ricardo Leitão

Ricardo SallesPaulo Cavalcante, Ylan de Mattos,Lincoln Marques, Juliana Bonfim,

Guilherme Linhares e Fabíola Camargo

Page 11: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 11/202

 Ensaios

Page 12: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 12/202

   E  n  s  a   i  o  s

Afinal de contas, William Wilson era uma invenção que, apesar de nascida dentrode si, tinha vida independente. Quinn tratava-o com deferência, às vezes até com

admiração, mas nunca chegara a acreditar que ele e William Wilson fossem omesmo homem. Por esse motivo, não emergia por detrás do pseudônimo.

.Paul Auster, “Cidade de vidro”, Trilogia de Nova York, p.9

Ana Maria de Bulhões-Carvalho

A que prosa de ficção recorreLeandro Konder na sua primeiraincursão no universo romanesco?À prosa que ele mais conhece,professor e comunicólogo incon-testável que é: o depoimento oral.A narrativa de Bartolomeu (1995)supõe a transcrição  ipsis litteris  da gravação não-autorizada deuma entrevista, na qual o relatodos fatos de interesse da entre-

vistadora se justapõe aos regis-tros circunstanciais da própriaentrevista e dos personagens nelaenvolvidos. O entrevistado reve-la-se, aos poucos, um intelectualde proeminente carreira acadê-mica nacional e internacional naárea das ciências da linguagem.Fora procurado para a entrevis-ta, entre outros motivos, que aofinal da narrativa se insinuam,em função do conhecimento que

guardava desse “irmão de cria-ção” (p. 88), Bartolomeu, o maioranão do mundo, personagem-tí-tulo, foco principal do longo so-lilóquio. A entrevistadora se dá aconhecer, através dos olhos doentrevistado, como uma jovem,“pesquisadora,historiadora”, “es-trangeira” (p.109), com algumaatuação no movimento estudan-til de esquerda, interessada em

biografar Bartolomeu por suaextraordinária atuação na vidasocial e política da comunidadede uma determinada favela, num

período que se identifica, pelosdados expostos, com os anos dechumbo da ditadura.

Do objeto da entrevista, por-tanto, tudo o que o leitor sabechega-lhe através da voz grava-da de um narrador que, sempreque pode, manifesta sua diver-gência e não total simpatia pelopersonagem narrado. E faz issonum meio-tom, entre o incréduloe o irônico, a relativizar a con-fiabilidade integral do relato emprimeira pessoa, quando, teori-camente, esta seria a narrativaque, justo por ser enunciada porúnica voz, deveria receber o cré-dito da confiança do leitor. Mas,se o emissor se comporta comoum autor que ordena, seleciona eexplica os acontecimentos, exe-cra ou elogia os atuantes, o que

se pode fazer? Confia-se na oudesconfia-se da sua veracidade,da sua sinceridade? Vêem-se in-dícios de ciladas?

A sutileza de Leandro Kon-der impregna a obra de con-tradições e escova a escrita acontrapelo. O leitor já deveriadesconfiar que não leria a

prosa de ficção desse filósofo,ensaísta, educador (e, diga-se, intelectual de humor refi-nado) sem algum desafio. 

As pistas de que haverá malí-cia na condução da narrativa vãosendo disseminadas ao longo dotexto de forma inteligente, a par-tir de uso ambíguo do pressupos-to fundador das prosas memoria-lísticas, ainda quando ficcionais:a convicção da veracidade e dasinceridade do narrado.

A primeira pista diz logo res-peito ao caráter negativo da evi-dência: o que se lê é o registro deuma gravação ‘não-autorizada’(p. 7): “Por favor, desligue o gra-vador. [...] não quero que minhaspalavras sejam gravadas porquequando estou bebendo nem sem-pre sou capaz de medir o alcan-

ce das coisas que digo”. O vetoà gravação faz parte da série deexpedientes narracionais que irãoindicar a natureza pouco confiá-vel da grande assertiva de que seconstitui o romance. E que argu-mento sustenta esse veto? (aindaa p. 7): “Entenda bem: não tenhomedo da bebida. Nunca fiquei deporre, tenho uma resistência fan-tástica para o álcool; posso bater,

sozinho, uma garrafa como essa[de uísque, p. 65] [...] Mas a partirde certo ponto a gente já não con-segue ter o domínio completo daexpressão, as palavras saem comuma espontaneidade excessiva[...] e podem ser mais facilmentemal-interpretadas. Por isso nãoquero gravador nesta conversa”.A insinuação do descontrole etíli-co alerta para as possíveis brechasou contradições do que é dito, ou,

no mínimo, para sua indecisão.A desconfiança do leitor, quase aofim da entrevista, torna-se proje-ção de uma desconfiança do pró-prio narrador (p. 109): “Não seriasurpresa para mim, por exemplo,se você houvesse gravado as mi-nhas declarações, a minha fala.Não, naturalmente neste gravadorque está aqui, em cima da mesa,desligado, mas em qualquer outro

gravador, escondido”.O quanto de verdade expõe o

que finge ser enganado? E o que

11

Page 13: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 13/202

Passei a observá-lo com o cantodo olho. Seria mesmo um grandeembusteiro, um mistificador? Sefosse, precisava ter inteligênciasuficiente para iludir os outros.Se era um espertalhão, nos faziade trouxa. E os tais ‘poderes te-lepáticos’ não passavam de umaencenação teatral”. Mais adiante,deixa mais clara a diferença que,entre os dois, sustentava uma re-lação de amor e desprezo (p. 29):“Havia em Bartolomeu, para mim,algo de enigmático; eu descon-fiava dele, mas queria compre-endê-lo melhor. Soube mais tar-de que na escola os professoresacabaram por respeitá-lo, masentre os colegas havia alguns

que o maltratavam, davam-lhecascudos, debochavam dele. [...]Esse lado sofrido de Bartolomeume atraía; mas quando eu pro-curava enxergá-lo tropeçava nolado mistificador e me irritava”.Naquele momento da juventude,ainda num gesto de aproximação,evidencia um dos traços maisinstigantes do anão: o fato deBartolomeu ser uma espécie de

reconfiguração de Mari-Bárbola,a anã que se vê no lado direito dafamosa tela do mestre seiscentis-ta sevilhano Diego Velásquez, As

meninas – quadro tão bem ana-lisado por Michel Foucault em Aspalavras e as coisas (1966: pp.17-33). A figura da anã, reproduzidanas capas do romance, tambéminstiga o leitor à conjectura.

As referências a Bartolomeu sãotodas ambíguas, entre o risível, opatético e o incrível, sobretudo noque diz respeito às suas qualidadessupranaturais, cuja quase inegávelmanifestação gera desconforto nonarrador, pois considerá-las resul-taria em ofensa ao seu espírito ra-cional e científico. Por exemplo, oobjetivo modo como descreve umanão para a interlocutora contras-ta imediatamente com a alcunha

de nanico com que, em seguida, aBartolomeu se refere, misturandosimpatia a desdém: (p.50): “Nãosei se você entende de anões, masexistem criaturas que são anor-malmente pequenas e no entantotêm proporções normais, são bem-proporcionadas. São os chamadosanões ateliéticos (os americanos oschamam de midgets). Bartolomeunão era um midget: tinha os braços

e pernas mirrados e era cabeçudo”.[...] “Minha impressão, então, nãofoi ruim. Creio que cheguei a esbo-çar um sorriso e o nanico me pare-

indica o explícito veto à grava-ção que dá existência à próprianarrativa, além de suposto ex-pediente para evitar o efeito li-berador do álcool? Com certeza,indica que o entrevistado, no seu

 jogo de fingimento, vai puxar otapete. Ao término dessas horasde rememoração de fatos que odeixam em posição avessa à do“irmão de criação”, pergunta àentrevistadora (p. 109): “Quemlhe garante [...] que o que eu lherelatei corresponde ao que real-mente aconteceu há quase trintaanos? Quem lhe garante que euqueria que correspondesse?”.

Os fatos relembrados e sele-

cionados colocam em confrontoos dois irmãos em suas diferenteshistórias de vida. Bartolomeu eraum anãozinho encontrado pelopai do narrador numa lata delixo e fora adotado em condiçõesespeciais: o pai acaba reconhe-cendo nele o fruto de uma úni-ca escapadela à casa das putas.A adoção obviamente gerara des-conforto na família não só pelas

circunstâncias e pelas condiçõesfísicas visíveis do adotado mastambém pelas qualidades men-tais e espirituais que passou ademonstrar. O modo como refereao meio-irmão não é, em nada,abonador: primeiro, o conside-rava “retardado” (p. 15), opiniãoque, ainda incrédulo, muda umpouco, quando o revê depois quevolta de longa visita à casa doavô (p. 25): “Notei também que

se movia com uma desenvolturaque não tinha antes: andava rá-pido, não vacilava nos gestos quefazia. Continuava a ser uma figu-ra risível, mas já não era tão dig-no de lástima. Tive a impressãode que havia desenvolvido maisconfiança em si mesmo”. Nessaocasião, também se revelam ospoderes telepáticos do anão, ge-rando uma incipiente admiração

desconfiada (p. 27): “Pela primei-ra vez tive a impressão de que oanão, afinal, talvez não fosse oidiota que eu supunha que fosse.

Page 14: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 14/202

   E  n  s  a   i  o  s

certa absorve a carga da crítica deque fora alvo, antes da despedida(p.109): “Por que eu deveria ajudaralguém a alimentar a vã pretensãode reconstituir o passado ‘tal comoele efetivamente foi’?”. Apesar daatenuante que vem a seguir (p.110): “Na verdade, você não estámesmo querendo reconstituir os‘fatos’ e apurar objetivamente aligação entre eles. Ninguém con-segue ter com o passado uma re-lação ‘objetiva’.

Cada um de nós cria suas pró-prias imagens, onde cada um re-presenta, a seu modo, o que acon-teceu: somos todos facciosos, sóacreditamos no que nos convém.

Nossa visão do passado é semprecomandada pelos critérios com queavaliamos a sociedade em que vi-vemos, as condições do presente.

Quando nos debruçamos sobrea história que eu vivi e você estápesquisando,.é.absolutamenteinevitável que enxerguemos coi-sas diversas”.

O leitor fecha o livro com umadesconfortável sensação de repul-sa e simpatia. Na porta, ao sair,ainda ouve do narrador (p. 111) “Faça um esforço, supe-re a indignação, controleseus sentimentos nega-tivos em relação a mim.Sou uma fonte preciosa. Eestou disposto a lhe con-

tar coisas interessantes.Para isso, entretanto, se-ria bom que você voltassecom a mente mais aberta,sem idéias preconcebi-das. Seria ótimo se vocêdespisse essa armaduraideológica, essa carapuçaantiburguesa”.

ce ter percebido a boa acolhida”.

O negaceio no tratamento e nareferência ao anão são constantes,como na passagem em que comen-ta um diálogo que com ele travarae em que nota o desenvolvimentopelo qual passara após os oito anosem que dele se afastara por moti-vos profissionais. Nesse momento,adoentado, o narrador recebera avisita do meio-irmão e confidenciaà entrevistadora (p. 52): “A febreme incomodava um pouco, masnão me impedia de ficar impres-sionado com o discurso articuladoque o seu biografado estava fazen-do. Tinha se tornado um homemculto, ‘o pequeno’. Sabia das coisas.

Calculei que ele devia estar com 21anos. Falava como um intelectual.De onde teria extraído toda aquelaciência?”. Embaraça-se diante defatos incontestáveis que aponta-vam para a comprovação das com-petências, divinatórias ou não, doanãozinho. Usa da econômica con-tundência quando fala dele com oirmão de sangue (p. 48): “Zacarias,não se deixe cegar pela candura.

Não se iluda. Na infância, tudo in-dicaria que esse anão era retardado.Depois foi adquirindo certa es-perteza e acabou virando um ma-landrão, um grande empulhador.Desconfie dele. Se está fazendomilagres, não é porque seja santo:com certeza são truques, artifícios,encenações teatrais para enganaros trouxas”.

Mas, à grande cilada, reserva-se

o final. Os leitores de Walter Ben- jamin não terão dificuldade de per-ceber em Bartolomeu referência àanedota ilustrativa da primeira tesedo filósofo alemão no texto Sobre oconceito da história, de 1940 (1985:p.222). Segundo essa tese, se tivera seu serviço a teologia, o materia-lismo histórico ganhará sempre: ateologia, na anedota benjaminiana,seria um anão corcunda, um expert,

escondido em certo mecanismoescamoteador sob um tabuleiro,a mover de forma invisível a mãode um fantoche jogador de xadrez,

para lhe garantir todas as vitórias.Essas teses redesenham a signi-ficação de termos fundamentaispara um novo conceito de histó-ria, diferente do historicismo quenela vê mera sucessão de fatos,de caráter causal e aditivo, comsentido universal e messiânico.O materialismo histórico propõeum conceito de história que in-clua os “agoras” de que são feitasas ruínas dos vencidos, mas quetambém (dirá o judeu) conceitue opresente “como um ‘agora’ no qualse infiltraram estilhaços do messi-ânico” (Benjamin, 1985, p. 232).

Não há como se estender sobreo paralelo, mas basta recolher mais

alguns dados oferecidos pelo nar-rador sobre a atuação de Bartolo-meu e sobre si mesmo, para que areferência ao materialismo históri-co como método se insinue. Já em-presário de sucesso, freqüentava osmeios ‘progressistas’ do país, amigode general e político influente queencaminha o narrador para o mun-do da política e tenta protegê-lodas bandalheiras daquele mundo.

O narrador preocupa-se, não semalguma crítica, com a história dosvencedores, enquanto Bartolomeuescolhera (como duplo do meca-nismo benjaminiano) servir-se dareligião revolucionária e antiinsti-tucional, na seita dos “justos”, parafazer mover a engrenagem social,do lado dos vencidos. Acaba tra-gicamente assassinado junto comoutros líderes dos ‘justos’ a despei-to dos esforços do meio-irmão de

(segundo diz) salvá-lo. É a ele queBartolomeu lança, mordazmente,umas últimas palavras (p.101):“Se eu morrer, você vai ter a opor-tunidade de fazer algo útil. Podeescrever um livro sobre minha tra-

 jetória. Já tenho um título para lhesugerir: A vida gloriosa e os feitosmemoráveis de Bartolomeu da Po-gúncia, o maior anão do mundo”.O meio-irmão, a contragosto ou

não, atende-lhe o pedido.A entrevistadora foi esperta

em não alterar o relato bruto. Na

13

Page 15: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 15/202

Paul Auster, “Cidade de vidro”, Trilogia de Nova York, p.113.

Ana Maria de Bulhões-Carvalho

Outros aspectos relevantes dotratamento da linguagem em Barto-lomeu testemunham sobre as quali-dades do humor erudito do LeandroKonder, leitor de boa prosa e de bomteatro: o sofisticado uso de epígra-fes e o jogo intertextual na escolhade nomes próprios dos personagenssão dois desses recursos que funcio-

nam como dobradiça de aproxima-ção à segunda ficção criada por ele.A morte de Rimbaud (2000) é umdivertido romance policial apresen-tado sob a forma de uma coleçãode páginas de diários escritos pelosdiversos personagens envolvidos noesclarecimento do assassinato deum deles, o Rimbaud do título.

As epígrafes de Leandro Konder

são uma leitura à parte. Além de ilu-minarem o capítulo que a cada umase segue de modo muito econômicoe preciso, no caso de Bartolomeuas epígrafes ajudam a sustentar adivisão do texto em três partes, in-dicando as alterações do jogo de re-lações entre o narrado e o narrador:na primeira, reproduzida em russoe tomada a Primeiro amor, de IvanTurgueniev (Deparou-se-me um es-tranho espetáculo), a epígrafe dizbem da apresentação geral do futu-ro biografado; na segunda, reprodu-zida em alemão e tomada à fala deProteus no segundo ato do SegundoFausto, de Goethe (Um anãozinholuminoso! Nunca se tinha visto), aepígrafe reforça a ambigüidade irô-nica da relação personagem/narra-dor; e na terceira, reproduzida eminglês e retirada do Rei Henrique IV,de Shakespeare (Be happy, he will

trouble you no more), a epígrafe an-tecipa, à maneira do narrador, o fimque se anunciará com o fuzilamentodo anão e seus discípulos “justos”.

Mas o uso de epígrafes emA morte de Rimbaud superaem muito a experiência ante-rior. As epígrafes aí são umadeliciosa tessitura intertex-tual de grande sofisticação:acompanham, passo a passo,os sete dias da semana, de se-gunda-feira a domingo, ante-cipando, enigmaticamente, o

 jogo de esconde-esconde dodesvendamento de um crimecometido no “Grande Hotelde Combray”. A epígrafe é umaespécie de ‘pensamento do dia’ esustenta, poética mas ironicamente,as ações nele ocorridas: na segunda-feira, Shakespeare, Titus Andronicus,

anuncia que My heart suspects morethan mine eye can see – e abrem-seos quadros; na terça, com Borges,em espanhol, uma frase tomada aoLos teólogos, apresenta alguns dossuspeitos; na quarta, de La primadeca de Tito Lívio, de Maquiavel,uma frase comenta o descompassoentre querer e poder; na quinta, umapassagem tomada às Sátiras, de Pe-trônio, em que uma trupe de artis-tas retira a máscara e aparece como próprio rosto após o espetáculo, oleitor imagina iniciar-se a queda demáscaras para o desvendamento docrime; na sexta, há Drummond, comversos de Duração, de As impurezasdo branco, que comentam, de certomodo, a situação especial daquelescinco “escritores” e o quanto suamediocridade vai-se tornando maisevidente, o quanto a artificialidadeda situação criada pelo gosto exó-

tico do empresário amante da lite-ratura francesa, que aos cinco sus-tentava com substanciais quantias

para que se mantivessem recolhidosnaquele hotel para escreverem suasobras, e o quanto a máscara de suasincompetências estava para cair; nosábado, com a passagem do Can-cioneiro, de Fernando Pessoa (Nomal estar em que vivo,/no mal pen-sar em que sinto,/ sou de mim mes-mo cativo,/ a mim mesmo minto), oinvestigador vai finalizando as açõesque o levaram ao local do crime, aomalbaratamento de uma quadrilhade malfeitores, delinqüentes, ta-rados e racistas da pior espécie; aepígrafe, insidiosa, insinua que o in-vestigador pode estar vinculado aogrupo; o leitor se pergunta se é pos-sível; a reunião reveladora se daráno dia seguinte, domingo. Domingo

é uma farra de epígrafes! Como é ogrande dia do encontro, estão todoslá, os verdadeiros: de Paul Claudel,que com a fala de Danse-la-Nuit,de L’endormie, anuncia a chegadade todos; Un goût de desastre étaiten air é o verso de Louis Aragon, deLe paysan de Paris, que anuncia odesastre final; de Arthur Rimbaud,na posição central, entre os quatro,um verso de Une saison em enfer,

reforça a intensidade do clima doqual se confessa o pivot; de AndréMalraux, de La condition humaine,uma indicação de que os criminososserão encurralados; e, finalmente,Jean-Jacques Rousseau, a quemcabe arrematar, com uma frase deLes confessions, sobre uma espéciede arrependimento e libertação.

Se as epígrafes trabalham nosentido de antecipar o clima de

cada dia da semana através de su-gestão sobre o au-delà das açõese dos envolvidos, em suas reaçõesaos movimentos do investigador,cabe aos nomes próprios a segun-da grande delícia da leitura. Já emBartolomeu, a escolha de nomesvinha indicando um jogo um tan-to aleatório de referências, comose nota, num rápido exemplo, emPanúrgio/Panurge (Rabelais) ou

nos topônimos, como a Lanchone-te Guerra e Paz (p. 105). Mas é emA morte de Rimbaud que tal jogode referências cifradas a outras

Page 16: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 16/202

   E  n  s  a   i  o  s

Ana Maria de Bulhões-Carvalho 

é doutora em Literatura comparada pelaUFRJ, professora do Departamento de Teo-ria, da Escola de Teatro, do Centro de Letrase Artes da UNIRIO, onde coordena o Progra-ma de Pós-Graduação em Teatro.

leituras ganha um novo sabor. Sãoesses nomes que mais colaborampara a técnica de corrosão comque a linguagem trata o romancepolicial em Leandro Konder. Umbom exemplo é a descrição da gê-nese dos nomes. O velho Bergotte,o mecenas, enriqueceu através daloteria e com o dinheiro funda aANGE, formada pelas iniciais deAssociação Nacional dos GrandesEscritores, criado para patrocinarum grupo de escolhidos que comele partilhava o gosto pela litera-tura francesa, segundo o gerente,Saint-Ex “quadrilha de anjos para-

sitas” (p. 17), entre mais de setentaescritores que visita. Divertido é omodo aleatório e alheio à própriacausa literária com que são esco-lhidas essas alcunhas francesas:

Cláudio Nicodemos da Silvapassou a ser chamado afetuosa-mente de Claudel. Mauro Teodorodos Santos Oliveira, com o preno-me adaptado à pronúncia francesa,

“Mauro”, virou Malraux. José Ti-búrcio Gonçalves Aragão se trans-formou em Aragon. João CarlosSuslov, que pelo sobrenome tinha

sido apelidado “o Russo” por seuscompanheiros, tornou-se “Russo”,quer dizer, Rousseau. E SeverinoCavalcante, que freqüentava umaacademia de musculação e erabrincalhonamente chamado de“Rambo” pelos ginastas (“Rambô”,na forma afrancesada), ficou sen-do Rimbaud enquanto viveu.

 Esse romance também se mos-

tra escrito na contramão do sentido,como os nomes próprios parecem,sem dúvida, indicar e o investiga-dor trabalha para revelar. Medíocreestudante de Direito, mas amante

da literatura, imaginava que ao ta-lento dos escritores correspondes-se, na mesma proporção, “qualida-des humanas superiores” (p.149);não conhecia antes os escritores,mas, ao ver neles o mau-caratis-mo que apresentavam, regozija-secom o triste fim que lhes caberá.O nome do investigador é o únicoentre os homens que não traz refe-rências literárias explícitas, já que

até o nome do gerente do hotel es-creve-se Saint-Ex. Diante de tantosnomes famosos pelas referências aque aludem, Sdruws torna-se uma

espécie de onomatopéia ou de al-cunha à la gromelô, que é a lin-guagem de fonemas aleatórios quediretores de teatro algumas vezesusam para exercícios cênicos deatores, sem texto prévio.

A grande arte de Lean-dro Konder é a de recolocaro papel do intelectual nasociedade, a despeito deser pouco volumosa. Aindaque a linguagem o esca-moteie no mundo imagi-nado com um tom de purodivertimento, ali está, com

certeza, o pensador preo-cupado com princípios in-dispensáveis à manuten-ção da dignidade humana. É delicioso ver como vai virando o

 jogo e recuperando valores, semser didático. E, ainda que o leitorde romance policial possa facil-mente perceber as pistas para co-letar o indiciamento do criminoso,

isso não fere a inteligência do tex-to. Torna-o mais instigante e pro-move sua leveza.

Referências bibliográficas 

AUSTER, Paul. A trilogia de Nova York.Trad. Marcelo Dias Almada. São Paulo:Best Seller, 1985.BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito dahistória. In Obras escolhidas, Magia e téc-nica, arte e política. Ensaios sobre literaturae história da cultura. Trad. de Sérgio PauloRouanet. Pref. de Jeanne-Marie Gagnebin.São Paulo: Brasiliense, 1985.

KONDER, Leandro. Bartolomeu - A vida glo-riosa e os feitos memoráveis de Bartolomeuda Pogúncia, o maior anão do mundo. Rio deJaneiro: Relume-Dumará, 1995.A morte de Rimbaud. São Paulo: Compan-hia das Letras, 2000. (Série: Literatura ouMorte, indexada como literatura brasileirade ficção e de mistério.)FOUCAULT, Michel. As palavras e as coi-sas. Trad. de Antonio Ramos Rosa. Pref. deEduardo Lourenço e Vergílio Ferreira. Lisboa:Portugália, 1966.

15

Page 17: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 17/202

É porque o ser humano não é um animal igual aos outros e não podeser posto de quatro patas que o seu mundo moral e político é tão

 complicado e, ao mesmo tempo, tão digno de interesse.Leandro Konder. “Denis Diderot”2.

Beatriz Resende

Ao se defrontar com a fortunacrítica de Leandro Konder, o pri-meiro grande espanto que toma oleitor é a capacidade que tem estepensador de ser múltiplo. Múl-tiplas são as maneiras pelasquais Leandro Konder vemexercendo a escrita de seupensamento crítico: o ensaiofilosófico, a literatura de fic-ção, a obra de cunho acadêmi-co, a crítica literária, o artigopolítico, o volume de intençãodidática, a crônica jornalística,o texto irônico e, quando foinecessário, o documento deagit-prop3. Tão extenso e variadoexercício da arte da palavra jamaissignificou, porém, fazer qualquerconcessão a seus princípios filosó-ficos e políticos, expressos sobretu-do nas obras dedicadas aos estudosdas idéias socialistas, do marxismoe da dialética. O surpreendente, noentanto, é que por toda a sua vidae obra, mesmo nos momentos maisduros – e lembro aqui o que diz oautor sobre Brecht: “Pode-se mes-mo dizer que, nas condições histó-ricas em que Brecht vivia, às vezesera difícil não ser comunista” -, areflexão crítica desenvolvida tenhanão apenas se pautado pela tole-rância mas também permanecidofirme no propósito de conviver in-

telectualmente com divergências,fazendo do diálogo um método eda generosidade uma poética.

Acrescente-se a esta postura

intelectual o humor e poderemosperceber porque só mesmo nossoautor poderia parodiar Rosa Lu-xemburgo, quando esta afirma que“liberdade é sempre a liberdade dequem pensa diferente”, dizendo:

“A democracia dependede os chatos terem seusdireitos assegurados, di-vergindo de nós” 4 .

Sobre Teatro propriamente,

Leandro Konder escreveu pouco,mas, por múltiplas razões que pro-curarei abordar, o dramaturgo ale-mão Bertolt Brecht é não só umareferência fundamental na obra doautor mas também uma figura-chave na prática de uma espécieensaística rara, especialmente en-tre nós, no Brasil: o ensaio sobreuma vida. Não falo, absolutamen-te, do gênero biográfico, tão em

voga. É muito diverso o que repre-sentam obras que tomam comotema inicial, capaz de disparar re-flexões críticas fundadoras, a vidade intelectuais (e a lista a seguir jáapontará para o sentido da expres-são “intelectual” aqui usada) comoWalter Benjamin, Flora Tristan,Barão de Itararé, Kafka e BertoltBrecht. Encontramos exemplosdessa prática ensaística em algunsoutros autores como Júlia Kriste-va com Hannah Arendt, NorbertElias, com Mozart, ou ainda noportentoso Saint Genet de Sartre.Tais obras também não são estu-

dos de um autor, ou do que MichelFoucault descreve como funçãoautor, ainda que, ao falarmos dodramaturgo, criador de um méto-do e uma escrita cênica próprios,nos aproximemos do que Foucaultchama, segundo ele mesmo “deforma um pouco arbitrária, funda-dores de discursividade”.5 É sobrea construção do Brecht de Leandroque irei me deter.

No capítulo Ler teatro do recen-te As artes da palavra, nosso pensa-

dor apenas lastima o laconismo dePeter Szondi, em Teoria do dramamoderno, ao falar de Brecht, posi-cionando-se em seu “estilo Lean-dro” de explanar: “É claro que suasteorias podem ser questionadas,mas é impossível ignorar a impor-tância de sua obra teatral”.6

No importante volume organi-zado por Wolfgang Bader, Brechtno Brasil: experiências e influên-cias, de 1984, Konder colaboracom o curto texto Brecht e apolítica, onde apresenta o au-tor como um “combatente”,destacando, porém, o apreçode Brecht pelas lutas de boxee seu desejo de proporcionardivertimento aos espectado-res, elementos pouco aponta-

dos pelos fãs do dramaturgono Brasil, especialmente quandoera estudado ou encenado durantenossos anos de chumbo. Este en-

1

Page 18: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 18/202

   E  n  s  a   i  o  s

saio é dos poucos textos entre nósque trata da volta do dramaturgo

à Alemanha, em 1948, mencio-nando, inclusive, a caricatura umtanto crítica que dele fará o escri-tor da Alemanha, então oriental,Gunter Grass.

Foi, porém, em 1996 – isto é,depois de ter escrito Fourier, o so-cialismo do prazer, onde ainda divi-de a obra em “vida” e “obra”, depoisdo excelente Walter Benjamin: o

marxismo da melancolia e, ainda,de Flora Tristan – que LeandroKonder enfrentou realmente a vidae a vida de Brecht com o precioso

A poesia de Brecht e a história, obraem que os estudiosos das artes cê-nicas terão referências incomunsà contribuição do dramaturgo àrenovação da cena.

Quando falo em a vida e a vida,refiro-me às expressões usadaspor Georges Lukács que, me pare-cem, servem de chave à reflexãoque tendo desenvolver sobre obrasque grandes intelectuais escrevemsobre outros grandes intelectuais.A quem conheça a forte antipatiaexistente entre Lukács e o drama-turgo pode causar estranheza quese recorra aqui ao filósofo húnga-ro para que tome parte nesta re-flexão e, mais do que isso, ajude

consideravelmente nesta formu-lação em que reúno Leandro Kon-der e Bertolt Brecht, por mais queLukács tenha sido, também ele,tema da fortuna crítica de Konder.Hannah Arendt afirma que Brechtnão se dava bem com os críticoscomunistas, e Walter Benjamin étestemunha da disposição de Bre-cht em responder a posições deLukács através de veemente en-

saio que pretendia escrever

7

 .

Quando o ainda “Jovem Lukács”termina, em 1911, seu extraordi-nário volume de ensaios A alma eas formas, pergunta-se sob a formade uma carta a Leo Popper, publi-cada como o primeiro dos textosdo volume, se aquele livro deviaser ou não publicado, afirma quese trata de estudos “histórico-lite-

rários”, mas revela que sua grandedúvida é quanto à possibilidadede dar a eles uma “forma nova eprópria”. Isto porque é seu objetivotornar a crítica, o ensaio, uma obrade arte, um gênero artístico. E diz:“Na ciência são os conteúdos queagem sobre nós, na arte as formas;a ciência nos apresenta os fatos eseus encadeamentos, a arte, as al-mas e seus destinos”.

Comentando as tragédias daAntiguidade, Lukács mostra que aexperiência concreta que despertou

as questões tratadas naqueles tex-tos desapareceram há tempos, masque tais questões não respondemao que designa como a vida, mas àvida. Explica melhor a seguir:

“Há portanto dois tipos

de realidades físicas: avida e a vida. Todas duassão igualmente reais, masnão o podem ser em casoalgum simultaneamente.Toda experiência huma-na vivida contém os doiselementos, mas com umaintensidade e uma pro-

fundidade a cada vez di-ferentes” 8 .

Desde modo, para ele o ver-dadeiro dramaturgo (como ver-dadeiro poeta, real defensor doprincípio poético) terá uma visãode tal forma rica e intensa deuma vida, que esta se tornará,imperceptivelmente, a vida. Exis-tiriam, pois, experiências vividas

que nenhuma atitude está apta aexprimir, mas que aspiram a umaexpressão. Lukács está falandoda intelectualidade, da concei-tualidade “enquanto experiên-cia sentimental vivida, enquantorealidade imediata, princípio deexistência espontânea”. Assim,a forma – que é, neste caso, emespecial o ensaio – torna-se umaconcepção de mundo, um ponto

de vista, uma tomada de posiçãofrente à vida de que nasceu, umapossibilidade de ela se transfor-mar e ser recriada.

O ensaio, considerado, então,como um “poema intelectual”, éuma espécie de arte, uma enfor-matação9  (Gestaltung) específi-ca e total de uma vida específicae completa.

Dessa forma, a arte – como oensaio – não tem como finalida-de representar a vida (empírica),

17

Page 19: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 19/202

mas a superá-la em direção àvida (essencial).

A reflexão provocativa formu-lada com ousadia por este Lukácspré-marxista sobre a forma naobra de arte, passando ao largodo alerta didático dos teóricos daliteratura sobre a unidade entreforma e conteúdo, ressalva quese torna uma espécie de cânoneda crítica, limitando muitas vezesa reflexão sobre diversas formasde experimentalismos, tornan-do-se útil tanto ao analisarmoso teatro de Brecht como ao ler-mos a parte aqui considerada daensaística de Konder .

Dois ensaios de Benjaminque se ocupam das relações pe-rigosas entre vida/arte/políticapodem nos ajudar a perceber adistância existente entre os es-tudos biográficos – que podemser também importantíssimos,sobretudo ao revelarem pesqui-sas e documentações inéditas,contrariando, freqüentemente, a“história dos vencedores” – ou os

estudos de especialistas realiza-dos a partir de uma perspectivadisciplinar e tais reflexões sobrea vida e a vida. São eles: O sur-realismo. O último instantâneoda inteligência européia e a con-ferência O autor como produtor.Para os primeiros surrealistas, aquem Benjamin cobra uma ilu-minação profana, de inspiraçãomaterialista e antropológica, “alinguagem só parecia autênti-

ca quando o som e a imagem, aimagem e o som, se interpene-travam, com exatidão automá-tica, de forma tão feliz que nãosobrava a mínima fresta parainserir a pequena moeda a quechamamos ’sentido´”10.

Quanto a O autor como produ-tor, ensaio escrito a partir de Brechte sua atitude revolucionária na liga-

ção da vida com a arte, continua naordem do dia nas discussões aca-dêmicas, na reflexão dos curadoresde exposições e dos críticos da cul-

tura justamente pela possibilidadeque o conceito aí formulado para“produtor” tem de funcionar comoaparato crítico capaz de contornardicotomias empobrecedoras.

Hal Forster, em recente ensaioonde põe em debate a questão darelação entre autoria artística epolítica cultural, mostra que Wal-ter Benjamin tentou superar comum terceiro termo “produção” asoposições que continuam, segundoo professor de Princeton, a pertur-bar a recepção da arte: qualidadeestética versus relevância políticae forma versus conteúdo11.

Leandro Konder inicia Walter

Benjamin, o marxismo da melan-colia afirmando que, “para com-preendermos um autor, nãopodemos deixar de recons-tituir, ainda que em linhasmuito gerais, o quadro dasquestões que a vida pôs emseu caminho”.  É neste livro queKonder apresenta mais claramenteuma outra categoria que atravessa

seu pensamento e institui-se comoconceito: a noção de amigo. Os quedesejarem conhecer este filósofobrasileiro não poderão deixar deler com atenção redobrada as de-dicatórias e os agradecimentos quedão início a seus livros. No capítuloO amigo Brecht, Leandro Konderapresenta o dramaturgo iluminan-do o crítico da cultura, que iluminao dramaturgo e ambos dão formaa importante conceituação sobre o

papel do intelectual.

Chegamos, assim, ao que,para mim, é o mais importantedos textos onde, de maneiras di-versas, Leandro Konder se referea Bertolt Brecht: A poesia de Bre-cht e a história. Aqui se esclare-ce, também, a pouca sisudez dotítulo dado a tal ensaio. Publica-do em 1996, neste livro é como

se o convívio intelectual com oautor o inscrevesse também nacategoria peculiar de amigo, en-tendido como alguém que nos

acompanha, com quem dividi-mos emoções, aquele que nosagrada ter por perto em certosmomentos por alguma razão es-pecial, nos faz falta, nos consola,nos faz, sobretudo, compreendera vida para além de nossa pró-pria vida. A pessoalidade do en-contro “real” é substituída aí pelaintimidade partilhada através dadisposição de Konder em traduzirpor sua conta e risco, como diz,os versos que decide citar.

Apresentando as opções me-todológicas escolhidas na elabo-ração da pesquisa onde a obraliterária (porque não é apenasda poesia de Brecht que o livro

trata) do autor estudado é rela-cionada à história de seu tempo,história que o dramaturgo quissempre compreender e recontarcriticamente, Leandro declara:

 “Os caminhos da sen-

sibilidade não são refratá-rios à abordagem científi-ca e aos critérios da razão,

mas também não se dei-xam “reduzir” a interpre-tações racionais (e jamaisse deixam “enquadrar” emparâmetros fixados pelaciência) “ 12 

 A poesia de Brecht e a histó-

ria é uma obra que dialoga como ensaio de Hannah Arendt “Ber-

tolt Brecht:1898-1956”, parte deum livro extraordinário, exemplotambém primoroso da possibili-dade de leitura de vida e obra:Homens em tempos sombrios.Konder já classificara anterior-mente Arendt como uma “ad-versária honesta do marxismo”.Neste ensaio, como acontecetambém em outros momentos,a filósofa desenvolve considera-

ções sobre a autonomia da artee, ainda que inicie lastimandonão haver até aquele momen-to, tradução alguma em inglês

Page 20: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 20/202

   E  n  s  a   i  o  s

“digna deste grande poeta e dra-maturgo”, considera a biografiapolítica de Brecht uma “relaçãoincerta entre poesia e política”.Apontando o que chama de pe-cados reais de Brecht, salvos naprodução teatral pela experiênciado teatro épico, lastima, ao final,que o autor tenha sido capaz, porrazões políticas, de escrever ver-sos “indizivelmente ruins”.

A obra de Konder, em nadadesatenta às contradições vividaspor Brecht, relê a produção poé-tica sob a ótica da vivência em“ estado de exceção”, para usara expressão de Walter Benjaminretomada por Giorgio Agamben,

considerando que, mergulha-do num ‘tempo sombrio’ – maisuma referência ao livro de Aren-dt –, “ao revolucionário nãoseriam poupadas tristezasprivadas nem dilaceraçõesíntimas”.

Além da tradução de diversostextos, realizada com a compe-tência de quem convive com o

autor há tantos anos, são duas asgrandes contribuições que Konderoferece aos estudiosos da obrado autor alemão. A primeira é areleitura de canções que abremmuitas das peças de Brecht, par-tilhando da postura não-canôni-ca que permite tratar a cançãocomo poema, posição bastanteimportante quando tratamos, porexemplo, da produção poética

brasileira. Nesta releitura, o papeldo coro na cena brechtiana é en-focado, mostrando a importânciaque tem em uma peça como San-ta Joana dos Matadouros.

Mas é a segunda contribuiçãoque motivou este ensaio, levan-do inclusive à releitura do jovemLukács como iluminação. Portoda a obra, é através da vida deBertolt Brecht que surge uma re-flexão sobre a vida, dando formaartística ao ensaio. Isto se dá, po-rém, sobretudo em um capítulo

bastante especial, que deve servircomo fonte para qualquer refe-rência ao contundente tema doexílio, tema recorrente na arte,na política, nos estudos de cultu-ra: As angústias do exílio. As dú-vidas do militante. Neste capítu-lo, o artista é apresentado comoo estrangeiro que trocava mais depaís do que sapatos, como costu-mava dizer, mas sobretudo comoo intelectual diaspórico que foi, odesenraizado que buscava, pelaarte, construir uma forma de seinserir no movimento do mundo.Dificilmente alguém que não te-nha passado pela experiência doexílio poderia afirmar, como fazLeandro, que o exilado é sempre

um ser que incomoda: “Com sua simples pre-

sença, mesmo sem agirou falar, o exilado tornavisível um problema gra-ve, uma situação desa-gradável que as pessoasnão têm nenhum prazer

em enxergar.Além de estrangeiro,“diferente”, o exilado éum derrotado e comotal carece daquela es-pécie de beleza que cos-tuma ser apanágio dosvitoriosos .” 13  

Referências bibliográficas

1 Para Bruno Veiga e Valéria Ribeiro, amigos.

2 Revista Presença no. 15- RJ, Caetés, abrilde 1990

3 Documentos, panfletos, manifestos desti-nados a “agitação e propaganda”, como dizí-amos em priscas eras.

4 KONDER, Leandro. As artes da palavra. Ele-mentos para uma poética marxista. São Pau-lo, Boitempo, 2005. P. 105.

5 No original “fondateurs de discursivité”.VerFOUCAULT, Michel. “Qu’est-ce qu’un auteur?”.In: Dits et écrits. Vol I.pag.789 a 821. Paris,Gallimard, 1994.

6 KONDER, op.cit., pag. 39.

7 Em 1938, Walter Benjamin anota em seudiário, durante uma visita a Brecht em Sven-borg, que se encontrava doente: 6 juillet. Bre-cht, hier soir : “ On ne peut plus en douter - la

lutte contre les idéologies est devenue unenouvelle idéologie. »29 juillet. Brecht me lit le texte de plusieurscontroverses avec Lukács, des études pourun article qu’il veut publier dans Das Wort. Ils’agit d’attaques déguisées, mais véhémentes.Brecht me demande conseil en ce qui concer-ne leur publication. Comme il me raconte enmême temps que Lukács aurait « là-bas » ence moment une position importante, je lui disque je ne puis lui donner aucun conseil. « Ils’agit là de rapports de forces. Il faudrait en-tendre l’opinion de quelqu’un de là-bas. Vousy avez bien des amis ?» Brecht : « A vrai dire

 je n’y ai aucun ami. Et les Moscovites eux-mêrnes n’en ont pas - comme les morts.”(BENJAMIN, Walter. Essais sur Brecht. Paris,Maspero, 1969.pag. 147)

8 LUKÁCS, Georges. “A propôs de l’essence etla forme de l’essai. Une lettre à Leo Popper”.In:L’Ame et lês Formes.p. 9.Paris, Gallimard, 1974( edição original de 1911)

9 Em francês “mise em forme”

10 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. VolI.São Paulo, Brasiliense, 1985. p.22

11 FOSTER, Hal. “O artista como etnógrafo”. In:Arte & Ensaios. Revista do Programa de Pós-Gra-

duação em Artes Visuais. EBA/UFRJ. Ano XII, nú-mero 12. 2005. Rio de Janeiro, UFRJ. Pág.137.

12 KONDER, Leandro. A poesia de Brecht e a his-tória. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1996. pág. 13

13 Idem, pág. 47

14 BRECHT, Bertolt. Poemas e canções.Tradu-ção de Geir Campos. Rio de Janeiro, Civiliza-ção Brasileira, 1966. Pág. 195

Beatriz Resende É professora do Departamento de Teoria doTeatro da Escola de Teatro da UNIRIO, pes-quisadora do Programa Avançado de Cultu-ra Contemporânea da UFRJ e do CNPq.

19

Page 21: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 21/202

Os amigos

De mim, o dramaturgo,A guerra separou meu amigo, o cenógrafo,

As cidades nas quais nós trabalhávamos, já não existem,

Indo pelas cidades que ainda existem,Entre outras coisas, digo: - aquele pano azul,Meu amigo o poria bem melhor.14

Em tempos de deslocamentos globais, de reconfigurações geopolíticas – num momento em que as brevesesperanças de que o processo de globalização pudesse promover, de algum modo, a tolerância se desmanchamno ar – um poema do teatrólogo aparece como tristemente atual.

Page 22: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 22/202

   E  n  s  a   i  o  s

Quando Marx escreveu, na11ª das “Teses sobre Feuerba-ch”, que até então os filósofoshaviam-se limitado a interpretaro mundo, mas que o problemafundamental era o da sua trans-formação, deixava subentendidoque nenhum pensamento deveriavaler por si mesmo. O que con-taria para um pensamento ter asua particularidade reconhecidaestaria no virtual efeito de envi-dar mundo e homens novos. Emoutras palavras, uma filosofiaé boa se é capaz, ao meditarsobre a vida, de dedicar-seà apropriação dos seus ele-mentos potentes e constitu-tivos, conduzindo a própriaexistência a resultados maisedificantes.  Portanto, trata-sede uma representação da filo-sofia que pondera sobre o valorrelativo da autonomia do pen-samento. A perenidade de umescrito depende da sua plastici-

dade, isto é, se é ainda capaz dedar forma ao propósito humanode viver bem e melhor diante darealidade existente. Neste caso,como resultado de tal ponto devista, nem a obra de Marx de-veria deixar de ser submetida àcrítica da vida.

Por isso minha curiosida-de diante do anunciado livro deDeleuze. Como se sabe, o filó-sofo francês pretendia escrever,como última obra, um escritosobre Marx (ERIBON, 1996, p.

30). Deveria se chamar Grandezade Marx. Depois gostaria apenasde pintar. Mas Deleuze morreusem realizar o intento declarado.Como alguém interessado na va-lidade atual da obra de Marx, éassim que me vejo perguntandosobre o que poderia ter sido estelivro. Anormal procura porquededicada a um livro para sem-pre perdido. Livro desaparecidocom a vida do seu virtual autor,portanto logicamente impossí-vel de ser encontrado e um dialido. Mas existe nesta busca umaestranha possibilidade. É que,

contrariando uma aparente or-dem natural, uma vez comunica-do, mesmo não escrito, um livronão deixará de ser procurado eter as suas páginas imaginadas,

até poder ser lido. Suas páginaspodem ser folhas avulsas, frag-mentos e textos recortados quevamos reunindo enquanto folhe-amos obras com outros títulos.Portanto, uma obra no meio detantas outras, extraída do que jáfoi escrito enquanto procuramoso livro sonhado.

 Ocorre também de esta obra,

ao perder-se do seu pretéri-to autor, ser reconhecida comouma criação plural, pertencentea mais de um indivíduo. Manus-crito para sempre incompleto,continuamente reescrito, reunin-do as contribuições de um gêniocoletivo, pretendido como capaz

de interpelar as passagens já se-guidas e seguramente indicar anecessidade de novas paisagenspara o caminhante. Lembrei-medo livro não-escrito de Deleuze(já liberado da sua autoria soli-tária), quando me deparei com oseguinte comentário de Konder(2002, p. 162): “Sou autor de nu-merosos textos publicados. Devoconfessar que nenhum deles me

parece realmente essencial para acultura brasileira”. Konder referia-se, é claro, ao fato de ter escritolivros em bom número, emboranenhum deles pudesse ser reco-

Aristóteles de Paula Berino

21

Page 23: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 23/202

nhecido como um clássico. Maso que acredito encontrar quandoleio Konder não é mesmo o livroque fica, a obra exemplar, mas otexto contributivo, sempre por serescrito a partir do legado de Marx.

Não tive a oportunidade deser aluno do professor LeandroKonder, quando fiz a minha gra-duação em História na UFF (Uni-versidade Federal Fluminense),em Niterói, no início dos anos80, do século XX. Mas entre osalunos, é claro, corriam sempreas informações e a consideraçãoque se tinha em relação aos pro-fessores do curso. 

Foi assim que inicialmen-te soube da importância deKonder. Admirado, reco-nhecidamente comunista,seu nome sempre esteveassociado à imagem de in-telectual combativo e pro-fessor competente. Sempreinfluente com as idéias que

defendia, transformou-seem voz importante para aformação da opinião en-tre aqueles que buscavamuma posição política maisconseqüente e coerentecom o ideal de uma socie-dade boa, socialista.Na leitura dos livros que escre-via, para seus leitores o preten-dido era um conhecimento esti-mulante dos principais conceitose possibilidades do marxismo.Imagem de intelectual e profes-sor que nunca sugeriu a apren-dizagem de um marxismo dog-mático e envelhecido, mas simde um materialismo históricoexemplar, atualizado na capaci-dade de expor-se corajosamen-te aos debates mais relevantes

do seu tempo, avaliando sempreseus recursos e força como teoriae fundamento da práxis.

Lembro-meperfeitamente daprimeira vez que um colega docurso me apontou Leandro Kon-der. Estava sentado nos degrausque davam entrada ao ICHF(Instituto de Ciências Humanase Filosofia), quando este era lo-calizado no Valonguinho. Paraum jovem estudante, fitar umprofessor já famoso em uma si-tuação cotidiana do seu ofício –conversava com uma aluna – nãoé apenas uma reverência que sefaz, mas também manifesta von-tade de assimilar o que acreditanele existir de mais significati-vo como intelectual. No caso deKonder, não se tratava apenas

de querer reunir os mesmos co-nhecimentos, a mesma erudiçãocomo estudioso do marxismo.Havia então, como estudante quese via escolhendo os caminhos erefletindo sobre as oportunidades

 já vividas, também a confiançaem outra realização: demonstrara mesma capacidade de remoçãodos embaraços espirituais quecobrem como uma névoa o que

precisa ser reavaliado e refeito.Este é um valor para ser admira-do em Leandro Konder.

 Veja-se, por exemplo, O fu-turo da filosofia da práxis, livropublicado em 1992. Nele, dizKonder logo no início (pp. 13/14),enquanto explicava a nature-za teórica e política do escrito:“A sociedade está sem-

pre mudando. Isso nãosignifica que aqueles quelutam por transformá-lasaibam mudar adequada-mente, acompanhando asmodificações do campo debatalha. Estamos todos,por mais resolutamenterevolucionárias que se-

 jam nossas disposiçõessubjetivas, vulneráveis aimpregnações conserva-

doras sutis. Temos medo deassumir os riscos ineren-tes à autotransformação”. Konder aqui aponta para umaquestão fundamental da práxisque se segue à admissão da 11ªdas “Teses sobre Feuerbach”: oobjetivo da transformação dascondições atuais da sociedade nãopode deixar de considerar que, seforam historicamente construídas,são processuais e não estáticas.Assim, a atividade do pensamentoprecisa ser reflexiva, voltando-sesempre para a estreita relação en-tre a sua formulação e o mundona sua concreticidade, observandosua transitoriedade corrente.

A dificuldade apontada porKonder, dirigida à ação dos co-munistas, está na perspectiva fre-qüentemente reativa da militânciarevolucionária, quando se deixaembeber de concepções que po-dem ser consideradas ultrapassa-das diante do novo esculpido pelaHistória. Levando o conceito dapráxis ao seu limite, os marxistasprecisam de uma educação teó-rica permanente, ensina. QuandoKonder fala, ainda, da necessáriaassunção do “risco”, há tambémuma questão estética pouco usualna pragmática política que vingouno marxismo. Existe uma bele-za na própria incerteza, con-trastando com a esperançaque se deposita no que já foiprescrito e aceito como ação

revolucionária. O risco fazparte da “autotransforma-ção”, esta abertura amorosapara modificar-se, querendoo valor da mudança no exis-tir, atitude então apresenta-da como inseparável de umadefesa lúcida do ideal comu-nista de homem e sociedade.

Um dos primeiros textos que

li de Konder foi o pequeno artigointitulado Antropologia política emarxismo, publicado em 1984, novolume O marxismo na batalha

Page 24: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 24/202

   E  n  s  a   i  o  s

das idéias. Neste texto e em mui-tos outros que escreveu, é possívelperceber a existência de um traba-lho didático, de uma elaboração daescrita que se acerca também datransmissão de uma conduta ana-lítica. Não está ali apenas o inte-

lectual que discute as idéias do seutempo, mas também o iniciador quepropõe como as questões polêmi-cas podem ser enfrentadas, orien-tando seu leitor a desenvolver umapropriedade crítica superior, voltadapara o enlevo do marxismo. A in-terlocução feita é com o antropólo-go Pierre Clastres, crítico fervorosodo pensamento de Marx e de seusseguidores. Diante desta declaradaoposição, Konder não busca, como

é tão comum quando ocorre umadivergência de princípios, desqua-lificar seu oponente para afastar aameaça do contraditório. O que fazem seu texto é apontar para umadeterminada relevância presentenos questionamentos de Clastres,especialmente naqueles que in-cidem sobre o entendimento quemuitos marxistas têm a respeito doEstado. Diz Konder (p. 188): “Espero

sinceramente que esses marxistasnão se deixem impressionar exces-sivamente pelas diatribes de Clas-tres e continuem a explorar o ricofilão indicado pelo antropólogo”.

Ora, na batalha das idéias, paraos marxistas a melhor perspecti-va deve ser primariamente a dacuriosidade. Não existem razõeselevadas para supor que nossoscríticos são principalmente equi-vocados ou medíocres, ainda queestes não demonstrem o mesmoânimo para a pesquisa da diferen-ça. Quando diz que “há marxistasde orientações muito mais diver-sificadas e contraditórias do quePierre Clastres supõe” (ibidem, p.187), faz uma restauração quedeve ser considerada com especialatenção pelos próprios marxistas.

Confiando que o nosso

campo teórico é politica-mente representativo dosinteresses mais progressis-

tas da sociedade, despertano leitor a aprendizagem decomo uma visão de mun-do pode ser aperfeiçoada etorna-se mais influente se écapaz de ouvir discordâncias

e recuperar seus conceitos apartir de um ponto de vistacontinuamente atualizadopelo conhecimento. Hoje, re-vendo este artigo, vejo como sualeitura teve um caráter formativo.Não sem propósito. O que agoraparece bastante claro, depois dealguns anos lendo seus escritos,é que para Konder não há pen-samento relacionado à ambição

da práxis que não seja tambémfundamentalmente pedagógicono exercício da crítica.

Quando me ocorreu a opor-tunidade de escrever algumaspalavras dedicadas a esta home-nagem prestada ao professor Le-andro Konder, pensei no que seriapossível apresentar. Mesmo semter sido seu aluno, procurei reme-morar a presença que teve na mi-

nha formação, através principal-mente dos textos que escreveu.Lembrei-me em primeiro lugarde um pensamento do autor queme deixou uma forte impressãoquando li. Reproduzo aqui: “Nãodevemos nos iludir: é muitocomplicada a passagem deaprendiz a mestre. Primeiro,porque o mestre que não se

embriaga com seu própriosaber volta periodicamentea ser aprendiz. Depois, por-que o aprendiz que se recu-sa a ser epígono vive, comcerta freqüência, momentosnos quais ele chega a en-xergar mais longe do que omestre”.  Impacto que só podeser devidamente avaliado diante

das seguintes circunstâncias. Estepensamento foi produzido para serpublicado na revista Arrabaldes,editada por graduandos e recém-

graduados em História, em 1988.Saía impresso na segunda capada revista e foi publicado nos trêsnúmeros lançados. Neste período,ainda cursava a minha graduação,e a mensagem de Konder mostra-va-se adequada à perspectiva dequem era estudante, mas se depa-rava com a condição próxima deprofessor formado e, quem sabe, devir a ser intelectual também. Pelomenos era o que sonhávamos.

Portanto, trata-se antes detudo de um pensamento parti-dário da ascensão do que aindaestá nascendo. Para isso, apon-tava para a eventual troca deposições aparentemente consoli-

dadas. O mestre não pode deixarde ser aprendiz, porque está (oudeveria estar) sempre aprenden-do. E o aprendiz não deve seguiro constrangimento de ser apenaso continuador da obra do mestre,um imitador do que aprendeu.É preciso, como mestre, adquirircerta temperança, não deixandose intoxicar pelo saber que jul-ga possuir. Por outro lado, para o

aprendiz faz bem ser audacioso.A continuação do texto contém,ainda, uma segura defesa e umabela imagem da emergência donovo: “Creio que nós, profes-sores, precisamos não des-perdiçar as ocasiões que osnossos alunos nos propor-cionam para nos renovar-mos com eles. Esta revista éuma ocasião preciosa: ela sedispõe a fazer circular commaior desenvoltura nas ar-térias da teoria o sangue davida”. Seguindo o que diz Kon-der, o que vamos encontrar naadmiração pela original iniciativade uma publicação que procuradar voz àqueles que estão bus-cando uma ocasião para expres-sar o resultado das pesquisas e doestudo que realizam, é também oensino de que a teoria precisa darelevância da vida para ser cons-truída. E mais, que a vida como

23

Page 25: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 25/202

concorda com tudo que escreveu!Mas parece que encon-trar a verdade ou reco-lher o melhor argumentonão parece constituir ointeresse principal dos

seus leitores. Estes apren-dem com ele a funçãoda crítica e a vantagemde entender as posiçõescontrárias como um prin-cípio educativo da práxis . Pois bem, o que pretendi com estebreve texto foi relatar como suaobra pode ser encarada, mas espe-cialmente imaginada por um lei-tor que reconhece em Konder umasignificativa contribuição para re-vigorar o marxismo hoje. Em mui-tas páginas que li, fui grato porqueoutras obras foram se afigurando.Entre elas, o procurado livro sobrea grandeza de Marx.

tal é preciosamente a vida quecorre – o “sangue” – renovandoas condições do próprio existir.

Neste trabalho de trazer amemória as leituras que fiz dosescritos Konder, são numerososos livros e textos lembrados. Tra-tando-se de um intelectual quevenceu os muros da universida-de, foi possível também, ao longodos anos, ler os artigos que es-creveu para a imprensa. Gostariade lembrar um deles. Um texto,em que, acredito, Konder mostracomo abraçar questões aparen-temente de menor importânciapolítica, pode engrandecer a vi-são de mundo que partilhamos,

na esperança de revolucionar aspráticas sociais a partir do mar-xismo. Desempenho da arte deensinar em que Konder ainda nosleva ao riso com freqüência. Otexto em questão termina assim:“Esse coroa é taradão, vocêviu? Ele se amarra numa‘lézbeca’ “. Sim, para o sujeitoque pronunciou essas palavras,o coroa tarado, apaixonado por

lésbicas, é Leandro Konder. Mas oque provocou essa inusitada iden-tificação do filósofo e professor?Neste texto, Konder narra um epi-sódio (verdadeiro ou trata-se deuma narrativa imaginária para finsdidáticos?) que transcorreu em umelevador. Durante a curta viagem,um dos passageiros viu nas mãosdo ascensorista um jornal conten-do fotos da passeata do orgulho

“gay”. Não se contendo, começoua desfilar seu preconceito. Curio-samente, embora acreditasse emuma correção médica para os ho-mossexuais masculinos, achavaque as “lézbecas” (é como pronun-ciava) eram definitivamente cria-turas demoníacas. Nesta altura,conta Konder, não conseguiu maisse controlar e resolveu intervir, ad-vertindo sobre as conseqüênciasda intolerância. Quando chegou ao

seu andar e saiu do elevador, seuinterlocutor proferiu a sentençaacusatória relatada linhas atrás..

A narrativa de Konder relacio-na-se, é claro, com a pertinênciada discussão atual sobre o res-peito às diferenças. Mas existeum detalhe na história que eugostaria de fazer sobressair. Équando diz que, depois de ter-secontrolado, resolve interferir, ex-pondo também seu pensamentoe argumentando, mesmo sujeitoa uma reprovação, como a queocorreu. O cenário da história ébanal, um elevador. Mesmo as-sim, situa-se em um lugar públi-co, onde pessoas se encontram eeventualmente demonstram seuspensamentos a respeito do queocorre no país. O fato é que a situ-ação corriqueira não provocou em

Konder um desinteresse absoluto. Não admitiu ser condes-cendente com um precon-ceito que ficava mais à von-tade diante do seu silêncio.Então resolveu falar. A história en-cerra a oportunidade de pensar nopolítico que também acontece nocotidiano e que não podemos dei-xar de lado. Cotidiano em que os

problemas do poder não podem serexpostos na fórmula simplista comque muitos marxistas imaginaram(alguns ainda imaginam) a luta declasses no século que passou: classeproprietária X classe trabalhadora.A importância que Konder atribuiuà exposição da sua divergência diri-ge-se à necessidade de assumir queo ideológico stricto sensu inclui umavariedade de problemas (sociais,mas também caracteristicamenteculturais) em que ainda precisamos,como marxistas, nos debruçar.

Não há nada de espetacu-lar na afirmação de que LeandroKonder tem a maior importânciapara muitos dos seus alunos eleitores. As coisas que diz sempreencontram um público interessa-do, especialmente nas esquerdas.Particularmente, sua voz faz um

enorme sentido para quem acre-dita no comunismo como umideal de sociedade que se opõeao capitalismo. Ah, sim, não se

Referências bibliográficas

ERIBON, Didier. Meu próximo livro vaichamar-se a grandeza de Marx. Depoi-mento de Gilles Deleuze. Cadernos de Sub- jetividade . São Paulo, número especial, pp.26 – 30, jun. 1996.

KONDER, Leandro. Cenas de surrealismotardio. In: PINASSI, Maria Orlanda (org.).Leandro Konder: a revanche da dialética. São Paulo: Ed. UNESP/Boitempo. 2002. pp.161 – 169).

Antropologia política e marxismo. In:   Omarxismo na batalha das idéias . Rio de Ja-neiro: Nova Fronteira, 1984. pp. 183-188.

 O futuro da filosofia da práxis:  o pensam-ento de Marx no século XXI. Rio de Janeiro:Paz e Terra, 1992. 141p.

“O orgulho gay e as lézbecas”. Jornal doBrasil. Rio de Janeiro. 5 jul. 2003. CadernoB, p. 8.

REVISTA ARRABALDES. Petrópolis.1988 – 1989.

Aristóteles de Paula Berino é Doutor em Educação pela UFF e Profes-sor do curso de Pedagogia do IM/UFRRJ/Nova Iguaçu.

Page 26: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 26/202

   E  n  s  a   i  o  s

Conheci a figura de carne eosso de Leandro Konder no limiardos anos 90, época em que meencontrava inteiramente devota-do à pesquisa e redação da mi-nha dissertação de mestrado emLiteratura Brasileira para a UERJ,cuja defesa tinha sido marca-

da para o primeiro semestre de1992. Eu já conhecera o hu-manista arguto e refinadoao final dos anos 70, quandoestudava na Faculdade deLetras da UFRJ e, em face darecente opção pelo marxis-mo, interessei-me em ler aobra Os marxistas e a arte1.Muito mais do que as pre-

ciosas anotações sobre asreflexões estéticas de Gra-msci, Benjamin ou Lukács,o que me seduzia no jovemKonder era o acendrado es-pírito antidogmático e an-timecanicista do pensador, com quem, aliás, jamais imagi-nara compartilhar qualquer ex-periência comum.

O tema pesquisado durante omestrado já se tornara uma ver-dadeira obsessão em minha vida.Professando um latino-america-

nismo radical, eu optara por umcotejo entre duas experiênciasperiféricas de modernidade apartir de uma releitura da prosade ficção escrita entre o final doséculo XIX e as primeiras déca-das do século XX no Brasil e naArgentina, com uma atenção

especial às díspares proporçõesassumidas pelos elementos ur-banos e agrários nos respectivosimaginários coletivos nacionais.Por que o universo citadino eclo-de de maneira tão precoce nasletras portenhas? Como explicara longevidade do mundo ruralna narrativa ficcional de Pindo-rama? E por que a dimensão dacontinuidade entre nós se mos-tra ainda mais vigorosa do que àsmargens do Prata?

Por pura sincronicidade, de-sembarcara no Rio de Janei-ro, um pouco antes, a escritoraportenha May Lorenzo Alcalá,que, além de excepcional prosa-dora, também havia abraçado acarreira diplomática e, por umafeliz conjunção austral, ocupavao cargo de Diretora do InstitutoCultural Brasil-Argentina, órgão

mantido pelo consulado argenti-no em nossa cidade. May era umapessoa admirável, que pesquisaracomo poucos o papel das van-

guardas no Cone Sul e dispunhade dados valiosos acerca das in-ter-relações estabelecidas entreos artistas vanguardistas porte-nhos e os chamados modernistasde Pindorama. Graças a ela, pudeesquadrinhar coleções inteirasdas revistas Proa e Martín Fier-

ro, sem as quais a pesquisa emcurso jamais lograria estabelecerquaisquer conclusões mais fun-damentadas. Contudo, sua maiorcontribuição para o meu traba-lho adveio de uma informaçãoque, de maneira consciente e so-lidária, May Lorenzo me prestara:existia em mãos de Leandro Kon-der o copião de uma dissertaçãoinédita, inteiramente dedicada àobra do narrador argentino Ro-berto Arlt e ao motivo recorrentedo “mal-estar na cidade”.2

Sobreveio-me com a notíciauma rara mescla de espanto econtentamento: o autor aborda-do por Konder ao final dos anos70 era um nome diametralmenteoposto às preferências da críti-ca literária hegemônica no iní-cio da década de 90. Vivíamosos tempos da “queda do muro”,

embalados pela ruidosa cantile-na do “fim da história”. Os suple-mentos literários da grande im-prensa, seduzidos pelo ambíguo

25

Page 27: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 27/202

discurso da pós-modernidade,nas raras vezes em que se ocu-pavam da cena estética ao sul doequador remetiam-se invariavel-mente a Jorge Luis Borges ou, emsintonia direta com os pajés do

 Velho Mundo, às invenções fic-cionais de Ricardo Piglia, notávelprosador argentino que fizerado simulacro um leitmotiv per-manente em sua obra. Como eupoderia supor que alguém aindapudesse ocupar-se de uma es-tirpe que sonhara com a utópi-ca construção da humanidade ehavia convertido o limite em umponto de expansão, de mergulhono presente e de lampejos pre-monitórios do futuro?

Roberto Arlt foi um dos maisprolíficos escritores da moderni-dade portenha. Além de diversosromances, escreveu centenasde crônicas e digressões para aimprensa de seu país, reunidasnos dois volumes de Aguafuer-tes porteñas.3  Sua prosa estátotalmente identificada coma singular feição cosmopolitaque a capital argentina ostenta

desde a sua reforma urbanísticaem 1880, durante a intendênciade Alvear, sob a inspiração di-reta das transformações que oBarão Haussmann, a mando deNapoleão III, promovera em Pa-ris alguns anos antes. Para oscríticos orientados pelas re-flexões estéticas de WalterBenjamin, Arlt recria, emcerta medida, no cenáriourbano platino, a figura

do flâneur parisiense, em-bora suas personagens pro-venham, em última instância,dos arrabaldes e, despojadasda autoridade de um saber, bus-quem destrezas negadas pelo es-paço consagrado para afirmar oseu lugar.

Enfim, graças à providencialintervenção de uma diplomata-escritora de Buenos Aires, vi-me

de súbito sentado frente a frentecom Leandro Konder em sua salada PUC-RJ, onde há anos ele vemrecebendo com notável atenção e

cordura seus pares acadêmicos ealguns visitantes inesperados queo assediam com as mais diversasdemandas. Pude, finalmente, co-nhecer o famoso copião escritodurante a sua estada na Univer-sidade de Bonn, em certa medidauma espécie de exercício inte-lectual de um exilado que nãoesquecera sua missão tampou-co suas raízes. De quebra, aindalogrei desfrutar de um generosoco-orientador acadêmico, cujasobservações sobre as hipótesesque eu aventava me permitiramreavaliá-las sob um outro ângu-lo, ensejando novas conclusões eeventuais retificações do planode vôo estabelecido.

A remissão a esse trabalhoquase desconhecido não consti-tui, portanto, alguma espécie deelegia ao jovem Konder. É claroque o mote nos espreita, já quea obra da juventude de váriosfilósofos costuma exibir u mfrescor ideológicoe estilísticoque sempre

encanta aoscríticos e admirado-res. O “jovem Lukács”, porexemplo, exibe nas páginasde A teoria do romance uma es-crita bastante poética, que evo-ca o estilo de alguns mestres doidealismo alemão, desde os en-

saístas românticos até o “jovemHegel”. Este, aliás, também re-vestiu sua juventude com textosmemoráveis, como A fenomeno-

logia do espírito, cuja alegoriadialética do “senhor e o escravo”se tornou posteriormente umareferência-chave nos estudos deestética e filosofia. Os primei-ros trabalhos de Marx tambémalcançaram essa aura de belacrisálida intelectual: os Manus-critos econômicos e filosóficos,em particular, suscitam até hojesingelas epifanias para os estu-diosos do mestre alemão, sobre-tudo para aqueles que buscamcontestar seus detratores e, porainda não conhecer em profun-didade o autor maduro, desco-brem maravilhados que o criadordo materialismo dialético jamaispostulara uma relação causal e

mecanicista entre a infra-estru-tura econômica da sociedade e asdemais esferas vitais da chama-da superestrutura ideológica. E arevelação de que os fenômenoshumanos e sociais são, em últi-ma instância, “sínteses de múl-tiplas de- terminações”

soa como umcanoro afo-rismo aos

Page 28: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 28/202

   E  n  s  a   i  o  s

ouvidos dos “jovens marxianos”.A grandeza de Leandro Konder

também se reafirma, de modoaparentemente paradoxal, naspáginas “juvenis” de Marxismo ealienação ou de Os marxistas e aarte. Ao contrário do amigo Car-los Nelson Coutinho, cujo acura-do espírito lógico ele admira semreservas, Konder compreende opercurso intelectual como umadescontinuidade. Não se pro-põe a observar, por conseguinte,com a mesma determinação dovelho companheiro, a coerênciae o rigor de sua própria trajetó-ria. Enquanto Carlos Nelson nãohesita em praticamente renegaros ensaios publicados em obras

como Literatura e humanismo4

 ou Realismo & anti-realismo naliteratura brasileira,5 consideran-do-os meros “escritos da juven-tude”, Leandro parece apreciarcom maior condescendência ostrabalhos do “jovem” Konder,editados ainda nos turbulentose fecundos anos 60, dentre osquais, além de Os marxistas e aarte, vale a pena destacar a obra

Marxismo e alienação.

[6]

Qualquer estudioso da obrade Leandro Konder prontamen-te identificará inúmeros pontosde conexão entre as argüiçõesenunciadas na primeira etapade sua produção intelectual e asteses defendidas na maturidade. Que ninguém se espante, porexemplo, com as advertênciasfeitas pelo autor acerca da recep-

ção refratária das idéias de Marxno Brasil durante as três primei-ras décadas do século XX, temacentral de A derrota da dialética:7

o que a tese de doutorado (de-fendida por Konder no Institutode Filosofia e Ciências Sociais daUFRJ) apresentava era, em últimainstância, uma atualização desua reiterada convicção de queo marxismo entre nós sem-

pre se ressentira de gravedeficiência na interpreta-ção mais aguda das con-

tradições sociais de Pindo-rama, seja pela perniciosaremanescência das ten-dências ditas “positivistas”em nossos círculos inte-lectuais, seja pelos danosinfligidos à dimensão dia-lética da filosofia de Marxpelos esquemas doutriná-rios impostos pelo câno-ne stalinista aos partidoscomunistas da América doSul e demais áreas de in-fluência do PCURSS.

O mais sugestivo, porém,para aqueles que empre-endem uma leitura retros-pectiva da obra do autor, éconstatar a diversidade detemas abordados pelo pen-sador. Imbuído do espíritouniversalista dos grandeshumanistas, Konder é umintelectual fecundo e ecléti-

co. Interessa-se não só porfilosofia, história e sociolo-gia, como também por esté-tica, artes plásticas, litera-tura e filologia. Na área deLetras, por sinal, seus escri-tos mereceriam uma amplaantologia.  Ele decerto consig-nará ressalvas às primeiras ex-periências como crítico literário(veja-se o ensaio publicado em

1974 sobre um poema de CarlosDrummond de Andrade)8, mascertamente nem o mais severo eexigente acadêmico ousaria des-merecer os textos que o cronistapublicou na grande imprensa so-bre tópicos de lingüística e críti-ca literária.

Lembro-me de uma crônicaintitulada Ideologia na lingua-gem?, publicada em O Globo, na

década de 90. Em suas poucaslinhas, o filólogo-pensador nosensinava que a história das pa-lavras proporciona a todos nós

um valioso material de reflexãoa respeito da história das socie-dades humanas. As distorçõesideológicas da linguagem servempara ocultar e, ao mesmo tempo,revelar os temores e preconceitosque povoam o imaginário e a vidacotidiana dos povos ao longo dahistória. Konder nos sugeria umarevisão do perverso ideologe-ma de “civilização” que o etno-centrismo europeu advoga. Portrás desse rótulo, também estápresente o enorme preconceitodo citadino para com o homemdo campo, considerado semprecomo rude e grosseiro.

Não é à toa que na Roma

antiga surgiu o conceitode “urbanidade” como umícone de refinamento e su-perioridade: aqueles que vi-viam mais além do períme-tro urbano, nas “vilas”, ter-minariam por converter-senos terríveis vilões da his-tória, ou seja, os “bandidos”

ameaçadores que rondama “paz” das cidades.O que eu jamais lograria ima-

ginar, contudo, é que, duran-te seu exílio na terra de Hegele Marx, ao longo da década de70, Leandro Konder pudesse es-colher, como objeto de sua teseacadêmica, um tema específicoda literatura latino-americana.Quando tudo parecia concorrer

para que o apaixonado leitor deLukács aprofundasse ainda maisseus estudos sobre o mais reno-mado dos marxistas ainda vivos,figura com a qual, inclusive, elepróprio trocaria uma fecundacorrespondência, Konder deci-diu, sob a orientação do profes-sor colombiano Rafael GutiérrezGerardot, investigar o tópico do“mal-estar na cidade” dentro da

obra do romancista argentinoRoberto Arlt.Essa opção nos evidencia-

va, em primeiro lugar, a estrei-

27

Page 29: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 29/202

ta  sintonia do exilado com asinquietudes suscitadas duranteo vertiginoso processo de trans-figuração espacial das regiõesperiféricas em um mundo quesequer conhecera as implicaçõesmais drásticas da globalizaçãoneoliberal. Em meio à fúria daexpansão capitalista, nem todosalcançavam discernir o impactode tais transformações sobre assubjetividades do terceiro mundo.Era, porém, iniludível o descon-forto que se instalava em paísescomo Brasil e Argentina, palcosde uma nova etapa de acumu-lação capitalista no hemisfériosul. Ao contrário do que fizerao Velho Mundo, as jovens nações

sul-americanas não haviam-sepreparado ao longo de 150 anospara promover a subsunção dasantigas sociedades agrárias pelanova fisionomia urbana sob aqual se expandia o grande capi-tal transnacional sobre as regi-ões periféricas.

Discorrer sobre esse fenô-meno em meados dos anos 70,do século XX, no entanto, re-

presentava decerto uma tarefabastante corajosa e arriscada:ainda nos encontrávamos nopróprio olho do ciclone e, porcerto, não dispúnhamos do dis-tanciamento temporal mínimonecessário para uma avaliaçãomais aguda e precisa da meta-morfose em curso. Eric Hobsba-wm o faria, duas décadas depois,ao publicar a Era dos extremos,não hesitando em afirmar que a

mudança social “mais impressio-nante e de mais longo alcance”da segunda metade do séculoXX foi “a morte do campesina-to”.9 Desde 1950, já não era maispossível falar de “mundos ru-rais”. Os números arrolados pelohistoriador inglês são definitivos:na América Latina, somenteem 20 anos a percentagem

de camponeses foi reduzidaà metade em países comoa Colômbia (1951-1973),

México (1960-1980) e Bra-sil (1960-1980), ao passoque na Venezuela (1961-1981) e até mesmo noCaribe — Jamaica (1953-1981) e República Domini-cana (1960-1981) — hou-ve uma redução de 66%. Os pesquisadores como LeandroKonder não podiam manejar es-sas cifras ao final da década de70, mas certamente já começa-vam a visualizar a aguda dimen-são do processo em curso. El malestar en la ciudad repre-senta, pois, uma interessantetransposição do dilema viven-ciado pela geração de Konderà época do impetuoso “milagrebrasileiro” para o cenário porte-nho dos anos 20/30. Se a fúriatecnocrática da ditadura militarfomenta o êxodo rural e provocaum surto de urbanização caóticoe desenfreado em Pindorama, aevolução espacial argentina, soba égide do projeto liberal de Sar-miento ao final do século XIX, já

havia desencadeado nos pampas,em escala bem mais reduzida,uma transfiguração da paisagemurbana que afetaria de maneiraprofunda as subjetividades por-tenhas. O crescimento vertigi-noso de Buenos Aires nas duasprimeiras décadas do século XX,é o fator responsável por esseimpacto. O ritmo das mudançasé aferido por alguns dados coli-

gidos pela ensaísta Beatriz Sarlo:em 1930, instalam-se cabos deluz em lugar de querosene; em1931, consuma-se a ampla rami-ficação do sistema de transportes(bondes e coletivos); e, de 1914 a1936, a cidade praticamente du-plica a população (passando de1.500.000 para 2.400.000 habi-tantes aproximadamente).10 Tan-tas transformações determinam,num curto espaço de tempo, uma

extraordinária dimensão subjeti-va: as pessoas podem recordaruma outra urbe diferente daquela

em que vivem — 30 anos, de fato,é muito pouco para assimilar, naesfera espiritual, as radicais mu-danças introduzidas pelo cresci-mento urbano, pela imigração epelos filhos da imigração.

Assim, a nova metrópole tor-na possível, literariamente possí-vel e culturalmente aceitável, afigura do flâneur, descrito como“o observador anônimo, o olharque não supõe comunicação como outro” e que, em abismo, é ob-servado por um outro, visto porum terceiro, vigiado por um quar-to, ad infinitum, circuito só viá-vel na grande cidade, que, con-forme sublinha Sarlo (inspiradaem Raymond Williams), mais do

que um conceito demográfico-urbanístico, é uma categoria ide-ológica e um mundo de valores.O novo costumbrista advindo des-se quadro será magnificamenteilustrado por Roberto Arlt: ele éabsolutamente diferente dos an-teriores, porque se mistura napaisagem urbana “com um olhoe um ouvido que se deslocam aoacaso”; inteiramente distante,

pois, das preocupações nacio-nalistas que moviam o escritorromântico, vinculado, como sesabe, a um programa de “docu-mentação da nacionalidade”.

Com Arlt e outros cronistas, aliteratura argentina atesta que aexperiência da mudança haveriade afetar também os costumepúblicos e privados. Toda a ten-são da transformação emergedos textos cáusticos de Roberto

Arlt, nos quais podemos identi-ficar, por exemplo, em meio àsácidas descrições de mulheresangustiadas pelo estigma e pelapenúria material da condição desolteirona (“Aunque tenga cua-renta años, no debe haber ama-do nunca...”), a seca denúncia dogolpe do matrimônio e da hipo-crisia que permeia aqueles papéissociais. Não seria exagero, enfim,

considerar que o autor é o epígo-no de um denso processo pormeio do qual, de 1880 a 1930,a cidade se afirma como “fórum

Page 30: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 30/202

   E  n  s  a   i  o  s

mediador das peripécias de per-sonagens que, por sua extraçãoe modalidade, vinculam-se tãointimamente à cena urbana, quese tornam até mesmo incompre-ensíveis fora deste marco”.11

Em sua introdução ao traba-lho, Konder atribui a Arlt um pa-pel de extrema relevância para aprojeção do romance de ambien-tação urbana na história da lite-ratura argentina e nas própriasletras latino-americanas:

Antes de Roberto Arlt,el novelista de la ciudadera la excepci-ón; el mercado

literario esta-ba dominadopor novelas dela tierra y dela selva; conél, empieza aimponerse enlas literaturaslatinoamerica-

nas el tema delinfierno de lavida cotidianaen la urbe; enlos habitantesdesarraigados,advenedizos,acosados y feroces de Bue-nos Aires, que expulsan

del centro de la ciudad a laoligarquía ganadera, éldescubre las señales de lostiempos futuros.12 

 Ainda que várias outras ob-servações enunciadas no corpodo texto merecessem uma refle-xão mais atenta, esse comentá-rio inicial inquietaria bastanteo leitor-pesquisador, cuja tarefa

era sopesar o peso dos elemen-tos urbanos e agrários, os ima-ginários coletivos nacionais, va-lendo-se, para tanto, de alguns

expoentes da narrativa de ficçãopublicada no Brasil e na Argenti-na entre 1880 e 1930. Refletin-do sobre esta e algumas outras“provocações” feitas pelo copião,pude rematar, por fim, os tópicoscom que estruturei a primeiraparte da dissertação, em que serealçam as implicações da inten-sa experiência urbana sobre osautores mais representativos doprocesso de modernização dasletras portenhas.

Pareceu-me, de imediato, bas-tante discutível aplicar sob igualmedida a toda a América Latina

os termos da equação propostapor Konder, até porque o gêne-ro romanesco, mesmo em uma

expressão periférica de moderni-dade, jamais conseguiu recalcara sua gênese essencialmente ur-bana e burguesa. Dessa forma, osciclos da terra e da selva quasesempre coexistem em singularcomplementaridade com tramascujas temática e ambientação seassociam única e exclusivamen-te às peripécias da incipienteordem urbana, o mais das vezes

artificialmente transplantadasdo universo existencial metro-politano, ainda que obras, comoMemórias de um sargento de mi-

lícias (1852-1855),13  de ManuelAntônio de Almeida, ou Mi tíoel empleado, do cubano RamónMeza (1887), afrontem com avivacidade do seu incipiente re-alismo a norma da subserviênciacultural colonial.

No caso brasileiro, aliás, sobe- jam os exemplos. Nossa descon-tínua prosa “realista” inaugura-se com as saborosas Memóriasescritas por Almeida, cujos epi-sódios traduzem as expectati-vas de mudança que a vinda dafamília real suscita no Brasil deD. João (“Era no tempo do rei...”).

As aventuras pi-carescas de nossoprimeiro malan-

dro literário des-dobravam-se sobos signos da agi-tada cena urbanado Rio de Janei-ro às vésperas daIndependência. Orealismo literárioregistra ainda,em pleno séculoXIX, outro expoen-

te de veia eminen-temente citadina,o qual não hesi-ta em desdenharqualquer peripéciaque se insinue paraalém dos estritoslimites de sua urbe:“O mundo começa

aqui no Cais da Glória ou na Ruado Ouvidor e acaba no Cemitériode São João Batista. Ouço que há

uns mares tenebrosos para os la-dos da ponta do Caju, mas eu souum velho incrédulo”.14 

Até mesmo o romance água-com-açúcar de José de Alencar,ciente do perfil de seus leitores(um bom número formado por es-tudantes e moçoilas dos centrosurbanos regiamente afeiçoadasàs letras), cede passo ao binômiocidade-campo e procura equa-

cionar o impasse com distintasséries narrativas, uma urbana eoutra “indianista”. A boa recep-ção do público comprova que,

29

Page 31: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 31/202

longe de serem excludentes, asduas esferas eram apenas facetascomplementares em nosso ima-ginário. A aparente antinomia,em verdade, sinalizava no planoestético-ideológico a aliança declasses agromercantil que, aolongo do Brasil imperial, preparao ingresso do país em uma novaetapa de acumulação capitalista— o espaço liberal-oligárquicoda República Velha (1889-1930).Desse modo, o projeto de docu-mentação da nacionalidade con-cebido pelo senador-fazendeiroAlencar não apenas valoriza a“cor local” e a “língua brasileira”com o ciclo nativista de O guara-ni (1857), Iracema (1865) e Ubi-

rajara (1874), mas também dra-matiza, sob nítida influência eu-ropéia, a vida cotidiana burguesaem obras como Lucíola (1862),Diva (1864) e Senhora (1875).

Até a Belle Époque e mesmodurante as primeiras geraçõesmodernistas, o latente confrontoregionalismo x cosmopolitismopermeia toda a produção discursi-va do período. Mário de Andrade,

o genial criador de Macunaíma(1928) e Amar, verbo intransitivo(1926), estava ciente de que SãoPaulo reproduzia, com dimensõespróprias, o drama da moderniza-ção sem ruptura: avoca para sio status de pólo catalisador damodernidade tupiniquim, masdeve elaborar uma fórmula quecompreenda o convívio parado-xal de velhos e novos elementos.Lembremos, ainda, a intrin-cada relação de Mário e ou-tros membros da Semanade 22 com Monteiro Loba-to: condenado pela adoçãode procedimentos estéticosrefratários à linguagemdas vanguardas o autorde Urupês (1918) acolhe-

rá mais tarde reverenteshomenagens dos próceresmodernistas. Como já pôde

comprovar Vasda BonafiniLanders, entre o Jeca Tatue Macunaíma existem ve-ladas conexões que ain-da não foram exploradaspela crítica.

Os casos portenho e hispano-americano também nos impõemalgumas advertências importan-tes. É fato que a crítica não hesitaem consignar a força dos elemen-tos telúricos em títulos expressi-vos da vanguarda literária, comoLa vorágine (1924), do colom-biano José Eustasio Rivera (cujaspersonagens se embrenham emuma expedição seringueira pela

selva amazônica), Doña Bárbara(1929), do venezuelano RômuloGallegos (para quem a barbárieda natureza se associa à própriaconduta humana), e Don Segun-do Sombra (1926), do argentinoRicardo Güiraldes (cujo romancerepresenta, em última instância,um rito de passagem do velhomundo agrário, livre e idílico,para a nova ordem capitalistainstaurada na vastidão dos pam-pas). Contudo, o aparecimento dealgumas significativas elegias ru-rais nas primeiras décadas do sé-culo XX é também um índiceeloqüente de que umanova realidade espacialpouco a pouco se impõeem diferentes regiõesda América Latina.

Se Roberto Arlt re-presenta, como nos su-

gere Konder, o termo deuma célere transfiguração dafisionomia argentina, torna-seimprescindível destacar a forçados elementos espaciais na gê-nese de tão moderna literatura.A formação econômico-socialdo antigo vice-reinado do rioda Prata denota umcaráter multiface-tado, expressão danítida vocaçãometropolitana de suaclasse domi- n a n t e ,proprietá- rios de

terras que ostentam um precoceespírito mercantil e financeiro,conjugando ao longo do séculoXIX as atividades produtivas e es-peculativas (desde o preparo docharque até as operações na Bol-sa de Valores). Tal singularidadepermite a precipitada eclosão deuma cultura de mezcla no seioda modernidade platina, síntesebem equacionada das diversascoordenadas que se entrelaçamàs margens do Prata (imigraçãox criollismo, tradição x renova-ção, telúrico x cosmopolita).

Quando Borges institui asorillas, nos anos 20, do século XX,para mitificar uma Buenos Airespretérita de cujo desaparecimen-

to se ressente a subjetividadeportenha, presta uma home-nagem inconsciente a EstebanEcheverría, que em seu conto Elmatadero (1871)15  não evoca aaura rústica e virgem do deser-to, preferindo conferir ao mata-douro o status de uma “estanciaimpura”: ele é, ao mesmo tempo,a zona bárbara que dá acesso àcidade e, no sentido inverso que

sua condição fronteiriça enseja, aregião marginal de onde BuenosAires se abre para o campo. A

condi-

Page 32: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 32/202

   E  n  s  a   i  o  s

ção de cenário periférico, aliás,será requisito básico para quese consume a paródia espacialda urbe; área difusa e conta-minada que a letra erige emcentro, o matadouro e sua es-trutura de poder são metáforaostensiva da bárbara estruturasocial de que o caudilho Rosasé a máxima expressão.

Roberto Arlt tambémpossui precursores na-queles autores que, nobojo de uma cultura demezcla, estão atentos àinusitada algaravia que seinstala nas franjas da ci-dade-porto e oscilam en-tre a autoridade e a mar-ginalidade da letra, abor-dando o conflito de sabe-res existentes entre a es-critura dos imigrantes e acompetência dos nativos.Entre esses “filhos da diáspora”,quem melhor antecipa motivos

e procedimentos da modernanarrativa do autor de El jugueterabioso (1926) e Los siete locos(1929) é Elías Castelnuovo. Noscontos encadeados de Tinieblas(1923), o herói criado por Castel-nuovo deambula pela cidade nastrevas, preludiando o itinerário dodesesperado flâneur de Arlt, que,deslumbrado pelo atraente cená-rio da metrópole, amplia o campode representação do relato (viasférreas, luzes de néon, prédiosde vida e aço). Toda a sua an-siedade, porém, converte-se emfrustração: em Tinieblas, não hárespostas, tão-somente silêncioe consumição. A rede invisível desinais que despontam da nature-za não comporta uma impugna-ção lúcida e conseqüente.

Arlt, em contrapartida, vin-cula por relações subterrâneas

(a alquimia, a percepção ex-tra-sensorial) saberes e técnicasmarginais e empreende uma efe-

tiva argüição dos laços de podere propriedade. Explicita-se umtópico marcante da época: aobsessão pelo poder projeta-sea partir de um sujeito que nãopossui saberes prestigiosos e querecorre a saberes mundanos paraafirmar a sua autoridade. A mes-ma interrogação percorre a fic-ção do autor: “Como alterar, pelosaber, as relações de poder ou asrelações de propriedade?”.16  Ri-cardo Piglia disse certa vez quepoderíamos fazer uma históriados romances argentinos reali-zando uma história dos complôs,porque todos os grandes textosplatinos narram conspirações: ocomplô é o centro do imaginário

paranóico do Estado e encon-tra-se no centro da história doromance argentino, sendo que aprópria obra de Borges se consti-tui “como a trama e a construçãode um complô”.17

Em meio à cultura da moder-nização sem ruptura que tam-bém se insinua um pouco ao sulde Pindorama, os devaneios deArlt fazem com que divisemos

sobre o Prata uma única pai-sagem: uma classe dominantemultifacetada consolida o con-trole de comércio e finanças semrenegar a tradição latifundiária.A concentração econômica emmãos de um restrito grupo esua implantação multissetorialevitam o conflito de frações eos riscos de uma desarticulaçãointerna, favorecendo o fortale-cimento do Estado e sua proe-

minente presença na vida ar-gentina, expressa, inclusive, porsua capacidade de centralizara veiculação de narrações quecirculam dentro da sociedade.

Qualquer semelhança terásido mera coincidência? Seráque a “paisagem” argentina re-almente elucida elementos maissutis da nossa própria “paisa-gem”? Leandro Konder, ao apre-

sentar em livro a dissertação queele examinara na UERJ em 1992,sentenciou com proverbial lu-cidez que conhecer é comparar

— “e conhecer o ´outro´ é co-nhecer-se melhor, é superar asestreitezas do horizonte do so-lipsismo”.18 De fato, ao realçara importância de Buenos Airesno imaginário coletivo nacionalportenho, o que a pesquisa al-mejava era um cotejo inevitávelcom a história de Pindorama,buscando esquadrinhar na suaprosa de ficção traços formaisque revelassem a longevidade doagrário em uma experiência pe-riférica de modernidade.

Se algum êxito obtive naempresa, agradeço ao mestre oseu generoso quinhão. La obrade Roberto Arlt y el malestar enla ciudad talvez nunca venha a

ser publicado entre nós; sus-peito que tampouco o será umpouco mais ao norte da Pata-gônia, ainda que seu espanholnão mereça o menor reparo or-tográfico ou gramatical.

Todavia, mesmo que per-maneça inédito e ignoradopelo público, tão discre-to exercício de resistênciaacadêmica é um capítuloindelével na obra desse ca-valeiro de altiva figura, dequem todos nós, fortuitospassageiros da interminávelviagem à utopia, sempre se-remos devedores.

31

Page 33: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 33/202

Luiz Ricardo Leitão É escritor e professor adjunto da UERJ. Dou-tor em Literatura Latino-americana pelaUniversidade de La Habana, é autor de ¿Adónde va la telenovela brasileña? (CienciasSociales, Havana, 2001) e Lima Barreto: orebelde imprescindível (Expressão Popular,São Paulo, 2006).

La sociología de la literatura en América Latina ha tenido undesarrollo muy tardío. Y no fue porque no existieron vocacionessociológicas, sino porque las condiciones materiales, sociales, cul-turales y técnicas del trabajo de los sociólogos eran muy malas.

Transcurre mucho tiempo hasta que los investigadores consi-guen organizar y concatenar observaciones suficientes sobre he-chos de la tierra y del hombre; hasta que ellos llegan a disponerde una comunicación entre las diferentes disciplinas y puedancomparar los logros de los estudios económicos, históricos, polí-ticos, jurídicos, demográficos, lingüísticos, etnológicos y sociop-sicológicos con los fenómenos de la literatura.

En general la ideología dominante en nuestros países latino-

americanos veía con mucha desconfianza a los que planteabancuestiones sociológicas en el exámen de los fenómenos litera-rios: el pensamiento conservador sospechaba de intenciones crí-tico-sociales bajo la investigación sociológica. Los intelectualesde orientación más resueltamente crítico-social, por su lado, sevolvían hacia los problemas apremiantes de la lucha política ydespreciaban el análisis de las condiciones sociales de una litera-tura limitada a círculos muy estrechos de consumidores.

En lo que atañe a las relaciones entre la literatura y la ciudad,la deficiencia de las investigaciones sociológicas sigue siendo,hoy todavía, muy graves. En general, los estudios literarios en elmundo de lengua española y portuguesa en Latinoamérica, con

raras excepciones, no se ocupan con los problemas de la situaci-ón urbana que condiciona las obras de los autores analisados.Aunque en América Latina se inauguró en los años 20 y 30

una etapa de importantes cambios sociales operados a travésde la urbanificación (con el comienzo de la metropolización delas ciudades más importantes del continente y el rápido creci-miento urbano), fue necesario esperar hasta los años 60 y 70para la elaboración de los primeros estudios sociológicos másamplios del fenómenos. Y tales estudios pioneros son todavíabien poco numerosos.

Por esa razón, algunas de las tesis sostenidas en el presentetrabajo tienen un carácter inevitablemente hipotético, ya que noexisten estudios previos seguros en condiciones de ser utilizadoscomo apoyo.

Tampoco la literatura sobre Roberto Arlt ha podido ofrecernosuna buena base para nuestras investigaciones. Arlt fue un au-tor muy conocido en Argentina mientras vivió: sus “AguafuertesPorteñas” eran publicadas por el periódico El Mundo y le dieroninmensa popularidad. La muerte del escritor, en 1942, señala unperíodo en que se empieza a olvidarlo.

Sin embargo, la obra de Arlt no se dejaba olvidar. Antes de Ro-berto Arlt, el novelista de la ciudad era la excepción; el mercadoliterario estaba dominado por novelas de la tierra y de la selva;con él, empieza a imponerse en las literaturas latinoamericanas eltema del infierno de la vida cotidiana en la urbe; en los habitante

desarraigados, advenedizos, acosados y feroces de Buenos Aires,que expulsan del centro de la ciudad a la oligarquía ganadera, éldescubre las señales de los tiempos futuros. [...]

Referência bibliográfica

1 KONDER, Leandro. Os marxistas e a arte: breve estu-do histórico-crítico de algumas tendências da estéticamarxista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.2 KONDER, Leandro. “La obra de Roberto Arlt y elmalestar en la ciudad”. Universidade de Bonn, 1979.Dissertação de mestrado sob orientação do Prof. Dr.Rafael Gutiérrez Girardot. [Inédita]3 As edições originais são: ARLT, Roberto. Agua-fuertes porteñas. Buenos Aires: Editorial Victoria,

1933; e Nuevas aguafuertes porteñas. Buenos Aires:Hachette, 1960. O segundo título foi reeditado pelaEditora Losada em 1975, com a inclusão de textosainda não reunidos em livro.4 COUTINHO, Carlos Nelson. Literatura e Human-ismo: ensaios de crítica marxista.. Rio de Janeiro:Paz e Terra, 1967.5 COUTINHO, Carlos Nelson (org.). Realismo &anti-realismo na literatura brasileira. Rio de Ja-neiro: Paz e Terra, 1974.6 KONDER, Leandro. Marxismo e alienação. Rio deJaneiro: Civilização Brasileira, 1967.7 KONDER, Leandro. A derrota da dialética. Rio deJaneiro: Campus, 1988.8 KONDER, Leandro. “A ‘vitória do Realismo’ num po-ema de Drummond: A Mesa”. In: COUTINHO, CarlosNelson (org.). Realismo & anti-realismo na literaturabrasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974, pp. 75-93.9 HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve sé-culo XX (1914-1991). São Paulo: Companhia dasLetras, 1995. Ver, especialmente, o capítulo 10: “ARevolução Social: 1945-90” (pp. 282-313).10 SARLO, Beatriz. Una modernidad periférica:Buenos Aires 1920 y 1930. Buenos Aires: Nueva

 Visión, 1988. Ver, especialmente, o capítulo I:“Buenos Aires: ciudad moderna”.11 LEITÃO, Luiz Ricardo. Leonor e a modernidade:o urbano e o agrário na experiência periférica. Riode Janeiro: System Three, 1992, p. 44.12 “Explicaciones preliminares”, p. 2. In: KONDER,Leandro. “La obra de Roberto Arlt y el malestar enla ciudad”. O fragmento inicial aparece transcritoem quadro anexo ao presente texto.

13 A primeira data refere-se à publicação original,em folhetim, no Correio Mercantil (Rio de Janeiro). Asegunda, à sua edição em livro, na mesma cidade.14 MACHADO DE ASSIS, Esaú e Jacó (1904). O ter-ritório demarcado pelo narrador circunscreve-serigorosamente ao perímetro urbano de maior prestí-gio no Rio de Janeiro da Belle Époque, cujo núcleocentral se situa entre a Rua do Ouvidor e a Glóriae cujos limites não devem ultrapassar o históricobairro de Botafogo (onde está o Cemitério de SãoJoão Batista), na Zona Sul, ou a ponta do Caju, regiãomais próxima da zona portuária onde o próprio autornascera e vivera a infância.15 Tanto os dados biográficos do autor, quanto osíndices temporais fornecidos pela narrativa parecemsugerir-nos que o conto tenha sido escrito entre1838 e 1840. Ele permaneceu inédito até sua pub-licação pela Revista del Río de la Plata (1871) e, logoa seguir, a sua inclusão nas Obras completas de Ech-everría, editadas por Casavalle entre 1870 e 1874.16 SARLO, op. cit., p. 54.17 PIGLIA, Ricardo. “As três forças da ficção”. Ar-tigo publicado no Jornal do Brasil, Caderno Idéias,02/09/1990, p. 5.18 Ver LEITÃO, op. cit., texto de apresentação naorelha da obra.

Page 34: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 34/202

   E  n  s  a   i  o  s

e 1991, por sua vez, decorreu ocurto século XX, como o definiuo historiador marxista britâni-co Eric Hobsbawm. Entre 1900e 1950, o marxismo, de corren-

te de pensamento dominante domovimento socialista ascendente,ainda que de influência restrita atalvez duas centenas de milha-res de revolucionários, se tanto,concentrados principalmente nospaíses da Europa ocidental, tor-nou-se a espinha dorsal de umaideologia dominante em Estadosoriundos de revoluções ou con-vulsões sociais que continhamem seu âmbito pelo menos 1/3 da

população mundial.A ascensão do socialis-

mo só foi menos espetacularque sua queda. Mesmo nãotendo faltado críticas, tantode liberais e conservadoresquanto de dissidentes so-cialistas e libertários, à ex-periência de construção dosocialismo real, denunciando

suas mazelas, suas promessasnão cumpridas, sua incom-patibilidade democrática, arapidez e a profundidade dodesmoronamento do mundosoviético surpreendeu a to-dos: liberais e conservadores,em regozijo; socialistas e li-bertários, dissidentes ou não,deprimidos. A muitos destes úl-

timos, o colapso soviético pare-ceu ter arrastado consigo todautopia libertária e o pensamento

que mais a inspirara, o marxismo.É que neste processo de ascensãoe queda meteóricas, o marxismoadquirira, como prediziam muitosde seus críticos e poucos de seus

dissidentes internos, as caracte-rísticas de uma doutrina canô-nica, com seus profetas, ícones,princípios, dogmas, textos sagra-dos e, principalmente, seus me-canismos aceitação e rejeição deidéias, pensadores e pregadores(revolucionários), estabelecendo,assim, tão poderosa(s) quantovazia(s) ortodoxia(s).

O fenômeno, na verdade, nãoera novo e o próprio Marx, nos

anos finais de sua vida, insa-tisfeito com o rumo que vinhatomando a vulgarização de seupensamento, dissera que, se omarxismo era o que se divulgavaem seu nome, não era marxista.A frase era retórica, é verdade -Marx nunca desautorizou, seria-mente, seus seguidores. Mas nãopode ser tomada ou descartadaligeiramente porque é expressão

da radicalidade das reflexões eatitudes de Marx. Radicalidadeque se colocava contra todasas ortodoxias e que estava nabase do pensamento de Marx,demonstrada pelo uso reiteradoda palavra crítica em seu voca-bulário. Esta radicalidade críticafoi cultivada e aprofundada pe-los grandes pensadores marxistas- Lenin, Trotski, Gramsci, Lukács,Mao Tsé-tung - todos, a seu tem-

po, heterodoxos, mesmo que te-nham se tornado depois, com ex-ceção de Gramsci e Lukács, não

33

Como Marx pode se tornar umpensador do século XXI? Esta é apergunta que norteia o pequenogrande livro de Leandro Konder– O futuro da filosofia da práxis.

O pensamento de Marx no séculoXXI - e que é o título de seu úl-timo capítulo. Ela parte de duasconstatações, igualmente expres-sas nos títulos de dois capítulosanteriores: Marx foi um pensadordo século XIX e Marx tem sidoum pensador do século XX (no fi-nal do qual o livro foi escrito).

Um pensadordos séculos XIX e XX

A influência do pensamen-to de Marx na conformação domundo contemporâneo não deixamargens à dúvida.

Talvez nenhuma doutrina te-nha tido uma influência tão am-pla e meteórica quanto o marxis-mo na história da humanidade.Entre a publicação do Manifestodo Partido Comunista, em 1848,

e o colapso do socialismo sovi-ético, em 1991, transcorreram143 anos, e entre a publicação doManifesto e a vitória da primei-ra revolução socialista na Rússia,em 1917, somente sessenta. Oespaço de uma vida, como a dorevolucionário e escritor alemãoFranz Mehring, que nasceu em1846 e morreu em 1919, poucodepois de, juntamente com Rosa

Luxemburgo e Karl Liebnecht,ter fundado o Partido Comunistaalemão. Entre a eclosão da Pri-meira Guerra Mundial, em 1914,

Page 35: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 35/202

por acaso revolucionários mal-sucedidos em fazer a revolução,objeto de ortodoxias. A histó-ria do marxismo é assim,principalmente depois dofracasso do socialismo real,também a história de seusrebeldes e críticos internos.

Leandro Konder é um des-tes críticos, e não somenteagora, depois da queda domuro, que se destaca no pen-samento marxista no Brasil.Desde seus primeiros traba-lhos, na década de 1960, ain-da militante do PCB, não seconformava, em suas refle-xões filosóficas e sobre crí-tica literária, aos cânones dopartido. Daí sua identificaçãocom pensadores marxistas,se não dissidentes, ao menosmarginais à ortodoxia domi-nante, como Lukács, Korsch eGramsci. Daí sua frutífera e de-mocrática polêmica com o amigoliberal José Guilherme Merquior.

Assim, não surpreende que o es-boroamento do mundo soviéticonão o tenha abatido, renovandomesmo sua reflexão crítica e lheoferecendo uma oportunidade deexpor sua visão da atualidade deMarx em seu O futuro da filosofiada práxis. O pensamento de Marxno século XXI.1  Seu ponto de vis-ta não é apenas o do intelectual,mas também o do militante so-

cialista, ainda que suas interroga-ções sejam fundamentalmente denatureza filosófico-teóricas.

Inicialmente, Leandro Konderrelata como se formou a orto-doxia marxista e os limites dopensamento de Marx, que, emsua visão, podem ser debitados,em larga medida, ao fato de eleser um pensador e um homem doséculo XIX. Desta maneira, Marxnão teria escapado ao cientificis-

mo e ao evolucionismo, os quais,no entanto, não teriam compro-metido suas principais formula-

ções. É a partir daí que devemosaprofundar o exame de uma dasformulações mais essenciais deMarx, e que, segundo o teste-munho insuspeito de QuentinSkinner, seria fundante da ciên-cia social moderna. Trata-se daafirmação contida em uma dasmais citadas passagens de Marxno Prefácio à Contribuição à críti-ca da economia política, de 1859 : “Na produção social de suavida, os homens partem dedeterminadas relações ne-cessárias, independentesda vontade deles, relaçõesde produção, que corres-

pondem a um determinadonível de desenvolvimentode suas forças produtivasmateriais. O conjunto des-sas relações de produção  forma a estrutura econô-mica da sociedade, suabase real, sobre a qual seergue uma supra-estru-tura jurídica e política, aqual correspondem deter-minadas formas de cons-ciência social. O modo deprodução da vida materialcondiciona o processo davida social, política e es-piritual, em geral. Não é a

consciência dos homensque determina o ser deles,mas, ao contrário, é o seuser social que determina asua consciência”.

Segundo Konder, haveria umadistinção importante entre estaformulação e a colocação ante-rior de A ideologia alemã (1845-46)  de que “[n]ão é a consciênciaque determina a vida, mas a vidaque determina a consciência” (am-bas as traduções do próprio Lean-dro Konder).2

Para nosso autor, o texto doPrefácio   introduziu uma infelizmetáfora espacial entre base esuperestrutura que simplificou emecanizou a complexidade so-cial. De acordo com ela, haveriauma antecedência, uma prima-zia da base econômica em rela-ção à superestrutura – a cultura,o mundo das idéias – que seriamera derivação daquela. A chavepara o entendimento das idéiasencontrar-se-ia na estrutura e-conômica da sociedade. Por ou-tro lado, prossegue Konder, se anoção de ser social se tem a van-tagem de ser mais específica, se-ria mais restritiva que a noção devida, utilizada no texto filosófico

anterior de A ideologia alemã , de-notando uma estrita e mecânicadependência do espiritual ao so-cial, reduzido, por sua vez, à “es-trutura econômica da sociedade,sua base real”.

Não posso me esquivar de fa-zer duas observações pontuaissobre a leitura que Konder faz dotexto do Prefácio. Em primeirolugar, ainda que concordando in-

tegralmente com sua apreciaçãoda infeliz metáfora mecânica dainfra e da superestrutura, gosta-ria de ressaltar o valor heurísticoda definição do homem como sersocial. Isto é, coletivo, inserido emum ambiente – a sociedade e ahistória – caracterizado pela exis-tência de relações, de produção,“independentes da vontade deles”,constitutivas de sua interaçãocom a natureza, que corresponde-

riam “a um determinado nível dedesenvolvimento de suas forçasprodutivas materiais”. Estas forçasprodutivas nada mais são que otrabalho teleológico, i. é, conscien-te, culturalmente orientado, massocialmente determinado - di-mensão primacial do humano, desua definição ontológica. Voltare-mos a este ponto mais adiante.

A segunda observação diz res-

peito à continuação da passagemcitada do Prefácio   e que não émencionada por Konder. “Em cer-to estágio de desenvolvimento,

Page 36: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 36/202

   E  n  s  a   i  o  s

as forças produtivas materiais dasociedade entram em contradi-ção com as relações de produçãoexistentes ou, o que é a sua ex-pressão jurídica, com as relaçõesde propriedade no seio das quaisse tinham movido até então. Deformas de desenvolvimento dasforças produtivas, estas relaçõestransformam-se em seu entrave.Surge uma época de revoluçãosocial”.3 Se no trecho anterior erapossível, como indiquei argumen-tar em favor da fórmula marxia-na de entendimento da história,mesmo consciente do quanto elaestá perto do esquematismo e dodeterminismo, o complementocitado não deixa dúvidas de que

esta foi exatamente a decorrênciatirada por Marx, ao menos nestetexto. Haveria uma mecânica dasrevoluções sociais – a contradi-ção entre o desenvolvimento dasforças produtivas e as relações deprodução, identificadas com suaexpressão jurídica superstrutural– que determinaria as condições

necessárias, num dado momentoda evolução social, para o surgi-mento de “uma época de revolu-ção social”. Tal esquematismo edeterminismo chapados, não hácomo justificar. Devem, simples-mente, ser descartados.

Seja como for, voltemos aLeandro Konder. O que ele res-salta de importante é que estapassagem de Marx forneceu oselementos para a interpretaçãodominante de seu pensamento.Interpretação que obscureceu edistorceu dois conceitos essen-ciais do marxismo: alienação eideologia. No primeiro caso, aindanas palavras de Konder, em seusManuscritos econômico-filosófi-

cos de 1844 , Marx criticava asociedade burguesa “acusan-do-a” “de aprofundar o fossocriado pela propriedade pri-vada entre o sujeito humanocriador e a realidade objetivapor ele criada. A dilaceração dacomunidade humana, decorrente

da competição desenfreada doshomens em torno da apropriaçãoprivada das riquezas, impedia ossujeitos de se reconhecerem uni-versalmente na história que fa-ziam. As criações humanas apa-reciam diante de seus criadorescomo realidades ‘estranhas’...” (p.32). A conseqüência seria que aspessoas se viam cindidas diantede exigências diversas, estranhase contraditórias em suas vidas,numa palavra, alienadas.

Uma pergunta, a esta altura,é inevitável: não seria a aliena-ção uma condição humana geral,universal, ainda que exacerbadaao extremo pelo capitalismo?Marx, e Konder com ele, conside-

ram que não. A alienação seriauma condição das sociedadesdivididas em classe, marcadaspela apropriação privada da ri-queza socialmente produzida,que poderá vir a ser superadapor uma revolução social pro-tagonizada pelos trabalhado-

Ensor e o General Leman discutem pintura - 1890 

Page 37: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 37/202

sociais, característico da orto-doxia marxista-leninista. Visãoexplícita e duramente criticadapor Gramsci em sua apreciaçãodo livro de Bukharin, A teoria domaterialismo histórico. Manualpopular de sociologia marxista ,publicado, pela primeira vez, em1921.4  Em segundo lugar, trata-se da valorização do conceito depráxis, ao qual voltaremos adian-te. Por hora, cabe lembrar que areferência de Gramsci à filosofiada práxis advinha de leitura italia-na de Marx, não exclusivamentemarxista, presente desde fins doséculo XIX, que tinha, entre seusexpoentes, Labriola, Croce, Gen-tile. Esta tradição intelectual, por

sua vez, deitava raízes em umailustração historicista mediterrâ-nea, característica da penínsulaitálica, desde a primeira metadedo século XVIII, que remonta a Vico.

Tal valorização não foi exclu-siva de Gramsci e da tradiçãoitaliana. Com efeito, nas décadasde 1920 e 1930, a publicação detextos filosóficos de Marx, atéentão total ou parcialmente iné-

ditos, Manuscritos econômico-fi-losóficos, de 1844  e só publicadosem 1932, juntamente com o tex-to completo de A ideologia alemã,de 1845-46, e os manuscritos in-titulados Linhas básicas da críticada economia política , conhecidoscomo Grundrisse , escritos entre1857 e 1858 e publicados somen-te em 1939, dariam ensejo a umaforte releitura de Marx em queos conceitos de alienação, reifi-

cação, práxis apareceriam comocentrais, tais como em GeorgLukács e Karl Korsch.

São estas as vertentes que ali-mentam a ênfase dada por Lean-dro Konder à dimensão filosóficae humanista do pensamento deMarx (p. 85) e, em especial, a seuconceito de práxis. Ênfase que,desde cedo, o colocou resoluta-mente contra a coqueluche do

marxismo estruturalista dos anossessenta, o filósofo francês LouisAlthusser. Ênfase que, no caso domarxismo, o decorrer do tempo só

Mais importante, contudo, queesta especulação é notar comonos faz ver Leandro Konder, queo conceito de alienação foi obs-curecido pela tradição marxistadominante. Fato que te-ve con-seqüências importantes, entreelas a distorção do conceito deideologia, este sim amplamenteutilizado por esta tradição. ParaMarx, a noção de ideologia esta-va diretamente ligada àquela dealienação e dizia respeito às con-dições de elaboração do conheci-mento no processo histórico. Aomesmo tempo em que a ideologiatinha uma função prática, ela seressentia, na sociedade cindi-da em classes, de distorções na

compreensão da realidade.A ideologia seria, assim,

um conjunto de falsas repre-sentações da realidade que,nas sociedades classistas,seria mantido pelas classesdominantes na defesa deseus interesses e posições depoder (p. 32-3).

Esta concepção de ideologiaseria distinta daquela de Lenin eGramsci, para quem as ideolo-gias podiam se justificar por suaeficácia histórica, como a ide-ologia do movimento operário,por exemplo, (p. 32). Observe-mos mesmo que, para o revolu-cionário italiano, todas as idéiassão ideologia.

Leandro Konder alerta, no

entanto, para a distorção me-canicista daqueles que ten-deram a ligar estreitamente aconcepção de ideologia à lutade classes, derivando, assim,as idéias diretamente das clas-ses sociais. Para ele, sem dúvida,Marx percebia que a distorçãoideológica tinha um cunho declasse. “Mas não entendia a ide-ologia como uma espécie de sub-produto que cada classe infiltra-ria, a seu modo, na vida cultural.Ele não pensava, sociologicamen-

te, que, a cada classe (ou a cadasegmento de classe) corresponde-ria uma determinada ideologia”. 

A ideologia dominantenuma determinada socie-dade era, sem dúvida, a

da classe dominante, masisto não explicava exclusi-vamente a distorção ide-ológica, que “derivava dadivisão social do trabalho,da propriedade privada, dadilaceração da comunida-de humana” (p. 34).

Toda a rica discussão quevem se processando nas Ciên-cias Sociais e na Historiografiacontemporâneas – desde Weber,Mannheim e Lukács a Thompson,Geertz, Chartier e Hall - a respei-to das representações, do imagi-nário, da cultura, enfim, em suasconexões com as classes, atores,agentes sociais atesta a fecundi-dade da senda aberta por Marx ea vitalidade de suas reflexões.

A filosofia da práxisComo sabemos é assim que

Antonio Gramsci se referia mui-tas vezes ao marxismo em seusCadernos escritos no cárcere fas-cista em que passou seus últimosanos de vida. A expressão foiconsiderada, durante muito tem-po, meramente como uma formaempregada pelo revolucionário

italiano para driblar a censura aque era submetido. Mesmo queassim o fosse e, em parte, tal-vez tenha sido esta escolha, enão outras, talvez mais eviden-tes, como, por exemplo, filosofiamaterialista, materialismo, etc., écarregada de significado (p.91-2). Em primeiro lugar, trata-se davalorização dos aspectos filosófi-cos do pensamento de Marx emdetrimento de leitura, então cor-

rente, que salientava seu carátercientífico, nomológico, capaz depredizer o rumo dos fenômenos

Page 38: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 38/202

   E  n  s  a   i  o  s

faz tornar mais vibrante e atual.Depois de salientar a concep-

ção gramsciana de que o marxis-mo, como filosofia da práxis , erafundamentalmente uma indagaçãosobre o tornar a ser do homem que,portanto, não poderia se cristalizarem fórmulas e preceitos abstratos,Leandro Konder entra na discussãocentral do que vem a ser a concep-ção marxiana de práxis .

Seu ponto de partida é es-clarecer a origem grega do ter-mo que não era muito preciso.“[C]omumente, designava a açãoque se realizava no âmbito dasrelações entre as pessoas, a açãointersubjetiva, a ação moral aação dos cidadãos. Era, com cer-

teza, diferente da poiésis, que eraa produção material, a produçãode objetos” (p. 97). Tanto a práxisquanto a poiésis , segundo Aris-tóteles, exigiam conhecimentosespecíficos, adequados à conse-cução de suas atividades, por issomesmo distintos de um terceirotipo de atividade exclusivamen-te dedicado à busca da verdade,a theoria . Estas formulações de

Aristóteles influenciaram quasetoda a história da filosofia oci-dental, sempre marcada pelasdicotomias teoria/prática e ação/contemplação (p. 98).

Com o advento do modernocapitalismo, as atividades, in-telectuais e práticas, voltadaspara uma finalidade concreta, aprodução de riquezas, passarama ser valorizadas, em contraposi-ção à especulação contemplativa

filosófica e mesmo em relação àpráxis   enquanto atividade polí-tica. Do ponto de vista do pen-

samento liberal, estabelecia-seuma cisão entre poiésis  e práxis :a ênfase era colocada na esferado trabalho produtivo, e quandohavia o reconhecimento “... dasignificação humana da práxis  (opoder da cidadania), isso se davaem detrimento da poiésis ”. A sín-tese entre os dois movimentosparecia impossível. A práxis   sópodia ser o privilégio de uma elitede proprietários, bem preparadapara exercê-la (p. 102).

Coube a Marx repensar aquestão de um ponto de vista dostrabalhadores, que, excluídos domundo da cidadania política naprimeira metade do século XIX,organizavam-se em torno das lu-

tas por seus direitos e interesses.Assumindo este ponto de vista,ele realizou a síntese entre práxis– entendida estritamente comointeração política - e poiésis, produzindo seu próprio concei-to de práxis , entendida em umanova dimensão. Antes deste mo-mento, seu emprego da palavracorrespondia ao uso corriqueirodo termo em alemão, significan-

do “prática” ou “atividade” (p.103). Nos Manuscritos econômi-cos e filosóficos de 1844 , a novaconcepção começa a aparecer.“O animal se identifica imedia-tamente com sua atividade vital;não se distingue dela; é ela. O serhumano torna sua atividade vital,ela mesma, objeto da sua vontadee da sua consciência”. Os movi-mentos do animal seriam aquelesde sua espécie natural. O homem,

assim como o animal, pertence-ria a uma espécie natural, mas,em sua atividade vital, a práxis,

teria uma relativa autonomia emrelação a ela. Ele faria escolhas,teria iniciativas, assumiria riscos.Assumiria seu “ser genérico” deuma maneira não inteiramentedeterminada pela natureza. “E ésó por isso que a atividade dele éuma atividade livre”.

Para Marx, esta liberda-de da atividade humana eraproveniente do trabalho,de sua atividade produtiva,que se realiza independentedo império de suas neces-sidades físicas imediatas,afirmando sua subjetivida-

de. Ao fazê-lo, “modificao mundo e se modifica a simesmo. Produz objetos e,paralelamente, altera suaprópria maneira de estarna realidade objetiva e depercebê-la. E – o que é fun-damental – faz sua própriahistória. ‘Toda a chamada

história mundial’ – assegu-ra Marx – ‘não é senão aprodução do homem pelotrabalho humano’” (p. 105). Para Leandro Konder, Marx nun-ca teria abandonado a concepçãode práxis   expressa nos Manus-critos econômicos e filosóficos. Ao contrário, ele a teria aprofun-dado conforme seu pensamento

amadurecia e ela está presen-te em sua concepção, expressaem O Capital , de que o trabalho,

37

Page 39: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 39/202

atividade teleológica, isto é, ori-entada e prefigurada para umfim, constitutiva do homem emseu metabolismo com a natureza,na qual ele transforma tanto estaquanto sua própria natureza, é asubstância do valor (p.105 e ss.).

A concepção de Marx sobrea práxis  está mais elaborada em“Teses sobre Feuerbach”, tex-to redigido em 1845 e publica-do, numa versão modificada porEngels, em 1888, e, em sua ver-são original,somente em 1932.O ponto central das Teses   é suaruptura com a dicotomia entreidealismo e materialismo que ti-nha, até então, caracterizado odesenvolvimento da filosofia. Isto

fica claro quando Marx criticaFeuerbach por não perceber quea atividade humana – tal comoentendida em seu sentido de prá-xis  acima delineado – é ela mes-ma atividade objetiva. “A práxis ”,diz-nos Konder, “é a atividadeconcreta pela quais os sujeitoshumanos se afirmam no mun-do, modificando a realidadeobjetiva e, para poderem al-terá-la, transformando-se a simesmos” (p. 115). A ação requera reflexão teórica, que, por sua vez,remete à ação. “A controvérsia so-bre a realidade ou irrealidade dopensamento”, afirmava Marx, “ –isolado da práxis  – é um problemapuramente escolástico”. A supera-ção deste problema escolásticovinha, sintomaticamente, não poruma crítica à tradição idealista,mas pela crítica do materialismotal qual formulado por Feuerbach.“A doutrina materialista da pro-dução de efeitos transformadorespelas circunstâncias e pela educa-ção esquece que os seres huma-nos transformam as circunstân-cias e que os próprios educadoresprecisam ser educados”.

Seguindo de perto a cerradaanálise da “Teses sobre Feuerba-

ch” efetuada por Georges Labi-ca5, Leandro Konder salienta, comMarx, que a atividade autotransfor-madora do ser humano só pode ser

integralmente compreendida comopráxis  revolucionária. Este ser hu-mano era o humano social, históri-co. De acordo com Marx, “... a es-sência humana não é uma coisaabstrata no interior do indivíduoisolado. Em sua efetividade. Ela éo conjunto das relações sociais”.Por não perceber isso, Feuerbachera levado a fazer abstração docurso da história.

A redução da concepção mar-xiana de práxis , por um lado, ànoção de prática e, por outro,à noção de trabalho, sem suascomplexas determinações sociaisque, se partem da “necessidade”que tem o homem de produzirsua existência material, envolvem

igualmente sua subordinação aum télos   que transcende estadimensão, supondo a criativi-dade social subjetiva, a cultura,etc., obscureceu seu significadona tradição marxista dominan-te. Este fato abriu espaço paraas críticas de Habermas, quandochamou a atenção para a dicoto-mia entre a razão instrumental,identificada com o trabalho, e a

razão comunicativa, identificadacom a interação social. Dicoto-mia não presente em Marx e que,de acordo com Leandro Konder,acarretaria “... em um ‘dualismo’que nos afasta da história e domovimento transformador peloqual os homens concretos engen-dram num mesmo processo asduas ‘razões’” (p. 125-6).

A concepção de trabalho deMarx, tal qual exposta em seus

escritos filosóficos e reafirmada eainda mais elaborada em O capi-tal, supõe a atividade teleológica,que antecipa sua meta na cons-ciência do sujeito, prefigurandoseu télos , o ponto onde quer che-gar. “Nisso consiste, a meu ver,a originalidade da concepçãodo homem elaborada por Marx:o ser humano existe elaborando o novo , através da sua atividade vital,

e com isso vai assumindo sempre,ele mesmo, novas características”(p. 106, grifos no original).

O Marx que emerge daspáginas de Leandro Kon-der é um poderoso pensa-dor, de estatura semelhantea outros, como Aristóteles,para ficar no mais óbvio e

importante deles, que dei-xaram sua marca indelével,de longa duração, na filoso-fia e na história ocidentais,com muito ainda a dizer-nosno despertar conturbado donovo milênio.  Isto com a con-dição que não nos coloquemosnuma atitude passiva diante deseus escritos – sempre reinter-pretados, recriados e superados

- e, principalmente, diante davida e da história. A “verdade”deMarx não está na interpretaçãoexaustiva e minuciosa de seus es-critos – sem dúvida, tarefa fun-damental – e no estabelecimen-to do cânone fossilizado de seupensamento, mas adiante de nós,em nossa práxis   transformadorae autotransformadora.

Este é o chamado de O futuro

da filosofia da práxis, um progra-ma de ação, um projeto, políticoe intelectual.

Referências bibliográficas

1 O futuro da filosofia da práxis. O pensamentode Marx no século XXI, 2a ed. Rio de Janeiro: Paze Terra, 1992. De agora em diante, nas citações,faremos apenas a indicação do número da páginaentre parêntesis no corpo do texto.2 Todas as demais passagens de Marx citadas notexto, a não ser quando explicitamente indicado ocontrário, são traduções de Leandro Konder.3 Karl Marx, Contribuição à crítica da economia polí-tica (prefácio). Lisboa: Editorial Estampa, 1971, p. 29.4 Cadernos do cárcere, vol. 1. Introdução ao estu-do da filosofia. A filosofia de Benedetto Croce. Riode Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.5 As “Teses sobre Feuerbach” de Karl Marx. Rio deJaneiro: Jorge Zahar, 1990.

Ricardo Salles é professor da Escola deHistória da UNIRIO e do Departamento de Ciên-cias Humanas da UERJ/FFP.

Page 40: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 40/202

   E  n  s  a   i  o  s

nha realmente compre-endido a dialética.

“Por sua própria natu-reza, o humor é uma for-ça desinibidora, libertá-ria. Em suas expressõesmais desenvolvidas, elenos ajuda a perceber asambigüidades da con-dição humana, as con-tradições disfarçadas, os

anseios e insatisfações.No nível mais conse-qüente da sua dialéticaimanente, o humor nãopoupa nada, não respei-ta ninguém; ele não livraa cara sequer do própriohumorista”.

Assim como não livrou o pró-prio biógrafo. A nota “Sobre oAutor”, por este redigida ao finaldo livro, diz. “Valério, meu fale-cido pai, me aconselhava: podesdizer bobagens, porém não devesescrevê-las. Não ouvi a sábia re-comendação paterna e escrevi24 livros. Talvez eu sofra de gra-fomania incurável.”

Que distinto toque há aqui?Uma rica diversidade num cons-

tante e bem-humorado movi-mento transformador. E ao lei-tor vamos entregar o que nossa

Este, por sua vez, percorre pala-vras, frases e parágrafos com oconforto da boa acolhida, com asegurança do conceito preciso eabrigado pela arquitetura da aná-

lise sem, contudo, sentir o peso daestrutura, saindo mais leve, oxige-nado pela reflexão conquistada.

Em seu pequeno livro sobreAparício Torelli (1895-1971), obarão de Itararé, auto-nobilita-do na batalha que não houve,Konder integra-se ao biografa-do para unir crítica social, hu-mor e dialética1.

“Há no humor uma vo-cação dialética espontâ-nea, que o leva a questio-nar os princípios que en-rijecem, as certezas quese cristalizam, as conclu-sões que se pretendemdefinitivas. O humor for-

ça a consciência a se abrirpara o novo, para o ines-perado, para o fluxo in-finitamente rico da vida,para a inesgotabilidadedo real. Por isso, o cam-peão do teatro dialético,o alemão Bertolt Brecht,dizia: nunca conheci umhomem desprovido desenso de humor que te-

39

Muitos intelectuais cruzamo caminho dos estudantes dehistória. Os especialistas dasdiversas épocas, os professoresque se tornam amigos, os auto-

res sem rosto das obras clássi-cas, os críticos implacáveis etc.A vida universitária descortinaaqui e ali novos horizontes.E assim deve ser.

Uma vez aberto o horizonte evislumbrado o novo vem o desa-fio: como assumi-lo e integrá-loem minha jornada? Como dar opasso a frente? Para colocar emmovimento eficaz este proces-

so de transformação é precisoaquela força que ouve e dialoga,que apóia e instiga, que confia eama. É preciso o Mestre.

Leandro Konder é um Mestre

Mestre em muitos sentidos.Mestre na crítica dos saberes.Mestre na crítica dos poderes.Mestre na sensibilidade artísticae na alegria de viver. Numa pa-lavra, Mestre no convívio amigo.E aqui divisamos o mais difícilde transmitir num texto: o calordo encontro, a profundidade doolhar, o riso da piada inesperada,a vida transbordando em idéias.

Há uma união entre a vida ea obra de Konder. É possível en-contrá-lo inteiro em seus tex-tos. Construídos com elegânciae objetividade, traduzem o mais

complexo de modo a produzir ascondições para a compreensão,entregando a substância do queé tratado diretamente ao leitor.

Page 41: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 41/202

foi ensaísta, teatrólogo, teóri-co e crítico. Desde os 15 anos

 já publicava poemas no jornal

da escola e, com o estourar daI Guerra Mundial, influencia-do por professores, escreve-oscom temas patrióticos. Entre-tanto, isso não duraria muito;ao lhe pedirem um comentáriosobre o verso do poema de Ho-rácio (“doce e honroso é morrerpela pátria”), Brecht ataca comacrimônia: “despedir-se da vidaé sempre duro, na cama ou nocampo de batalha”.

Suas concepções pacifistas,ao que parece, começam a agu-dizar-se ao passo que denun-ciam as inumanidades da guerrae as vantagens que os “de cima”levam sobre os “de baixo”. “Osangue continua vermelho / eo exército continua a convocargente”, deflagrou Brecht.

Nessa mesma primeira fase,Brecht já se define como poeta

urbano. Foi ele, “talvez, o primei-ro poeta que tem algo a dizer arespeito do homem urbano”, afir-mou o crítico e seu amigo Walter

Benjamin. O tema metropolita-no, constantemente referido àsmazelas do povo, entrelaçava-se

com o tema da guerra, no qualhabitantes pobres da cidade sãocondenados a viver em uma es-pécie de estado de guerra.

Em seu diálogo  com o poeta,Leandro Konder preocupa-se embuscar a relação da poesia deBrecht com a história. Em lugarde determinar um “conceito” fi-losófico de história, Konder per-corre, com desenvoltura ensaís-tica, as representações presen-tes nos poemas. Representaçõesestas que não se limitavam aoconhecimento crítico da história,mas ao anseio de sua invençãoque vicejaria por meio de uma re-volução libertadora. Brecht esta-va apaixonadamente empenhadoem fazer história .

Contudo, o poeta tinha cons-ciência das pedras que enfrenta-ria no caminho, mas nem por isso

deixava de percorrê-lo. Era céti-co aos “grandes homens” da his-tória. Dizia sempre: “os grandeshomens dizem muita besteira”.

condição de aprendizes permitiumaterializar da leitura, dos nos-sos debates e dos encontros que

tivemos com nosso Mestre.O Leandro Brecht, por Yllan Goethe afirma que toda poesia

é poesia de circunstância, então,todo o lirismo é filho das condi-ções específicas do seu momen-to. Bertolt Brecht confirma isso.Suas poesias são a expressão deseu tempo e de suas contradi-ções2. No entanto, Brecht é mais!Sua obra transcende o tempo e oespaço da qual é filha, ela ultra-passa as circunstâncias de cria-ção e se permite o novo. Foi feitaem um tempo, mas o transcen-de. A obra lírica de Brecht, semdúvida, tem sua história, mas seidentifica com inúmeras outras.Para compreender sua genuínahistoricidade devemos recolocaras questões que se apresentaram

na vida de Brecht.O mais dialético dos poetas,Bertolt Brecht, nasceu em Au-gsburgo (1898). Além de poeta,

Page 42: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 42/202

   E  n  s  a   i  o  s

E, ironicamente, autocaracteri-zava-se como o “grande Brecht”,homem que “filosofava sobre

capim” e não compreendia otrivial. Entendia que era – parafazer estreita ligação com ou-tra obra de Konder, Flora Tristan – como “um pária”. Solidarizavacom os “de baixo”, mas não per-tencia a eles; figurava entre “osgrandes”, entretanto, não eraigual a estes. Era um ser “pró-ximo e desconhecido de todos”,como ele mesmo afirmara.

Todavia, é o trabalhador queo fascinava. Para Brecht, o fazerhistórico somente é construídopelo coletivo. Coletivo conscien-te, diga-se de passagem! Segun-do o poeta, autocrítica está dire-tamente ligada à transformaçãoda sociedade. “O social (...) nãoatenua o individual. E o indivi-dual pressupõe o social.” E con-clui poeticamente: “De fato, sefôssemos reis, agiríamos / como

reis. Contudo, agindo como reis, /agiríamos diferente de nós”.Neste momento suas poe-

sias sofrem grande influência da

obra do autor de O Capital . Marxconcluiria com outras palavras:“não é a consciência dos homens

que determina a sua existência,é, pelo contrário, a sua existên-cia social que determina a suaconsciência”. Sem dúvida, comoafirmou Brecht, Marx seria “o es-pectador ideal” para suas peças.

Para vencer os opressores,Marx fornecia  a munição, mas odisparo era feito com suas poe-sias, que mais do que nunca, fe-riam os sentidos mais conserva-dores da sociedade.

Leitor atento de Hegel, Brechtpercebia que uma nova socieda-de só erguer-se-ia sob a égideda autotransformação. Processoeste que há de ser constante,pois, quando nos furtamos à au-tocrítica, incorporamos ao cernede nossa luta o conservadorismoque queremos transformar. Umbelo poema lembra: “Tudo setransforma. E recomeçar / é pos-

sível mesmo no último suspiro”.Isso é dialética!Bertolt Brecht e Walter Ben-

 jamin têm mais que uma relação

conquistada na amizade. Para es-ses dois grandes autores, quandoa história se cristaliza, ela em-

pobrece e perde a capacidadede transformação. Realidade émovimento. E movimento é dia-lética. Contudo, quando se de-pararam com a Rússia stalinista,ambos discordaram de seu dog-matismo empobrecedor; porém,ambos deram-na o privilégio dadúvida, não a questionando, se-gundo Brecht, “para não levarágua ao moinho inimigo”.

Sem embargo, após a SegundaGuerra Mundial esta questão re-volveria seus pensamentos, ma-goando-o profundamente. Comocriticar um Estado que se diz dopovo (socialista)? Sua frustraçãofoi aparente, mas mesmo assimnão deixou de lutar. Teve, maisdo que nunca, uma postura in-dagadora com relação à História– é nesse momento que escreve“Perguntas de um operário que

lê”. Com vigorosos versos o poe-ta lança sua última questão aoshistoriadores: Quem são os pro-tagonistas da história?

41

Page 43: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 43/202

Para Brecht o trabalhadorque irá mudar a história não éaquele que “resolve o enigma

da história”, mas o seu próprio.É aquele que dialoga com a his-tória porque tem consciênciadela. Indaga a todos, pois seu seré inquieto. Critica, porque quertransformar. “Quem construiu aTebas, a cidade das sete portas?”De forma alguma esse trabalha-dor quer respostas prontas: oque o atrai são as questões, poisestas sim podem transformar omundo. A reflexão nunca se in-terrompe, porque é pergunta quenunca cessa.

Konder nos faz ver o quanto omundo de hoje sente falta de Bre-cht. Sua luta constante, sua arte evida são o contrário do rumo se-guido pelos homens de hoje. O ho-mem em geral lê cada vez menos.As tentativas de implantação dosocialismo fracassaram. A críticaenterra-se na era da informação

e o mundo pós-moderno afirma o“fim da história”. Todavia, há es-perança! Basta lembrar o que di-zia o poeta/historiador: a “história

trajetória acadêmica de Hegeldesde seus primórdios. Analisa asinfluências sofridas pelo referido

filósofo e suas respectivas posi-ções perante assuntos ligados àreligião e ao cristianismo. Cons-tituindo esta narrativa dentro deuma perspectiva histórica, Kon-der realça também o papel dosacontecimentos revolucionários– França/1789 – na construçãode seus preceitos filosóficos re-ferentes às questões políticasda sociedade.

Inebriado pelas questões queo cercavam, Hegel debruçou-se,desde o início de sua formação,por trajetos e perspectivas queabordavam diversos tipos dequestões filosóficas. Envolveu-seno debate acerca do amor peran-te os cristãos. Definiu novos cri-térios para questões vinculadasà estética. Inovou no desenvol-vimento de conceitos dentro docampo do direito – a questão da

família e do Estado – e no de-bate político de sua época. Preo-cupou-se em dissecar problemasque envolviam a arte e a ciência.

depende de seus atores”, “tudo setransforma”, então, concluímos,“modifique o mundo: ele precisa”.

O Leandro Hegel, por Lincoln 

Logo na introdução de seulivro, Konder deixa evidente suapreocupação em resgatar, dentroda história da Filosofia, as obrasvinculadas à produção acadêmi-ca de Hegel3. Segundo o autor, éa partir deste conjunto de leitu-ras – escasso nos meios acadêmi-cos brasileiros – que poderíamosaprofundar questões presentesna filosofia de Marx e de outrosdiversos pensadores que foraminfluenciados pelos escritos epela concepção dialética ao lon-go do século XIX.

Optando por uma aborda-gem da trajetória do pensador edo movimento de sua reflexão,Leandro Konder se concentraprincipalmente na concepção de

razão criada por Hegel e que sus-cita dúvidas e desentendimentosaté os dias atuais.

Inicialmente, Konder narra a

Page 44: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 44/202

   E  n  s  a   i  o  s

Em suma, tentou compreender oreal dentro de sua diversidade ede sua respectiva especificidade

(principalmente pela compreen-são da relação dinâmica entresujeito/objeto).

Polemizando com diversospensadores de seu tempo – Fichte,Schulze, Jacobi, Krug – acerca darazão e da relação sujeito/objeto,Hegel destacou a importância dese compreender a forma comoa razão poderia ser operada, deque maneira o conhecimento éproduzido e quais as respectivasetapas que deveriam ser supera-das pela humanidade até chegarà idéia do saber absoluto.

Segundo Hegel, a constru-ção do conhecimento acompa-nha as etapas do movimento daconsciência humana perante arealidade observada. A consci-ência, ao surgir, se dá conta deque algo existe, porém não pos-sui meios de chegar a conhecer

coisa alguma a respeito do queexiste. Daí a formulação do sa-ber imediato ou certeza sensí-vel, ambos os conceitos ligados

às limitações desta primeira ex-periência imediata.

A segunda etapa do movimen-

to da consciência estaria ligada àidéia da percepção. A partir da-qui o sujeito supera os limites doimediato e se dá conta de algu-mas características “determina-das” daquela realidade abordadainicialmente. A consciência per-cebe a multiplicidade do real esuas respectivas qualidades.

Entretanto, como observaKonder, a primeira determinaçãode que o conhecimento é capazse mostra contraditória: a cons-ciência é levada a se defrontarcom a unidade do objeto e a res-pectiva diversidade das qualida-des deste mesmo objeto. A partirdaqui, o sujeito conquista umanova habilidade: a capacidade deduvidar. E é a dúvida que o ar-remessa no sentido de se rebelarcontra as limitações da consci-ência que não ultrapassa as fron-

teiras da sensibilidade. Surge aí aterceira etapa do movimento daconsciência: o discernimento.

Segundo Konder, a etapa de

construção do discernimento,representa um avanço muitoimportante no movimento da

consciência. A partir desta etapa,o sujeito vai além da esfera domeramente sensível. Analisando,decompondo e separando as coi-sas, buscando sempre a exatidãodo que é conhecido, percebe-seatuante no meio em que vive, ca-minhando a passos largos rumoà razão e à busca do conceito – forma objetiva de se compre-ender o real.

A etapa da autoconsciência,posterior a etapa do discerni-mento, coloca o pensamento embusca da universalidade. Entre-tanto, os paradoxos apresenta-dos pelo real – a capacidade deser e ao mesmo tempo não serlivre – “dividem” o sujeito den-tro do que Konder caracterizoucomo uma dialética perversa:A do senhor, que comanda e im-põe suas vontades e que, conse-

qüentemente, perde o contatocom a experiência humana dosseus subalternos, e a do escra-vo, colocado em contato com a

43

Page 45: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 45/202

so do real”. Diante desta novaetapa, a razão, dentro de seumovimento dinâmico, supera

a si mesma através do espíritoautocrítico, rumo ao alcance dasexta e penúltima etapa do mo-vimento percorrido pela consci-ência: o espírito.

Antecessor do saber absolu-to, o espírito , supera e preservacomo momentos significativostudo aquilo que havia de váli-do em todas as outras etapasprecedentes do movimento daconsciência. A paixão, energiaque, segundo Konder, a razão éincapaz de dinamizar, torna-seuma força poderosa na condu-ção do espírito a um “esforçocriativo bem direcionado.”

É através deste esforço que oespírito pode alcançar o já citadoconceito do saber absoluto, ondepara Hegel, ocorre uma fusão en-tre sujeito e objeto, conquistan-do-se assim a base constitutiva do

conceito. Através da mobilidadeda vida, este saber absoluto se re-novaria, ultrapassando os limitesde uma “quietude definitiva.”.

condição humana em toda suacrueldade, privado dos meios quelhe permitam viver e pensar a di-

mensão ampla da liberdade.Para sair deste círculo vicio-so da dialética senhor/escravo,a consciência precisa superar oslimites impostos por correntes depensamentos como o estoicismoe o ceticismo que, segundo Kon-der, não dão conta de compreen-der a realidade em sua plenitude,limitando-se apenas a avaliar ospontos positivos e negativos doreal imediatamente apreendido,devendo, por sua vez, dar contade reconhecer a importância dotrabalho  – forma pela qual oshomens podem vir a intervir narealidade objetiva, dominando-a,astuciosamente ao seu serviço.

Somente superando este de-safio é que a autoconsciênciatransforma-se, finalmente, emrazão. O indivíduo começa ase pensar concretamente como

parte de uma realidade maisuniversal, segundo Hegel, defi-nida como “o processo de reali-zação do espírito” ou o “proces-

Após sua passagem por Nu-remberg, trabalhando como edi-tor de jornais e preparando a edi-

ção de sua mais famosa obra, aFenomenologia do Espírito , Hegelaventura-se em meio às questõespolíticas que se desdobravam noinício do século XIX na Europa.Engajado na compreensão do sere de sua interatividade com oreal, Hegel avança na construçãode uma filosofia cada vez abstra-ta e distante do que foi apreen-dido perante o real objetivo.

Apesar de perceber os para-doxos existentes na sociedadeem que vivia – a questão dapropriedade privada, da Revo-lução Industrial e das condiçõesde vida da classe operária eu-ropéia – e ter percebido a his-tória dentro de uma concepçãodialética, Hegel não transformousuas idéias em métodos revolu-cionários. A concepção mate-rialista da história de Marx foi

uma reformulação das principaisconcepções de Hegel, principal-mente das que tratavam acercada inesgotabilidade do real e sua

Page 46: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 46/202

   E  n  s  a   i  o  s

apreensão pelo homem.Aprimorando a concepção

dialética de Hegel, Marx conse-

guiu dar um sentido à história,mobilizando em sua filosofiapesadas reflexões críticas acercada sociedade na qual estava in-serido e propondo soluções paraas mazelas sociais provenientesda exploração do capital sobre otrabalho. A luta por uma socie-dade sem classes foi um desdo-bramento importante da filosofiade Marx para o século XIX, man-tendo até hoje sua força crítica.

Seria incoerente terminar estetexto com uma afirmação e umponto final. Entretanto, diantedas diversas questões que con-tinuam em aberto, uma em es-pecial revela-se de importânciafundamental neste momento: Deque forma o resgate da dialéti-ca – dentro das concepções deHegel e Marx – pode-nos ajudara alcançar a autotransformação

individual e contribuir para re-verter/transformar as bases/ali-cerces de nossa sociedade?

lo, temos a narrativa da vida deApporelly desde seu nascimentoem São Leopoldo no Rio Grande

do Sul, até o último com o seufalecimento, sozinho, no Rio deJaneiro. Nestes capítulos descre-veu muitas passagens, escritasou ditas pelo humorista, princi-palmente no período de 1926 a1935, em que segundo o autor foio período de maior criatividade.

O barão de Itararé lançou um jornal semanal intitulado A Ma-nha , em alusão ao jornal A Ma-nhã , autocaracterizando-se como“hebdromedário”. Aliás, como feztambém com a sua própria deno-minação, concedendo-se o títu-lo de duque de Itararé por umabatalha que não houve, e pos-teriormente em demonstraçãode humildade, rebaixou-se parabarão. Em poucas palavras pode-mos dizer que Apporelly inovouo humor utilizando fotografiasadulteradas e fotomontagens,

entre outros recursos.Em 1933 iniciou uma cam-panha contra o integralismo. Noano seguinte, quando os comu-

45

O Leandro Itararé, por Juliana Nesta divertida e pequena

obra de Leandro Konder temos atrajetória de vida de Aparício To-relli, ou Aporelly, ou ainda Barãode Itararé. Este se utilizava do

 jornal e de seu dom indubitávelde fazer humor para fazer críticaà sociedade brasileira em que vi-via (1895-1971), atingindo prin-cipalmente a ordem política.

Leandro Konder dividiu o seutexto em 12 capítulos, inserindoao final uma cronologia de seubiografado. No primeiro traçou operfil do humor brasileiro antes dobarão de Itararé, que iniciou coma chegada das caravelas portu-guesas no país. Mas destacou queé no século XIX que o humor en-contra condições auspiciosas parase manifestar na vida literária.Lembrou, assim, de alguns boê-mios como Paula Nei, Raul Braga,Emílio Menezes, Raul Pederneiras

e os pioneiros na expressão literá-ria como Bastos Tigre.A partir do segundo capítu-

Page 47: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 47/202

nistas e integralistas divergemem São Paulo, assumiu a direçãodo Jornal do Povo . Logo fez umfolhetim sobre a revolta dos ma-rinheiros e no dia 19 do mesmomês (outubro) Apporelly foi se-qüestrado por oficiais da mari-nha. Isso significou o fechamentodo Jornal do Povo  e a reaberturado A Manha .

Em 1935 participou da cria-ção Aliança Nacional Libertado-ra, e após a chamada “IntentonaComunista”, o barão foi presoapesar de não ter participado denenhuma conspiração. Por faltade provas foi liberado um ano emeio depois.

Por pressões do Estado Novo

não conseguiu reativar A Manha ,mas em 1945 conseguiu fazê-locom grande sucesso de público.Em 1947 o Partido Comunistaaproveitou o seu apogeu e o lan-çou candidato a vereador. Eleito,foi o oitavo mais votado da ban-cada. Em 1948 teve o seu man-dato cassado em conseqüênciada extinção do registro do PCB.

Em 1949 lança o Almanha-

que , mas parou no segundo nú-mero, que foi lançado em 1955.Sua saúde vai se deteriorandopor volta de 1960, sendo agrava-da com o avançar da idade, masmesmo nesse momento temos aobservação de Konder quanto aoespírito crítico do humor, e claro,de Aporelly: “O barão, sexage-nário, insistia em olhar o mundocom os olhos de um inconformis-ta, farejando aspectos novos da

realidade que o cercava.”. Porém,tendo sérios problemas circula-tórios morreu em 1971.

Nesta obra podemos ob-servar que o maior objetivo deKonder é resgatar a crítica so-cial e política através dos lite-rários e mais ainda pelo humor.Trouxe à nossa memória outrosautores como: Millôr Fernandes,Luis Fernando Veríssimo, Ziral-

do, etc. Ele acredita que:

pela sua violência e erotizaçãoexacerbada, geralmente levandoa protagonistas “superhomens”,que de humanos deixam muitoa desejar. A solução do mistério,que aparentemente ruma paramais um dos clichês mirabo-lantes à la Aghata Christie, noqual o crime é desvendado porum virtuoso detetive, através deuma épica dedução, rapidamen-te inverte as expectativas, cami-nhando para mais uma soluçãointeligente, que preenche a obrade Konder.

Em uma localidade chamadaGuariroba, um milionário cons-trói um hotel, no qual abriga sobseu mecenato cinco literatos.

Alcunhados pelo excêntrico me-cenas, aficionado por literaturafrancesa, notavelmente de: Ara-gon, Claudel, Malraux, Rousseaue Rimbaud. Tendo este sido vistocaindo do alto de uma cachoeira,até se chocar com o chão, nãoresistindo ao impacto. O roman-ce, passado no decorrer de umasemana, marca a vinda do ex-po-licial Sdruws, guarda-costas do

velho milionário, e sua investi-gação do crime, que nitidamenteassume a forma de assassinato.

No desenrolar da investiga-ção, um romance entre o ex-policial e uma habitante da lo-calidade se constrói e muitascoisas são descobertas sobre oscinco artistas e suas vicissitudes.Até a revelação do verdadeiroassassino, as investigações ex-põem outras condutas crimino-

sas levadas a cabo pelos “anjos”(os cinco literatos), que recebemesse nome pela associação da si-gla ANGES (Associação Nacionaldos Grandes Escritores), criaçãodo milionário Bergotte. Assimcomo evidenciam as inescrupu-losas relações interpessoais dosprotegidos do velho milionário.

O cenário construído sugereum ambiente de “letrados” pe-

dantes, o que certamente marcauma crítica aos hábitos refinadose a “eurofilia” de alguns dentre ospersonagens. No fim do roman-

“Foi com barão de Ita-raré, historicamente, que ohumor, na sociedade bra-sileira, passou a se mobi-lizar de modo mais conse-qüente, na guerra contra aauto-mistificação da ide-ologia dominante”.

Konder insere o humor, sobperspectiva da crítica, na luta declasses, na transformação da re-alidade e na autotransformaçãodo indivíduo. Ressalta que é nadialética do humor que podemosbuscar o questionamento da re-alidade, a abertura para o novo,para a inesgotabilidade do real.O riso tem função de mola propul-sora para a oposição, para a críticaà realidade estática, e por isso temforça para refutar os princípios ecomportamentos convencionais,muitas vezes comprometidos coma exploração. O humor é, por con-seguinte, o quadro no qual se pas-sa a luta contra “os princípios quese enrijecem.”

A própria linguagem do humoré critica, libertária e desinibidora.Não permite que ninguém fiquelivre, uma vez que questiona opróprio caráter do homem. Neleencontramos os anseios e insa-tisfações sociais, independentedo indivíduo que produz ou da-quele que ri. Sem dúvida, o hu-mor expressa a própria vivifica-ção da luta pela democracia.

O Leandro Rimbaud,por Guilherme

 Apesar da homenagem pres-

tada aos protagonistas copaca-banenses Espinoza e Guedes, erespectivamente seus autoresLuis Alfredo Garcia-Roza e Ru-bem Fonseca, Leandro Kondersurpreende em seu texto dasvelhas táticas dos romances po-

liciais, gastas de exaustivo usopor parte de autores do gênero4.Distancia-se do batido e forçadogênero noir, amplamente aceito

Page 48: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 48/202

   E  n  s  a   i  o  s

de uma nova mulher e de umanova sociedade?

No dia 7 de Abril de 1803nasce, em Paris, Flora Celesti-ne Thérèse Henriette Tristan yMoscoso5, filha de uma francesa,Anne Pierre Lainé e de um gene-ral nobre peruano, don Marianode Tristan y Moscoso. Sua vidaserá marcada por muitos desen-contros e vicissitudes: o impe-dimento do casamento de seuspais pelo governo espanhol, umavez que em 1808 a França napo-leônica estava em guerra com aEspanha, a morte precoce de seupai e, conseqüentemente, o reco-nhecimento apenas da bastardiapela família paterna. Pária, uma

metáfora de sua vida e da exclu-são das mulheres, como ela mes-ma sublinhou.

Leandro Konder demonstracom argúcia e delicadeza a cons-trução da afinidade socialista deFlora Tristan em seus contatoscom os “socialistas utópicos”– Saint-Simon, Charles-FrançoisFourier e Robert Owen –, suascontradições e seus caminhos de

vida e experiências. Flora viviao esteio de uma dialética entreo privado e o público, obriga-da a travar uma luta peculiar.No primeiro front estava a vidaprivada, suas inúmeras querelascom Chazal, seu marido e eternorival, que mesmo separado nãoa deixava em paz; as relaçõescom a filha Aline e com sua fa-mília peruana, sobretudo seu tio.No derradeiro front, estavam os

conflitos de dimensões políticas,sob a égide da luta contra as in-

 justiças. Os problemas do casa-mento e dos filhos prendiam-naà esfera privada; os problemasdo socialismo lançavam-na àesfera pública. O sonho de umasociedade mais justa e igualitá-ria, sobretudo para operários emulheres, perpassava por umaética cotidiana.

Ela estava empenhada radical-mente, como conta-nos Konder,na busca da felicidade pessoale na organização dos trabalha-

dores. Antes de Marx – mais um jovem admirador seu – Flora uti-liza-se das idéias de Fourier so-bre o casamento, o sustentáculoda civilização, e esta, por sua vez,a prisão da mulher. Divergiu deProudhon, que, um tanto quan-to moralista, considera as idéiasde Fourier para o casamento “umsonho da canalha em delírio”,acusando-o de instaurador deuma “pornocracia”.

Proudhon, assim como muitossocialistas marxistas-leninistas,não entendeu que a mudança so-cial passa por uma revolução doscostumes. Em outras palavras,para alterar-se a esfera públicadeve-se alterar igualmente a es-

fera privada do cotidiano. Essesprocessos são interdependentes.Eis a importância de Flora Tristannos dias de hoje.

Contudo, não podemos miti-ficá-la, como demonstra Konder.Flora Tristan tem seu tempo equestões que lhe são próprias,mas, sem pejo, suas advertên-cias inquietas proporcionam ele-mentos vultosos para as lutas do

nosso tempo.Seu imaginário perpassa oromantismo típico dos “utópi-cos socialistas”, pelas inquieta-ções de justiça, pelos ideais daRevolução Francesa e os percal-ços da Revolução Industrial, quelançaram em condições ínfimastrabalhadores homens e mulhe-res, sendo estas últimas cada vezmais egressas da reclusão do-méstica e lançadas no mercado

de trabalho. Aos 41 anos e comdois projéteis alocados no peito– pela tentativa de assassinatoefetuada pelo marido – Flora de-cide lançar-se a uma derradeiraviagem pela França, disposta apregar diretamente à população“o socialismo para as mulherese o feminismo para o proletaria-do”. Vida foi apaixonada e apai-xonante, contada com o mesmo

entusiasmo por Leandro Konder.A compreensão aguda de Flo-ra sobre a significação políticade alguns movimentos da vida

47

ce, encontramos novas críticas,pontualmente ao caráter corrup-tor do mecenas, que através daspalavras do próprio ex-policial:“Você, Bergotte, com seu mece-nato paternalista delirantementeautoritário, com sua necessidadede manipular o comportamen-to dos outros...”, assim comodos milionários e sua tendênciaa tornarem-se sujeitos com umcaráter deformado.

Em síntese, o livro de LeandroKonder possibilita uma suave einteressante leitura, não permi-tindo que seu leitor a interrompaantes do final. Pondo em pautaas vicissitudes de seres huma-nos corrompidos pelo paterna-

lismo de um velho milionário,temos que as críticas impressasnão são pura coincidência, mar-cando valores transmitidos peloautor. Entre os capítulos do li-vro, frases de filósofos, literatos,poetas e dramaturgos podem serencontradas, assim como umapequena biografia dos cinco no-mes de escritores franceses (oucom produções reconhecidamen-

te francesas), que alcunham oscinco protegidos, é vista no fi-nal da obra. Distanciando-se deobras do gênero policial marca-das pelas construções esdrúxulasde enredo, ambientação forçosae frágil em seus argumentos epersonagens fracos, porque line-ares e pouco humanos, LeandroKonder preenche os requisitosque tornam sua obra um belo ro-mance policial, mostrando uma

nova face do Leandro-pensador:o Leandro-ficcionista.

O Leandro Tristan,por Yllan e Fabíola

 Como homem, como nãome identificar com as questõespolíticas, sociais, culturais, eco-nômicas e íntimas que envolvemas mulheres? Como mulher e

homem libertadores, como nãonos indignarmos com as rela-ções que tecem essas condiçõessociais e que envolvem o tema

Page 49: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 49/202

tas com suas convicções edecide alterar seus conceitoscorre o risco de virar “outro”,de perder sua identidade (...)

“Mudar é correr o risco demorrer”, dizia Hélio Pellegrino6.

E isso dá medo! Mas, então,como superá-lo? Com um sen-tido amoroso de abertura parao mundo. Acolher o mundo emsi próprio, transformando-o etransformando-se em múltiplasinterações interiores e exterioressob a garantia do amor a tudo oque é humano. Bem, isso não énada fácil! Mas parece que embreve teremos um outro livro

de Konder nas livrarias, e sobreo amor. Aí, uma vez mais, enfim,veremos reinventado o desafioque é viver.

Referência bibliográfica

1 Leandro Konder. Barão de Itararé: o hu-morista da democracia. São Paulo : Brasi-liense, 2002.2 Leandro Konder. A poesia de Brecht e a His-tória. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1996.3 Leandro Konder. Hegel: a razão quase en-louquecida. Rio de Janeiro : Campus, 1991.4 Leandro Konder. A Morte de Rimbaud.São Paulo : Companhia das Letras, 2000.5 Leandro Konder. Flora Tristan: uma vidade mulher, uma paixão socialista. Rio de Ja-neiro : Relume Dumará, 1994.6 Leandro Konder. O futuro da filosofia dapráxis: o pensamento de Marx no séculoXXI. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1992.

Paulo Cavalcante é professordo Departamento de História daUNIRIO. Yllan de Mattos, LincolnMarques e Juliana Bomfim sãopós-graduandos em História Mo-derna (Especialização) na UFF. Gui-lherme Linhares é estudante docurso de Direito da UNIRIO. FabíolaCamargo é licenciada em Históriapela PUC-RJ.

privada, esboça um processo quesó agora está se explicitandocom todo o seu vigor. Foi precisoo ruir de alguns modelos e esta-dos para percebemos que há umaarticulação cada vez mais cheiade sutilezas entre os poderes quese legitimam e os sentimentosíntimos que os aprovam ou rejei-tam. No “calor revolucionário” eem nome da coletividade desres-peita-se a intimidade dos indi-víduos. Paradoxalmente, o nazis-mo incorporou o povo ao poderpolítico de forma antidemocrá-tica e contra seus interesses e ostalinismo mostrou que as idéiassocialistas podem ser usadaspara institucionalizar uma “dita-

dura sobre o povo”. O liberalismo,por sua vez, institucionalizou o in-divíduo e a esfera privada, despo-litizando-o e criando uma socie-dade individualista e competitiva.O livre-mercado não gera somen-te uma “livre-concorrência”, mastambém uma competitividadeinterpessoal, quando indivíduosperdem a capacidade de partilhare universalizar o que é seu. Quan-

do a ternura, o amor e o afetose tornam “coisas” obsoletas e odesejo egoísta de satisfazer seuprazer prevalece, passa-se aouso do outro como objeto paraaquele fim.

Não podemos nos resignar auma sociedade como esta! É pre-ciso pensar uma alternativa, semnegar a importância das intimida-des e dos costumes à esfera pú-blica, à vida política e econômica.

Percorrer a vida de Flora Tristan éretomar a possibilidade de cons-truir esta alternativa, sem esque-cer, como afirmamos acima, quesuas propostas são elaboradaspara um tempo determinado, oséculo XIX. E assim como Marx,temos que deixar de somente in-terpretar e começarmos a trans-formar o mundo. Precisamos de“uma vida de mulher e uma pai-

xão socialista”, como diz subtí-tulo do livro. Precisamos ouvir oque primeiro conclamou Flora aostrabalhadores: “Chegou o dia em

que é necessário agir, e só vocêspodem agir no interesse da suacausa (...). Depende só de vocêsquererem firmemente e conseguirsair desse labirinto de misérias,dores e humilhações em que vocêsse encontram. (...) Isolados, vocêssão fracos. Então, saiam do isola-mento e se unam”. E depois Marx:“Trabalhadores do mundo uni-vos,vocês não têm nada a perder anão ser seus grilhões”.

O Leandro autotransformação,por Paulo

 Coordenar um grupo de es-

tudiosos, definir metas, selecio-nar questões formuladas, ajustar

conclusões, entrevistar o filósofo,abrir este texto e, agora, encerrá-lo, eis as tarefas a mim reserva-das. Arriscando-me a falar pelogrupo, se tivesse de escolher umponto, uma passagem de especialaprendizado neste convívio comLeandro Konder, escolheria o des-pertar para a autotransformação.

Aprendemos que é muito fácildizer para o outro em que ele deve

mudar. Descobrimos o quão auto-ritários somos quando indicamosunilateralmente para a socieda-de a direção que ela deve tomar.Realizamos em nossos corações ementes, tomados como unidade– e isso também nos foi ensinado–, que mudar, se transformar, écorrer o risco de morrer:

Estamos todos, por maisresolutamente revolucioná-

rias que sejam nossas dispo-sições subjetivas, vulneráveisa impregnações conservado-ras sutis. Temos medo de as-sumir todos os riscos ineren-tes à autotransformação.

Como poderíamos alterartranqüilamente as bases daconstrução teórica que fazde nós aquilo que somos?

A palavra “alterar” vem do la-tim “alter”, “o outro”. Quemempreende um ajuste de con-

Page 50: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 50/202

   C  r   ô  n   i  c  a  s

Os filósofos e o amorO curriculum mortis

Como os torturadores justificam a tortura

A corrupção

Marx e Satanás

Uma cultura mestiça?

Gramsci, o retorno

O cronista entrevista o obscuro Hegel

Homossexualismo

A burrice da esquerda

Levar porradaKafka e o pecado da obediência

Pobres duram mais

Filósofos brasileiros

A educação desvalorizada

A mulher e o machismo

Eu, eu, eu

O mercado mágico

O humor e a cultura

Minicurso de filosofia

O orgulho gay e as lézbecas

rônicas publicadaCRÔNICAS PUBLICADAS

Page 51: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 51/202

Crônicas

Page 52: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 52/202

   C  r   ô  n   i  c  a  s

O amor tem sido um tema crucial na reflexão de diversos filósofos.E as idéias que eles nos expõem têm, sintomaticamente, variado notempo. Podemos dizer que o modo de conceberem o amor depende muitoda capacidade que os seres humanos têm, em cada sociedade, de se rela-cionar uns com os outros em condições de respeito mútuo e liberdade.

Em Atenas, na Grécia antiga, viveu-se uma experiência paradoxalde “democracia” e desigualdade. Platão foi profundamente marcadopor ela. Enfrentou o desafio de elaborar um sistema que asseguras-se condições iguais de educação para todos no ponto de partida eassegurasse o desenvolvimento desigual para os melhores, na for-mação de uma elite pensante. O amor era pensado de acordo como critério dessa elite.

Em Platão, o amor era a percepção da presença da perfeição divinana criatura amada. Era a dimensão ideal - e não a sensualidade - quefazia do amor um sentimento nobre. Por isso, muitos séculos maistarde, o filósofo Marsílio Ficino, admirador de Platão, difundiu a idéiado “amor platônico”.

O amor ficava, assim, muito “espiritualizado” e “subjetiva-do”. Era um movimento que se realizava numa rua de mão única.Dante se apaixonou por Beatriz e Petrarca se apaixonou por Lauraapós um único encontro casual que os dois poetas tiveram na ruacom suas respectivas damas inspiradoras, sem jamais lhes teremfalado.

Esse quadro começa a mudar com a ascensão da burguesia.Para poderem competir no mercado, os indivíduos precisam deespaço para serem mais autônomos, mais capazes de iniciativa.Os sentimentos fortes de um sujeito pedem correspondência aossentimentos de um outro sujeito.

Em Shakespeare, os personagens que insistem em amar quem nãoos ama já são caracterizados como neuróticos (embora, obviamente,o termo ainda não seja usado).

Outro elemento importante na representação do amor nas peças

OS FILÓSOFOSe o amor

51

Page 53: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 53/202

mílias porque é recíproco, bilateral.Se falta à família - às “grandes instituições”, em geral - uma efetiva

dimensão comunitária, as pessoas unidas pelo amor podem construiruma “pequena comunidade”, limitada, porém densa e convincente.

Essa possibilidade de construir uma “pequena comunidade”, queeventualmente se contrapõe como alternativa às formas de vida comu-nitária consagradas (e frustrantes) confere ao amor, na sociedade bur-guesa, algo de “subversivo”. Os escritores têm caracterizado esse irrom-pimento do amor como mágico, sublime: “ein Wunder” (a palavra alemã“Wunder” pode ser traduzida tanto por “milagre” como por “maravilha”).

Goethe faz Mefistófeles dizer a Fausto que nenhum poder demo-níaco pode prevalecer sobre Margarida, porque ela ama. E é por obrae graça de seu amor que ela faz Deus salvar a alma de Fausto, apesardo pacto. Pouco mais de um século antes de Goethe, o filósofo-sapa-teiro Jakob Boehm escreveu: “o amor é veneno para o demônio”.

Sem dúvida, um dos grandes acertos do pensamento cristão, emsuas diversas expressões mais qualificadas, consistiu na ênfase postano reconhecimento da importância do amor.

É verdade que muitas vezes o tema foi banalizado, num tratamen-

to canhestro, em derramamentos retóricos, na esfera pública.E também é verdade que a ação prática de muitos cristãos na his-tória prejudicou a credibilidade do discurso que outros cristãos fa-ziam: enquanto uns pregavam a tolerância, outros praticavam a maisdogmática das intolerâncias.

O amor não é o sentimento daqueles que aconselham os ricosa darem o que lhes sobra para os pobres, em nome da caridade.Não é a legitimação do paternalismo, do assistencialismo, da boavontade inócua. E - vale a pena sermos explícitos nessa afirmação- não é o sentimento que inspira a agressão militar a povos islâmicos.

Cristãos e muçulmanos, budistas e judeus, umbandistas, espíritas

e ateus, todos amamos a paz. E esse é um amor simples, sobre o qualnão deveria haver confusão.Somos criaturas imperfeitas, contraditórias, temos sempre coisas

a aprender, e uma delas, com certeza, é aprender a amar. Amor é umsentimento forte que não deve nos emburrecer, não deve nos limitara ciumeiras tolas e enternecimentos efêmeros.

Como dizia Gramsci: “também no afeto é preciso ser inteligente”

Jornal do Brasil, 22 de fevereiro de 2003.

“  Anche nell afetto bisogna

essere intelligente.

” 

Page 54: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 54/202

   C  r   ô  n   i  c  a  s

É relativamente fácil o sujeito ficar apontando as deficiências e fa-lhas dos outros, atribuindo aos seus interlocutores a responsabilidadeexclusiva por tudo que não deu os resultados previstos e esperados.

O difícil é reconhecermos nossa própria relatividade e admitirmosque aquele que diverge de nós - por mais equivocado que nos pareçaser - em algum ponto pode ter razão.

Quando se recusa a reconhecer a possibilidade de estar errado, osujeito cancela as lembranças desagradáveis das besteiras que fez(que todo mundo faz) e ficam na sua alegre recordação somente ostítulos de glória, o registro dos acertos, o elenco das vitórias.

Isso é claramente visível numa peça que todos conhecemos, quesomos obrigados a apresentar quando nos candidatamos a um em-prego ou a uma promoção, a um curso ou a uma bolsa: o chamadocurriculum vitae .

O curriculum vitae  é, atualmente, um sucessor remoto da antigaepopéia. Os obstáculos encontrados ao longo do caminho só são lem-brados para realçar a história de um herói, que supera todos os obs-táculos, vence todas as batalhas.

Evidentemente, como ninguém é assim, o relato não é convincen-te, a pretensa epopéia é fajuta. Pelo que diz e sobretudo pelo que nãodiz, o curriculum vitae  é uma mentira.

Numa época de campanha eleitoral, o fenômeno ganha proporçõesespantosas. Os candidatos a cargos eletivos falam de seus méritoscomo se estivessem próximos da perfeição. Se o leitor tiver a paciên-cia de ouvi-los, poderá pensar que são santos, aguardando a cano-nização. Ou que são heróis mitológicos descansando após a últimabatalha (vitoriosa, é claro!) contra o dragão.

A verdade está longe dessa imagem demagógica. Uma certa mo-déstia metodológica nos ensina: somos todos aquilo que somos não

só pelos sucessos, mas também pelos fracassos. Cada um tem seu ladoluminoso e seu avesso sombrio. E aprendeu alguma coisa com ambos.Ai de nós, se cedermos à tentação de só conservar conosco as

lembranças que nos afagam! Ao rememorarmos nossas trajetórias,

CURRICULUMmortis

53

Page 55: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 55/202

somos desafiados a superar o conforto das amnésias convenientese precisamos digerir tudo aquilo de que participamos e que nãotem dado certo.

Essa atitude, porém, ainda é rara. Os indivíduos, em geral, prefe-rem a feira das vaidades. O que levou o poeta Fernando Pessoa a es-crever no Poema em linha reta o verso famoso: “Nunca conheci quemtivesse levado porrada”. Todos os seus amigos - queixava-se - erampríncipes, semideuses, campeões em tudo.

Muitas pessoas desenvolvem uma habilidade especial para trans-formar a autocrítica num auto-elogio. Muitos anos atrás, uma jorna-lista perguntou a um político - Carlos Lacerda - qual era o maior erropolítico que ele admitia ter cometido. O entrevistado respondeu queseu maior erro político era o que o deixava isolado quando dizia ascoisas mais importantes e verdadeiras antes que as pessoas tivessemtido tempo suficiente para compreendê-las. Ele se declarava, então,vítima da rapidez da sua inteligência.

Habilidade e esperteza, contudo, não têm o poder de destruir adura verdade que nos ensina: mesmo numa vida humana bem-su-cedida, cheia de êxitos - mesmo na vida de um campeão mundial

- existe sempre um alto coeficiente de fracassos e derrotas.Se reconhecermos isso, passaremos a dispor de um interessanteinstrumento para a avaliação da sinceridade dos que procuram nosimpressionar com a frenética exibição de seus triunfos. Podemos pe-dir a cada um deles que, paralelamente à apresentação do curriculumvitae , nos mostre, também, o que seria o seu curriculum mortis .

Teríamos, lado a lado, informações do tipo: “fui o primeiro da clas-se no colégio” e “meus colegas me elegeram o mais chato da turma”;“ganhei um prêmio literário aos 20 anos” e “meu pai era o patrocina-dor do concurso”; “sempre permaneci fiel ao mesmo partido” e “care-ço completamente de independência”.

Desafiados a apresentar os dois currículos, como se sairiam osatuais candidatos a cargos eletivos? Que impressão produziriam noseleitores? Conseguiriam nos trazer uma imagem de sinceridade? As-sumiriam francamente seus erros? Ou procurariam fazer como CarlosLacerda: tentariam fazer dos defeitos qualidades?

Jornal do Brasil, 13 de julho de 2002.

Page 56: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 56/202

   C  r   ô  n   i  c  a  s

  Existe alguma situação que justifique a tortura? O argumento maisconhecido entre os que são usados por aqueles que se empenham em

 justificar a tortura é o do reconhecimento da necessidade da torturapara obter informações que vão salvar muitas vidas inocentes.

Sempre que se discute o assunto, esse argumento reaparece. A polícia prende um terrorista cuja organização colocou bombas de

alto poder explosivo em vários pontos de uma grande cidade.A polícia sabe que ele sabe onde estão as bombas e precisa localizá-las e desativá-las a tempo.

Ou então: a polícia prende em flagrante um terrorista colocandoexplosivos num grande navio cheio de famílias de turistas com muitascrianças e sabe que ele instalou outras bombas em outros locais, paraexplodirem durante a viagem.

Muitas outras variantes são possíveis. E a conclusão é sempre amesma: há situações nas quais a tortura é necessária, portanto, lícita.

Uma primeira observação que se pode fazer é a de que esse quadroextremo, de uma situação limite, praticamente nunca se configura nadura atividade dos agentes da lei. A busca da obtenção de informa-

ções por meio da tortura costuma ocorrer em condições mais banais,menos impressionantes.

No contexto de uma guerra, como se vê na invasão do Iraque, osprisioneiros são torturados para proporcionar ao serviço de inteli-gência do ocupante (o saudoso Alvaro Moreyra já dizia: nos EstadosUnidos a inteligência é um serviço) dados sobre planos, locais edeslocamentos de tropas. Ou então são torturados por soldados eoficiais que tentam exorcizar o medo que tiveram (e ainda têm).Ou, ainda, são torturados porque o Rumsfeld quer que eles digamonde está Osama Bin Laden.

No contexto do nosso cotidiano brasileiro, as vítimas da tortura cos-

tumam ser, estatisticamente, marginais pobres, ladrões (para revelar ondeestá o produto do roubo), traficantes, seqüestradores (para revelar ondeestão as vítimas de seqüestros e para identificar cúmplices) etc.

A condenação da tortura, o fato de considerá-la crime infame,

COMO OS TORTURADORES justificam a tortura

55

Page 57: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 57/202

não implica qualquer solidariedade com o delinqüente, que deve serpunido de acordo com a lei. O que se pretende é proteger a cidadania.

Embora seja praticada no mundo inteiro (com freqüência maior doque se pensa), a tortura já está estigmatizada como uma abominação,em toda parte. Isso é muito bom para a consciência democrática.

Precisamos tomar muito cuidado com especulações que nos afas-tam dos problemas que enfrentamos no dia a dia.

Os que esgrimem situações excepcionalíssimas, quaisquer quesejam suas intenções, correm o risco de atenuar a gravidade das prá-ticas comuns de tortura.

Além do argumento da tortura posta a serviço da salvação deinúmeros inocentes, surge por vezes outro argumento que justifica ouso de todos os recursos da violência humana, desde que empregadoscontra os chamados “monstros morais”.

O “monstro moral” se pôs, ele mesmo, fora da humanidade. Nãomerece nenhuma consideração humanitária. Se as autoridades cons-tituídas precisam arrancar dele alguma informação, não há nenhumarazão para hesitarem no emprego da tortura.

O torturador, porém, deve estar bem preparado, tecnicamete. Pre-

cisa saber dosar a dor do outro. Sua eficiência depende de um longo ecomplexo treinamento, de uma adequada capacitação “científica”.Um torturador “profissional” - qualquer que seja a designação do

seu emprego - necessita de conhecimentos altamente especializados.Quando se defronta com um “monstro moral”, no seu trabalho, o tor-

turador dispõe do poder de destruí-lo. Mas a vitória que ele pode alcan-çar, de fato, é uma “vitória de Pirro”: não vale nada. Ele pode destruir ooutro, porém estará transformado, ele mesmo, num “monstro moral”.

Na realidade, ao se preparar para exercer sua abominável função,o torturador não está combatendo a monstruosidade: está aderindo àlegião dos “monstros morais”.

Jornal do Brasil, 15 de maio de 2004.

Page 58: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 58/202

   C  r   ô  n   i  c  a  s

A corregedora-geral da República assumiu uma pesada respon-sabilidade: a de promover as investigações necessárias ao combateà corrupção. O Poder Executivo a incumbiu de demonstrar que poderesolver sozinho os problemas que o Legislativo denunciava, quandoinúmeros deputados e senadores ameaçaram criar uma CPI.

Logo no início da sua atividade, a corregedora-geral da República

fez menção aos exageros das denúncias, à proliferação de acusaçõesinfundadas. E falou também da existência de corrupção em todas associedades humanas que existem hoje e existiram no passado.

A corregedora-geral da República tem razão no que disse, mas tal-vez não tenha razão no que deixou de dizer. Tem havido exagero nasdenúncias e, de fato, nenhuma sociedade até agora tem conseguidopermanecer imune à corrupção.

No entanto, historicamente, as formas e a profundidade da cor-rupção têm variado. E o exagero nas manifestações de revolta eindignação sempre foi e continua sendo menos grave do que a indi-ferença ou a banalização da roubalheira.

Quando se cria uma onda de protesto e insatisfação, quando a

onda cresce, o fenômeno nunca pode ser entendido como fruto deuma mera manobra de um grupo ou de um partido: o sentimentopartilhado por muitos é a expressão de um movimento social real,que não deve ser subestimado.

O nível da corrupção não se deixa medir com objetividade e preci-são, porém não é difícil perceber que atualmente há uma multidão depessoas convencidas de que, no Brasil, o índice de maracutaias estáatingindo níveis alarmantes. E o povão está cada vez mais desconfia-do de que aqueles que dirigem o Estado, que detêm o poder político,são, em grande medida, coniventes com os corruptos ricos (que fazemparte da classe dos que detêm o poder econômico).

Por que as prisões estão cheias de pobres? Por que é tão rara apresença na cadeia de criminosos milionários? Enriquecer, obviamen-te, não é crime. Sabemos, contudo, que a competência dos que enri-quecem é, com certa freqüência, acompanhada pela habilidade dos

A CORRUPÇÃO

57

Page 59: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 59/202

que enriquecem em dar golpes e usar métodos deletérios para lograros outros. Não é por acaso que as palavras “lucro”e “logro” têm a mesma raiz: elas vêm do latim“lucrum”.

Então, se os ricos não são um bando de inocentes, se entre eles háindivíduos que cometem crimes mais graves que os dos pobres, porque as punições não atingem os ricos?

O fenômeno alcançou entre nós dimensões escandalosas. O “ho-mem comum” vê isso e ainda tem – felizmente! – sensibilidade éticapara reagir. Às vezes, é claro, ele se excede, ultrapassa os limitesda desconfiança razoável e formula acusações infundadas. O quemove, entretanto, não é o ânimo caluniador, mas a rebeldia, a cons-ternação com a situação a que chegamos (tal como ele a enxerga).O que o move é a repulsa ética à delinqüência dos privilegiados.

A força moral dos que dirigem o Estado depende de eles mostra-rem que, sem endossar os exageros, estão em condições de golpear osque estão instalados nos cômodos nobres da fortaleza da corrupção,apesar da muralha de dinheiro que os protege.

Se isso não for feito, uma parte do eleitorado vai resvalar parauma postura de ceticismo, de cinismo, de descrença dolorosa. E outraparte exasperará com certeza sua revolta ética, inclinando-se, talvez,a manifestá-la com violência.

Seria muito bom que a corregedora-geral da República estivesseatenta a esse desafio que está posto no seu caminho.

  Jornal do Brasil, 23 de abril de 2001.

LucrumLucrum

Page 60: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 60/202

   C  r   ô  n   i  c  a  s

Como todo os campos da reflexão, a teologia tem representantesqualificados, espíritos profundos, e tem suas expressões ingênuas,seus teóricos canhestros.

É uma característica que a teologia partilha com a ciência política,com a sociologia, com a economia e outras disciplinas.

Outro dia, rearrumando meus livros, encontrei um panfleto quehavia lido há uns dois ou três anos e que me pareceu divertido, emseu extremo simplismo. Intitulava-se “Era Karl Marx um stanista?”e seu autor um certo Wurmbrand.

O nome o escritor me causou momentaneamente, uma sensção deconstrangimento. Afinal, “Wurm” em alemão é verme e “Brand” podeser “incêndio” ou “gangrena”. Como levar a sério um escritor chama-do Gangrena-de-verme?

No entanto, a releitura da obra acabou me comovendo. O senhorWurmbrand é certamente um teólogo bisonho, mas há algo de tocan-te na sinceridade com que expõe seus medos.

Sua pesquisa não o levou, como ele mesmo reconhece, a provas

concludentes, por isso o título do livrinho assumiu a forma de umapergunta. Os indícios recolhidos são bastante frágeis e é até pitorescoque eles sejam apontados no texto.

Entre outras coisas, Wurmbrand observa que Marx, quando eraestudante universitário, gastava em farras o dinheiro do pai; alémdisso, ao longo de sua vida, ele “bebia muito”. Aos 18 anos, escreveupoemas com invocações ao demônio. “Nessa época, ele pode ter sidoenvolvido nas doutrinas altamente secretas da Igreja de Satanás e terrecebidos os rituais de iniciação.”

Embora fosse um intelectual de alto nível de instrução, sua corres-pondência com o amigo Engels “está cheia de obscenidades”.

A mulher de Marx, numa carta, chama-o de “sumo sacerdote”, o quedá a impressão de ser uma brincadeira, porém Wurmbrand desconfia:“A única religião européia que tem sumos sacerdotes é a satanista.”Outro indício é localizado na própria aparência do filósofo socia-

MARXe satanás

59

Page 61: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 61/202

lista, em sua barba hirsuta, em seu cabelo meio desgrenhado; “Acasoo leitor já se admirou quanto ao estilo dos cabelos de Marx? Na suaépoca, os homens geralmente usavam barbas, mas não como as suas,e não tinham cabelos longos”.

Era uma época tremenda, de “explosão satânica”. O poeta Baude-laire, autor das Flores do mal”, podia ser visto “proclamando-se aberta-mente do lado da imoralidade”. De Nietzsche, Wurmbrand diz apenasque ele era filósofo preferido de Hitler e de Mussolini”. E de Oscar Wil-de, que foi “o primeiro teórico da liberdade para o homossexualismo”.

Mas os principais cúmplices do Diabo são Marx, Darwin e Freud.Marx relegou o homem à condição de “servo dos intestinos”, afirmouque o “o homem é principalmente um ventre”. Darwin fez do serhumano um mero descendente dos animais. E um pouco mais tardeFreud reduziu-o a impulsos sexuais, completando a obra dos outrosdois “gigantes satânicos”.

Depois de ter ajustado suas contas com Marx, Wurmbrand infor-ma, com singeleza, que pretendia estudar sinais de satanismo em ou-tros autores famosos, porém ficou assustado, porque, diz ele “senti astendências más dentro de mim ficarem mais fortes”.

E acrescenta: “Antes de sacrificar a jóia mais preciosa que possuo,minha própria alma, decidi não levar minhas investigações adiante, ain-da que pelo elevado propósito moral de descobrir as fontes malignas.”

Não se pode, evidentemente, ignorar a extrema fraqueza teóricade Wurmbrand. No entanto, por trás das monumentais tolices queele escreve, por trás das fantasias paranóides, há algo que de algummodo me sensibilizou: a autenticidade da sua angústia.

 O Globo, 18 de setembro de 2000.

Page 62: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 62/202

   C  r   ô  n   i  c  a  s

“Todo brasileiro é mestiço. Se não no sangue, nas idéias”.A observação é de Sílvio Romero, e foi feita há cerca de um século.

De fato, o material de que se alimenta a vida espiritual de todos osbrasileiros provém de fontes étnicas muito diversas e muito mistura-das. Tradições culturais européias se cruzam com raízes africanas ematrizes indígenas, antes dr receberem influências asiáticas, sobretu-

do através da integração japonesa.A riqueza (a universidade) de uma cultura nacional depende demuitos fatores. E depende, decisivamente, de sua capacidade de saberassimilar a diversidade das experiências humanas que lhe chegam,através dos mais distintos caminhos.

A vida cultural dos brasileiros, então, dispõe de possibilidadesprivilegiadas. O cidadão que se assume como espiritualmente mestiçopode incorporar elementos de origens diferentes à sua compreensãoda realidade; nele, as qualidades da sensibilidade, da intuição, da per-cepção, do talento improvisador e da criatividade podem ser comple-mentares às qualidades de racionalização, disciplina intelectual, rigorcientífico e competência organizativa (sem se excluírem mutuamente

umas às outras).Na nossa História, contudo, essa incorporação da diversidade ficou

muito prejudicada. A política cultural imposta pelos “de cima” acar-retou uma verdadeira devastação nas expressões culturais dos “debaixo”. O colonizador massacrou o colonizado. As razões dos brancosforam levadas aos índios e aos negros menos através da persuasão doque por meio do dinheiro e das armas de fogo.

A extraordinária riqueza das culturas indígenas, que vinham sesedimentando e amadurecendo ao longo de muitos séculos, foi di-zimada. De quatro ou cinco milhões que eram, os indígenas ficaramreduzidos, hoje, a menos de 200 mil. Só nas primeiras seis décadas do

nosso século se extinguiram mais de 80 povos. Segundo cálculos dealguns pesquisadores, é possível que 90 por cento das línguas e dia-letos falados pelos indígenas tenham desaparecido sem deixar traço.Levando em conta quantas experiências humanas acumuladas são ne-

UMA CULTURA mestiça?

61

Page 63: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 63/202

cessárias para forjar um idioma, podemos ter idéia de como foi grave aperda para o nosso esforço no sentido de nos conhecermos melhor.

Na política cultural adotada em relação aos escravos trazidos daÁfrica, a repressão não foi menos violenta. Os negros só conseguiramsobreviver pagando um preço elevadíssimo em sofrimento e resistên-cias multiformes. Houve escravos que se suicidavam, mulheres quepreferiram abortar a pôr no mundo filhos cativos; houve sabotagemno trabalho e houve revolta. De qualquer maneira, entretanto, eraextremamente difícil aos representantes das numerosas nações suda-nesas e bantos preservarem e transmitirem suas respectivas culturas.

A intolerância etnocêntrica dos brancos, detentores do poder eda riqueza, mutilou e empurrou para a clandestinidade as sabedoriasdensas e diferentes dos iorubás, dos gêges, dos hauçás, dos angolas edos cabindas. Cada uma dessas culturas tinha revelações importantesa nos fazer, mas suas vozes foram abafadas; as identidades daquelesque as encarnavam foram negadas.

Hoje, estimulados pelos avanços da antropologia, os sobreviventesdas culturas oprimidas e sufocadas estão lutando pelo resgate dosvalores espezinhados; estão empenhados em criar condições demo-

cráticas para que fontes proibidas voltem a jorrar com toda a forçaque originalmente tiveram.Nessa hora, a velha tese de Sílvio Romero precisa ser reexamina-

da: a mestiçagem anímica do brasileiro, de fato, não se realizou numnível suficientemente profundo, porque os parceiros da sua realizaçãoestavam postos em condições históricas muito desiguais.

Para que o mestiçamento não seja uma máscara usada em nomede uma unidade cultural imposta, é preciso que todas as diferençassejam legitimadas, que todas as identidades possam ser efetivamenteassumidas e que todas as experiências culturais particulares sejamconcretamente respeitadas.

Quando isso acontecer, então, sim, poderemos começar aprender asermos, orgulhosamente, mestiços em nossas almas.

 O Globo, 11 de outubro de 1992.

Page 64: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 64/202

   C  r   ô  n   i  c  a  s

Antonio Gramsci. Esse nome aparece na conversa quase inevitavel-mente toda vez que o assunto é o pensamento marxista, sua teoria doEstado, sua concepção da cultura, sua análise do papel dos intelectuais.

Enquanto outros teóricos socialistas vêm atravessando um períodode prestígio declinante, o pensador revolucionário italiano tem tidosuas idéias constantemente relembradas, tanto para serem adotadas

como para serem refutadas.Agora mesmo acaba de ser lançado o sexto e último volume danova edição brasileira dos Cadernos do Cárcere , primorosamente pre-parada por Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e MarcoAurélio Nogueira. Nova oportunidade para reflexões, com divergên-cias de interpretação.

Em certos aspectos de sua abordagem filosófica de importantesquestões teórico-políticas, Gramsci foi um marxista que foi além deMarx e um leninista que foi além de Lênin. Seu “historicismo absolu-to”, por exemplo, é muito original e tem sido sempre celebrado comentusiasmo por admiradores e severamente criticado por adversários.

Insistindo no esforço de “pensar historicamente” o nosso autor,

segundo seus críticos, estaria correndo o risco de dissolver os seres eas coisas no fluxo da história. Se estamos em pleno reinado absolutodo efêmero, onde vamos buscar os padrões duradouros de que neces-sitamos para, por comparação, compreender o que passa depressa?

Gramsci, o historicista, se defende argumentando que representarum determinado momento histórico-social não significa reduzir-se aele. Os momentos histórico-sociais são ricos em contradições, nuncasão homogêneos.

A melhor maneira de representá-los é superar as limitações do “pi-toresco”, a pobreza do “senso comum”, que nos põem diante de umaenorme confusão mais ou menos paralisada, que nos rodeia.

O desafio que devemos enfrentar é o de enxergar a atividade vi-tal que predomina como “linha de frente” histórica, exercendo umainfluência decisiva na determinação do sentido do movimento quepassa pelo momento histórico vivido.

GRAMSCIo retorno

63

Page 65: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 65/202

 Jornal do Brasil, 21 de setembro de 2002.

Às vezes a gente custa a encontrar ou criar esse sentido. Há épo-cas nas quais isso é mesmo bastante difícil. A situação de Gramsci erapéssima. Mussolini, como ditador, era elogiado por Winston Churchill,enquanto seu prisioneiro mofava na cadeia.

Para evitar que o promotor tivesse êxito na proposta de impedirseu cérebro de funcionar, Gramsci aproveitava exercícios de crítica li-terária para desmascarar hipócritas e medíocres inflados, escribas queele chamava de “os filhotes do padre Bresciani” (referindo-se a umromancista católico antiliberal do século 19, amigo do Papa Pio IX).

Farpas sobraram para alguns escritores daquele tempo. Os escritosde Curzio Malaparte são caracterizados como “arrivismo desenfreado”.Um artigo de Giovanni Papini é considerado “prolixo, pomposo e vazio”.

Gramsci, porém, se mostra atento para não deixar que a atividadedo crítico literário se transformasse num “massacre contínuo”, numasucessão de “demolições”. Cabe-lhe a tarefa de completar o juízo ne-gativo com a indicação de pontos positivos.

Para a avaliação do que é negativo e do que é positivo, o pensadordispunha de um critério próprio. O que enriquecia a cultura era, a seuver, a aproximação entre os intelectuais e o povo, em condições que

favorecessem uma revitalização do passado e uma vigorosa diversi-ficação das expressões históricas no presente. Enriquecida dessa ma-neira, a cultura seria o que Gramsci chama de “nacional-popular”.

Quando, porém, os intelectuais sentiam pelo povo apenas “comise-ração” e a história se fez com escassa participação popular, a culturase ressente de superficialidade e “cosmopolitismo”.

Gramsci se mostra firmemente convencido de que a transformaçãoda sociedade será efetivamente estimulada pelas condições caracte-rísticas de uma cultura “nacional-popular”. E, coerente com esse pen-samento, defende uma linha de ação político-cultural que o distinguedos comunistas dos anos trinta.

Enquanto Stálin (e muitos outros) se empenhavam em mobilizaros artistas, utilitariamente, na política (sobretudo na formação de“quadros”, quer dizer, na educação de militantes), Gramsci prefe-re assegurar à criação artística toda a liberdade de que ela carece.E cita Benedetto Croce:

“  A arte educa. Mas não como arte educativa”.

Page 66: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 66/202

   C  r   ô  n   i  c  a  sGeorg Wilhelm Friedrich Hegel é, com certeza, um dos filósofos

mais importantes da história da humanidade. Curiosamente, apesarde famoso, é pouco lido. É considerado muito obscuro. Seu colegaSchopenhauer uma vez disse que ele era “garatujador de absurdos”

e “espatifador dos miolos alheios”.Para ajudar a difundir algumas de suas idéias, pensei em entre-vistá-lo. Havia, porém, um obstáculo considerável: Hegel morreu em1831, há 173 anos. Fiz, então, algo que (conforme me ensinaram)nunca se deve fazer: “entrevistei” o morto através de frases extraídasde seus livros.

As perguntas e respostas que se seguem, portanto, carecem deautenticidade. Reproduzo-as, contudo, na esperança de que talveznão careçam de interesse para os leitores que cultivam curiosida-des filosóficas.

- É notório que o senhor é um racionalista empedernido, que con-fia demais na razão. Não é?

- O que é notório, exatamente por ser notório, não é efetivamenteconhecido.

- Mas o senhor confia na razão, não confia?- O que é real é racional e o que é racional é real.- E a paixão, qual é a importância da paixão?- Nada de grande no mundo se realizou sem paixão.- E a felicidade, na história?- A história mundial não é lugar para a felicidade. Os períodos feli-

zes são páginas em branco.- O senhor me dá a impressão de pensar os seres humanos muito

abstratamente. Os homens, afinal, são guiados pelas idéias?

- Os indivíduos em atividade na história são seres particulares,têm necessidades específicas, pulsões peculiares, interesses próprios.Frases ocas, como ‘’o Bem pelo Bem’’, não têm espaço na realidadeefetiva das pessoas vivas.

O CRONISTA ENTREVISTAo obscuro Hegel 

65

Page 67: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 67/202

  Jornal do Brasil, 10 de julho de 2004.

- Então os seres humanos são vítimas das circunstâncias? São inocentes?- Só o animal é efetivamente inocente.- Não há risco de dogmatismo na sua filosofia?- O dogmatismo na maneira de pensar e filosofar consiste em su-

bordinar o verdadeiro a uma fórmula fixa ou concebê-lo como algoque se esgota na percepção imediata.

- A sua filosofia é conhecida pela importância reconhecida ao con-ceito de totalidade. Mas em que consiste, exatamente, a totalidade?

- O verdadeiro é o Todo. Mas o Todo só alcança a plenitude do seuser ao se desenvolver.

- Qual é o grande desafio do pensamento dialético, hoje?- Reconhecer a rosa da Razão na cruz do presente.- A filosofia pode atuar como vanguarda nisso?- A filosofia chega sempre tarde. A coruja de Minerva só levanta

vôo quando chega o crepúsculo.- Qual o valor da opinião pública?- Na opinião pública, tudo é falso e é verdadeiro. Cabe aos grandes

homens achar o que é verdadeiro nela.- O que é mais importante, a prática ou a teoria?

- O teórico está contido no prático. A vontade já traz o teórico nela.- Como na sociedade civil-burguesa os indivíduos podem ser maisuniversais?

- A sociedade civil-burguesa é o campo de batalha dos interessesindividuais privados de todos contra todos.

- Como um pai deve educar seu filho para fazer dele um bom cidadão?- Fazendo dele um cidadão de um bom Estado, de um Estado com

boas leis.- Como educar as crianças contando-lhes a vida de Deus?- A vida de Deus pode se expressar como um jogo do amor consigo

mesmo. Mas cumpre evitar que ela se torne edificante e lhe faltem a

seriedade, a dor, a paciência e o trabalho do negativo.- O que é a religião?- É a relação com o Absoluto em forma de sentimento, representa-

ção e crença.- Qual o valor do ser humano?- O ser humano vale por ser humano, e não por ser judeu, católico,

protestante, alemão, italiano etc.- O Lula ora diz que já fez muito nos seus 18 meses na Presidência

e está satisfeito, ora diz que não conseguiu fazer tudo que pretendiae está insatisfeito. Qual lhe parece ser a atitude mais sábia?

 Na facilidade com que oespírito se dá por satisfeito pode-se medir a extensãodaquilo que está perdendo.

“    “ 

Page 68: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 68/202

   C  r   ô  n   i  c  a  s

A novela “A próxima vítima”, de Silvio de Abreu, está irritandoalgumas consciências conservadoras. Ouvem resmungos e grunhidosde protesto contra o fato de que a televisão esteja apresentando aosespectadores, numa hora em que a família costuma estar reunida norecesso do lar, uma relação amorosa entre pessoas do mesmo sexo.

Não é a primeira vez isso acontece. Há alguns anos, na nove-

la “Vale tudo”, Gilberto Braga pôs em cena um casal de lésbicas.E – o que é mais importante – apresentou as duas mulheres comdelicadeza e respeito.

O homossexualismo tem sido visto, tradicionalmente, na nossacultura, como uma realidade pertubadora. Com freqüência, as figurasde homossexuais na mídia são achincalhadas, tratadas com deboche,caricaturadas. Como se a representação cômica tivesse o poder denos dispensar do esforço de ampliar e aprofundar nossas compreen-são de algumas formas da condição humana que mexem com a nossasegurança interior.

Gilberto Braga e Sílvio de Abreu têm o mérito de, em meio aoentretenimento da novela de TV, trazer para a reflexão do grande pú-

blico um tema importante, que não deve ficar inteiramente entreguea reações irracionais e preconceituosas.

O que os personagens Sandro e Jefferson mostram, em “A próximavítima”, é que os gays vivem situações que se complicam e enfrentamproblemas que se agravam em função do modo como são encaradospelos outros (pela família, pelos amigos, pela sociedade em geral).E o que a maioria dos telespectadores tem que decidir é como ela sedispõe a lidar com pessoas que não trilham os caminhos da sexuali-dade consagrados pela nossa cultura.

As opções da intolerância são múltiplas. Há os que ostentamcom orgulho suspeito uma carapaça machista e hostilizam os gays;

insultam-nos, agridem-nos, escarnecem deles, tentam humilhá-los.Há também os que os deploram, declaram-nos “doentes”, sugeremque deveriam ser submetidos a “tratamento”. E há os que sustentamque os homossexuais, embora não tenham culpa de terem nascido

HOMOSSEXUALISMO

67

Page 69: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 69/202

com essa “inclinação anômala”, deveriam ao menos ser capazes deresistir a ela, refreando seus impulsos e recusando-se, asceticamente,a seus prazeres. A velha via da automortificação...

Outras reações poderiam ser lembradas: a do tipo avestruz quenão quer enxergar o problema, para “evitar o constrangimento”; ado sujeito que sorri sarcasticamente e faz piada, porque não se pode“levar o assunto a sério”. E várias outras.

Uma modalidade extremamente radical de intolerância, que játeve um enorme espaço de manifestação no passado, é da interven-ção da polícia, da aplicação de leis penais severas; o apelo ao contro-le estatal da vida privada, por meio de procedimentos inquisitoriais.

Felizmente, estamos longe dos tempos da Inquisição, em que pes-soas que manifestavam “desvios” na conduta sexual eram queimadasem praça pública, como aconteceu com tanta gente na época colonial.

 

Uma questão incômoda se impõe à nossa consciência democráti-ca: até que ponto as reações de intolerância de alguns telespectado-res diante de Sandro e Jefferson não se alimentam de um sentimentoperigosamente nostálgico: o sonho de uma volta ao passado, aotempo em que a repressão aos gays era mais brutal?

 Não faz muito tempo, contudo,num país famoso por suas institui-ções liberais e alheio às fogueirasda Inquisição, um notável escritor

 foi preso, julgado, condenadoe cumpriu pena pelo

“crime” de ser homossexual.Refiro-me, naturalmente, à Ingla-

terra, que há exatamentecem anos (em 1895) puniu

Oscar Wilde com dois anos de

reclusão com trabalhos forçados, por sua ligação amorosa com o jovem lorde Alfred Douglas.

O Globo, 02 de setembro de 1995.

Page 70: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 70/202

   C  r   ô  n   i  c  a  s

O presidente da República conseguiu ampla repercussão naimprensa para o desabafo em que perguntava, agressivamente, se aesquerda tinha de ser burra.

A hipotética burrice da esquerda passou a ser amplamente glosadanos jornais e nas revistas. Notórios representantes da direita aprovei-taram o mote. Com eles, a burrice da esquerda deixou de ser hipoté-

tica, passou a ser objeto de prazerosa constatação pacífica. Um dosatuais expoentes do conservadorismo extremado regozijou-se: “Eusempre disse que a esquerda era burra, mesmo quando o presidentepertencia a ela”. Outro baluarte do reacionarismo escreveu: “Isso jáfaz tempo que não é segredo para ninguém”.

Do lado da esquerda, houve reações irritadas. E compreensível:ninguém gosta de se ver questionado quanto à sua capacidade in-telectual. Mas houve também quem recorresse ao humor para co-mentar a invectiva presidencial. A esquerda demonstrou, através dealguns dos seus elementos, que a burrice em sua área não chegava aeliminar completamente as sutilezas da ironia.

Zuenir Ventura lamentou a deselegância da imprecação do Pri-

meiro Magistrado, outrora cognonimado “o príncipe dos sociólogos”.Moacir Werneck de Castro lembrou uma “boutade” de Oswald de An-drade: aludindo ao termo “intelligentsia” criado na Rússia do séculopassado para designar a intelectualidade de vanguarda, o autor de “Orei da vela” afirmou que o Brasil tinha inventado a “burritsia”.

A controvérsia, de fato, se presta para gracejos. Nada indica, po-rém, que possa resultar numa discussão fecunda, capaz de contribuirpara o esclarecimento dos problemas da nossa vida política.

As palavras “burro” e “inteligente” se prestam para o insulto e oelogio, mas não estão – e provavelmente jamais estarão – articuladasa critérios confiáveis e seguros para a aferição dos fenômenos a que

se referem. Nossa avaliação tanto da burrice como da inteligência ésempre condicionada por nossa cultura particular, pelas convicçõessubjetivas adquiridas a nossa experiência histórica peculiar. E, setivermos um mínimo de senso autocrítico, saberemos que o nosso

A BURRICEda esquerda

69

Page 71: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 71/202

ponto de vista é menos universal do que parece.A burrice, com certeza, existe. Todos já nos defrontamos com ela,

em algum momento da nossa existência. No entanto, há algo nela demisterioso, de incomensurável. E essa característica torna recomen-dável certa humildade para os que se debruçam seriamente sobre ofenômeno. Não há como medi-lo.

Contudo, mesmo que existisse um “imbecilímetro”, ele só pode-ria – na mais ambiciosa das hipóteses – apontar os coeficientes deburrice em casos individuais. Poderia ter alguma validade na esferaexistencial; jamais no âmbito da história social.

O fato de que um movimento social exista e corresponda a umanecessidade deve inspirar a quem pretende compreende-lo uma efeti-va disposição para estudar as suas causas, as suas motivações.

Se um grupo humano se põe em movimento, significativamente,ele está mobilizando energias que não devem ser submetidas. Querpara apóiá-lo, quer para combatê-lo, o observador precisa reco-nhecer sua força.

O pensador italiano Antonio Gramsci já nos advertia: se o nos-so objetivo é o conhecimento, não podemos nos limitar a atacar os

pontos fracos da posição teórica do interlocutor adversário e precisa-mos estar atentos para os pontos fortes da sua argumentação, isto é,para o que podemos aprender com ele. Se não formos estupidamenteauto-suficientes, reconheceremos que temos sempre algo a aprendercom os outros (e também com os nossos críticos).

Desqualificar toda uma vasta tendência teórico-política como“burra” é desprezar o conselho do velho Gramsci e – o que é pior– reeditar um procedimento infantil: são crianças que, quando bri-gam, costumam recorrer ao termo como xingamento.

Se insistirem em seguir por esse caminho, daqui a pouco os adver-sários da esquerda lhe estarão mostrando a língua.

O Globo, 22 de julho de 1995.

Page 72: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 72/202

   C  r   ô  n   i  c  a  s

O “Poema em linha reta” é um dos poemas mais conhecidos deFernando Pessoa. Como sabemos, ele começa com o verso insólito“Nunca conheci quem tivesse levado porrada”.

Em seguida, o poeta se sente único, ao comparar-se com os ou-tros, que “têm sido campeões em tudo”. Irrita-se com o fato de se vercercado de “príncipes” e “semideuses”.

Parece-lhe que, mesmo quando falam de seus erros, as pessoas seprotegem de qualquer desmoralização. “Podem, eventualmente, con-fessar pecadilhos, porém silenciam a respeito de suas infâmias. Rela-tam atos de violência, mas se calam sobre suas reações de covardia.Por isso, Fernando Pessoa reclama: “Toda a gente que conheço e quefala comigo/nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho.”

Inseguro, ou sarcástico, o poeta indaga: “Como posso eu falar comos meus superiores sem titubear?” Sente-se posto numa posição quecontrasta com a desses seres ideais: “Eu que tantas vezes tenho sidoridículo, absurdo, /que tenho enrolado os pés publicamente nos tape-tes das etiquetas, / que tenho sido mesquinho, submisso e arrogante.”E depois pergunta, dramática e ironicamente: “Então sou só eu que é

vil e errôneo nesta terra?”O poema está nas “Ficções do interlúdio”, sua autoria é atribuída

ao heterônimo Álvaro de Campos. Mas a radical desconfiança que opoeta manifesta em relação aos outros (à “sociedade organizada evestida”) e em relação a si mesmo (à sua vida e percepção da realida-de) aparece também em outras passagens da sua obra.

O mesmo Álvaro de Campos, na “Tabacaria”, dizia: “Não sou nada./Nunca serei nada. /Não posso querer ser nada.” E um pouco adiante:Falhei em tudo.” Seu “mestre” Ricardo Reis advertia: “Nada fica denada. Nada somos.”

E no “Cancioneiro”, a existência do poeta é caracterizada por ele

como uma “inútil vida, posta a um canto e ida/sem que alguém nelafosse, nau sem mar”. Para concluir, em tom patético: “Somos todospalhaços estrangeiros”.

A reflexão autocrítica está presente, portanto, ao longo do conjun-

LEVARporrada

71

Page 73: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 73/202

to dos escritos de Fernando Pessoa. O que há de novo, de original, no“Poema em linha reta” é o desdobramento da autocrítica numa áspe-ra crítica à falta de autocrítica dos outros.

Pode-se enxergar no poema a revolta de quem se interpela acercade quem de seu “lado noturno”, discorre sobre sua própria vileza, e vêsua franqueza resvalar na muralha hipócrita de um sistema alicerça-do em uma enfática autovalorização artificial por parte das pessoas.

Posta a girar cada vez mais exclusivamente em torno do mercado e dacompetição desenfreada de todos contra todos, a sociedade incita os indi-víduos a serem sempre “competitivos” e a se “promoverem” publicamente.

O sistema acarreta, então, o florescimento de um gênero literáriocurioso, que lembra de longe – caricaturalmente e de maneira espúria– a velha epopéia: o curriculum vitae.

Quem se candidata a um emprego não pode deixar de redigir umtexto que se insere, constrangedoramente, nesse modelo. Somos, porconseguinte, forçados a mentir (ou ao menos a ser unilaterais, sone-gando algumas informações a nosso respeito).

O curriculum vitae deve ser capaz de induzir os que o lêem a supe-restimarem nossas qualidades e nossos êxitos, sem tomarem consci-

ência das nossas limitações. É uma peça típica da ideologia utilitaris-ta, imediatista e pragmática (cumpre “levar vantagem em tudo”) quepredomina na sociedade contemporânea.

Fernando Pessoa se insurge, resolutamente, contra o “triunfalismo”dessa ideologia. Com seu gênio poético e com sua formidável hones-tidade intelectual, o poeta assume seu compromisso ético e estéticocom a compreensão e a expressão das experiências humanas maisdesatrosas que a vida possa ter-lhe imposto (e que não poderiamconstar do seu curriculum vitae ).

Ele sabe que numa vida humana, mesmo considerada bem sucedi-da, o coeficiente de derrota é sempre alto.

 

Por isso, Fernando Pessoa fez do “Poema em linha reta” um mo-mento densamente significativo do seu curriculum mortis , quer dizer,daquele conjunto de verdades que ficam no avesso do curriculum vitae .

Sabe que as perdase os fracassos, ainda que nosmatem um pouco por dentro,

têm um papel essencialno que fazemos de nós mesmos.

 Afinal, vida e mortesão dialeticamente interligadas.

  O Globo, 24 de janeiro de 2000.

Page 74: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 74/202

   C  r   ô  n   i  c  a  s

A publicação dos rascunhos de Franz Kafka (1883-1924) já foisaudada pelos suplementos culturais dos jornais e já se observou que,mesmo que não se trate do melhor da obra kafkiana, o livro repõe naslivrarias, ao alcance do público, a fascinante literatura do gênio tcheco.

Enquanto viveu, Kafka foi um escritor pouquíssimo conhecido. O sau-doso Otto Maria Carpeaux gostava de lembrar que, antes de sair de Vie-

na, viu num canto da sala de um editor, pilhas de volumes - encalhados!- de um livro intitulado O Processo , de autoria do recém-falecido Kafka.A fama veio com o tempo. Pouco a pouco, começaram a ser ouvidos

os testemunhos dados em favor da excepcional qualidade da literaturakafkiana, até que o adjetivo “kafkiano” se tornou uma palavra de usocomum, uma espécie de consagração da sua capacidade de perceber erepresentar o absurdo.

Hoje, Kafka é uma quase unanimidade na admiração dos críticos e dosleitores em geral. Há uma vasta literatura dedicada ao estudo da sua obra,com numerosos ensaios que certamente não podem deixar de ser lidos.Nada, contudo, substitui a leitura direta dos escritos do próprio Kafka.

Nós, brasileiros, temos sorte. O tradutor de Kafka, Modesto Carone,

tem se mostrado atento ao fato de que Kafka tem um estilo muito pe-culiar, uma espécie de “linguagem de protocolo”. Em momento algum oautor de O Processo  cede à tentação da grandiloqüência ou se permiterecorrer a fórmulas altissonantes. Para relatar experiências carregadasde uma explosiva intensidade subjetiva, ele busca sempre o máximo deobjetividade. Sua dicção não faz concessões desnecessárias ao agradá-vel, não procura suavizar certa aridez funcional, adequada à expressãodaquilo que ele quer expressar.

Exatamente porque, como notou Walter Benjamin, Kafka “se assom-bra com tudo”, ele renuncia às interjeições e a quaisquer transborda-mentos enfáticos na sua literatura. Tudo se passa como se o que está

sendo dito fosse tão espantoso que só a máxima contenção no modode dizê-lo pudesse fazer-lhe justiça.O escrito mais famoso de Kafka é provavelmente A metamorfose , pu-

blicada pela primeira vez em 1915; ela narra os últimos dias de Gregor

KAFKA E O PECADOda obediência

73

Page 75: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 75/202

Samsa, depois de ter acordado certa manhã em sua cama transforma-do num “inseto monstruoso”. Apesar da inverossimilhança biológicadessa transformação, o leitor é levado a acompanhar com o mais vivointeresse o prosseguimento da estória, que conduz, com inexorávellógica, o infeliz Gregor à morte.

De certo modo, a surpreendente mudança foi apenas a explicitaçãode algo que já vinha acontecendo com o protagonista do relato: jovembem comportado, obediente, Gregor se esforçava sempre para adap-tar-se passivamente às normas da vida em casa e às ordens do patrãono trabalho, sem jamais questioná-las. Ele já levava, então, uma exis-tência bem pouco humana. Quer dizer: já havia se deixado reduzir àsdimensões de um inseto.

O filósofo tcheco Karel Kosik chegou recentemente a sustentar quea verdadeira metamorfose a que se refere o título da obra não seria ado frágil Gregor e sim a de sua irmã, Grete Samsa. A moça, que tinhaclara consciência de que sob a aparência repulsiva do inseto continu-ava a viver seu irmão, toma a decisão de abandoná-lo à sua míserasorte, apoiando-se na cínica alegação de que, “se fosse Gregor, eleteria há muito tempo compreendido que o convívio de seres humanos

com um bicho assim não é possível e teria ido embora voluntariamen-te”. A metamorfose de Gregor era somente externa, ao passo que ade Grete era uma mudança interior, que a levava a por seu confortoegoísta acima do amor fraterno e da solidariedade humana.

Outra interpretação foi desenvolvida pelo inesquecível psicanalistabrasileiro Hélio Pellegrino, para quem A metamorfose  seria a novela dareificação, isto é, a representação literária de um mundo no quais osmovimentos humanos sofrem uma constante pressão desumanizadorae tendem a assumir a forma de movimentos de coisas (coisa em latimé res , plural rei , daí a palavra “reificação”).

A força da representação literária alcançada por Kafka teria a ver com

a postura por ele assumida: o escritor não denuncia panfletariamentea lógica hipercompetitiva imposta pelo mercado-rei a toda a socieda-de, não se dispõe a analisá-la criticamente e menos ainda a deblaterarcontra ela. Não formula juízos sobre o comportamento dos seus per-sonagens, jamais condena suas opções éticas. Limita-se a mostrá-losem ação e dá conta das angústias, dos sofrimentos que eles suportam.Mas é justamente revelando a humanidade intrínseca dos personagensque o escritor consegue colocar seus estarrecidos leitores diante daescandalosa redução de sujeitos humanos a meros objetos, peças deengrenagens.

À nossa volta, neste nosso mundo, na sociedade em que vivemos,estamos todos permanentemente cercados de perigos e submetidos a

vigorosas pressões. Essas pressões causavam consternação ao apaixonado“libertário” que era Franz Kafka, simpatizante do anarquismo. Ele se pre-ocupava muito com elas, tanto na esfera pública como na esfera privada:no trabalho, na política, na vida amorosa e na vida familiar.

No Velho Testamento, o judeu Franz Kafka lia a narrativa do PecadoOriginal, o ato de desobediência praticado por Adão e Eva. Sua preo-cupação, contudo, o levava a perceber os riscos de outro pecado: o daobediência excessiva, o da docilidade exagerada, o da total falta de dis-posição para rebelar-se. Um pecado que talvez tenha sido cometido porGregor Samsa, que se metamorfoseou - inexplicavelmente? - num “inse-to monstruoso”. Um pecado que com certeza foi cometido pelos nazistas

e é cometido ainda hoje pela horda dos que se limitam a repetir palavrasde ordem, tanto pela fauna oportunista dos “Maria-vai-com-as-outras”,como pelos fanáticos das seitas violentas.

Jornal do Brasil, 10 de agosto de 2002.

Page 76: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 76/202

   C  r   ô  n   i  c  a  s

É relativamente fácil o sujeito ficar apontando as deficiências e fa-lhas dos outros, atribuindo aos seus interlocutores a responsabilidadeexclusiva por tudo que não deu os resultados previstos e esperados.

O difícil é reconhecermos nossa própria relatividade e admitirmosque aquele que diverge de nós - por mais equivocado que nos pareçaser - em algum ponto pode ter razão.

Quando se recusa a reconhecer a possibilidade de estar errado, osujeito cancela as lembranças desagradáveis das besteiras que fez(que todo mundo faz) e ficam na sua alegre recordação somente ostítulos de glória, o registro dos acertos, o elenco das vitórias.

Isso é claramente visível numa peça que todos conhecemos, quesomos obrigados a apresentar quando nos candidatamos a um em-prego ou a uma promoção, a um curso ou a uma bolsa: o chamadocurriculum vitae.

O curriculum vitae é, atualmente, um sucessor remoto da antigaepopéia. Os obstáculos encontrados ao longo do caminho só são lem-brados para realçar a história de um herói, que supera todos os obs-táculos, vence todas as batalhas.

Evidentemente, como ninguém é assim, o relato não é convincen-te, a pretensa epopéia é fajuta. Pelo que diz e sobretudo pelo que nãodiz, o curriculum vitae é uma mentira.

Numa época de campanha eleitoral, o fenômeno ganha proporçõesespantosas. Os candidatos a cargos eletivos falam de seus méritoscomo se estivessem próximos da perfeição. Se o leitor tiver a paciên-cia de ouvi-los, poderá pensar que são santos, aguardando a cano-nização. Ou que são heróis mitológicos descansando após a últimabatalha (vitoriosa, é claro!) contra o dragão.

A verdade está longe dessa imagem demagógica. Uma certa mo-déstia metodológica nos ensina: somos todos aquilo que somos não só

pelos sucessos, mas também pelos fracassos. Cada um tem seu ladoluminoso e seu avesso sombrio. E aprendeu alguma coisa com ambos.Ai de nós, se cedermos à tentação de só conservar conosco as lem-

branças que nos afagam! Ao rememorarmos nossas trajetórias, somos

POBRESduram mais

75

Page 77: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 77/202

desafiados a superar o conforto das amnésias convenientes e precisa-mos digerir tudo aquilo de que participamos e que não tem dado certo.

Essa atitude, porém, ainda é rara. Os indivíduos, em geral, prefe-rem a feira das vaidades. O que levou o poeta Fernando Pessoa a es-crever no Poema em linha reta o verso famoso: “Nunca conheci quemtivesse levado porrada”. Todos os seus amigos - queixava-se - erampríncipes, semideuses, campeões em tudo.

Muitas pessoas desenvolvem uma habilidade especial para trans-formar a autocrítica num auto-elogio. Muitos anos atrás, uma jorna-lista perguntou a um político - Carlos Lacerda - qual era o maior erropolítico que ele admitia ter cometido. O entrevistado respondeu queseu maior erro político era o que o deixava isolado quando dizia ascoisas mais importantes e verdadeiras antes que as pessoas tivessemtido tempo suficiente para compreendê-las. Ele se declarava, então,vítima da rapidez da sua inteligência.

Habilidade e esperteza, contudo, não têm o poder de destruir a dura verdade que nos ensi-

na: mesmo numa vida humana bem-sucedida,cheia de êxitos - mesmo na vida de um campeãomundial - existe sempre um alto coeficiente de fracassos e derrotas.

Se reconhecermos isso, passaremos a disporde um interessante instrumento para a avaliaçãoda sinceridade dos que procuram nos impressio-nar com a frenética exibição de seus triunfos.

Podemos pedir a cada um deles que, paralelamente à apresentaçãodo curriculum vitae, nos mostre, também, o que seria o seu curricu-lum mortis.

Teríamos, lado a lado, informações do tipo: “fui o primeiro da clas-se no colégio” e “meus colegas me elegeram o mais chato da turma”;“ganhei um prêmio literário aos 20 anos” e “meu pai era o patrocina-dor do concurso”; “sempre permaneci fiel ao mesmo partido” e “care-ço completamente de independência”.

Desafiados a apresentar os dois currículos, como se sairiam osatuais candidatos a cargos eletivos? Que impressão produziriam noseleitores? Conseguiriam nos trazer uma imagem de sinceridade? As-sumiriam francamente seus erros? Ou procurariam fazer como Carlos

Lacerda: tentariam fazer dos defeitos qualidades?

Jornal do Brasil, 13 de julho de 2002.

Page 78: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 78/202

   C  r   ô  n   i  c  a  s

  Existe uma filosofia brasileira?Essa pergunta tem provocado muitas discussões.A filosofia, por si mesma, é uma busca vital de universalidade. Os

filósofos refletem (do latim re flectere, debruçar-se outra vez) sobrequestões extremamente abstratas, tais como “quem somos nós”, “deonde viemos”, “para onde vamos”. As questões filosóficas nos desa-

fiam a pensá-las do ângulo da humanidade (embora, de fato, nós aspensemos do ângulo da nossa cultura particular).A grande dificuldade está em criarmos uma tradição na nossa cul-

tura para o exercício da reflexão filosófica. Já chegamos lá? Ou aindatemos muito caminho pela frente? Só nos interessa a teoria aplicada,“útil”, ou já se criou na nossa cultura um espaço significativo para aespeculação filosófica, capaz de ir além da mera serventia?

Alguns críticos dizem que as condições históricas periféricas emque nos encontramos têm dificultado muito o desenvolvimento decaracterísticas nacionais no nosso modo de pensar. Outros, porém,observam que mais periférica do que o Brasil atual era a Alemanha de1800, onde viviam Kant, Fichte, Schelling e Hegel.

Sem a pretensão de resolver a controvérsia, podemos dizer que, seexiste uma filosofia brasileira, ela - com certeza - sofreu recentementeduas graves perdas. Com um intervalo de poucos dias, faleceram, re-centemente, Gerd Antonio Bornheim e Henrique Cláudio de Lima Vaz.

Lima Vaz, jesuíta, era mineiro, nascido em Ouro Preto, em 1921.Gerd Bornheim era gaúcho, nascido em Caxias do Sul, em 1929.

Ambos tiveram uma formação tomista, em instituições católicas;familiarizaram-se com os clássicos, aprenderam latim e grego. Emfins dos anos 50, ambos se interessaram pelas idéias que estavam naépoca entusiasmando o movimento estudantil.

Eram, sem dúvida, muito diferentes, nas motivações, nas opções

vitais, no estilo, na personalidade. No entanto, ambos se interessarampela dialética e pela filosofia de Hegel.Gerd Bornheim é o autor de um livro intitulado Dialética: teoria

práxis. Quando era meu orientador, no doutorado, ouvi-o falar da

FILÓSOFOSbrasileiros

77

Page 79: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 79/202

 Jornal do Brasil, 13 de julho de 2002.

 dialética como pensamento libertador.Para o padre Vaz, a dialética tinha uma função muito importante

no esforço para responder à pergunta: “Como encontrar um lugarpara a liberdade no universo da razão?”.

Nenhum dos dois teve qualquer envolvimento efetivo, prático, comorganizações políticas postas na clandestinidade. Porém o fato deterem influído com suas idéias em jovens que atuavam na resistênciaà ditadura militar foi suficiente para que eles fossem consideradosem alguns círculos como “subversivos”. Na onda de repressão que seseguiu ao golpe de 1964 e se agravou no final de 1968, com o AI-5,ambos foram ameaçados em inquéritos policiais.

Gerd Bornheim foi influenciado por Heidegger, admirou muitoSartre, interessou-se por arte (especialmente por teatro), escreveu umlivro sobre Brecht. Nestes últimos anos, pretendia escrever sobre asantinomias do real.

O padre Vaz procurava incansavelmente conexões entre a filosofia,a teologia e a antropologia. Citando Santo Agostinho, dizia que que-ria entender para crer e precisava crer para entender melhor. Estivecom ele uma única vez, durante um seminário, mas foi para mim uma

conversa inesquecível. Seus Escritos de filosofia estão sendo publica-dos numa série de livros; sete volumes já saíram.

Se entendermos que já existe, de fato, uma filosofia brasileira, de-vemos admitir que ela, no mês passado, perdeu dois campeões.

E se insistirmos em negar que já exista essa “maneira” brasileira defilosofar, o que nos cabe dizer é que a filosofia, como tal, em escalamundial, sofreu dois golpes dolorosos, de graves conseqüências.

Por uma razão muito simples: porque, pela qualidade e pelo níveldo trabalho que realizavam, Henrique Cláudio de Lima Vaz e GerdBornheim não ficavam nada a dever a seus colegas mais conhecidos,filósofos estrangeiros contemporâneos, em geral.

 A morte aproximou esses dois pensadores tão diferentes e essaaproximação me fez pensar nos pontos de contato que existem,

afinal, entre os caminhos que elestrilharam. E me fez pensar na exis-

tência de uma filosofia brasileira, já que os dois, decididamente, não podem ser considerados meros re-

 petidores de filósofos estrangeiros e,embora muito distintos em suas re-

 flexões, tinham, a meu ver, algumas preocupações e alguns temas em

comum (dialética, liberdade). 

Page 80: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 80/202

   C  r   ô  n   i  c  a  s

Em sentido amplo, a educação é tão antiga como o gênero humano.Quando nascemos - já se observou com freqüência - somos seres

extraordinariamente frágeis e ineptos: só sabemos chorar e mamar.Nossas defesas naturais são bisonhas; as garras são unhas quebradi-ças; as presas são delicados dentes caninos. O couro é uma pele finaque facilmente se rompe.

Levamos cerca de um ano para aprendermos a andar e a falar. Le-vamos vários anos para desenvolvermos a inteligência e os músculose para podermos sobreviver por conta própria.

Ao entrarmos no mundo, dependemos de pessoas que nos mante-nham vivos, que nos ensinem - pacientemente - uma porção de coi-sas que muitos animais aprendem depressa ou já nascem sabendo.

Somos aquilo em que nos transformamos, a partir da educaçãoque recebemos. Num primeiro momento, o educador transmite aoeducando valores, critérios, normas de conduta, códigos. Pouco apouco, o educando passa a fazer suas escolhas, passa a hierarquizarsuas preferências, afirmando, muitas vezes contra o educador, seupróprio ponto de vista.

Quando a educação chega a esse ponto, quer dizer, quando o educa-dor dialoga com o educando, a relação se complica, a atividade educativamuda, porque não há dúvida de que há sujeitos de ambos os lados.

O movimento que vai de mim para o outro passa a ser o mesmomovimento que vem do outro para mim. O educador, esforçando-sepor persuadir, por convencer seu interlocutor, participa de um pro-cesso que os envolve, que altera ambos. Por conseguinte, o educadortambém é educado.

Essa possibilidade de ser educado é preciosa para o educador. Elalhe permite renovar-se e o põe diante do desafio de contribuir paraque o educando - o outro, o diferente - possa contestá-lo.

Pensando na educação familiar e na busca de autonomia, que levaas novas gerações a se insurgirem contra as que as educaram, Hegeldisse: “a vida dos filhos é a morte dos pais”. Insistimos em cultivarnos nossos descendentes aquilo em que eles nos continuam e ten-

A EDUCAÇÃOdesvalorizada

79

Page 81: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 81/202

  Jornal do Brasil, 12 de outubro de 2002.

demos facilmente a reprimir aquilo em que eles se afastam muito donosso legado.

Pode o educador ser tão generoso a ponto de superar todas assuas limitações particulares e adotar sempre um ponto de vista uni-versal, capaz de levá-lo a aprimorar na outra pessoa uma consciênciacrítica que logo será necessariamente usada contra ele?

Freud achava que não. Para o fundador da psicanálise, a educação,tal como a própria psicanálise, era uma atividade “impossível”, exata-mente porque, em nome de uma meta universal, forçava os sujeitos aensinarem aos “diferentes” como deixar de necessitar da assistênciado professor, contrariando assim o interesse profissional particulardaquele que ensina.

Mesmo que possa haver algum exagero, ou alguma unilateralidadenas formulações de Hegel e de Freud, elas devem ser reconhecidascomo lúcidas advertências, feitas por gente que entendia de educa-ção, no sentido amplo da palavra.

Enquanto se limita a promover a adaptação do outro às práticasusuais e aos princípios na sua sociedade, o educador contribui paraa reprodução do sistema, com suas qualidades e seus defeitos, com

seus aspectos vigorosos e suas limitações.Quando, porém, se empenha de verdade para estimular o pen-samento crítico nos seus discípulos, o educador está incentivandoum movimento intelectual que, indo além dos horizontes da ordemvigente e dos saberes constituídos, questionando os critérios consa-grados, tende inevitavelmente a ultrapassar o campo das convicçõesmais preciosas do próprio mestre.

Nesse momento, o educador tem que ficar muito atento para,sem abrir mão de suas próprias convicções (perfeitamente legíti-mas, aliás), preservar algo de uma certa modéstia metodológica,imprescindível ao diálogo.

Educadores, como sabemos, cometem erros. E, mesmo quandonão erram, às vezes sofrem críticas injustas. Compreende-se que seirritem. Em alguns casos, reagem com acrimônia, imprimindo um tomexcessivamente peremptório às suas falas, reafirmando a autoridadede que foram investidos.

No entanto, é impressionante o esforço realizado por um númeroimenso de professores no sentido de, ao darem conta de suas tarefasna reprodução da sociedade, contribuírem para o fortalecimento darelação dos educandos com a cultura e para o amadurecimento daconsciência crítica.

Pode-se dizer que o futuro da democracia depende do trabalhodos educadores. As classes dominantes, de algum modo, reconhecem

isso nos discursos, mas não extraem as conseqüências desse reconhe-cimento na ação. Por isso, os salários dos professores são tão baixos(em todo caso, ficam muito aquém do que corresponderia à impor-tância do que eles fazem).

Os professores percebem que, na prática, a educação está sendodesvalorizada. Quem o diz é uma veterana professora, a valente ZaiaBrandão, que observa, em seu livro Pesquisa em educação , que a edu-cação, no passado, era exaltada como “sacerdócio” ou como “missão”,e agora é, cada vez mais, trabalho de assalariados divididos entrevários empregos, “prática profissional crescentemente fragmentada,insatisfatória e até mesmo desvalorizada”.

Page 82: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 82/202

   C  r   ô  n   i  c  a  s

  Na metade do século 20, Simone de Beauvoir formulou a idéia: “Nãose nasce mulher; torna-se mulher”.

Houve uma onda de protestos. Apareceu gente acusando a escri-tora francesa de negar as diferenças biológicas. Foram feitas inter-pelações sarcásticas, do tipo “essa senhora ignora que as mulherestêm vagina, útero, ovário, seios...?”.

Simone de Beauvoir, pacientemente, explicava que as diferençasbiológicas não estavam sendo ignoradas. Sua formulação apenas con-statava que não era a biologia que construía a identidade feminina.Não são os órgãos e as glândulas - por mais importantes que sejam- que decidem o que as mulheres são.

Exatamente como acontece com os homens, as mulheres, aonascer, têm potencialidades genéticas, inclinações, tendências. O quedecide o destino das pessoas, entretanto, não é nem a anatomia nemo código genético: é o processo complicadíssimo pelo qual as criatu-ras, enfrentando obstáculos, superando dificuldades, fazendo con-cessões, vão se tornando aquilo que efetivamente são.

O modo de ser mulher, tal como o modo de ser homem, depende

das condições históricas e culturais.Foi a partir de Simone de Beauvoir que se difundiu a convicção de

que era preciso distinguir entre as expressões biológicas diretas dosexo e as formas sutis das características atribuídas à feminilidadeem cada contexto histórico.

Foi a partir da metade do século 20 que se generalizou a utilizaçãodas categorias “sexo” e “gênero”.

A distinção entre as duas esferas interligadas deu início a umanova era na crítica do “machismo”. Um exame do vasto materialproporcionado pelas bobagens sustentadas a respeito das mulheresdeixou claro que a principal matriz das tolices era a redução da

condição feminina a causas “naturais”, com a decorrente inviabili-dade da análise da problemática dos gêneros.As manifestações de “machismo” são de uma espantosa abundân-

cia e de uma enorme variedade. Preconceitos contra a mulher circu-

A MULHERe o machismo

81

Page 83: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 83/202

lam nos mais diversos ambientes, desde os provérbios populares e asletras de samba até as construções teóricas dos grandes filósofos e asimagens dos escritores notáveis.

Essa situação vem de longe. Ninguém sabe com certeza como foique a exploração da desigualdade começou. É possível que a ex-pressão do fenômeno tenha se tornado mais constrangedora a partirdo século 18, chamado “o século das luzes”.

Voltaire sustentava que as mulheres eram in- feriores aos homens, porque “o sangue delas émais aquoso”. E Rousseau afirmava: “toda aeducação das mulheres deve ser relativa aos ho-mens”. Elas deveriam ser educadas para “agra-dar aos homens, ser-lhes úteis”. Para “tornar-lhes a vida agradável e doce”. Antes desses dois bravos pensadores, Mon-

taigne definia o papel que cabia à mulher com

três palavras: “sofrer, obedecer, consentir”. No século 19, outros autores importantes di-

zem outras barbaridades. Balzac advertia: “Asmulheres devem aprender muitas coisas, mas sóaquelas que convêm que elas saibam”. E Byronsustentava que as mulheres só deviam ler livrosedificantes, religiosos, ou então livros de cozinha.

 O fato de serem escritores de excepcional valor confere às opin-

iões que expressaram uma significação especial, pois deixa claro queo preconceito não deriva necessariamente da burrice ou da desin-formação. Às vezes, o que determina a convicção do sujeito precon-ceituoso é mesmo um certo interesse, consciente ou inconsciente, emextrair alguma vantagem particular, disfarçada sob a nobre capa daconveniência geral.

Os intelectuais não são diferentes do comum dos mortais, no quese refere à receptividade de distorções ideológicas. Os líderes políticostambém não se distinguem de seus liderados, nesse aspecto.

Napoleão Bonaparte, por exemplo, assegurava: “A mulher é nossapropriedade e nós não somos propriedade dela. Ela nos dá filhos, nósnão damos filhos a ela. Ela é, pois, propriedade, tal como a árvore

frutífera é propriedade do jardineiro”.Foi a partir do início do movimento socialista, com o bizarroCharles Fourier, que as mulheres trabalhadoras se reanimaram.Fourier foi o primeiro filósofo a desenvolver de maneira conseqüenteuma linha de pensamento e ação solidária com o gênero feminino.

Jornal do Brasil, 23 de novembro de 2002.

Page 84: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 84/202

   C  r   ô  n   i  c  a  s

  Uma das palavras usadas com maior freqüência nos ambientesque freqüentávamos é, com certeza, o pronome da primeira pessoada singular: o “eu”.

As pessoas abrem à boca e começam a mostrar que são muito auto-centradas: “eu disse”, “eu quero”, “eu acho”, “eu não sou”, “eu não tenho”.Ou então, de maneira menos direta, mas não menos egocêntrica: “naminha opinião”, “a meu ver”, “me parece que”, “segundo me contaram”.

É claro que há um aspecto positivo nessa resoluta autovalorizaçãodo sujeito individual. Cada ser humano tenta se realizar como pessoa,preservando e aprofundando sua liberdade, defendendo o seu direitode possuir uma personalidade própria, uma identidade inconfundível.

Em determinadas circunstâncias, o indivíduo que fala insistentementesobre ele mesmo pode estar reagindo contra pressões sociais que amea-çam despersonalizá-lo, massificá-lo, dissolvê-lo numa pasta anônima.

Existe uma legitimidade indiscutível no uso do “eu”, quando alguém

procura expressar experiências vividas, sentimentos íntimos, como sepode perceber na leitura dos poetas líricos e dos cronistas modernos.Seria um disparate reclamarmos contra o emprego da palavra “eu”

por parte dos poetas e dos cronistas. Se o termo corresponde ao que oescritor queria dizer e o ajuda a dizê-lo com graça e brilho, devemos– certamente – aplaudi-lo.

A preocupação com a proliferação dos “eus”, entretanto, nos vem deoutras áreas. Temos a impressão de que, no quotidiano, esteja se reali-zando um processo de banalização da expressão dos sujeitos individuais.

Ao longo de séculos, os indivíduos conseguiram abrir espaço paraser mais autônomos e desenvolveram sua capacidade de expressar

suas experiências interiores, complexas e subjetivas, uns para os ou-tros e cada um para si mesmo.Essa conquista dependia de um avanço coletivo. Algumas pessoas,

entretanto, não compreenderam o que estava acontecendo.Muitas parecem presumir que aquilo que acontece com elas no

dia-a-dia, pelo simples fato de lhes ter acontecido, é rico de signifi-cação humana em geral.

Na crença ingênua desses indivíduos, uma expressão pobre edireta do vivido, desde que trazida para a linguagem, tem, automa-ticamente, um interesse que envolve os outros, os interlocutores.Ora, nem tudo que se passa conosco tem a mesma importância.

Muita gente, porém, age como a tia Leonie, personagem de Em

busca do tempo perdido, de Marcel Proust. A tia Leonie era uma se-nhora idosa que vivia encerrada dentro de casa, não fazia nada, dedi-cava todo o seu tempo a se observar, identificando e acompanhandocom enorme atenção os mais íntimos sinais de qualquer modificaçãono funcionamento de seu organismo: mudanças mínimas de tempe-ratura, ligeiras alterações no ritmo dos batimentos cardíacos, peque-nas reações alérgicas, comichões, comichões, pruridos, etc.

Como esses fenômenos eram o centro da sua vida, ela não podiaduvidar de que constituíam o que de mais interessante poderiamcomunicar a outras pessoas. Mas as coisas não são tão simples comosupunha a tia Leonie.

Quando a experiência vivida é reelaborada pela linguagem, osujeito individual é desafiado a “sintonizar” na onda do seu ouvinte.O sujeito vive uma situação de diálogo. Deve “sair de si mesmo”

para ir ao “outro”. Precisa levar ao outro seus conhecimentos, o que

EU, EU, EU

83

Page 85: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 85/202

sabe (ou julga saber). Verificar o que convém levar ao interlocutor(rival?) e o que necessita assimilar dele, prioritariamente.

O grande escritor mexicano Octavio Paz já observou que o EU dospoetas aparece como a expressão de uma realidade que supera a sub-

 jetividade individual empírica. Enfrentando o desafio de ir ao outro nomundo, o poeta enfrenta o desafio de irão outro dentro dele mesmo.Outro em latim é “alter”, que dá origem ao verbo “alterar”.

O “eu” precisa de diálogo, e é obrigado a enfrentar o risco de per-der a sua singularidade, sua diferença, sua identidade, sua vida. Ir aooutro significa arriscar-se a sofrer graves alterações (Helio Pelegrino:“Mudar é correr risco de morrer”).

A insegurança e a solidão levam os indivíduos a adotar o conhe-cimento empírico que têm do bairro ou do quarteirão como se fosseum conhecimento do país ou do mundo. Vale a pena, mais uma vez,recordarmos a tia Leonie, personagem de Proust.

Tia Leonie estava convencida de que conhecia o mundo porque o viapela janela. Estava, de fato, familiarizada com as pessoas que passavamsempre em frente à sua casa. Um dia ela percebeu a passagem de umcachorro que não era conhecido e o evento logo se tornou o tema cen-

tral da sua conversa: “Aquele cachorro, tenho certeza, não é daqui”.Tia Leonie é um tipo, uma pessoa singular, diferente, cujas carac-terísticas, porém, com algumas variantes, podem ser reencontradasem outras pessoas.

Indivíduos que não vivem enfurnados dentro de casa e que nãoestão reduzidos à inatividade podem ter em comum com a idosasenhora a estreiteza do campo temático das conversas e a convicçãode que os eventos miúdos que acontecem em suas vidas rotineirasbastam para, relatados, suscitar o interesse dos ouvintes.

O fato é que algo tenha realmente acontecido com o “eu” falantenão basta para conferir interesse ao relato, sobretudo se o relato se

permitir multiplicar, prolixamente, pormenores gratuitos.Seria absurda uma política que pretendesse silenciar os indivídu-os, proibindo-os de falar de si mesmos. Atualmente, porém, há umnúmero imenso de pessoas que se dispensam de “cozinhar” reflexi-vamente o vivido, gente que não se dá ao trabalho de “temperá-lo”artisticamente, gente em que insiste em nos servi-lo “cru” e “insosso”.

O que se passa com essas pessoas? Qual é a falha delas? Por quecada uma delas gira obsessivamente em trono do seu “eu”? Seus re-latos do que lhes ocorreu são enfadonhos porque o “eu” de cada umadelas é, por natureza, pequeno e desinteressante? Não é bem assim.

Existiria alguma alternativa? Que caminhos essas pessoas teriamque trilhar para que a expressão do “eu” ganhasse consistência?

O caso da tia Leonie indica que o problema está menos nas limi-tações (“naturais”?) do “eu” do que nas condições sociais em que osujeito se coloca (ou foi colocado). Contemplar seu próprio umbigo égarantia de emburrecimento.

O “eu” aprende dialogar, dialogando. Aprende a se conhecer melhor,assimilando as experiências de outros sujeitos, com os quais consegue terum intercâmbio vivo, arriscado, sim, mas constante e verdadeiro.

Tia Leonie devia sair de casa, trabalhar, divertir-se, dar comidapara o vira-lata desconhecido, ser solidária com seus vizinhos, parti-cipar ativamente da vida da comunidade. Se fizesse isto, veria que,ao começar um relato coma palavrinha “eu”, os circunstantes inter-

romperiam o que estivessem fazendo, para ouvi-la.

Jornal do Brasil, 25 de maio de 2005.

Page 86: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 86/202

   C  r   ô  n   i  c  a  s

O que é, exatamente, o Mercado?Lendo os jornais e as revistas, vendo e ouvindo os debates e as

entrevistas na televisão, ficamos sabendo que o Mercado ora estácalmo, ora está nervoso. Informam-nos a respeito dos seus caprichos,das suas preferências, da sua desconfiança, dos seus medos.

O Mercado sempre teve tendência a se expandir; a cada por-

ta que ele abre corresponde um novo ímpeto de crescimento.Em pouco tempo, ele assumiu dimensões gigantescas.No passado, entretanto, há muitos séculos, o Mercado era apenas

um lugar; era o local onde se reuniam os mercadores, onde eram ofe-recidas as mercadorias.

Na história das sociedades, antes da sociedade burguesa e domodo de produção capitalista, os mercadores desempenhavam umpapel dinâmico muito significativo na transformação das condiçõespráticas de vida e das instituições.

A burguesia, entretanto, inventou uma nova função para o Merca-do: fez dele o centro da vida social. Transformou-o num deus exigen-te, que impõe a forma como deseja ser cultuado.

A partir do momento em que a sociedade passou a girar em tornodele, o Mercado começou a exibir superpoderes. Deixou de ser umlugar e começou a se expandir pela Terra inteira, tendendo a ocupartodos os lugares.

Foi aí que ele se tornou misterioso, invisível, embora onipresente.Foi aí que passaram a falar de seus caprichos, de suas preferências, desua desconfiança, de seus medos, como se ele fosse um deus pessoal.

De fato, o Mercado é somente uma instituição. Quem lhe conferea aparência de um deus superpoderoso, quem o manobra nos basti-dores - sem ser visto! - é o capital.

A mágica dos capitalistas consiste em que eles conseguem criar

condições nas quais não são enxergados por trás das coisas que apa-recem no mercado, em movimento. A nossa linguagem cotidiana ilus-tra o ilusionismo. A gente diz: “o feijão subiu”, “a gasolina baixou”, “ovinho Beaujolais chegou”, “o sorvete melhorou”, “o biscoito sumiu”,

O MERCADOmágico

85

Page 87: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 87/202

mas é evidente que nenhuma dessas coisas faz qualquer movimentopor si mesma.

O que aconteceu com os sujeitos que movimentaram esses obje-tos? Por que esses sujeitos, aparentemente, se volatilizam? Para ten-tarmos responder a tais questões, devemos enfrentar ainda uma outraindagação: quem são esses sujeitos?

A resposta a essa última pergunta começa a esclarecer a situação.Os sujeitos que não são enxergados são os proprietários dos objetos.

A grande mágica do Mercado na economia “globalizada” está namontagem de um sistema que mobiliza as chamadas grandes corpo-rações e que - em contraste com o capitalismo do século XIX - apare-ce como um mecanismo sutil, complexo e delicado, que é dirigido portécnicos e não mais pelos donos (que são os milhares de acionistas).A sociedade capitalista, composta por essas corporações, é gerida, en-tão, cada vez mais, por um poder anônimo.

Esse é certamente o maior dos coelhos que o Mercado-mágicotira da cartola: finge-se uma democratização do poder, que não seriamais exercido por nenhum ditador, já que ninguém pode ser respon-sabilizado pessoalmente por decisões políticas tomadas por um co-

mando coletivo despersonalizado.Compreende-se que o grande público tenha ficado fascinado peloespetáculo. Nos últimos tempos, porém, tem cada vez mais gente seconvencendo de que os detentores do “poder anônimo”, afinal, têmnome. E podem até ser postos na cadeia.

Jornal do Brasil, 08 de julho de 2002.

Page 88: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 88/202

   C  r   ô  n   i  c  a  s

O que é o humor? O que é um humorista? Essas perguntas podemparecer simples, porém na verdade estão cheias de complicações.

O humorista não pode ser definido como aquele que ri, nemmesmo como aquele que faz rir. Um palhaço de circo, no exercíciode sua nobre profissão, é um humorista? Os atores de comédiastipo pastelão são humoristas?

O humor é um continente muito vasto, cheio de diferenças in-ternas. Em suas manifestações ele pode ser satírico, burlesco, bufo,grotesco, pândego, parodístico, irônico, sutil, debochado, sarcásti-co, etc. O humorista costuma explorar somente uma parte de al-guns desses territórios.

Na medida em que trabalha sempre com a linguagem e com asurpresa, o humorista é, a seu modo, sempre um tanto poético. Aoquestionar - brincalhonamente - os saberes constituídos e a respei-tabilidade das noções enraizadas no senso comum, o humorista temalgo de filosófico. E, ao intervir na ordem das coisas, influindo talvezno curso dos acontecimentos, tem algo de cavaleiro andante, querdizer, de Dom Quixote. Ou, em outros termos, é subversivo.

O humorista não tem compromisso com o equilíbrio, a proporção e amedida. Não é o homem da sensatez, da moderação. Sua maneira de fa-zer algo em prol da verdade é - ao contrário – recorrer ao exagero suges-tivo, à simplificação polêmica que agita as consciências estratificadas.

A realidade tem sempre uma dimensão absurda, e o humorista é osujeito que está permanentemente atento para essa dimensão, ondequer que ela se manifeste.

Os comentários do humorista não pretendem guiar ninguémpelos caminhos do conhecimento científico: o que eles nos trazem,sublinhada por um sorriso, é a reanimação de um espírito relativiza-dor, desmistificador.

Um exemplo pode nos esclarecer melhor a coisa. Winston Chur-chill, célebre político inglês, teria definido certa vez George BernardShaw como “santo, sábio e palhaço”. Os jornalistas correram atrás doteatrólogo para que ele respondesse e Shaw – como humorista – se

O HUMORe a cultura

87

Page 89: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 89/202

limitou a dizer: “Churchill é um imbecil”.É fácil entendermos que Churchill não era, de fato, um imbecil,

mas Shaw, com sua réplica incisiva, transmitiu eficazmente seu senti-mento do quanto lhe parecia absurda a caracterização que o famosopolítico fazia dele.

Na história da sociedade brasileira é marcante a presença do hu-mor. Desde os mal-entendidos e desigualdades decorrentes do vio-lento choque original da cultura européia com a cultura indígena, eda implantação de um Estado que se impunha a uma sociedade queainda não se constituíra, havia muito do que rir (por maiores que fos-sem as desgraças).

Os sujeitos, instalados em suas diferenças, de foto riam muito. Jáno início do processo da colonização, Gregório de Matos ridiculari-zava o sistema. E na época do parnasianismo já havia uma plêiadede piadistas, trocadilhistas, gozadores: Paula Nei, Emílio de Menezes,Bastos Tigre etc.

Depois, veio a irreverência politizada do Barão de Itararé. Na gera-ção seguinte, o denso humor filosófico de Millôr Fernandes e a levezadebochada de Stanislaw Ponte Preta. Mais recentemente, os desenhos

de Jaguar, de Ziraldo, de Henfil, de Chico e Paulo Caruso, de Aroeira ede Cássio Loredano. E o pessoal da televisão.E a turma do Pasquim, o Sérgio Augusto, o Ivan Lessa, o Veríssi-

mo. E o grupo de Casseta & Planeta. A diversidade salta aos olhos, asdiferenças confirmam que temos muitas razões para acharmos graçaem nós mesmos.

Essa receptividade ao humor, essa propensão a indulgir em peque-nas e saudáveis molecagens, esse vezo de nem sempre se levar muitoa sério, tudo isso constitui uma característica da nossa cultura que nãose restringe aos humoristas.

Se procurarmos, encontraremos traços dessa tendência em ensaístas

da maior respeitabilidade, em escritores seríssimos. Limito-me, aqui, aum único exemplo: o do meu saudoso amigo José Guilherme Merquior.Num estudo extremamente erudito, dedicado à metamorfose da

consciência cristã nos tempos modernos, e incluído no livro Saudadesdo Carnaval , Merquior se refere a um gravador italiano do século XVIe se diverte fazendo rir os seus leitores com a observação de que aogravador Caraglio “a crítica luso-brasileira atribui tradicionalmente aereção de uma das obras mais penetrantes do século”.

  Jornal do Brasil, 14 de agosto de 2002.

Page 90: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 90/202

   C  r   ô  n   i  c  a  s

É verdade que Vossa Excelência fez um mini-curso de filosofia mo-derna e contemporânea, em apenas três aulas?

— É verdade.— E as três aulas bastaram?— Sem dúvida, as três aulas foram até mais do que suficientes.

Sou rápido, meu caro jornalista. Não posso perder tempo com longos

cursos universitários.— Quais os filósofos que Vossa Excelência ficou conhecendo?— Bem, nós começamos pela Renascência, um período no qual vi-

veram grandes artistas, como o pintor Leonardo dá Vinte e o escultorMiquelângelo Antonioni. O maior filósofo desse período foi Maquia-véu, que ensinava política ao príncipe, mas acabou sendo posto nacadeia, porque era muito cínico.

— E depois?— Depois vieram os filósofos que freqüentavam o Bar Rouco (e por

isso são chamados barroucos): o inglês Beicon; o francês Dé Kart, queduvidava de tudo; e o italiano Galileu da Galiléia, que desrespeitouo Papa e foi preso. Percebi que os filósofos têm certa mania de irem

para a prisão...— Que filósofos vieram em seguida?— Vieram os ilumanistas, que acreditavam nas luzes da razão hu-

mana. O primeiro foi um judeu holandês de nome Espinosa; ele teveum namoro com a brasileira Marilena Chauí e acabou virando deteti-ve, a conselho do doutor Garcia-Roza. O segundo foi um liberal inglêsmuito bizarro, que todos conheciam como Loquinho ou simplesmenteo Loque: o cara inventou um sistema que cria dificuldades para o Po-der Executivo enquandrar como deve! o Legislativo.

— Só esses?— Não, jornalista. Houve outros ilumanistas, todos meio subversi-

vos, como Voltér, Diderô e Russô. Este último vivia em Paris, mas eraestrangeiro (creio que era russo, como o próprio nome indica): queriaporque queria que todo mundo assinasse um contrato social, só parabeneficiar os cartórios. E houve o alemão Cante que escreveu uma

MINI CURSOde filosofia

89

Page 91: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 91/202

porção de críticas alimentares: Crítica da Ração Prática, Crítica daRação Pura, etc.

— E aí?— Aí veio o século XIX, com os malucos socialistas: o tal do Furriê,

que dizia que o mar iria virar limonada. E a dupla Marques e Engels.Marques era um vagabundo, era sustentado por Engels (que às ve-zes é chamado de Hegel). Marques não trabalhava, no entanto tinhaa cara-de-pau de escrever sobre o trabalho. Os dois invejavam aspropriedades dos outros e ficavam fazendo demagogia, falando emigualdade... Felizmente, logo foram combatidos.

— Combatidos por quem?— Por Nitche. Esse filósofo ouviu as lições de um profeta apelidado

de Azara-a-Truta e passou a ensinar que as pessoas são mesmo desi-guais e que a Humanidade não tem jeito: a esperança está nos pou-cos que são fortes e não na multidão dos fracos. Com Nitche, a meuver, o pensamento do século XIX chega ao máximo.

— E no século XX?— No século XX, a confusão é grande. Tem Fróide e os froidistas,

que só falam de sacanagem, mais o francês Fucô, que também é

chegado à pouca-vergonha. Tem os praguematistas (que pragueiammuito), os existencialistas (que existem), os fenomenologistas (quesão um fenômeno), os neotomistas (discípulos de um tipo suspeito, opadre Tomás, que me pareceu estar ligado à tal da teologia da liber-tação). E tem os marquecistas, o italiano Grâmechi (cuja obra estásendo relançada agora no Brasil), o húngaro Lucaques, os irmãos Cide Walter Benjamim, o alemão Teodorico Adorno, além de um certoÁbermas, que foi o inspirador do lema do Chacrinha: “Quem não secomunica se trumbica.”

— Vossa Excelência pretende usar esses novos conhecimentos nacarreira política?

— Claro que sim. A cultura filosófica aumenta significativamenteas minhas possibilidades de vir a ocupar um cargo no primeiro esca-lão do Governo.

  O Globo, 20 de novembro de 1999.

Page 92: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 92/202

   C  r   ô  n   i  c  a  s

Quando duas pessoas divergem sobre alguma coisa, é comum vê-las se acusarem mutuamente de serem preconceituosas.

Preconceito é algo que, em princípio, ninguém admite ter. No má-ximo, o sujeito confessa que já teve, mas superou. “Durante certa faseda minha adolescência, influenciado por más companhias, acrediteique... porém há muito tempo superei essa fase”.

Preconceito, mesmo, quem tem é o outro, esse interlocutor tei-moso que insiste em discordar de mim e faz questão de manter seuponto de vista equivocado.

O pior tipo de preconceito é o do sujeito que não fala, que não expres-sa sua opinião (“de qualquer forma, os outros não entenderiam”), porémestá sempre preparado para agir - energicamente, como convém - contraaqueles que são efetivamente preconceituosos e dão maus exemplos.

A recente passeata do “orgulho gay” incomodou alguns dessespreconceituosos enrustidos e chegou ao ponto de fazê-los falar.

Não citarei nomes, porque seria constrangedor identificar qualquerpessoa envolvida nesse tipo de episódio.

Um indivíduo de meia-idade, viajando no mesmo elevador que eu,

viu na mão do ascensorista um jornal com fotos da passeata. E nãoresistiu a fazer seus comentários:

- Não tenho nada contra os gays, mas acho que eles estão exage-rando no exibicionismo. Precisavam desfilar assim? E ainda por cimana praia? Por que não foram para um lugar mais discreto?

Fiquei com vontade de intervir. Tive o impulso de perguntar se apasseata deveria, a seu ver, se realizar num cemitério. O indivíduovoltou à carga:

- Sou uma pessoa à moda antiga. No meu tempo era homem commulher e mulher com homem. Agora é essa coisa esquisita: homemcom homem, mulher com mulher. Não tenho nada contra, já disse, mas

quando vejo essas coisas sinto uma sensação estranha dentro de mim.O elevador parou, porém ainda não era o meu andar. E tambémnão era o andar do indivíduo, que continuou suas observações críticasa respeito dos gays:

O ORGULHO GAYe as lézbecas

91

Page 93: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 93/202

Jornal do Brasil, 05 de julho de 2003.

- Falando francamente, os homossexuais me incomodam, eles de-viam fazer um tratamento. Garanto que muitas bichas do sexo mas-culino iam ser recuperadas. Quanto às mulheres que se amarram emoutras mulheres, não sei se essa perversão tem cura. Para ser sincero,acho que as chamadas “lézbecas” têm algo de demoníaco.

(O indivíduo pronunciava a palavra “lésbicas” como se fosse umtermo proveniente de alguma língua estrangeira, possivelmente a lín-gua do demônio.)

Desisti de me controlar e decidi intervir. Disse-lhe que ele estavafalando bobagens e que essas bobagens podiam levar espíritos fracosa comportamentos intolerantes. Recomendei-lhe a leitura do livro deJoaquim Brasil Fontes sobre a poesia de Safo de Lesbos, a poeta gregaque foi a primeira vítima de uma campanha difamatória que demoni-zava o seu homossexualismo.

Contei-lhe que o grande poeta Ovídio era tão preconceituoso emface do lesbianismo que, quando leu a história da moça Pasifae, quese apaixonou pelo Minotauro e transou com ele, deu um suspiro dealívio e disse: “Bem, ao menos era um monstro do sexo masculino”.

Prendendo a porta do elevador (que havia chegado ao meu andar),

ainda comentei:- Para Ovídio, Safo estava numa categoria abaixo da dos monstros.A porta, finalmente, se fechou, o elevador podia prosseguir sua

viagem. Contudo, como ele ainda permaneceu cinco segundos parado,pude ouvir a voz do indivíduo, comentando com o ascensorista:

- Esse coroa é taradão,você viu? Ele se amarra

numa “lézbeca”.

Page 94: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 94/202

   P  e  n  s  a  m  e  n   t  o   F   i   l  o  s   ó   f   i  c  o

A Dialética e o Marxismo - Aula MagnaGoethe e o amor”subversivo”

HamletO poeta comunista Brecht

Dialética e DialógicaRefletir

O homem burguês e os valores éticosAs ambigüidades da utopiaRanke e Benjamin Ética Marxista

Walter Benjamin

por Leandro KonderensamentFILOSÓFICO

Page 95: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 95/202

 Pensamento Filosófico

Page 96: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 96/202

   P  e  n  s  a  m  e  n   t  o   F   i   l  o  s   ó   f   i  c  o

Peço licença para começar por uma curiosa experiência vivida há muitos anos, em 1964, no IPM do ISEB.Interrogado por um coronel a respeito de uma palestra que eu havia feito sobre o marxismo, falei em dialé-

tica. Para a minha surpresa, o coronel explicou ao sargento datilógrafo: “A dialética é esse negócio que oscomunas inventaram para dizer que uma coisa é, mas ao mesmo tempo não é”.

No momento em que ouvi a explicação, por força da situação grotesca, achei-a apenas engraçada. Sinistra,porém cômica. Com o tempo, entretanto, comecei a reconhecer que havia alguma procedência naquela crítica ru-demente formulada: de fato, com esse sentido a dialética tem sido - e continua sendo - usada com freqüência.

Essa constatação me levou muitos anos depois, a escrever um livrinho de divulgação intitulado O que édialética , tentando dissipar alguns dos mal-entendidos que circulam em torno da dialética. Não tive a am-bição de superar o mal-entendido em geral, porque desconfio que o mal-entendido em geral é insuperável:ele brota incansavelmente das brechas que sempre existem na articulação entre o nosso saber e o real; ele

aproveita a inesgotabilidade do real, a irredutibilidade do real ao conhecimento.O que podemos fazer, reconhecendo as limitações do nosso conhecimento, é admitir com Hamlet que há

mais coisas no Céu e na Terra do que supõe a nossa filosofia. A tradução usual acrescentou “vã” filosofia,

 A Dialética

e o Marxismo Aula magna na PUC, Rio de Janeiro em 28/03/2003.

Page 97: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 97/202

mas o que Shakespeare escreveu foi: “There are more things in Heaven and Earth, Horatio, / Than are dreamtof in our philosophy” (Hamlet, primeiro ato, quinta cena). A filosofia pode se reconhecer como limitada semse considerar vã.

A construção do conhecimento necessita de desconfiança em relação a si mesma e também de autoconfiança.Em que a dialética, na concepção de Marx, pode contribuir para a satisfação de cada uma dessas necessidades?

A contribuição para a desconfiança vem pela ligação com o conceito de ideologia: a distorção ideológicapode ser tão sutil que eu não a perceba infiltrar-se em meu ponto de vista, em minhas razões, em minhaciência, em minhas intuições.

 A contribuição para a autoconfiança vem pela ligação com o conceito de práxis, a atividade do sujeito

que de algum modo aproveita algum conhecimento ao interferir no mundo, transformando-o e se transfor-mando a si mesmo.

Cabe à dialética, em Marx, articular a crítica das ideologias à práxis.

Se a crítica das ideologias não se ligar à práxis, ela tende a se deteriorar, tende a se reduzir a mera...distorção ideológica.

Se a práxis não se ligar a uma constante crítica das ideologias, ela irá degenerar em pragma.

De fato, as três se condicionam reciprocamente; a práxis precisa da crítica das ideologias para melhoraro conhecimento com base no qual se orienta; a crítica das ideologias precisa, ao mesmo tempo, contribuirpara a orientação e para o questionamento da práxis. Cada uma das duas, então, precisa da outra. E ambasnecessitam da dialética (como a dialética necessita de ambas).

O conceito de práxis é decisivo na distinção entre a dialética de Marx e a do seu mestre, Hegel. É verdadeque em ambos a dialética se funda como uma ontologia e não como uma teoria do conhecimento. O queconta, para os dois, é o movimento do ser, suas contradições. No entanto, eles divergem na compreensão

desse ser que se move e no entendimento de qual possa ser a sua relação com o conhecimento.Para Hegel, ou o conhecimento expressa o ser e o ilustra, ou então se afasta do ser, torna-se mero equívoco e

não interessa. Para Marx, os homens, sujeitos da práxis, se servem daquilo que conhecem ou julgam conhecer.

Na práxis, o sujeito age conforme pensa a prática “pede” teoria, as decisões precisam ter algum fun-damento consciente, as escolhas devem poder ser justificadas. Na práxis, o sujeito projeta seus objetivos,assume seus riscos, carece de conhecimentos. Na oitava das “Teses sobre Feuerbach”, Marx distingue explici-tamente a práxis e a “compreensão” [“Begreifen”] da práxis (quando afirma que os mistérios em que a teoriatropeça são solucionados na práxis e na compreensão da práxis) (MARX, vol. III).

Pouco antes, em sua polêmica com a “sagrada família” dos hegelianos, Marx havia escrito: “A verdade é,

para o senhor Bauer, tal como para Hegel, um automaton que se prova por si mesmo. O ser humano só temque segui-la” (MARX, vol. II).

A teoria, então, tem que “morder” as diferentes ações transformadoras e pode não conseguir fazê-loou pode “mordê-las” muito deficientemente. Em todo caso, fica claro que a interferência da construçãodo conhecimento na práxis, para Marx, se reveste de uma dramaticidade e assume uma importância que agnosiologia hegeliana jamais reconheceria.

Hegel admitia que no movimento do ser havia um momento necessário em que aparecia a liberdade, o su- jeito humano manifestando seu poder de interpretar o real e tomar iniciativas; esse poder, contudo, acabavasendo bastante restrito, era rigidamente condicionado, subordinado a uma racionalidade ainda sufocante.

Em Marx, surge a possibilidade de se pensar o sentido da história não a partir de uma razão constituída,mas a partir de uma razão constituinte. O sentido do nosso movimento não é anterior à nossa intervenção:é instaurado por nós, dentro dos limites que nos são impostos pelo quadro em que nos inserimos.

Page 98: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 98/202

   P  e  n  s  a  m  e  n   t  o   F   i   l  o  s   ó   f   i  c  o

Sem se entregar a uma visão irracionalista da história, Marx abre caminho para uma dialética que podesuperar o determinismo, isto é, pode acolher a riqueza do subjetivo na objetividade ou, em outras palavras,pode continuar respeitando a necessidade e ao mesmo tempo pode assimilar a liberdade (sem estreitá-la).

Na história do marxismo, entretanto, a direção em que se moveu a dialética de Marx não foi tão fecundacomo se poderia esperar. O determinismo expulso da doutrina pela porta da frente, logo voltou a infiltrar-senela pela porta dos fundos.

 As urgências da luta política criaram condições nas quais os militantes organizados eram extremamente

vulneráveis ao sentimento gratificante de se acharem na “crista da onda” do “progresso”, e esse sentimento,conforme observou Walter Benjamin, inseria os homens num tempo “vazio e homogêneo”, desviando-os dodesafio que consiste em “escovar a história a contrapelo” (BENJAMIN).

Quando Marx, aos 25 anos, propôs que a revista alemã, que ia ser lançada em Paris sob sua direção, ti-vesse como lema “uma crítica implacável a tudo que existe” (MARX, vol. I), o movimento operário não tinha,por assim dizer, nada a perder.

No final do século XIX, porém, os socialistas haviam criado os primeiros partidos de massa, os primeiros

sindicatos de massa, a segunda Associação Internacional dos Trabalhadores, e possuíam, portanto, todo umpatrimônio político pelo qual deveriam zelar. Convinha-lhes, então, agir com alguma prudência.

No novo quadro, reconhecia-se a verdade enunciada pelo velho Goethe, no seu Wilhelm Meister: “Sãopoucos os que refletem e são capazes de agir. A reflexão amplia, mas enfraquece; a ação revigora, mas limita”(GOETHE, VIII, cap. 5).

Entre os poucos que uniam convincentemente reflexão e ação, naquele momento, estava Karl Kautsky,líder e principal teórico do Partido Social-Democrático dos Trabalhadores Alemães. A influência de Kautskyfoi enorme. Segundo o historiador francês Georges Haupt, pela seleção dos textos que considerava impor-tantes de Marx e pela concatenação de tais textos, foi Kautsky quem criou “o marxismo” (termo que Marx

recusava).(HAUPT).

O “marxismo” que assim nascia se baseava numa opção problemática. Dissemos que Kautsky unia convin-centemente a reflexão e a ação. Devemos perguntar, porém, de que reflexão e de que ação se trata.

Kautsky nunca deixou de ser darwinista e adepto da teoria evolucionista. Por isso, nunca se interessou defato pela dialética e difundiu com êxito sua leitura da concepção de Marx como um determinismo histórico.Para ele, o novo não vinha de uma ruptura: era o resultado do lento e inexorável amadurecimento de algoque já existia antes e ainda não era percebido e afinal passou a ser enxergado.

A idéia ainda ganhou mais força com a publicação, na época, de um livro escrito pelo genro de Marx, PaulLafargue, intitulado, sintomaticamente, O Determinismo Econômico de Karl Marx (LAFARGUE).

A convicção de serem os representantes de um movimento revolucionário objetivo, que estava se reali-zando inexoravelmente, consolava e reanimava os lutadores nos momentos difíceis, ajudando-os a suportarderrotas, porém, quando se organizava em forma de teoria, assumindo a forma de um determinismo ou “me-canicismo fatalista”, atrofiava-lhes a capacidade de tomar iniciativas, tornava-se “causa de passividade”,segundo a análise feita por Antonio Gramsci (vol. I, p. 107) (GRAMSCI).

A dialética se retraiu. Apesar das advertências feitas por Lukács em 1922, em História e Consciência deClasse (LUKACS), apesar das lúcidas observações de Gramsci e Benjamin, a dialética encontrou pouco espaçopara florescer no espaço ocupado pelo “marxismo oficial”, tanto na versão social-democrática como na novaversão leninista.

Foi grave, mesmo, o que aconteceu com o pensamento de Marx no uso que lhe deram os políticos e teóricos in-tegrados ao movimento dos partidos comunistas: instituiu-se uma “ortodoxia” posta sob o controle dos dirigentessupremos do movimento comunista mundial e se reduziu drasticamente o espaço da reflexão livre ligada à ação.

Page 99: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 99/202

A dialética não podia deixar de se ressentir do cerceamento do diálogo (convém não esquecermos que osdois termos nascem irmanados: diálogo vem de dia + logos e dialética vem de dia + lêgein).

É certo que dialética e dialógica não são sinônimos; existem procedimentos dialógicos que não são dialé-ticos, quer dizer, não reconhecem a centralidade da contradição. No entanto, quando as condições históricasse tornam muito desfavoráveis ao diálogo, elas tendem a prejudicar a dialética.

A divisão dos socialistas na Europa mostrou que as duas tendências principais do movimento não es-tavam preparadas para pensar e realizar a unidade na extrema diversidade. Divididos, social-democratas ecomunistas acabaram, por diferentes caminhos, se acumpliciando com a depreciação da dialética.

Os social-democratas tenderam a reduzir Marx a um teórico importante, mas igual a muitos outros, autorde umas tantas idéias que poderiam ser ecleticamente aproveitadas em contextos específicos. Eduard Berns-tein propunha mesmo, francamente, substituir a dialética pelo velho e bom empirismo inglês.

E os comunistas tenderam a reduzir a dialética – pragmaticamente – àquilo que o coronel do IPM do ISEBcaracterizou como o que os “comunas” inventaram para dizer que uma coisa ao mesmo tempo é e não é...

Nos termos da frase de Goethe, agora modificada, a ação limitava e não revigorava a reflexão, e a reflexãoenfraquecia a ação sem ampliá-la.

O que era realmente grave é que não se tratava de mero descuido. O filósofo tcheco Karel Kosik observou queno sistema político adotado pelos comunistas havia uma polarização entre o detentor de um saber proporcionadopela teoria revolucionária (o “Comissário do Povo”) e o homem comum, a quem a “Verdade” está sendo levada.Quanto mais este último deixasse de formular dúvidas ou objeções, mais ele seria considerado “bem encaminha-do” pelo primeiro. O funcionamento do sistema, então, teve como conseqüência inevitável, de um lado, o fortale-cimento do dogmatismo do “Comissário” e, de outro, a passividade do consumidor da doutrina (KOSIK).

Houve, sem dúvida, resistências a esse processo. Além dos já lembrados Lukács, Benjamin e Gramsci, diver-

sos outros nomes merecem ser lembrados, como, entre muitos outros, Adorno e Horkheimer. É muito significa-tivo, porém, que esses autores tenham ficado marginalizados, ou no mínimo postos sob áspera suspeita, comescassa influência real sobre o grande movimento político que se realizava, então, em nome do marxismo.

O processo da derrocada da União Soviética mudou o quadro. Livres do pesado compromisso – que lhesera cobrado – de proteger e preservar o sistema dos partidos comunistas bem como o vasto e imponenteaparelho estatal de uma superpotência, os marxistas podiam, dentro de certos limites, voltar a sentir algumaproximidade com a disponibilidade, alguma afinidade com o despojamento que tinha o jovem Marx parauma “crítica implacável a tudo que existe”.

Se existe alguma possibilidade de revitalização do marxismo como teoria, ela depende, certamente, dessarecuperação das raízes da dialética. Nas atuais circunstâncias, a dialética enfrenta o desafio de um recomeço.

Cabe-lhe resgatar a força da dialógica, que chegou a desempenhar um papel tão importante nos escritosde Platão, abrindo espaço no movimento do pensamento para a incorporação necessária do discurso do ou-tro como pré-requisito para a elevação da filosofia em direção ao mundo das idéias.

Cabe-lhe associar a radicalização de sua vocação crítica (“mudar a vida!”, conclamava o poeta Rimbaud)a uma modéstia metodológica e a uma vigilância autocrítica que lhe permitam enxergar suas próprias li-mitações e a estimulem a buscar naquilo que surge de novo no campo de seus interlocutores/contraditoreselementos que podem – surpreendentemente – ensejar a ampliação de seus horizontes.

A dialética, como modo de pensar, suporta mal qualquer tentativa de defini-la. Algumas das suas características

mais importantes, contudo, podem ser determinadas aproximativamente. Podemos constatar, por exemplo, que eladepende essencialmente da capacidade do sujeito de apreender o novo e a contradição. Ou, em outras palavras,depende do reconhecimento pelo sujeito da “formação ininterrupta da novidade qualitativa” (LUKÁCS, p. 260) e da suacapacidade de se orientar no quadro das contradições com que se defronta e que inevitavelmente o envolvem.

Page 100: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 100/202

   P  e  n  s  a  m  e  n   t  o   F   i   l  o  s   ó   f   i  c  o

Como o novo está sempre surgindo e as contradições constantemente ultrapassando os limites da suacompreensão, o sujeito, na dialética, não pode deixar de ter no infinito uma referência fundamental: a infi-nitude é a categoria que lhe permite entender o real como efetivamente inesgotável, irredutível ao saber.

Apesar das diferenças (que não devem ser subestimadas), cumpre reconhecermos, então, uma conver-gência entre a dialética e a mística: em ambas, o sujeito se sente em face de algo maior do que aquilo queestá ali, quer dizer, se sente relacionado a algo que transcende a realidade imediata, algo que vai além darealidade restritamente presente, que o seu conhecimento poderia pretender dominar e exaurir.

Nas décadas de maior influência do movimento comunista, o “marxismo oficial” se recusava a admitiresse ponto de convergência e fechava obstinadamente os olhos diante de obras tão instigantes como as demestre Eckhardt, Nicolau de Cusa e Blaise Pascal.

Outro obstáculo no qual o “marxismo oficial” tropeçava era aquele que se refere às relações da dialéticacom a natureza. Com uma curiosidade digna de admiração, porém manifestando um espírito um tanto ama-dorístico, o velho Engels fez algumas observações a respeito do que seriam as “leis da dialética” no âmbitodas ciências naturais; tomou algumas notas e as deixou com pessoas que as editaram em livro, sustentandoa tese de que havia uma dialética que abarcava desde a natureza até a história.

Com a “dialética da natureza”, se atenuava a ruptura da passagem dos processos naturais aos processoshistóricos, as categorias básicas da dialética eram trabalhadas de maneira a valer para os dois níveis, o queacarretava certa “naturalização” da História.

A teoria da “dialética da natureza” exerceu forte influência até mesmo sobre alguns marxistas argu-tos, como Henri Lefebvre, que escreveu: “O homem continua sendo um ser da natureza, mesmo quando seapropria dela. Às vezes, ele chegou a crer que seus fins se opunham à natureza: sua liberdade, por exemplo.Porém essa liberdade só tem sentido e realidade na natureza e pela natureza” (LEFEBVRE).

Page 101: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 101/202

Hoje em dia, preocupados com a dilapidação dos recursos – finitos! – do nosso planeta, será muito difícilencontrarmos alguém que nos assegure que o desperdício de água, as atividades industriais danosas ao meioambiente e a destruição da floresta amazônica são “naturais”.

Uma terceira “derrota” histórica da dialética decorreu do fato de que, negada a sua origem (na rela-ção sujeito/objeto), deixava de ser reconhecido o poder que os sujeitos têm de fazer escolhas, de tomardecisões, antevendo os objetivos que pretendem alcançar. Em vez de pensar a totalização a partir dapráxis, os adeptos da “dialética da natureza” impuseram uma concepção prepotente de totalidade, fun-dindo (e confundindo) o natural e o social.

Hoje, a dialética enfrenta outras batalhas. Vive, como diria Merleau Ponty, outras “aventuras”. Recusa-se, como sempre, a se deixar enquadrar como “método” ou – o que é pior – como “doutrina”. Caso ela sedeixasse enquadrar como uma doutrina, simplificaria muito o nosso trabalho como professores, na educaçãodos jovens. Acontece, entretanto, que os jovens para os quais transmitiríamos a doutrina seriam, afinal, tudoque possamos imaginar, menos... dialéticos.

Como a dialética vem entrando no século XXI? Ela se sabe mais ampla do que o marxismo. Pode-se serdialético sem ser marxista (como era o caso de Gerd Bornheim e, em certo sentido, do padre Henrique Cláu-

dio de Lima Vaz, dois filósofos importantes, recentemente falecidos, e que estão nos fazendo muita falta).

Também é evidente que se pode ser marxista sem ser verdadeiramente dialético.

A dialética, se me permitem dizê-lo cum grano salis, tem simpatizado com o marxismo, porém não parecedisposta a lhe assegurar que ela é a mulher da vida dele. Por fidelidade ao Modernismo, com quem viveu bons mo-mentos, trata o Pós-Modernismo com frieza. Faceira, insinua, contudo, que de repente pode mudar de atitude.

Não ficou nem um pouco magoada quando José Guilherme Merquior se referiu a ela como uma “dama decostumes fáceis” (MERQUIOR, p. 178). Prefere, entretanto, o elogio que o poeta Bertolt Brecht fez ao seu sensode humor. Imagino-a dizendo:

 - Brecht tinha razão. Quem não tiver senso de humor nunca me compreenderá.

Referências Bibliográficas

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas, Vol. I, Trad. Sérgio Paulo Rouanet, São Paulo, Brasiliense, 1985.GOETHE, W. Wilhelm Meister. Ed. Goldmann, 1975.GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, Trad. DE Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira,Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.HAUPT, Georges. L’historien et le mouvement social. Paris : Maspero, 1971.KOSIK, Karel. “Moral da Dialética e Dialética da Moral”, In moral e Sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.LEFEBVRE, Henri. Que es la dialectica. Trad.de Rodrigo Garcia Treviso. Buenos Aires: La Plêiade, 1975.LUKACS, Georg. Geschichte und Klassenbewusstsein. Neuwied & Berlim, luchterhand, 1970.MARX, Karl. Marx-Engels-Werke.Vols. 1, 2 e 3. Berlim: Dietz, 1962 e 1964.MERLEAU-PONTY , Maurice. Les aventures de la dialectique. Paris: Gallimard. 1953.MERQUIOR, José Guilherme. As Idéias e as Formas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1981.

SHAKESPEARE, William. Hamlet. Londres: Penguin, 1985.Trabalho Necessário, ano 1, n. 1, 2003.

Page 102: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 102/202

   P  e  n  s  a  m  e  n   t  o   F   i   l  o  s   ó   f   i  c  o

Johann Wolfgang Goethe nasceu na cidade de Frankfurt/Main em 28 de agosto de 1749. Os 250 anos de seunascimento estão sendo comemorados no mundo inteiro. O Brasil também tem participado das comemorações.

Quando Goethe nasceu, sua cidade natal tinha apenas 30.000 habitantes. A Alemanha não tinha unidadepolítica, estava estilhaçada em mais de duzentas áreas administrativamente autônomas. Comparado à situ-ação da França e da Inglaterra, o quadro em que viviam os alemães era um quadro de atraso, de periferia.

As condições periféricas, provincianas, entretanto, não impediram o escritor de observar atentamente osmovimentos da cultura européia. E foi com base nessa observação - no esforço para compreender sua ex-periência vivida particular no âmbito mais amplo da história na qual essa experiência estava inserida - queGoethe veio a criar o conceito de “literatura mundial”.

Goethe  e o amor “subversivo” 

101

Page 103: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 103/202

Sem abrir mão de seu enraizamento na cultura alemã, o escritor, desde cedo, mostrou-se capaz de captare recriar literariamente sentimentos e preocupações que marcavam os horizontes da vida espiritual dos eu-ropeus, em geral, na segunda metade do século XVIII. E chegou a se abrir para um esforço de apreensão dariqueza das culturas orientais. (Num dos seus poemas se lê: “Quem de si mesmo é bem consciente / e estendeaos outros seus cuidados / sabe que Oriente e Ocidente / não podem mais ser separados”).

A partir de um de seus primeiros livros - Os Sofrimentos do Jovem Werther (1774) - Goethe se tornouuma celebridade. O livro foi publicado anonimamente, mas o autor acabou sendo identificado e vivamenteaplaudido (ou asperamente condenado) por uma verdadeira multidão de leitores. Através de uma corres-pondência fictícia, Goethe reconstituía o drama de um jovem que se apaixonava por uma moça e, diante daimpossibilidade de viver com ela, se suicidava. O romance epistolar foi interpretado por muitos como umailustração do conf1ito entre o sentimento exacerbado da paixão e a racionalidade que deveria prevalecer navida prática. Na realidade, era a expressão de um choque entre duas “razões” que estão instaladas dentro decada pessoa, nas condições históricas criadas pela hegemonia burguesa: a “razão” da busca apaixonada dafelicidade individual e a “razão” do cálculo que precisa orientar a inserção de cada um na coletividade.

O filósofo e crítico Georg Lukács, num livro sobre Goethe e sua Época, chama a nossa atenção para aimportância do tema do amor na obra do autor do Werther. O amor, na esfera da vida privada, é uma mani-festação excepcionalmente poderosa da necessidade da dimensão comunitária na vida dos indivíduos. Sem

o amor, a existência da pessoa permanece dramaticamente incompleta: cada ser humano precisa não só sedesenvolver por si mesmo, exercitando sua autonomia, como precisa também realizar valores da comunida-de humana a que pertence.

O amor é a forma mais radical de “ir ao outro”, de se reconhecer, intimamente, num ser humano diferente.E é nesse sentido que o poeta Goethe questiona o conselho socrático: “Conhece-te a ti mesmo”. Quem ama(e Goethe se apaixonou muitas vezes) não tem a pretensão de se instalar no auto-conhecimento porque viveintensamente a aventura de sair de si e mergulhar na alteridade. Vale a pena lembrar, a propósito, dois versosnos quais o poeta diz: “Conhece-te a ti mesmo! - Pra que me serve isso, enfim? / Se pudesse conhecer-me,logo eu saía de mim”.

Contudo, a aventura do amor é extremamente dificultada na sociedade burguesa. Na medida em que giraem torno do mercado, a sociedade impõe aos sentimentos dos indivíduos os critérios quantificadores, a men-surabilidade que caracteriza a movimentação das mercadorias, com seus preços, suas cifras, sua traduçãoem dinheiro. O próprio amor passa a ser medido, avaliado em porcentagens (do tipo “estou 60% apaixona-do”, “te amo 25%”). E, quando o ímpeto da paixão é tão vigoroso que ultrapassa a possibilidade do cálculo,as conseqüências são catastróficas, como se viu no caso do Werther.

Já famoso, Goethe assumiu um cargo importante na corte do duque de Weimar. Combinava, então,atitudes respeitosas de cortesão, sempre marcadas por uma evidente cautela política (uma constante preo-cupação com a “preservação da ordem”), e um comportamento espontâneo, às vezes brincalhão e informal.Nessa época, o poeta chegou a escrever: “Quem faz acordo com os príncipes / mais cedo ou mais tarde terásucesso, / quem procura se entender com a plebe / perderá seu tempo”. Antes de formularmos nossa avalia-

ção a respeito dessa linha de conduta, devemos lembrar que a censura alemã era implacável e a produçãocultural sofria os efeitos de um severo controle e de uma dura repressão. O próprio Goethe diria, mais tarde:“ser escritor na Alemanha significa ser mártir”.

No presente caso, o escritor tinha múltiplas habilidades: equilibrava-se sobre pernas de pau, tocava flautae violoncelo, era ceramista, desenhava, fazia gravuras, praticava equitação, dançava bem, falava francês,inglês e italiano, tinha algum conhecimento de outros idiomas (como o latim, o hebraico e a escrita árabe),porém era suficientemente lúcido para se reconhecer um amador pouco constante no cultivo desses talen-tos. Alimentou algumas pretensões na esfera científica: estudou direito, química, arquitetura, entomologia,anatomia, mineralogia, ótica, acústica e botânica. Porém sua área de plena realização profissional era, semdúvida, a da literatura em língua alemã.

Sua curiosidade intelectual era insaciável. Lia tudo, desde a Bíblia até o Corão, passando por Shakespeare.Byron, Manzoni, Homero, Victor Hugo, Calderón, Giordano Bruno, o poeta persa Hafiz, Espinosa, Kant e ou-tros. Ao longo de sua vida, teve oportunidade de entrar em contato com figuras como os filósofos Schelling,

2

Page 104: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 104/202

   P  e  n  s  a  m  e  n   t  o   F   i   l  o  s   ó   f   i  c  o

Fichte, Schopenhauer e Hegel (que o visitou várias vezes), ou como os poetas Schiller (com quem manteveassídua correspondência durante 11 anos), Adam Mickiewicz, Heine e Hölderlin, ou como os compositoresBeethoven e Félix Mendelssohn-Bartholdy, ou como os escritores Walter Scott, Carlyle, Thakeray, Herder,Alexander e Wilhelm Humboldt, Jacob e Wilhelm Grimm.

É difícil encontrar naquela época alguém que tivesse um quadro de referências tão amplo e tão ricoentre os intelectuais europeus. A originalidade de Goethe, contudo, não estava na sua erudição, e sim nasua criatividade. As obras mostravam o que o autor tinha para dizer: lançavam uma luz indireta mas muitoreveladora sobre o que o conselheiro do Ducado de Weimar preferia não falar pessoalmente.

Sua convicção veio a ser formulada uma vez como um princípio: as obras literárias que escrevia deveriam,segundo ele, contribuir para a nossa compreensão de como se articulam na história humana a liberdade ea necessidade, o individual e o coletivo. Deveriam, então, contribuir para a busca do “ponto no qual o que épróprio do nosso eu e o que é livre na nossa vontade se encontram com o movimento necessário do todo”.

Esse ponto parece ter sido ao menos vislumbrado na peça Fausto, em cuja redação o autor trabalhoudurante muitos anos. O enredo é conhecido: depois de ter dedicado praticamente toda a sua vida à ciência, oDr. Fausto tem a sensação de ter desperdiçado sua existência e se dispõe a vender sua alma ao Demônio emtroca de um momento de intensa felicidade, do qual ele pudesse dizer que gostaria que durasse para sempre.

Mefistófe1es (familiarmente, Mefisto), agente do Príncipe das Trevas, se dispõe a atender ao pedido.

A peça - que começou a ser escrita em 1773 e só foi concluída em 1831 - gira em torno de uma espécie de due-lo entre Fausto e Mefisto, que não deixa de ser, em certo sentido, também um duelo de Fausto consigo mesmo.

O representante do Demônio, humanizado, é um brilhante argumentador,que explora a decepção do seu interlocutor com a abstratividade da teoria,advertindo-o de que “cinzenta é toda teoria / e verde é a esplendorosa árvoreda vida”. O cientista desiludido, contudo, não parece se impressionar dema-siadamente com a retórica e prefere os atos às palavras (por isso se dispõe acorrigir o Velho Testamento e, em vez de “No princípio era o Verbo”, sustenta

que “no começo era a Ação”).Fausto pede, então, a Mefisto que use seus poderes para seduzir a jovem,

linda e virtuosa Margarida. Consumada a sedução, Fausto ainda não se dápor plenamente satisfeito e continua suas andanças pelo mundo. Até que,

 já velho e cego, decide mandar drenarem um pântano para ajudar algumaspessoas a se instalarem no local. Imaginando a vida feliz da comunida-de que passaria a viver ali, o ancião declara que gostaria que aqueleinstante se eternizasse e, em seguida, morre. Mefisto, que lhe haviaproporcionado tantos momentos de intenso prazer, não entendeo que havia acontecido e reflete: “Coitado! Queria preservar

 justamente esse último momento, tão pobre e tão vazio”. No

entanto, o que ocorria era a experiência que levava Faus-to a se sentir integrado, amorosamente, a um movimentoque envolvia outras criaturas e ia além dele, superandoos horizontes do seu individualismo. Graças a essadescoberta, que o tornava efetivamente capaz deamar, Fausto pode ter a sua alma salva (Mefistose sentiu logrado!), por intercessão de Margarida,a moça que ele havia seduzido e que se apaixo-nara por ele.

O tema do amor está presente o

tempo todo não só no Fausto e no Wer-ther como em inúmeras outras obras deGoethe. Antes de mais nada, podemosencontrá-lo, obviamente, na volumosa

Page 105: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 105/202

e fascinante obra lírica do poeta. Além disso, ele está no centro das andanças e peripécias romanescas do Wi-lhelm Meister, o inquieto jovem que é loucamente amado por Mignon e acaba se casando com Natalie. Estáno coração da peça Stella (que um crítico conservador hostil classificou como uma “escola de poligamia”) eestá na própria estrutura do romance As Afinidades Eletivas (1809), que narra como o casal Eduard e Charlotteentra em crise, como Eduard se apaixona pela sobrinha de sua mulher e como Charlotte se apaixona por umcapitão, amigo do seu marido.

O amor, tal como Goethe o concebe, comporta formas degradadas e degradantes, porém permite ao serhumano elevar-se a um nível sublime, no qual o homem ultrapassa as fronteiras da sua mera individuali-dade. E a força do amor é estritamente terrena: nele, o que há de divino é rigorosamente humano; a trans-cendência é imanente. Goethe é um cristão que - como observou José Guilherme Merquior - não acredita,de modo algum, no pecado original. Quando a alma de Fausto sobe ao céu, em meio a uma parafernáliacelestial, os anjos que povoam a cena não impedem que o leitor/espectador perceba que o cientista escapoudo Demônio por força de um amor cem por cento terreno: o amor de Margarida.

E é esse amor humano que entra inevitavelmente em choque com as normas instituídas tanto pelosaristocratas como pelos burgueses; entra em choque aliás, com os próprios princípios do conservadorismo.Como combinar a paixão amorosa - que irrompe nas pessoas de maneira incontrolável - com a estabilidadedo casamento, com uma sólida organização familiar, pilar da sociedade burguesa, em cujos valores Goethe

evidentemente acreditava - e não podia deixar de acreditar?

Goethe nunca deixou de defender, na literatura e na vida, a legitimidade do amor. Em Weimar, ele na-morava uma moça de origem humilde, Christianne Vulpius, que fazia flores de pano para ganhar a vida.Enquanto eram amantes, a corte não via nada demais na ligação. Após sua viagem à Itália (de 1786 a 1788),porém, Goethe passou a viver maritalmente com Christianne, e afinal casou-se com ela, em 1808. Isso lhevaleu os incômodos de uma surda campanha por parte de setores aristocráticos, que não o perdoavam porsua “lascívia”, por sua “luxúria”, por sua “libertinagem” ou por seu “mau gosto”.

Mais tarde, já viúvo, com 74 anos de idade, Goethe se apaixonou por Ulrike von Lewetzov, uma jovem de18 anos, filha de um casal de amigos bem mais moços que ele. Sem se deixar intimidar pela pressão da opi-

nião pública ou pelo estigma do “ridículo”, sem fazer concessões a convenções aristocráticas ou burguesas,sem moldar seu comportamento de acordo com o que se esperava da “compostura” de um “velho escritorconsagrado”, de um “monumento nacional”, Goethe pediu Ulrike em casamento. E, quando ela recusou, po-lidamente, o autor do Fausto, frustrado em seu amor, sofreu muito e escreveu magníficos poemas.

Até sua morte, em 22 de março de 1832, Goethe jamais se cansou de perseguir a felicidade, concebidacomo realização pessoal e, simultaneamente, inserção ativa no movimento da humanidade, da comunidadehumana. Num temperamento conciliador, num súdito nada revolucionário, esse terá sido o traço “subversi-vo” que confere maior vitalidade à sua personalidade e aos seus escritos.

Foi por sua permanente disposição para assumir o amor, com suas peculiares desmesuras, que ele ques-tionou tanto o formalismo rigidamente hierárquico da ideologia feudal como o utilitarismo intrínseco e a

lógica abusivamente quantificadora, calculista, da ideologia burguesa.

O preço pago por essa opção foi alto. Muitas e dolorosas decepções lhe foram impostas. Mas o poeta, jána sua juventude, respondia a um crítico reafirmando sua enorme capacidade de sempre recomeçar a cami-nhada justa, por mais rudes que pudessem ser os golpes que a interrompessem. Numa lição importante, quenós hoje não podemos deixar de recordar, Goethe escreveu: “Querias, por acaso, / que eu odiasse a vida / efosse para o deserto / porque nem todos os sonhos / em flor deram certo?”.

4

Page 106: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 106/202

   P  e  n  s  a  m  e  n   t  o   F   i   l  o  s   ó   f   i  c  o

Hamlet  A época

Uma das características mais marcantes da nossa época – mais precisamente dos últimos quatro séculos– é o processo de autonomização dos indivíduos.

Em torno de 1600, estimulada pelos comerciantes, que viriam a constituir depois o núcleo que formaria a bur-

guesia, a produção cultural aprofundou o questionamento renascentista da sociedade feudal clássica da IdadeMédia. Iniciou-se a caracterização coerente de um novo modelo de ser humano, com pretensão à universalidade.Um modelo que passaria a influenciar com força crescente a política educacional nos países em que a burguesiaviesse a participar do poder - o modelo do indivíduo autônomo, empreendedor e competitivo.

Podemos chamar esse modelo como o do “homem burguês”. Não no sentido sociológico de proprietário dosmeios de produção no capitalismo, mas no sentido de tipo humano condicionado, em seus limites e contradi-

Page 107: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 107/202

ções, pela sociedade posta sob a hegemonia da burguesia. Um tipo que se expressa numa grande diversidadede indivíduos que precisam se tornar aptos para a competição desenfreada que o mercado lhes impõe.

Esse novo tipo de indivíduo, na sua origem, precisava ter espaço para tomar suas iniciativas e fazer suasescolhas pessoais. Para ser livre, deveria estar disposto a correr riscos. Erasmo de Rotterdam, pioneiro ensi-nava: não se pode aprender a nadar bem sem se afastar da bóia de segurança.

A Igreja, sustentáculo do feudalismo, assustou-se e apoiou um forte movimento de repressão, que influiuprofundamente no clima sombrio do período barroco. Nesse período, Thomas Hobbes viria a dizer: quando(nasci, minha mãe teve gêmeos, eu e o medo. Esse medo não era infundado.

O clima espiritual da época era, de fato, assustador. O caminho dos inovadores era cheio de dificuldadese perigos. No último ano do século XVI, Giordano Bruno se expôs na defesa das novas idéias, sublinhou aimportância da articulação entre a natureza e a criatividade individual-humana (cujos limites segundo ele,não podiam ser prefixados) e foi queimado em Roma.

O processo histórico das transformações sócio-econômicas, políticas e culturais caracterizou-se por vigo-rosas tensões e contradições. A burguesia nascente apoiou a concentração do poder nas mãos dos reis contraos senhores feudais, mas ficou submetida ao controle brutal por parte da Corte.

Pouco a pouco, através de um caminho em zigue-zague, os teóricos que expressavam as aspirações daburguesia começaram a conceber uma sociedade na qual todos os indivíduos, em princípio, passariam a dis-por de alguma possibilidade de se afirmar livremente, sem os entraves, as coerções e os privilégios feudais.Contudo, os anseios dos comerciantes do final do século XVI, que desejavam (sem ter clara consciência disso)um novo, só viriam a ser satisfeitos, de fato, no século XIX.

No início do século XVII, a vida dos desbravadores era muito sofrida. Cervantes tinha 54 anos, estava ter-minando a primeira parte de Don Quijote e em seguida seria encarcerado, em Valladolid. Campanella tinha33 anos, estava completando seu primeiro livro, A filosofia demonstrada pelos sentidos, que imediatamenteo levaria à cadeia. Jacob Boehme tinha 26 anos, tivera uma visão, escrevera seu livro Aurora e logo fora

proibido pelos teólogos conservadores de continuar escrevendo. E Galileu, instalando-se em Pádua, tentavasuperar a falta de dinheiro oferecendo invenções úteis – até militarmente úteis! – para Veneza.

Era certamente, um tempo complicado. As complicações, no entanto, retardavam mas não impediamas mudanças. E alguns espíritos excepcionalmente sensíveis, extremamente lúcidos, perceberam desde oinício que as transformações necessárias seriam dramaticamente contraditórias. As novas liberdades seriamacompanhadas por novos grilhões.

A ampliação de espaço para as iniciativas individuais, alcançadas por meio da expansão do mercado,seria seguida por novas incertezas, nova solidão e novas angústias. A dimensão da comunidade, da solida-riedade humana, ficava enfraquecida pela exacerbação da competição, numa sociedade que girava em tornodo mercado. As esperanças depositadas na razão, na ciência e no livre exame pessoal dos preceitos da fé

seriam acompanhadas por diversas decepções. Verificou-se uma sofrida oscilação entre a aceitação libertinado ceticismo aristocrático e a entrega fanática a um misticismo febril, permeado de superstição.

Diversos autores desse tempo tentavam, teimosamente, descobrir um caminho que evitasse os extremos.Com certa candura, Descartes viria a pedir que os espíritos religiosos submetessem voluntariamente osprincípios da fé ao teste da dúvida metódica. Pascal viria a falar de uma guerra, do interesse do ser humano,entre a razão e o sentimento.

Nas novas condições históricas, aparecia um novo tipo de pessoa: o sujeito que enterrava tradi-ções das quais, em seguida, sentiria falta. O homem que sabia o que não queria, porém não sabia defato o que queria. (Montaigne, no final do século XVI, já confessava em seus ensaios: “Sei bem do

que fujo, mas não o que busco”).

6

Page 108: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 108/202

   P  e  n  s  a  m  e  n   t  o   F   i   l  o  s   ó   f   i  c  o

Um novo tipo humano estava nascendo. Walter Benjamin, observando o fenômeno, concluiu: na época barroca, nascemos nós, surgiu o tipo humanodo nosso contemporâneo.

Se conseguirmos deixar de lado a conotação pejorativa que a expressão tende facilmente a assumir, po-demos chamá-lo de “o homem burguês”.

A literatura e a arte ilustram a notável diversidade dos indivíduos singulares que corporificam as possibili-dades desse tipo humano – o nosso contemporâneo – surgido no Barroco. Apesar de uma pro-

nunciada tendência ao utilitarismo, é um tipo que comporta uma enorme variedadede características (muitas vezes contrastantes): comporta até mesmo

expressões agudamente autocríticas.

O olhar genial dos mestres, en-tretanto, consegue discernir por trásda sempre surpreendente diversidadealgo que aparece de algumas figurassingulares da expressão literária, de-

terminados traços reveladores de umadimensão densamente significativa,poderosamente universal (isto é, quepodem ser apreendidos em diferentescondições históricas e espaciais).

Constróem-se, assim, no campoda arte, da ficção, indivíduos quecorrespondem ao que o filósofo He-gel, no século XIX, teorizando sobrea história, viria a chamar de “indi-víduos histórico-universais”. Só quea categoria com a qual o pensadorpretendia explicar as ações doshomens na história política seria,no nosso caso, uma categoria útilpara a abordagem da criação depersonagens de ficção capazes deexpressar – na literatura – a marcado início de uma nova era na per-sonalidade dos indivíduos.

Shakespeare é, sem dúvida, um

dos mais geniais entre esses escri-tores que se mostraram capazes decriar personagens de ficção mais“verdadeiros” (porque mais univer-salmente significativos) do que aesmagadora maioria dos indivíduos“reais” do seu tempo.

E Hamlet é, com certeza, um dosseus personagens mais fascinantes.

107

Page 109: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 109/202

 A peça

A peça Hamlet foi escrita, provavelmente, no fim de 1601 e início de 1602. Londres ainda estava abaladapelo escândalo da conspiração liderada pelo conde de Essex, que havia sido preso e executado.

Quando o texto teve a sua impressão definitiva, em 1604, Shakespeare tinha quarenta anos. A rainha daInglaterra, Elizabeth I, tinha morrido no ano anterior e fora sucedida pelo rei James I: a sucessão dinástica

assinalava, discretamente, o fim da era elizabetana e o começo de uma nova era, pontilhada de incertezas.Em escala européia, era possível perceber que a mudança era mais vasta e mais profunda, não se limitava

ao enterro da era elizabetana na Inglaterra e envolvia importantíssimas rupturas na maneira de se compre-ender a realidade. O que se passava na Grã-Bretanha tinha a ver com o que estava acontecendo na França,na Espanha, na Itália e em outros países europeus. E Shakespeare abriu caminho para que se entendesse issoquando situou a ação de muitas de suas peças fora da Inglaterra, em terras estrangeiras.

O enredo de Hamlet é conhecido: no reino da Dinamarca, o rei morre e aparece na forma de um fantasmapara dizer ao seu filho, o príncipe Hamlet, que foi vítima de um assassinato. O príncipe fica sabendo que seutio Cláudio, irmão do falecido, envenenou-o para se casar um mês depois com a viúva e tornar-se rei. Hamletse sente, compreensivelmente revoltado contra o rei Cláudio e decepcionado com a sua mãe, Gertrude,a nova esposa do assassino.

Sente-se moralmente obrigado a vingar-se, mas custa a decidir como o fará. Suspeitando queCláudio estava escondido atrás de um cortinado, ouvindo uma conversa bastante tensa queele estava tendo com sua mãe, Hamlet saca do seu florete e fere mortalmente o enxe-rido, que, no entanto, não era o rei, mas seu camareiro-mor, Polônio.

8

Page 110: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 110/202

   P  e  n  s  a  m  e  n   t  o   F   i   l  o  s   ó   f   i  c  o

Hamlet se finge de louco. Cláudio, que o teme, aproveita para fingir que o protege, manda-o para a In-glaterra e ordena, numa carta sigilosa, que o matem. Hamlet descobre a armadilha, forja uma carta falsa eencaminha os dois espiões do rei (Rosenkranz e Guildenstern) para serem executados.

Hamlet fica conhecendo Fortinbras, rei da Noruega. No passado, o pai de Hamlet, também chamadoHamlet, havia guerreado contra o pai de Fortinbras, também chamado Fortinbras. Nas novas condições,entretanto o jovem Hamlet se aproxima do jovem Fortinbras e se alia a ele.

De volta à Dinamarca, o príncipe enfrenta outra armadilha. Sua amada, Ofélia, filha de Polônio, o homemque ele matara, enlouquece de verdade e acaba por se suicidar. Cláudio convence Laerte, filho de Polônio,irmão de Ofélia, que o culpado da morte do pai e da irmã dele era Hamlet. Laerte e Hamlet duelam. O reiassassino põe veneno no florete de Laerte e no vinho posto sobre a mesa, para garantir que Hamlet morra.Quem bebe o vinho, contudo, é a mãe de Hamlet, Gertrude.

Na confusão do duelo, Laerte fere Hamlet, os floretes caem, os dois os apanham no chão, mas trocados;Hamlet, então, fere Laerte. Vendo Gertrude morta e percebendo que ele e Hamlet também vão morrer, La-erte denuncia Cláudio como o grande vilão da história. Hamlet, antes de morrer, ainda mata seu tio, o rei,vingando assim o assassinato de seu pai.

O protagonista

No primeiro ato, Hamlet, profundamente acabrunhado coma morte do pai, acata a recomendação que lhefazem o tio Cláudio e a mãe, Gertrude, no sentido de não insistir em usar roupa de luto, e obedece à ordem delespara desistir de ir para Wittenberg. Embora já mostre que não acredita nas declarações de afeto de Cláudio, Ha-mlet mostra em sua conduta que, por mais forte que seja o seu ciúme, por maior que seja a sua consternação emface do casamento da mãe com o tio (um mês após a viuvez!), não se dispõe a insurgir-se contra a situação.

Só depois que o espectro do pai revela que foi assassinado é que Hamlet manifesta a decisão de agir.

Mesmo assim, ocorrem-lhe algumas dúvidas. Ora ele acredita piamente no que o espectro lhe diz (“é umfantasma honesto”, I, 5), ora suspeita de uma falácia demoníaca (“o espírito que eu vi pode ser o Demônio,o Demônio tem o poder de assumir formas que agradam”, II, 2).

Hamlet se reconhece como um “melancólico”, vulnerável à ação do Mal. Pergunta-se: “Serei um covar-de?”. Acusa-se de se servir da sua mansuetude para evitar fazer as coisas desagradáveis que precisa fazer:“Tenho um fígado de pombo, desprovido de fel” (II, 2). Numa famosíssima cena do terceiro ato, no monólogoque começa com a indagação “ser ou não ser”, ele formula o dilema com que se defronta: resignar-se ou re-voltar-se. “O que é mais nobre, suportar na consciência os golpes e dardos de um destino cruel, ou empunhararmas contra um oceano de desgraças e, opondo-se a elas, dar-lhes um fim?”.

Quando resolve ter uma conversa franca e dolorosa com a mãe, o príncipe ainda adverte seu coração:

“Não percas, meu coração, a tua natureza. Que a alma de Nero não se instale no meu peito! Que eu sejacruel, mas não antinatural” (III, 2). E durante essa conversa, explicando-lhe o que espera que ele faça, diz-lhe: “É só para ser bom que preciso ser cruel”.

No entanto, quando se manifesta, a crueldade não é modesta ao expandir-se. Hamlet é bastante perversocom Gertrude quando surge a hipótese de que ela tenha de fato se apaixonado pelo cunhado, Cláudio. Elecompara o leito do casal a um “chiqueiro asqueroso, cheio de podridão”. Acusa a mãe de estar “prostituída”,recebendo “beijos infectos”; e lhe fala: “Você não pode chamar isso de amor. Na sua idade, o sangue fica ralo,é humilde, não é exigente, obedece ao discernimento” (III, 4).

Também no trato com Polônio se verifica um certo transbordamento de perversidade. Compreende-se que

Hamlet se impacientasse com o “velho idiota e chato”, mas é difícil não enxergar a extensão do cinismo dopríncipe quando se despede do cadáver de Polônio, por ele assassinado com as palavras “adeus, tolo introme-tido”. E, um pouco depois, olhando o estendido no chão, comenta com sarcasmo: “Realmente, o conselheiroque falava tanto e tanta tolice, agora, calado, está mais sério e mais sisudo do que era em vida” (III, 4).

109

Page 111: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 111/202

Mais assustadora ainda é a atitude assumida por Hamlet em relação à Ofélia. Quando ela, obedecendoao pai, tenta lhe devolver os bilhetes amorosos que dele recebera, o príncipe, afetando estar mentalmenteperturbado, desconcerta-a, trata de confundi-la, declara-lhe que já a amou no passado, depois lhe diz quede fato nunca a amou, acusa-a de aproveitar frivolamente o fato de ser bela, assegura-lhe que não haverámais casamento algum e lhe recomenda enfaticamente que ela entre para um convento (III, 1).

Por mais pérfido que seja o tio assassino, o rei usurpador, Cláudio, afinal, tem razão quando, ao fazersua intriga com Laerte, lhe afirma que Hamlet não ao era o responsável pela morte de Polônio como tinharesponsabilidade pela morte de Ofélia.

Podemos observar, contudo, que o que prevalece na figura de Hamlet não é a crueldade. Ofélia, mesmomagoada, admira os méritos do príncipe, “flor do Estado” dinamarquês, e tende a perdoá-lo porque ele es-taria louco: “Que espírito nobre aqui foi destruído!” (III, 1). E Hamlet, mais tarde, na discussão que tem comLaerte, diz que seu amor por Ofélia era maior que o de quarenta mil irmãos somados (V, 1).

Fica claro que Hamlet estava longe de ser um anjo, nem sequer se aproximava de um modelo de perfeição.No entanto, ao assumir suas próprias contradições, (sem conseguir dominá-las), sensibilizava seus próximos,despertava simpatias em geral. Alexandre Koyré, em seu livro Do mundo fechado ao universo infinito, mostracomo no século XVII o pensamento científico abandonou as considerações baseadas na idéia de que o mun-

do era estruturado hierarquicamente, de acordo com os valores, das como “perfeição” e “harmonia”, e passoua admitir a idéia de um universo infinito, composto por elementos de significação problemática, compondoum quadro no qual se manifestava “o divórcio do mundo do valor e do mundo dos fatos”. Hamlet é umaexpressão viva do desencadeamento desse processo.

De fato, o príncipe antecipava as características do “herói” de um novogênero literário que estava começando a se firmar: o romance. A Teoriado romance, do jovem Lukács, caracteriza o “herói” do romance como um“indivíduo problemático”, que se move num “mundo contingente”, nummundo “sem deuses”, no qual ele está condenado à busca permanente – e

sempre frustrada – de uma “Pátria transcendental”.Hamlet não é por temperamento um rebelde: é alguém que se insurge contra uma situação que lhe parece ter

se tornado eticamente insuportável para homens que se pretendem livres (seja o que for que esse termo – “livre”– signifique). A revolta lhe é imposta pelo fato de a Dinamarca ter se tornado, como ele diz, “uma prisão”.

Associada a essa revolta, o príncipe manifesta uma extraordinária capacidade de reconhecer, dentro efora dele, na sua alma e no mundo que o cerca, a infinita complexidade do real. Um reconhecimento que seexpressa na frase famosa, dita ao seu melhor amigo: “Há mais coisas no céu e na Terra, Horácio, do que asque são sonhadas pela nossa filosofia” (I, 5).

Shakespeare intitulou Hamlet uma tragédia. Não se trata, porém, de uma tragédia no sentido grego dapalavra. No início da era burguesa tudo se misturava muito, os deuses saem de cena, passa a ser impossívelpara um artista ser plenamente bem-sucedido na representação “pura” da dimensão verdadeiramente “trá-gica” da vida humana. Walter Benjamin, na Origem do drama barroco alemão, e Karel Kosik, em O século deGrete Samsa, já descreveram com acuidade esse fenômeno. Os padrões do conhecimento não podem deixarde arcar com as conseqüências de uma confusa relativização generalizada, ligada a uma certa mercantiliza-ção da vida, à crescente importância do mercado no funcionamento da sociedade.

Hamlet sofre de uma inevitável ambigüidade (que reaparecerá, em seguida, nos “heróis” dos romances):aquela que decorria do divórcio do mundo dos fatos e do mundo dos valores. Por um lado, é cordato, bem-educado, obediente, especulativo; por outro, é esperto, moleque, toma iniciativas, age, “explode”. É prudente,

porém se afasta da “bóia de segurança” para nadar em mar alto. Decide atravessar o medo e a dúvida parafazer, livremente, por sua conta e risco, o que é necessário, o que precisa ser feito.

0

Page 112: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 112/202

   P  e  n  s  a  m  e  n   t  o   F   i   l  o  s   ó   f   i  c  o

A contradição entre a liberdade e a necessidade lhe aparece, ele toma consciência dela, reconhece suaimpotência para superá-la e, para aliviar sua tensão, permite-se às vezes rir do mundo e de si mesmo.

O “herói” shakespereano se leva suficientemente a sério para morrer poraquilo em que acredita, mas não se leva a sério a ponto de não rir da cons-tatação de que nem sempre sabe no que de fato está seguro de acreditar.

Momentos cômicos despontam no meio das vivências trágicas. E o príncipe tem a coragem intelectualde assumi-los. Mesmo a morte – o Absoluto em sua forma negativa, como disse Hegel – é relativizada pelohumor das consciências postas num vertiginoso processo de auto-relativização.

Quando Cláudio lhe pergunta onde está Polônio, Hamlet, que o matou, responde: “Na ceia”. E, ante o es-panto do tio, esclarece: “Não na ceia em que ele come, mas naquela em que é comido”. Em seguida, faz umadigressão sobre a função dos vermes, que promovem a circulação da matéria de que se compõem os seres vi-vos, de maneira que uma parte do corpo de um rei pode vir a se incorporar ao corpo de um mendigo (IV, 3).

Na primeira cena do quinto ato, Hamlet vai com Horácio ao cemitério onde Ofélia é enterrada e fica fas-cinado com o robusto senso de humor dos coveiros, que lhe asseguram que fazem casas mais resistentes do

que os arquitetos, porque são casas feitas para durar até o dia do Juízo Final.

Sem saber com quem estão falando, os coveiros lhe contam que o príncipe Hamlet enlouqueceu e foimandado para a Inglaterra, onde, se não se curasse, de qualquer modo estaria á vontade, porque “lá os ho-mens são tão malucos quanto ele”.

Hamlet observa para Horácio que nos últimos três anos vinha notando que as pessoas das classes desfa-vorecidas estavam se desenvolvendo bastante, de modo que “o dedão do pé do camponês está chegando tãoperto do calcanhar do nobre que já começa a esfolá-lo” (V, 1).

Hamlet simpatiza com a plebe e é querido por ela. Cláudio sabe disso e por isso mesmo toma muito cui-dado para não vir a ser identificado como seu assassino. O tio leva em conta o “grande amor que a plebe lhededica” (IV, 7) e, num outro momento da peça, reconhece, preconceituosamente, que o sobrinho “é amadopela multidão ignara” (IV, 3).

O senso de humor do príncipe – elemento que surpreendeu alguns críticos e ainda os incomoda até hoje– facilitava a aproximação dele com os de “baixo”. Não no sentido de uma aliança política (completamenteinviável no contexto da Europa do século XVII), mas no nível de uma certa afinidade em torno de algumasformas de resistência à erosão histórica.

O povo, representado pelo público popular do teatro elizabetano, apreciava o senso de humor um tantotruculento do personagem; e esse traço da personalidade de Hamlet dava maior credibilidade à informaçãode que ele era amado pelo povo da Dinamarca fictícia em que Shakespeare situara a ação da sua peça.

Reconhecida essa significação do humor na composição da peça e do seu protagonista, vale a pena, en-tretanto, fazer a ressalva: Hamlet não é, decididamente, uma comédia.

Shakespeare escreveu numerosas comédias. Em Hamlet, contudo, não pode haver dúvida quanto à predo-minância do caráter dramático. O dramaturgo se empenhou em sublinhar a dimensão da “seriedade” no dra-ma vivido pelo príncipe, consciente de que, com todas as suas “crueldades”, com todas as suas “brincadeiras”,havia no personagem uma dignidade intrínseca, capaz de preservar valores humanos, mesmo em condiçõeshistóricas extremamente áridas ou confusas, marcadas pelo mais extremado individualismo.

Isso fica claro quando, no final da peça, segundos antes de morrer, Hamlet pede a seu amigo Horácio

que receba o rei da Noruega, Fortinbras, que está chegando; determina que lhe dêem apoio, que o informemquanto à situação política do reino da Dinamarca e (“o resto é silêncio”) que se omitam no relatório, discre-tamente, os dolorosíssimos acontecimentos da esfera privada, que resultaram em tantas mortes (V, 2).

111

Page 113: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 113/202

Não teria sentido pretender reduzir Hamlet a um exemplo do “homem burguês” nascente ou tentar redu-zir o modelo do “homem burguês” nascente ao protagonista da peça de Shakespeare. No entanto, podemosreconhecer como o gênio do dramaturgo conferiu ao seu personagem traços fundamentais do novo tipohumano no qual, como escreveu Benjamin, nós nos reconhecemos.

E mais: podemos perceber, através de Hamlet, como, no seu momento inicial, o “homem burguês” tinha umprofundo apreço pela esfera pública e procurava evitar que as motivações privadas – por mais legítimas quefossem, na existência dos indivíduos autônomos – comandassem a gestão dos negócios do Estado e as decisõespolíticas que os dirigentes deviam tomar para corresponder aos anseios da comunidade por eles dirigida.

Referências20 Ibid., p. 233.21 Francisco J. S. Teixeira & Manfredo Araújo Oliveira (Orgs.), Neoliberalismo e reestruturação produtiva –As novas determinações do mundo do trabalho (São Paulo/Fortaleza: Cortez/Universidade Estadual do Ceará, 1996).22 Ibid., pp. 26-27.23 Robert Kurz, op. cit., p. 227.24 Ibidem.25 Karl Marx, Manuscritos econômicos-filosóficos (Lisboa: Edições 70, 1993), p. 157; grifos do autor.27 Claus Offe, op. cit., p. 16.26 Karel Kosik, Dialética do concreto (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986), p.9.28 Ibid. p. 18 (grifo nosso).

29 Apud Gaudêncio Frigotto, Educação e a crise do capitalismo real, cit., p. 99.30 André Gorz, Adeus ao proletariado – para além do socialismo (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982), p. 9.31 Ibid., p. 11.32 Ibid., p. 14.33 Ibidem.34 Ibid., p. 16.35 Ibidem.36 Ibid., pp. 19-20.37 Ibid., p.33.38 Ibid., p.20.39 Ibid., p. 22.40 Cf. Gaudêncio Frigotto, op. cit., p. 132.41 Ibid., pp. 132-133.42 Györg Márkus, A teoria do conhecimento no jovem Marx (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974), p. 52.43 Trata-se de nossa pesquisa de doutorado intitulada Trabalho e educação numa perspectiva ontológica marxiana,

orientada pela professora Dra.Betty A. deOliveira.44 Lessa faz uma síntese muito interessante das vertentes teóricas fundamentais originadas no marxismo do século XX: 1) o marxismo

estruturalista, cuja premissa básica consiste na “redução da produção e da reprodução sociais à sua imediaticidade” (p. iii), representado porAlthusser, Cohen, Bourdieu e Passeron;

2) o idealismo marxista, que surge como uma reação ao marxismo estruturalista. Ele cita Lukács, na sua obra História e consciência de classe,e a Escola de Frankfurt como representantes dessa vertente. Segundo Lessa, em Lukács, naquele seu primeiro trabalho, há uma identidade entresujeito e objeto na construção da ordem comunista, caracterizando uma “disjunção entre o método e o conteúdo do pensamento marxiano”.Quanto à Escola de Frankfurt (representada por Adorno, Habermas, Marcuse, Horkheimer, etc), substitui a centralidade da categoria do trabalhopela linguagem, pelos valores, etc.; 3) o marxismo ontológico, representado por Korsh, Gramsci e Lukács. Esta vertente, segundo o autor, secaracteriza pelo “reconhecimento do predomínio da matéria sobre a consciência, da determinação do econômico sobre a totalidade social”,pelo resgate da “obra marxiana enquanto momento de constituição de uma ‘nova visão de mundo” (p. x) (Sérgio Lessa, Trabalho e ser social – aontologia de Lukács (Campinas: IFH/Unicamp, 1994).

45 Karl Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, cit., p. 50.46 Ibid., p. 202.47 Ibid., p. 16.

48 G. Lukács, “O trabalho”, em Ontologia dell’essere sociale (Roma: Ed. Riuniti, 1978); versão traduzida por Ivo Tonet, p. 3.49 Ibidem.50 Ricardo Antunes, op. cit., p. 139.51 G. Lukács, op.cit., p. 84.

2

Page 114: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 114/202

   P  e  n  s  a  m  e  n   t  o   F   i   l  o  s   ó   f   i  c  o

Agradeço muito pelo convite para participar dessa homenagem a Brecht, por ocasião da passagem doseu centenário de nascimento. Devo adverti-los de que, tal como está anunciado no título do meu texto,vou me limitar fazer algumas observações sobre o tema que nos foi proposto em ligação com a atividadede Brecht como poeta.

O Poeta

Comunista BretchSeminário Internacional “Seis Perguntas a Bertolt Brecht” , em 27-08-98, no CCBB-RJ.

Page 115: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 115/202

Sabemos todos que Brecht, além de autor teatral importantíssimo, era um grande poeta. Escreveupoemas ao longo de toda a sua vida, dos 15 aos 58 anos, quando morreu. Ao todo, mais de dois milpoemas. E, do ponto de vista da qualidade, a produção poética tem sido reconhecida como um dospontos altos da literatura do século XX.

Sabemos também que Brecht foi, notoriamente, um simpatizante do comunismo. Deu apoio ao movimen-to comunista, aos regimes políticos instituídos na União Soviética e na Europa oriental.

Apesar da óbvia conexão que existe entre o marxismo , movimento filosófico desencadeado a par-tir de algumas idéias de Marx, o comunismo , ideal e meta da classe operária, e os Estados criadospelos comunistas , após a Revolução Bolchevique de 1917, de acordo com o modelo leninista, os trêselementos interligados não são idênticos.

Convém não perdermos de vista as diferenças, para tentarmos entender exatamente qual era a posição deBrecht e podermos encaminhar uma resposta à pergunta que nos foi feita pelos organizadores deste evento.

Brecht era, com certeza, um marxista. Desde que entrou em contato com o pensamento de Marx, en-tusiasmou-se com ele: Viu em Marx o espectador ideal das suas peças de teatro. Contudo, sua maneirade assimilar o marxismo sempre foi bastante peculiar. O poeta era um contestador, rebelde, questionador

radical, apaixonadamente antiburguês, anticapitalista: serviu-se do marxismo como uma arma a serviço doaguçamento da contestação.

Essa contestação está presente na poesia de Brecht desde sua primeira fase, no antimilitarismo, na de-núncia dos males da guerra, na crítica da inumanidade da vida nas grandes metrópoles modernas. O mar-xismo veio trazer-lhe um poderoso estímulo.

Para ser radical, revolucionária, a negação deveria se concretizar na ação prática, política, (no movimentocomunista); e deveria se completar com uma afirmação, a edificação (positiva) dos Estados socialistas.

No entanto, a ação prática das organizações políticas (os partidos revolucionários leninistas) impunha

uma autodisciplina que limitava a espontaneidade da rebeldia. Brecht a aceitava, mas não investia nessaautodisciplina toda a paixão que se expressava na contestação.

E a edificação dos Estados socialistas, tais como se tentava moldá-los, se fazia através de métodos que opoeta se sentia obrigado a engolir porém às vezes o irritavam.

 Verificamos, então, que havia diferenças entre as relações de Brecht com o marxismo, com o movimentocomunista e com os Estados ditos socialistas.

Há, contudo, uma pergunta genérica, abrangente, relativa ao engajamento do poeta e de diversos outrosescritores, intelectuais e artistas que chegaram, ao menos em algum momento de suas vidas, a apoiar o mo-vimento comunista. Por que este fenômeno pode ser observado em gente como Pablo Picasso, Paul Eluard,

Louis Aragon, André Breton, Lucchino Visconti, Píer Paolo Pasolini, Pablo Neruda, ou Carlos Drummond deAndrade, Graciliano Ramos, Cândido Portinari, Emiliano Di Cavalcanti, Leon Hirzman, Ferreira Gullar, Oswaldde Andrade, Oduvaldo Viana Filho, Carlos Scliar, Darcy Ribeiro, Glauber Rocha e tantos outros?

Nas condições atuais está criado um clima de euforia neoliberal, de confiança no mercado, de aceitaçãoacrítica do capitalismo, um estado de espírito amplamente difundido que lembra um pouco aquele que existiana época de Marx, na segunda metade do século XIX, e torna aparentemente incompreensível a situação quecaracterizava o período que se inicia com a Primeira Grande Guerra Mundial, abrange o entre-guerras, passapela Segunda Guerra Mundial e se encerra com a atenuação da chamada “guerra-fria” e com as inovaçõescontestadoras do final dos anos sessenta (isto é, o período situado entre 1914 e – mais ou menos – 1968).

A Primeira Guerra Mundial pôs a nu a hipocrisia da ideologia dominante e a fragilidade da hegemonia liberal-conservadora exercida pela burguesia mais tradicional. O contraste entre riqueza e pobreza foi encarado comomonstruoso, insuportável. Uma onda de revolta se espalhou pelo mundo. O comunismo ofereceu uma canalizaçãobastante convincente para ela, pela esquerda. O fascismo também conseguiu significativas adesões, pela direita.

4

Page 116: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 116/202

   P  e  n  s  a  m  e  n   t  o   F   i   l  o  s   ó   f   i  c  o

Brecht optou pelo caminho do comunismo, convencido de que nele havia uma efetiva solidariedade comos de “baixo” e uma oposição conseqüente aos de “cima”. Chegou a fazer poemas de inequívoco teor pro-pagandístico. Foi sincero e corajoso, pôs seu talento de autor teatral e de poeta a serviço da causa em queacreditava. Pagou um preço alto: foi forçado a se exilar, passou vários anos no estrangeiro.

A adesão ao comunismo, entretanto, não assumia a forma de uma entrega cega e irrestrita. O poeta só foicapaz de escrever poemas políticos que até mesmo seus críticos mais severos reconhecem como primorososporque não se deixava absorver por simplificações sectárias ou obstinações fanáticas.

Brecht expressava sua confiança de lutador, com certeza, mas também expressava momentos de dúvida,de reconhecimento das imensas dificuldades para dizer a verdade, como se vê, por exemplo, num poema emque recomenda:

  Como o ladrão esperto Wie der Einbrecher   Que de noite espia in der Mondlosen Nacht, 

com dificuldade der sich umsieht   se tem polícia por perto, ob da kein Polizist geht,  assim deveria o bewegt sich derjenige 

  mover-se aquele que busca a verdade. Der hinter der Wahrheit   E deveria como algo roubadoE deveria como algo roubado her ist.  em perigo Und wie etwas Gestohlenes  trazer com cuidado die Schulter in Furoht,  a verdade consigo. Dass sich eine Hand darauf lege   trägt er die Wahrheit weg.

Terminada a Segunda Guerra Mundial, com a Alemanha dividida, Brecht parece ter procurado ganhartempo antes de resolver para qual das duas partes da sua terra voltaria. Retardou sua saída dos Estados Uni-dos até que a pressão anticomunista cresceu. Passou algum tempo na Suíça. Obteve passaporte austríaco.Acabou se instalando na então República Democrática Alemã (a DDR), aquela parte da Alemanha que, sob a

ocupação das tropas soviéticas, tinha passado a ser governada pelos comunistas.

Surgiu para o poeta uma dificuldade especial. Sentia-se obrigado a uma solidariedade ética e políticacom companheiros de um movimento ao qual ele próprio estava ligado (embora não como militante filiadoao partido); ao mesmo tempo, não podia deixar de enxergar quotidianamente os efeitos deletérios da açãoburocrática dos seus companheiros na gestão do Estado.

O mal-estar transpareceu em alguns poeminhas. Como, por exemplo, nos versos de “A troca de roda”:

  “Sentado na calçada, Ich sitze am Strassenrand,  vejo o motorista trocando a roda do carro, der Fahrer wechselt das Rad.

Não me sinto bem no lugar de onde venho, Ich bin nicht gern, wo ich herkomme,  não me sentirei bem no lugar para onde vou. ich bin nicht gern, wo ich hinfahre.

Por que, então, espero a troca de rodaPor que, então, espero a troca de roda Warum sehe ich den Radwechsel   com impaciência? “ . mit Ungeduld ? 

Em alguns momentos, divergências chegavam a se explicitar, como no poeminha em que Brecht criticavaa condenação dos protestos populares por um dirigente comunista da organização dos escritores, pergun-tando ironicamente, se não seria mais fácil o governo dissolver (auflösen) o povo e eleger outro povo.

Ou como naquele outro poeminha em que ele se recusava a visitar cidades criadas de uma hora paraoutra, nas pranchetas de arquitetos planejadores, estatísticos, urbanistas, indagando: “O que são as cidadesconstruídas/ sem a sabedoria do povo?” ((Was sind schon Städte, gebaut/ ohne die Weisheit des Volkes? ).

Mas, justamente, são poeminhas. Não possuem um vigor comparável ao dos poemas políticos dos perí-odos anteriores.

115

Page 117: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 117/202

Hannah Arendt – cuja inteligência crítica merece o maior respeito e a maior admiração – chega a dizerque, depois de se ter instalado na RDA, Brecht deixou de ser poeta: “o pior que pode acontecer a um poetaé deixar de ser poeta, e foi o que aconteceu a Brecht nos últimos anos de sua vida”.

Acredito, entretanto, que se trata de um exagero da brilhante crítica. A tensão interior a que o poeta seviu submetido causou, certamente, graves prejuízos à sua poesia especificamente política. Os poemas deinspiração socialista e comunista já não tinham a vitalidade, a paixão que mostravam do final dos anos vinteaté o final dos anos quarenta. Mas Brecht – neste ponto, desmentindo Hannah Arendt – não deixou de serpoeta. Mesmo em seus últimos anos, ele escreveu poemas belíssimos. Só que, sintomaticamente, são poemasfilosóficos ou poemas de amor, e não poemas políticos. 

Um exemplo?

  “Vou às vezes ao vazio, Geh ich zeitig in die Leere   volto do vazio cheio. Komm ich aus der Leere voll.  Quando me acerco do Nada,Quando me acerco do Nada, Wenn ich mit dem Nichts verkehre   redescubro o necessário. Weiss ich wieder, was ich soll.  Na sensação derramadaNa sensação derramada Ween ich liebe, wenn ich fühle,

  sou sempre um pouco usuário, ist es eben auch Verschleiss  mas do meio do meu frio aber dann in der Kühle   nasce um calor, me incendeio. Werd ich wieder heiss. 

Enfim, a minha hipótese é a de que, a partir daquela distinção feita no início da minha intervenção, temosduas relações que tiveram conseqüências diversas. Na relação de Brecht com o marxismo  ou com o ideal docomunismo , o poeta não sofreu prejuízos poéticos e sua poesia, embora “datada” em suas referências, aindahoje é capaz de exercer fascínio sobre seus leitores que não se prendam demais a preconceitos. Por outrolado, na relação de Brecht com as contingências do funcionamento prático dos Estados ditos socialistas , ocontato quotidiano direto acarretou um claro enfraquecimento do seu estro político.6

Page 118: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 118/202

Page 119: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 119/202

Locke – que, decididamente, não era um dialético – elaborou a teoria do conhecimento que maior influ-ência exerceu sobre o Iluminismo: a consciência do sujeito deveria registrar com fidelidade, de modo “neu-tro”, a realidade objetiva das coisas, do mundo exterior.

A teoria do conhecimento de Kant encaminhou uma alternativa para a teoria de Locke: o sujeitonão pode pretender cancelar sua presença ativa no processo de construção do conhecimento porqueé exatamente aquele que o constrói.

Hegel foi adiante, concebeu o sujeito humano como agente histórico transformador da realidade e de simesmo. E desenvolveu uma nova concepção de dialética: o pensamento capaz de apreender a dinâmica dascontradições e por isto capaz de apreender o sentido (o “logos”) do processo de transformação.

Em Hegel, a dialética, apreendendo a dinâmica das contradições, introjeta a dialógica. O diálogo torna-seimplícito, realiza-se no interior do sujeito dialético que compreende a história que ele mesmo está fazendoe, para faze-la, dialoga consigo mesmo.

Marx divergiu de Hegel porque considerou muito abstrato o sujeito hegeliano da história (o “Espírito”).Para Marx, os sujeitos da história tinham de ser homens de carne e osso, materialmente interessados nasações que empreendiam. Ao tomarem decisões, ao fazerem escolhas, ao agirem e assumirem riscos, eles

enfrentavam desafios muito concretos e, ao longo da história escrito, constituíam grupos (classes) com in-teresses e necessidades diferentes, em choque, e faziam a história desunidos, brigando (e negociando) unscom os outros (a luta de classes).

Para Marx, a dialógica não desaparece, porém fica subordinada à dialética da ação. Os homens falam,porém sobretudo trabalham. Não trabalham porque falam, e sim falam porque trabalham. Os homens bri-gam, discutem, argumentam, dialogam, porém sobretudo agem. Não agem porque dialogam, e sim dialogamporque agem.

O conceito central da filosofia de Marx é o conceito de práxis: a atividade de auto-afirmação, de auto-realização do homem, uma atividade que precisa de reflexão (da teoria) para fundamentar opções.

Há problemas teóricos que não têm solução no plano da teoria.No século XX, as experiências socialistas, das quais o marxismo tem sido o maior municiador teórico,

apresentaram resultados bem mais problemáticos do que Marx poderia ter imaginado. Nesse sentido, a ação,longe de resolver, complicou algumas questões teóricas. E a dialética – nos leitores mais inquietos de Marx– voltou a buscar horizontes nos quais se resgataria a dialógica (conforme se vê, de diferentes maneiras, emBakhtin, em Walter Benjamin, ou em Habermas, por exemplo).

Por outro lado, a revalorização da dialógica, vista do ângulo da dialética de Marx, poderia escorregarnuma distorção ideológica: poderia alimentar a ilusão de que as pessoas, através do diálogo puro e simples,desenvolveriam a capacidade de solucionar questões que só a práxis – corrigindo-se autocrítica (e dialogi-camente!), sem deixar no entanto de ser práxis – tem o poder de enfrentar eficazmente.

Como se apresenta hoje a relação entre as duas irmãs? A dialógica é imprescindível para forta-lecer o espírito crítico e auto-crítico, e para conter o exagero do otimismo que a dialética não podedeixar de beber na fonte da práxis. E a dialética, na medida em que precisa beber sofregamente apráxis, depende da dialógica para tentar evitar embriagar-se, para não ficar de pileque, para não seconfundir e, em vez de práxis, acabar bebendo pragma.

 

8

Page 120: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 120/202

   P  e  n  s  a  m  e  n   t  o   F   i   l  o  s   ó   f   i  c  o

“O que é dado por sabido, exatamente porque é dado por sabido, não é efetivamente conhecido”. Comece-mos por lembrar essa frase famosa do velho Hegel; para prevenir: se por acaso nos acontecer de repisar o óbvio,contamos com a paciência de todos, porque estaremos fazendo um esforço no sentido de repensar coisas quetendemos a entender depressa demais e cuja complexidade acaba nos escapando.

Procuraremos fazer aqui, sobre o nosso tema, no sentido etimológico da palavra, uma re-flexão. Refletir vemdo latim, reflectere, na origem re+flectere, debruçar-se (flectere) outra vez (re), operação que só é necessáriaquando o sujeito não se satisfaz plenamente com o que viu no seu primeiro contato com a coisa. A reflexão éa tentativa de ir além da primeira impressão, é o movimento que procura transcender do imediato.

Num primeiro momento, o nosso tema parece ser filosoficamente simples: o novo se contrapõe ao velho e osupera; o presente prevalece no lugar do passado e abre caminho para o futuro. Como diz o Cazuza: “o temponão pára”. As coisas estão sempre mudando, se sucedendo.

Ninguém há de contestar a verdade dessas afirmações. Acontece, porém, que a realidade é sempre maiscomplicada e mais contraditória do que nós supomos. Ao longo de vários séculos, sábios altamente respeitá-veis e pensadores da maior categoria vinham nos ensinando a pensar com maior rigor formal, com disciplina e

Refletir 

119

Page 121: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 121/202

precisão. Eles explicavam, com uma lógica irrespondível: “O que é, é; o que não é, não é”. Aí veio esse terrívelHegel, com quem eu abri o meu texto, para observar que essa lógica formal rigorosa nos ajuda a compreenderalgumas coisas, porém obscurece outras. Como é que ela pode nos proporcionar, por exemplo, o conhecimentodo aparecimento das coisas novas, qualitativamente novas? Como é que ela pode nos proporcionar o conheci-mento do desaparecimento de coisas que existiam e deixam de existir? Como é que algo que não era passa aser? Como é que algo que é deixa de ser?

Hegel chamou a nossa atenção para a complexidade do tornar-se. Ele notou que o que é muitas vezes estádeixando de ser, e o que ainda não é está começando a ser. E nós, a partir dessa constatação, não podemosmais olhar para a relação entre o novo e o velho (ou entre o passado e o presente) com a mesma candura comque olhávamos, na primeira impressão que tivemos.

O passado, como o próprio nome indica, é passado, já passou; mas, sendo uma dimensão insuprimivel da re-alidade do tempo em que existimos, ele passou porém persiste, já que não há presente que não esteja carregadode um passado, de uma história, de uma trajetória percorrida que permite a cada coisa ser o que ela é.

Cada um de nós é o que está sendo (e aquilo que pode vir a ser); e é também, insuprimivelmente, aquilo quefoi. Ninguém pode cancelar seu próprio passado. Não se pode passar a vida a limpo, advertia Carlos Drummondde Andrade. Isso vale para as pessoas e vale para as sociedades. O passado é um desafio, para os sujeitos indi-

viduais e para os sujeitos coletivos.

No crescimento dos indivíduos, ou o sujeito é capaz de recuperar o que se passou com ele e o marcou, ouentão é dominado pelas marcas que a experiência vivida lhe deixou. O empenho da psicanálise tem consistidonessa luta para permitir aos seres humanos uma relação mais saudável, mais livre, com o passado deles.O neurótico se angustia porque revive compulsivamente sentimentos que se cristalizaram num dado momentoe ficam se repetindo pela vida afora. Sua abertura para o novo fica prejudicada por essa reiteração doentia.E também pode acontecer que ele bloqueie uma lembrança extremamente desagradável, suprimindo incons-cientemente algo que precisava ser recordado para poder ser superado, criticamente.

Na história das sociedades podem ser constatados fenômenos análogos. O psicanalista alemão Alexander

Mitscherlich viu no empenho que seus conterrâneos puseram na reconstrução do país, logo após a guerra de1939-1945, uma manobra psicológica para se descartarem da obrigação de repensar o passado recente, oapoio de massas com que contara a política nazista de Hitler. Ao se desvencilharem demasiado rapidamente deum passado perturbador, os alemães estariam manifestando – segundo Mitscherlich – uma “incapacidade desentir a dor do luto”, que lhe dificultava a preservação de sua integridade moral e lhes atrapalhava os esforçosque desenvolviam no sentido de se renovarem e de se porem à altura dos novos tempos. Esquivar-se às doresnecessárias do amadurecimento é um dos caminhos para não amadurecer.

Nosso caso – o caso do povo brasileiro – é bem diferente do caso alemão. Aqui não houve até agora umaditadura de tipo fascista que tenha contado com o apoio de amplos setores da população (embora os governosmilitares dos anos do “milagre econômico” tenham chegado a sensibilizar áreas significativas das classes mé-dias). Por outro lado, o povo brasileiro não teve a possibilidade histórica de driblar o sofrimento, porque jamais

se beneficiou dos níveis de remuneração que a próspera Alemanha proporcionou ao trabalho de seus filhos: aimensa maioria dos trabalhadores, no Brasil, sofre constantemente, e de maneira atroz, com os salários de fomeque lhe são pagos. De tal modo que, se o sofrimento, por si só, bastasse para amadurecer, o nosso povo seriaum dos mais maduros do mundo...

No entanto, apesar das diferenças, a nossa relação com o nosso passado não pode ser considerada maissadia que a dos alemães com o passado deles. Como o povo brasileiro tem sido, bem mais drasticamente queo alemão, mantido à margem da possibilidade de participar das decisões nacionais e de influir sobre o Estado,é certamente mais difícil atribuir-lhe qualquer responsabilidade pelas características que a sociedade brasileiraassumiu, ao longo de sua história. Mas tem sido exatamente essa marginalização das classes populares que tempropiciado às classes dominantes meios eficazes para que a ideologia por elas impingida à sociedade como um

todo provoque gravíssimas distorções na visão que usualmente temos do nosso passado.A ideologia dominante – que, como lembra Marx, é sempre a ideologia das classes dominantes – opera,

entre nós, em diferentes níveis e com notável eficiência. A história oficial nos vendeu durante séculos a imagem

0

Page 122: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 122/202

   P  e  n  s  a  m  e  n   t  o   F   i   l  o  s   ó   f   i  c  o

(que hoje começa a se desgastar) da “índole pacífica” do povo brasileiro que sempre preferiu os caminhos daconciliação aos do conflito. Atualmente vêm sendo produzidos estudos que mostram como foram numerosas eagudas as expressões de revolta, as manifestações das contradições que a ideologia conservadora tratava decamuflar. Mas, ao longo de um período surpreendentemente longo, muita gente foi convencida pela represen-tação de uma evolução mais ou menos tranqüila, pautada pelos bons sentimentos dos espíritos moderados.

A mesma credibilidade foi obtida pela imagem que a ideologia dominante difundida do império e do impera-dor Pedro II, homem culto e clarividente posto à frente de uma plêiade de varões probos e dignos.Os próprios republicanos foram induzidos a prestar homenagem aos dirigentes políticos da sociedade imperial.Só recentemente vem sendo realizados esforços mais sistemáticos no sentido de reconstituir o verdadeiro papeldesempenhado por Pedro II e pelos conservadores que o cercavam (leia-se o belo ensaio O Tempo Saquarema,de Ilmar Rohloff de Mattos, com a reconstituição da ação conjugada dos “saquaremas” e do imperador para“salvar o país do espírito revolucionário”).

Os grandes escândalos da nossa história foram suavizados, banalizados. Os quatro ou cinco milhões deíndios foram reduzidos a duas ou três centenas de milhares, mas a devastação era habilmente reduzida a umatragédia biológica, ao fato de os aborígines não terem resistência aos bacilos das doenças trazidas pelos euro-peus (culpa da natureza...).

Havia – é claro – a “mancha negra da escravidão”. O Brasil resistiu à pressão inglesa para por fim ao tráficoe continuou a importar escravos africanos clandestinamente, em nome dos brios nacionais e da nossa inde-pendência, desrespeitada pelos britânicos. O Brasil foi um dos últimos países do mundo a extinguir legalmentea escravidão. Quando, porém, a escravidão foi abolida, a ideologia dominante tratou de apresentar a aboliçãocomo um ato de magnanimidade da filha do imperador: uma confirmação da tese de que no Brasil, sem violên-cia, quase sem sangue, as mudanças necessárias acabam sendo feitas, da melhor maneira, pelos de “cima”.

 No Brasil, de fato, as mudanças se fazem, quando necessárias, de “cima” para “baixo”, sem participação popular. A sociedade vai se modificando, as-sim, lentamente, em condições nas quais prevalece a continuidade, evitan-

do-se ao máximo a ruptura. Desse modo, o novo vai sendo injetado em doseshomeopáticas, vai sendo servido com conta-gotas, e vai sendo sobreposto aovelho sem destruí-lo sem remove-lo. O novo nasce anêmico; é submetido a pressões amesquinhadoras, que o condenam a um certo raquitismo. É novo,na medida em que a inovação se torna historicamente inevitável, mas nãochega a se distinguir decisivamente do que havia antes: parece mais umareiteração do antigo.

A proeza mais estupenda da ideologia dominante está em ter conseguido persuadir tanta gente, durantetanto tempo, da razoabilidade desse sistema, de vantagem intrínseca das transições que, de tão prolongadas,ameaçavam se eternizar.

Para poder realizar essa proeza, contudo, foi preciso que as classes dirigentes fossem se adaptando aosnovos tempos; e, sobretudo no período mais recente, foi preciso combinar o amesquinhamento do novo coma exaltação do novo. A industrialização, o crescimento capitalista e a expansão do mercado (o aparecimentode uma massa de consumidores) exigiam que fosse montada uma imensa máquina de propaganda comercial,apta para alardear a “novidade” das mercadorias a serem vendidas. Desenvolveu-se, então, o fetiche do “novo”.Esse “novo”, entretanto, é peculiar: ele se realiza exclusivamente no âmbito da flutuação dos “modismos” e damudança dos costumes, sem promover qualquer alteração mais profunda na estrutura econômica da sociedade,no sistema de produção. Nunca chega a ser, por exemplo, a realização da reforma agrária; fica restrito a umaclasse média que passa a comprar automóveis e aparelhos de videocassete.

Por favor, me entendam bem: não tenho nada contra as alegrias do consumo e contra o fato de uma famíliade classe média chegar a ter carro próprio e videocassete; não tenho nada contra as conquistas do conforto

121

Page 123: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 123/202

e a invenção de novas formas de entretenimento. O que estou dizendo é que as inovações que se esgotam naesfera do comportamento e dos hábitos, na vida privada, se adaptam melhor, por serem menos “subversivas”, aum processo dirigido por forças empenhadas em evitar transformações substanciais; combinam, portanto, coma preservação da continuidade e com a preservação das rupturas.

O atrelamento da “modernização” da sociedade brasileira exclusivamente aos mecanismos do mercado teveconseqüências muito perversas. Sei que isso, dito hoje, soa estranho. A cotação do mercado está em alta: osliberais proclamam com orgulho sua fé no mercado como fonte de liberdade e garantia de progresso; e apon-tam para a evolução recente das experiências socialistas, caracterizando-as pura e simplesmente como o re-conhecimento do charme do mercado. Não cabe aqui uma análise do que se passa nos países socialistas, nemeu teria condições para fazê-la. Ao que tudo indica, os dirigentes dos Estados socialistas incorreram no graveerro do voluntarismo e superestimaram o poder de sua vontade: pensaram que podiam suprimir o mercado agolpes de decretos revolucionários. O mercado se mostrou mais forte do que eles supunham e eles estariamsendo compelidos a um sensato recuo. Mas isso não significa que devemos agora nos prosternar, embevecidos,diante do mercado, entronizando-o num altar.

O mercado é um indicador poderoso dos movimentos da realidade e os socialistas precisam aprender aouvi-lo e a respeitá-lo; precisam, contudo, encará-lo criticamente, nunca perdendo de vista os efeitos nocivosdo seu funcionamento, sua tendência a estimular uma competição desenfreada entre as pessoas, danificando

gravemente a dimensão comunitária na vida delas.

No caso brasileiro, o mercado tem apresentado características bastante insalubres: tem sido o solo emque se apóia um acentuado utilitarismo individualista, que serve ao fortalecimento da ideologia dominante,em conexão com os traços de autoritarismo do Estado e de elitismo da sociedade. O mercado brasileiro temfuncionado em condições que tem resultado na desvalorização do trabalho. Está criada uma situação na qual,objetivamente, trabalhar não compensa. Contar com os frutos de uma ação perseverante, a médio e a longoprazo, significa passar por tolo. Por isso, no Brasil – e na América Latina, em geral – um número crescente depessoas, privadas da esperança no espaço do trabalho, tratam de fazer uma “fezinha” no jogo. As elites trans-formaram a sociedade num vasto cassino, a Bolsa de Valores dá o exemplo de como agem os bem-sucedidos, apublicidade na televisão mostra que “o importante é levar vantagem” (cada um que trate de dar o seu golpe), o

“povão” tenta a sorte na jogatina. O argentino Jorge Luís Borges, observando uma situação semelhante à nossa, já escreveu, no seu estilo inconfundível: “Yo soy de um país donde la loteria es parte principal de la realidad”. Não tem sentido, evidentemente, esbravejamos contra essa conduta, na ótica míope dos moralistas. O brasi-

leiro iludido que joga no bicho ou na loto, que aposta no futebol ou nas corridas de cavalo, não está contribuin-do para superar a situação frustrante para a qual foi empurrado pelas classes dirigentes; mas está manifestandoseu inconformismo com o vazio do seu presente, está mostrando que apesar de tudo ainda consegue ansiarpor um futuro melhor. Em lugar de censurá-lo, de reprimir-lhe atividade, as forças mais comprometidas coma inovação democratizadora da sociedade brasileira precisam convencê-lo a apostar em algo maior, a apostarnum projeto político fecundo, nas possibilidades da ação coletiva transformadora, na mobilização organizadadas classes populares, na criação de uma nova sociedade.

A nossa re-flexão sobre o passado e o presente, sobre o novo e o velho na sociedade brasileira, nos leva areconhecer a contraditoriedade intrínseca tanto da inovação como da permanência. A expansão do mercadocapitalista, por exemplo, é uma realidade nova, que modificou o comportamento dos brasileiros, que distingueo Brasil atual do Brasil do século passado; no entanto, ela é também a reativação de uma realidade velha, dedegradação do trabalho, típica do sistema escravista, vigente entre nós no século XIX. Quer dizer: novo e velhose misturam, se interpenetram, se confundem. E, o que é pior, nos confundem.

A ideologia dominante se aproveita dessa confusão e distorce, habilmente, a nossa relação com as três di-mensões temporais da nossa realidade: com o passado, o presente e o futuro. O passado tende a ser despido detudo aquilo que ele tem de inquietante, de seus problemas irresolvidos, de suas aspirações sufocadas e renasci-das, daquilo que Walter Benjamin caracterizava como os “sinais” que ele nos envia para ser “redimido”; passa a

ser evocado, utilitariamente, apenas nos elementos em que ele serve para fortalecer convicções estabelecidas,para confirmar o que está estratificado no presente.

O passado é manipulado, é privado da sua respeitabilidade, não é levado a sério. As pessoas que se dizem

2

Page 124: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 124/202

   P  e  n  s  a  m  e  n   t  o   F   i   l  o  s   ó   f   i  c  o

cristãs acabam se tornando coniventes, por desinteresse e esquecimento, com a destruição de alguns marcoshistóricos da expressão do cristianismo brasileiro: a Sé da Bahia, construída no séc. XVI, foi demolida em 1933,para dar passagem aos bondes da Light; a igreja edificada no atual Pátio do Colégio no séc. XVII pelos jesuítas,em São Paulo, foi mal conservada e desabou; as igrejas coloniais de São Pedro e do Bom Jesus do Calvário, noRio de Janeiro, foram derrubadas para permitir a criação da Avenida Presidente Vargas (por ordem do ...Pre-sidente Vargas). O mais crasso utilitarismo levou gente da TV Record, de São Paulo, a apagar gravações dechorinhos de Jacob do Bandolim em teipes que em seguida foram aproveitados para a gravação de comerciais.Diante desse quadro tétrico, o poeta Carlos Drummond de Andrade desabafou, uma vez: “Joga-se fora, queima-se, vende-se aquilo, porque temos horror ao passado, e o futuro não nos interessa”.

O que conta é o presente imediato. O que nos interessa são os impulsos do momento. A ideologia dominantesó nos dá de comer a pastinha pasteurizada da “atualidade”. Diariamente somos bombardeados por dezenas,centenas de informações, dados, cifras, notícias, “novidades” que se exaurem com vertiginosa rapidez e quasesem deixar resíduos. As imagens se sucedem, se atropelam e acabam por se neutralizar umas às outras. Osacontecimentos competem uns com os outros, como se cada um deles estivesse empenhado em monopolizar

123   P  e  n  s  a  m  e  n   t  o   F   i   l  o  s   ó   f   i  c  o

Page 125: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 125/202

nossa atenção, desobrigando-nos de pensar no conjunto deles, na significação que adquirem quando se ar-ticulam. A fragmentação e a dispersão obscurecem o sentido que pode ser enxergado na realidade quando areconhecemos como um processo.

Na medida em que a ideologia dominante dificulta o reconhecimento da realidade como um processo, ofuturo se torna ou inteiramente aleatório ou então completamente predeterminado pela fatalidade; o presentecarece de sentido, não desemboca em cosa alguma, não resulta em nada, se esgota no instante; e o passadoé destituído de qualquer interesse mais sério, pode ser manipulado de acordo com a eventual conveniênciamomentânea do freguês, pode ser desprezado como inútil (o movimento do conhecimento pode acreditar quenão depende dele).

Expulso de área das nossas preocupações, o passado se retira, aparentemente sem resistir, mas volta, emseguida, pela porta dos fundos: revestido de armadura, empunhando a bandeira de luta do arcaico, ele nosinvade. Nossas cidades crescem, exibem edifícios modernos, impõem ao país uma dinâmica modernizadora, po-rém o espaço urbano vai sendo ocupado por massas que fogem da miséria do campo e trazem para dentro dasfortalezas da modernidade a dura realidade do atraso rural. A cidade não elimina o campo: devasta-o, mas aomesmo tempo o incorpora, fica impregnada dele. O autoritarismo cria novas formas de violência, sem, contudo,prescindir das antigas. Os grandes banqueiros, os grandes industriais repetem atitudes dos grandes fazendeiros;os gerentes de pessoal reeditam os capatazes. Na política, os populistas se parodiam uns aos outros; as palavras

de ordem dos demagogos moralistas de hoje parecem uma gravação em videoteipe das palavras de ordem dosdemagogos moralistas de ontem e anteontem.

A própria esquerda, apesar de seu compromisso visceral com a transformação profunda da sociedade, ape-sar de sua maior disposição subjetiva no sentido de se abrir para o novo, tem enorme dificuldade de escapar aesse vicioso “eterno retorno do mesmo”: muitos dos seus critérios se acham envelhecidos, se mostram estreitos,inadequados às condições criadas nestas últimas décadas.

 Nesta hora é que, mais do que nunca, vale a pena recordarmos a advertência de Goethe:

“Quem desconhece o passado, condena-se a repeti-lo”. 

4

Page 126: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 126/202

   P  e  n  s  a  m  e  n   t  o   F   i   l  o  s   ó   f   i  c  o

Proponho que, ao menos provisoriamente, nós estabeleçamos uma distinção entre o “burguês” eo “homem burguês”.

O “burguês”, tal como nós o conhecemos, é o proprietário dos grandes meios de produção. Trata-se deuma categoria sociológica abrangente, que inclui diversas modalidades: o empresário, o banqueiro, o donode uma cadeia de lojas, etc.

Para nós, o “burguês” é sempre um outro: é um tipo humano que controla utilitariamente a vida social ecuja hegemonia nós questionamos.

O “homem burguês” é outra coisa. E uma designação muito mais abrangente do que a designaçãoanterior. Refere-se ao variadíssimo conjunto de tipos humanos que apresentam determinadas carac-

terísticas sem as quais não conseguiriam sobreviver na sociedade burguesa, tal como ela funciona,com base no modo de produção capitalista.

A categoria “homem burguês” assinala determinados elementos que aparecem inevitavelmente nos di-versos tipos humanos que vivem nas sociedades em que a burguesia é classe dominante.

O “homem burguês” é o indivíduo autônomo, empreendedor e competitivo: é o indivíduo que aprecia suaprópria independência (ainda que ilusória), orgulha-se de sua capacidade de empreender coisas por vontadeprópria e procura se afirmar pessoalmente em competição com os outros.

Para ter essas características, o “homem burguês” tropeça - sempre! - em dificuldades para sen-

tir-se plenamente integrado na comunidade humana. Ressente-se de conflitos entre o preço do iso-lamento, pago pela independência, e a sensação de carência, a frustração, a falta de uma dimensãocomunitária mais vigorosa na sua existência quotidiana. Esses conflitos excluem a possibilidade deque ele constitua uma unidade relativamente coesa.

O “Homem Burguês”

e os Valores Éticos

125

Page 127: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 127/202

O “homem burguês”, por força das condições sociais em que vive, está, então, ao que parece, con-denado a ser um indivíduo mais acentuadamente dividido do que os tipos humanos que encontramosem outras épocas históricas.

Para compreendê-lo, precisamos nos debruçar sobre suas complicações, sobre sua divisão interior, nãocomo o cientista que observa um fenômeno tido como “natural” e “objetivo”, mas com espírito crítico eauto-crítico. Partindo da premissa de que o “homem burguês” somos nós.

Não se trata, absolutamente, de uma auto-flagelação masoquista; trata-se de admitir que no nosso pon-to de partida pertencemos à sociedade que contestamos. Também não é o caso de, ao reconhecermos emnós as características do “homem burguês”, adaptarmo-nos cinicamente ao seu “modelo” e renunciarmosa criticá-lo. O desafio está em fortalecer a consciência contestadora, desfazendo as ilusões que a levam apressupor sua segura superioridade sobre o que ela contesta.

Nós, socialistas, nos equivocamos com muita freqüência porque pressupomos em nós as qualidades do“Homem Novo”. É bastante provável que alguns elementos embrionários de um novo tipo humano efetiva-mente já existam esparsamente em alguns dos nossos melhores companheiros. Contudo, seria temerárioconsiderarmos consumada a mudança.

Não devemos perder de vista o fato de que a nossa rebeldia é, em princípio, viabilizada e condicionada porcritérios, armas e instrumentos que nos são proporcionados pelo contraditório universo da cultura produzidasob a hegemonia da burguesia.

Para que venha a existir um dia algo que possa ser chamado de “o Homem Novo” será preciso quevenha a ser criada, provavelmente em âmbito mundial, uma sociedade efetivamente nova, baseada emum novo modo de produção.

Isso, como sabemos, já tem sido tentado, porém devemos reconhecer que ainda não foi, de fato, conseguido.

6

Page 128: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 128/202

   P  e  n  s  a  m  e  n   t  o   F   i   l  o  s   ó   f   i  c  o

Creio que não é razão para nós, socialistas, nos desesperarmos. Afinal, o capitalismo levou mais de cinco sé-culos sendo experimentado até começar a funcionar eficientemente (com sua perversa eficiência!). O socialis-mo moderno tem apenas cerca de duzentos anos, é natural que ainda tenha uma boa caminhada pela frente.

Não temos, contudo, que esperar a organização da sociedade mais justa e mais humana que o socialismo estásendo convocado para nos oferecer para aprofundarmos nossas críticas à atual sociedade capitalista e a algumasdas características que, embora estejam presentes em cada um de nós, não nos agradam no “homem burguês”.

De certo modo, nos damos conta de que o combate ético e político que travamos na sociedade acontece,também, em determinados momentos, dentro de nós mesmos: O movimento das contradições subjetivas écondicionado pelo movimento das contradições objetivas, mas igualmente o condiciona, através de inicia-tivas, escolhas, decisões.

O velho Marx, nas “Teses sobre Feuerbach”, já falava na ação dos homens transformando a sociedade e na“autotransformação” (Seibstveränderung) dos sujeitos. A Segunda não decorre automaticamente da primeira.

Karel Kosik, na Dialética do Concreto , nos lembra isso, quando se refere ironicamente à figura do “comis-sário do povo” como um sujeito que acredita ser a própria encarnação da Revolução e por isso concebe a suaatuação como a de alguém que é portador da “verdade” e quer levá-la aos outros, numa via de mão única,

de tal modo que a resistência do interlocutor a uma assimilação rápida e passiva da “doutrina” lhe parecerásempre a manifestação de um John Maynard Keynes. Durante algumas décadas, os dirigentes dos Estadoscapitalistas precisaram fazer algumas concessões ao rival que emergia nas experiências socialistas. Com ofim da União Soviética, contudo, o quadro mudou e o capitalismo voltou a assumir o discurso franco quetinha nos tempos do velho Marx. E isso, curiosamente, voltou a conferir uma vigorosa atualidade às críticasque o autor do Capital fazia ao modo de produção que ele analisava no século XIX.

O entusiasmo pela expansão do mercado dissolve qualquer preocupação com o agravamento das desi-gualdades sociais. Os valores intrinsecamente qualitativos sofrem uma pressão que atinge todos os valores:são quantificados, medidos, reduzidos a cifras, traduzidos em dinheiro, transformados em mercadorias.

127

Page 129: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 129/202

O espaço da ética, das convicções subjetivas capazes de mobilizar a alma por inteiro, sofre um esvaziamento.

A subjetividade do “homem burguês” está dilacerada demais para proporcionar um solo confiável, umchão firme para a construção de uma ética convincente. A própria conformação subterrânea dos nossos im-pulsos vitais vem sofrendo a pressão deformadora da hipercompetitividade. Tal como a vida está organizada,impregnada pela lógica do mercado, antes mesmo de poderem refletir os sujeitos individuais já se vêempostos numa arena que os obriga a enfrentar exigências contraditórias.

Precisamos cultivar relações humanas verdadeiras para tentarmos superar nossa solidão, mastambém nos vemos em situações nas quais nos servimos utilitariamente das pessoas, manipulando-as, para alcançarmos nossos objetivos.

Comovemo-nos com a recomendação cristã de que cada um ame o próximo como a si mesmo, porémsomos obrigados a nos proteger contra a vizinhança. Emocionamo-nos com as crianças abandonadas na rua,mas nos assustamos e nos irritamos com os “trombadinhas”. O egoísmo se cristaliza numa carapaça quetende a sufocar o sentimento da solidariedade.

 Virtudes e vícios se misturam. Inteligência pode ser malandragem, generosidade pode ser burrice. Um cer-to calculismo espírito contra-revolucionário. Dispensando-se de enfrentar o desafio da “autotransformação”,

o “comissário do povo” tende, assim, a pressionar e reprimir aquele com quem dialoga (o “outro”).

Na realidade, a deficiência do espírito autocrítico é sempre a expressão de uma falta de aprofunda-mento do espírito crítico. E nós, socialistas, sem deixarmos de ser variantes do “homem burguês”, pode-mos demonstrar uma riqueza de possibilidades de fortalecimento da consciência crítica e autocríticamuito maior do que aquelas que se manifestam em outras variantes da espécie dos indivíduos autôno-mos, empreendedores, competitivos e divididos.

Somos uma variante que - acreditamos - pode superar criticamente algumas limitações e distorções ide-ológicas que aparecem nas avaliações usuais feitas pelas demais variantes. Podemos, por exemplo, ir maisfundo em nossa análise da atual “crise dos valores”. Podemos ser mais “radicais” (naquele sentido em que

Marx disse que ser radical era ir à raiz das coisas). Podemos apontar algumas causas estruturais subterrâneasonde os moralistas se limitam a bradar protestos e denúncias conjunturais, a propósito de casos esparsosescandalosos (como o do juiz ladrão, o do banqueiro mentiroso, ou o do atleta dopado).

Sem reduzir a criminalidade a mera decorrência da miséria (explicação sim- plista de um esquema reducionista), podemos evitar que as árvores nos im- peçam de enxergar a floresta e podemos apontar a ligação concreta - inegável- entre o complexo quadro da delinqüência (que crimes aumentam, em quesetores da sociedade, quais as penas, aplicadas a quem, onde as impunidades)e o agravamento do abismo entre ricos e pobres, com a preservação cada vez

mais truculenta dos privilégios dos detentores do poder e da riqueza.

Num plano mais abstraio, mais filosófico, podemos apontar igualmente para a influência das condiçõescriadas pelo capitalismo no agravamento da “crise dos valores” em âmbito mundial.

O modo de produção criado pela burguesia - o capitalismo - revelou-se economicamente eficaz, porémmoralmente problemático. A observação foi feita pelo insuspeito lorde inglês se infiltra, gélido, até mesmona cálida intimidade dos afetos. O “homem burguês” é um ser eticamente irresolvido.

Mas justamente na aguda percepção dessa situação, na possibilidade de compreender historicamente oquadro em que nos movemos, nós, os socialistas, inconformados com esse impasse. Temos uma vantagem

potencial decisiva sobre os outros observadores críticos do quadro atual da crise dos valores éticos: nossoponto de vista nos permite uma maior radicalidade na compreensão da natureza da crise, uma melhor visãode conjunto no entendimento da sua dinâmica e na proposta de ação capaz de superá-la concretamente.

8

Page 130: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 130/202

   P  e  n  s  a  m  e  n   t  o   F   i   l  o  s   ó   f   i  c  o

O desafio que nós, socialistas, enfrentamos agora, nos umbrais do século XXI, quer dizer, do início doterceiro milênio, é o de associarmos de maneira convincente a modéstia metodológica, o espírito autocrí-tico que nos obriga a encararmos toda a dramaticidade da irresolução ética que nos envolve (embora nosinsurjamos contra ela) com a ousadia política, com a coragem crítica e a disposição para a luta, para a açãotransformadora, sem a qual jamais conseguiremos construir uma nova sociedade e permitir a formação deum novo tipo de ser humano.

De certo modo, estou retomando aqui uma idéia de Lucien Goldmann. Quando analisou a obra de BlaisePascal, o marxista Goldmann ficou impressionado com a teoria da “aposta”.

Pascal dizia que as pessoas precisavam enxergar um Absoluto para organizar suas convicções, estabele-cendo uma escala de preferências, uma hierarquia de valores. Para Pascal, o Absoluto era Deus. Como existempessoas honestas que não foram tocadas pela graça divina e não acreditam em Deus, Pascal propunha umaargumentação fundada sobre a razão para convencê-las de que valia a pena acreditar que Deus existe.

Dentro de seus limites, a razão - modestamente - serviria para induzir os não crentes a apostarna existência de Deus.

Pascal explicava: se você aposta que Deus não existe e Ele de fato não existe, você acertou mas nãoganhou nada. Se você aposta que Ele existe, porém Ele não existe, você perdeu. Se você aposta que Ele nãoexiste, e Ele realmente existe, você perdeu (e se trata de uma perda grave). Então a única aposta que lhetraz a possibilidade de ganhar é aquela em que você aposta que Ele existe e Ele de fato existe (você ganhao almejado Absoluto, um sentido para a sua vida).

Goldmann escreveu que a nossa situação como socialistas, no presente, é análoga à de Pascal no tumultobarroco do século XVII: lutamos por uma nova sociedade, baseada num novo modo de produção, e, no en-tanto, não podemos saber exatamente como funcionará essa nova sociedade e como chegaremos a ela.

Se Marx, que era Marx, se recusava a preparar receitas para os caldeirões

do futuro, como poderíamos nós alimentar a pretensão de definir o modeloque pode vir a engendrar o novo homem? O que podemos fazer é, na linha daargumentação pascaliana, relembrada por Goldmann, conferir fundamentaçãoracional à nossa aposta: se apostarmos que o capitalismo (com todo o seu cor-tejo de inumanidades) veio para ficar e isso de fato acontecer, estaremos todosmuito prejudicados. Se, porém, apostarmos que uma nova sociedade pode vira ser edificada de modo a permitir um revigoramento de valores intrinseca-mente qualitativos (os autênticos valores humanos), ou de modo a permitir asuperação prática consumada do “homem burguês”, e isso efetivamente vier aocorrer, então teremos vencido a batalha pelo direito de fazermos nossa pró- pria história e teremos imposto uma fragorosa derrota aos que vem fazendo(e nos impingindo) a história deles.

129

Page 131: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 131/202

A utopia nasceu sob o signo da ambigüidade. Na própria origem da palavra se encontra um livro que expressaao mesmo tempo inconformismo e impotência: a Utopia , de Thomas Morus (1478-1535), denunciava no começodo século dezesseis (mais precisamente, em 1516) a ociosidade parasitária da aristocracia privilegiada e o culto dodinheiro, combatia tanto o feudalismo como o embrião do capitalismo, porém não conseguia deixar de reproduzir,no interior mesmo do protesto, algumas das características mais repressivas do quadro institucional vigente.

O navegador português Rafael Hitlodeu – personagem criado por Thomas Morus – fala das excelências de

uma ilha onde morou durante cinco anos e na qual a propriedade privada estava abolida em proveito do in-teresse coletivo. Na ilha de Utopia, as condições de trabalho são descritas como muito mais humanas que asda Inglaterra da época; além disso, os utopianos desprezam o ouro e a prata, usam-nos para fabricar urinóis.Todos trabalham e os bens produzidos são trazidos para um mercado, onde os chefes de família encontramsempre aquilo de que precisam, sem pagar. Rafael Hitlodeu informa, no entanto, que a felicidade alcançadana ilha e a justiça reinante dependem da rigorosa vigilância do Estado.

“O único meio de distribuir os bens com igualdade e justiça e promover a felicidade do gênero humano” – sus-tenta o navegador – “é abolir a propriedade”. Mas o funcionamento de uma sociedade fundada sobre o trabalho,conforme o exemplo da Utopia , pressupõe um rígido controle da vida das pessoas pelo Estado. As relações entreos indivíduos são claramente hierarquizadas já no âmbito da família: “as mulheres servem a seus maridos, ascrianças servem a seus pais e mães, os mais jovens servem aos mais velhos”. Servir é a palavra chave: os de baixo

se põem a serviço dos de cima e o comando supremo a que todos obedecem serve a Deus e à comunidade.

 As Ambigüida

0

Page 132: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 132/202

   P  e  n  s  a  m  e  n   t  o   F   i   l  o  s   ó   f   i  c  o

des da Utopia

Sintomaticamente, na base da pirâmide dos “serviços”, a sociedade “justa” da ilha admite a necessidadeda existência de ...escravos. A sociedade – argumentam as autoridades de Utopia – não poderia funcionarsem a realização de determinadas tarefas especialmente duras, penosas, que repugnam aos cidadãos bemformados: e é para se desincumbirem de tais tarefas que os escravos são imprescindíveis. A escravidão, con-tudo, põe a nu a contradição em que se baseia a comunidade idealizada como “perfeita”. O preço da suma

 justiça acaba sendo uma suma injustiça.

E o preço do bem-estar e da segurança dos cidadãos acaba sendo a exigência de adaptação a um sistemasufocante, que se imiscui na vida privada e vigia o indivíduo mesmo na esfera da sua mais estrita intimidade,impondo-lhe, por exemplo, o tipo de roupa que ele deve usar. O Estado se mostra particularmente atentopara a punição dos adultérios: quem comete adultério é punido com a degradação à condição de escravo e,se reincidir, é condenado à morte.

Um século depois da Utopia  de Thomas Morus, são escritas duas novas fantasias inequivocamente inspi-radas por ela: a Nova Atlântida , de Francis Bacon (1561-1626), e a Cidade do Sol , de Tommaso Campanella(1568-1639). E em ambas volta a se manifestar a ambigüidade intrínseca da utopia como gênero. Por umlado, a profunda insatisfação com a situação existente, com a organização da sociedade, com a ideologiadominante; por outro lado, a reprodução de critérios comprometidos com a ideologia contestada e com aestreiteza de horizontes da sociedade que estava sendo recusada.

Para a Revista “Presença” (nº8)

131

Page 133: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 133/202

Na Nova Atlântida , Bacon inicia a descrição (a obra ficou inacabada) de uma comunidade na qual a im-portância da investigação científica era efetivamente reconhecida e o Estado – ao contrário do Estado inglêsda época, que estava sendo implicitamente criticado – investia recursos significativos no financiamento daspesquisas empreendidas pelos cientistas. A ciência era concebida como grande instrumento de libertaçãoda humanidade. Mas o conhecimento, do ângulo de Bacon, não valia por si mesmo: só era precioso por suautilidade. Bacon era o pensador da indústria nascente e estava absolutamente convencido de que “saberé poder”. Essa convicção o levava a encarar com desconfiança e até com hostilidade as reflexões que nãoapontavam na direção de resultados práticos positivos e insistiam em empreender grandes vôos especula-tivos. “Não temos de dar asas à inteligência humana” – explicava – “mas prender-lhe pesos que funcionemcomo lastro, impedindo-a de saltar e voar”. Os antigos gregos, para Bacon, eram cientistas de talento, porémficavam um tanto prejudicados porque eram “dados a controvérsias”. Por isso, é natural que o filósofo inglêsconcebesse a sua Nova Atlântida como uma sociedade racionalmente organizada, voltada para a libertaçãodos homens através da ciência, mas ao mesmo tempo apresentasse a ciência como um poderoso instrumentodisciplinador, capaz de atrelar a liberdade espiritual dos indivíduos às conveniências de um Estado guiadopelos princípios do utilitarismo, em termos que revitalizavam, afinal, procedimentos autoritários típicos doEstado absolutista, que prevalecia na época.

A Cidade do Sol, do inquieto padre calabrês Campanella, contém o pretenso relato da descoberta por umalmirante genovês de outra comunidade racionalmente organizada numa região próxima do Ceilão, onde

se instalou um povo que veio da Índia, fugindo da opressão e da corrupção. Chagados ao lugar, segundo onarrador, “todos resolveram começar uma vida nova, filosófica, e puseram todas as coisas em comum”. Talcomo na fantasia de Thomas Morus, aparece aqui uma expressão de mal-estar em face do mundo circun-dante, plasmado de acordo com a lógica inumana da propriedade privada.

Mas o livro de Campanella, na sua idealização da sociedade perfeita, solidária e justa, também cede àpressão dos valores instituídos em seu tempo e acolhe elementos do mais crasse autoritarismo. A Cidadedo Sol tem sobre a Utopia a vantagem de não possuir escravos, porém é governada com mão de ferro porum príncipe-sacerdote que encarna a completa unidade do poder temporal e do poder espiritual; e essecomando se estende a tal ponto que dirige até as opções matrimoniais das pessoas: os casamentos devemse realizar de acordo com o interesse da comunidade. Sábios preceptores zelam por cruzamentos capazes

de gerar crianças sadias e moderar os excessos: mulheres gordas devem casar com homens magros, homensbaixos devem casar com mulheres altas, etc.

Dois séculos mais tarde, a situação mudou bastante. O modo de produção capitalista chegou, viu e ven-ceu. A burguesia, instalada no poder, controlava o movimento da sociedade, comprava tudo, reduzia tudoao dinheiro. Os espíritos mais sensíveis se assustavam com a mercantilização da vida, com a quantificação– e destruição – de todos os valores. Os artistas se sentem mal num universo que gira em torno do mercado.O escritor Goethe leva o protagonista de seu romance Wilhelm Meister  a ingressar numa sociedade secretabeneficente (a “Sociedade da Torre”) que ampara os jovens de talento: para impedir que os moços sejamtriturados pela dinâmica implacável do capitalismo, ela os manda para uma colônia chamada “ProvínciaPedagógica”. É a utopia que está renascendo, em oposição subjetiva à sociedade capitalista.

As novas condições estimulam o esforço no sentido de conferir maior precisão ao sonho socialista,porém os novos utopistas não são menos contraditórios que seus precursores. Henri de Saint Simon(1760-1825) é conde e é republicano; denuncia com firmeza as atividades econômicas parasitárias, masganha dinheiro com a especulação imobiliária no norte da França. Quer ir além da mera crítica negati-va e pretende ser um “organizador”. Preconiza um socialismo no qual o governo deixaria de caber aos“burgueses” (advogados, militares, gente que vive de rendas) e passaria aos “industriais” (categoria queengloba tanto os comerciantes e proprietários das fábricas como os técnicos e trabalhadores). Por umlado, é o teórico romântico de um renascimento do cristianismo primitivo; por outro (como notou WalterBenjamin), é um antecipador dos modernos tecnocratas.

O caso de Charles-François Fourier (1772-1837) é particularmente interessante. Em Fourier se expressa,

claramente, o protesto das massas operárias contra as condições inumanas da exploração do trabalho. Emseu ataque às deformações intrínsecas da “civilização”, em sua crítica dos costumes, em sua denúncia dasideologias “racionalizadoras” que servem para desqualificar as paixões e para ocultar as contradições darealidade, Fourier se agiganta. Na corajosa caracterização da expressão das mulheres pelas instituições “ci-

2

Page 134: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 134/202

   P  e  n  s  a  m  e  n   t  o   F   i   l  o  s   ó   f   i  c  o

vilizadas”, ele abre caminho para o feminismo. No “cálculo da atração passional”, ele aborda pioneiramente– quase um século antes de Freud – os temas explosivos da sexualidade humana; entrevistando as pessoasdo seu bairro (e assegurando a reputação de louco), pergunta-lhes o que gostam de fazer na cama e se an-tecipa em um século e meio ao relatório Hite.

A minuciosa concepção do falanstério desempenha um papel decisivo no pensamento de Fourier: é porqueele acredita firmemente na edificação de uma comunidade digna dos melhores anseios dos homens que pas-sa a dispor de um termo positivo de comparação para desenvolver sua análise crítica impiedosa da sociedadeem que vivia. Na medida do possível, todas as características do falanstério tem de estar previstas; Fourier asexplica, pormenorizadamente, aos milhares de homens ricos, poderosos, influentes, de quem espera – inu-tilmente – apoio para a criação de um falanstério experimental: mil e oitocentas criaturas viverão felizesem habitações conjugadas, protegidas contra as variações do tempo, trabalhando em condições agradáveis,alimentando-se de iguarias deliciosas, em refeições coletivas (livres do tédio dos jantares em família).

No entanto, as energias investidas na idealização do falanstério estão sendo desviadas da ação políti-ca que poderia vir a influir, de fato, decisivamente, na história. Na medida em que se decepcionou com aRevolução Francesa e concluiu que as revoluções em geral não passavam de tumultos estúpidos, Fourierfoi levado a fazer uma opção metodológica de base que inviabilizava seu projeto de transformação dasociedade: uma opção que o induzia a esperar apoio e financiamento para a construção do falanstério

por generosa decisão de pessoas como o escritor romântico conservador Chateaubriand, a viúva do poetaLorde Byron, Simon Bolivar, George Sand, o Presidente de São Domingos (Beyer) ou diversos príncipesrussos e banqueiros franceses.

Marx, grande admirador de Fourier, repeliu o projeto do falanstério como insensato. Para Marx, os caminhosda mudança só podiam ser os caminhos da revolução, da ação prática, política, voltada para a mobilização dostrabalhadores, para a organização das massas do povo. Do ângulo da sua posição, comprometida com o projetorevolucionário, Marx não podia deixar de criticar as ambigüidades de uma postura utópica que acarretava umasubestimação das tarefas que os ativistas políticos precisariam executar na articulação dos movimentos dos váriossetores da sociedade. Se, por um lado, a utopia revigorava a dimensão do protesto contra o existente no planoda imaginação, por outro lado ela desviava a atenção dos rebeldes, atrapalhava-os nos esforços que precisavam

desenvolver para identificar os focos de resistência à mudança e para combater os adversários concretos do pro- jeto transformador. Para Marx, a utopia não conseguia ir além da interpretação crítica do presente, já que suaconcepção de futuro permanecia abstrata e não havia indicação de como concretizá-la; a utopia incorria, assim,nos limites do contemplativismo, que as “Teses sobre Feuerbach” reconheceram em toda a filosofia que vinha sefazendo até o começo do século XIX. “Os filósofos” – escreveu Marx – “tem se limitado a interpretar o mundo”; eacrescentou, em seguida: “trata-se de transformá-lo”.

A atitude de Marx e Engels em relação à utopia é de compreensão e simpatia, mas ao mesmo tempo secaracteriza pela firme recusa das veleidades dos utopistas que interferem na política. Para os fundadores doautodesignado “socialismo científico”, a utopia, em meados do século passado, já tinha cumprido seu papelhistórico, como expressão de anseios nobres e justos; dada a sua ambigüidade estrutural, contudo, ela nãopodia mais exercer qualquer influência positiva na teoria adequada à luta pela superação da propriedade

privada: seus efeitos sobre a consciência dos combatentes, nas novas condições de combate, passavam a ser,pura e simplesmente, confusioniostas.

Nós, porém, que vivemos uma história que Marx e Engels não puderam viver, que vimos coisas queeles não puderam ver, somos compelidos a reexaminar essa atitude assumida pelos dois pensadoresà luz de novas exigências.

133

Page 135: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 135/202

 Pensamento Filosófico1   3  4 

Page 136: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 136/202

   P  e  n  s  a  m  e  n   t  o   F   i   l  o  s   ó   f   i  c  o

Seria, evidentemente, uma temeridade tentarmos aqui formular um juízo, uma avaliação global, a res-peito da significação do trabalho realizado por Leopold von Ranke, o historiador alemão que tanto se desta-cou, no século XIX, não só no exame da história dos povos germânicos e latinos, mas também na polêmicacom os defensores da concepção romântica da história. Ranke, como é notório, reagiu com irritação contraas “liberdades” que o romancista Walter Scott tomava com o passado e exigiu que se fizesse uma recons-

tituição exata daquilo que “realmente aconteceu”. Fiel aos princípios que proclamava, esmiuçou paciente-mente no arquivo dos Frari os relatórios dos embaixadores da República de Veneza, abrindo caminho paraque os investigadores subseqüentes aperfeiçoassem o seu trabalho na rigorosa exploração dos fatos.

 Os méritos de Ranke como historiador parecem sólidos e vêm sobrevivendo ao reconhecimento dos limi-

tes de seus horizontes. Ranke era um conservador, se apoiava numa fé inabalável na Providência Divina efez uma história que freqüentemente se restringiu aos aspectos políticos-diplomáticos. Legou aos pósteros,contudo, indicações preciosas. O nosso Sérgio Buarque de Holanda – que todos admiramos – tinha grandeapreço pelo velho historiador alemão. Mesmo que no caso de Walter Scott sua irritação possa ser consi-derada descabida (afinal, a ficção tem seus direitos), não há como deixarmos de simpatizar com a recusade Ranke em face das “facilidades” em que incorriam os historiadores românticos (e ainda incorrem algunshistoriadores contemporâneos): é impossível empreender uma investigação histórica séria sem impor umfreio às formas mais arbitrárias do subjetivismos, que permitem ao historiador projetar acriticamente nopassado seus preconceitos, manipulando, com desenvoltura, tudo que pode ter acontecido, em função demíseras exigências utilitárias atuais.

Há, no entanto, no próprio coração da proposta metodológica de Ranke, um problema que não pode serignorado. No século XX, um compatriota do famoso historiador do século XIX – o ensaísta Walter Benjamin– investiu contra ele. De acordo com Benjamin, o programa de Ranke, independentemente das intençõescom que fora elaborado, acolhia uma ilusão funesta, uma automistificação desastrosa: o sujeito do co-nhecimento – o pesquisador atual – “cancelava” seu próprio condicionamento histórico, “abolia” os gravesenvolvimentos decorrentes de sua situação presente, ignorava as vicissitudes da sua condição humana e,por um passe de mágica, se elevava a um ponto de vista “divino”, que lhe permitiria observar com “isenção”

e completa “objetividade” o passado. O próprio Ranke sublinhava o paralelismo entre “o ponto de vista deDeus” e a postura metodológica que predominava para os historiadores, quando ensinava que “todas asépocas estão igualmente próximas de Deus”.

Benjamin partia da convicção que a condição humana é diferente da condição divina e admitia que aspossibilidades de autoconhecimento para o homem devem partir de uma opção metodológica que assumaessa diferença. Se o nosso conhecimento do passado pode chegar a ser “objetivo”, ele precisa por começara elucidar as condições objetivas em que se move a nossa subjetividade: precisamos esclarecer quais são osnossos pressupostos, as nossas opções, os nossos critérios, os nossos valores. O passado é sempre o nossopassado; e o nosso acesso a ele depende da posição que assumimos em face dos problemas do presente.Mesmo quando nos movemos numa direção universalizadora, mesmo quando nosso ponto de vista conse-

gue se tornar mais abrangente (mais universal), não deixamos jamais de ser nós mesmos, sujeitos particu-lares, humanos, historicamente condicionados.

Ranke

& Benjamin

135

Page 137: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 137/202

Seria possível reconstituirmos o que aconteceu no passado de maneira puramente objetiva? Se conse-guíssemos dispor de todos os documentos e fazer um elenco completo dos fatos e dos dados – objetivo que,em última análise, é inalcansável – ainda assim nos faltaria o conhecimento dos movimentos subjetivos doshomens, que aconteceram, eram significativos e não ficaram registrados: não teríamos acesso aos sonhos,aos medos, aos anseios, aos devaneios, às fantasias que os homens tiveram, que contaram para eles, porémnão chegaram a se exteriorizar objetivamente. Essas experiências humanas estariam, então, condenadas aser desprezadas e definitivamente esquecidas?

A relação da humanidade com o seu passado tem algo em comum com a relação de cada pessoa comsua própria infância, segundo Benjamin. Assim como indivíduo precisa chegar a compreender criticamentesuas experiências infantis para se libertar psicanaliticamente da cristalização neurótica de reações imatu-ras, a humanidade precisa se desvencilhar do arcaico que subsiste subterraneamente nela, precisa sacudiro conformismo que tenta dominá-la, precisa ativar a modesta carga messiânica que reaparece em cadageração, resgatando os anseios mais nobres das gerações precedentes.

É a luta que travamos no presente que nos impele ao esforço de captação dos sinais que o passadonos envia, dando conta de suas aspirações. “Redenção do passado e revolucionamento do presente”– escreve Krista Greffrath – “coincidem, para Benjamin”. A consciência capaz de insuflar eficazmen-te a ação transformadora depende de uma autotransformação, que, por sua vez, exige o exercício

da “rememoração” (Eingedenken), o resgate não só do que foi dito e feito, mas do que foi tentado,sonhado, desejado. Os atuais dominadores são os herdeiros da segurança e da “ordem” conquistadase mantidas pelos dominadores de ontem. Nós, que nos insurgimos contra o estado das coisas vigente,devemos recuperar as energias dos rebeldes que nos precederam.

A “rememoração” benjaminiana se identifica, de algum modo, em sua expressão mais extremada, como conceito de apocatástase, proposto pelo pensador Orígenes, que viveu na primeira metade do século III.O próprio Benjamin fez, explicitamente, essa aproximação, quando falou numa “apocatástase histórica”.Orígenes dizia que o poder de Deus era tão grande que, depois de salvar os justos, Ele, afinal, salvaria tam-bém os pecadores, encaminhando todos para o Reino dos Céus. Benjamin sustentava que, na mesma linha,a revolução devia se empenhar em promover uma espécie de “salvação” para todas as aspirações libertárias

do passado, que seriam, afinal, “redimidas”e simbolicamente realizadas pela humanidade. Caso a propostarevolucionária se limitasse a umas poucas reformas moderadas, ela não conseguiria suscitar entusiasmo,não seria capaz de ativar a “carga messiânica” da geração atual e deixaria a revolução – como observouSusan Buck-Morss – sofrendo de “impotência sexual”...

A infância de cada um de nós não coincide com o passado da humanidade. Segundo Benjamin, porém,na recuperação de sua própria infância, do seu passado individual, a pessoa exercita sua sensibilidade parase relacionar de modo mais humano com o passado em geral, com a riqueza inesgotável das contradiçõesdo passado. O importante não é o vivido em si: é o que a gente faz com ele. Quem se limitasse a reconstituirfielmente o vivido, em última análise, o estaria reificando, reduzindo-o à condição de coisa morta. Nãopodemos ignorar o movimento vivo que vem do vivido no passado e se prolonga, infinitamente, naquiloque estamos vivendo agora. Benjamin sublinha, na obra de Proust, o anseio de felicidade que, a partir do

presente, domina o material recordado. A “rememoração” é sempre uma faculdade exercida por homensconcretos, vivos, que não podem se abstrair de suas exigências e que, ao contrário, precisam saber assumi-las na única relação verdadeira que podem desenvolver plenamente com o passado.

Temos, então, em Ranke e em Benjamin duas posturas nitidamente contrapostas em face do nossotema: “História e Memória”. Em Ranke, a memória precisa ficar vigorosamente subordinada à ditadura daobjetividade, capaz de fazer da história uma ciência respeitável, séria. Em Benjamin, a objetividade nãopode pretender eliminar a subjetividade; e o sujeito, para se reconhecer no seu movimento objetivo, pre-cisa desenvolver na vida, na luta, uma memória lúcida e alerta, a “rememoração”, que ao mesmo tempoabre caminho para recuperar a história e (para usarmos a bem conhecida fórmula de Benjamin) insiste emescová-la a contrapelo.

6

Page 138: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 138/202

   P  e  n  s  a  m  e  n   t  o   F   i   l  o  s   ó   f   i  c  o

Marx é, sem dúvida, um dos pensadores mais famosos dos dois últimos séculos. Alguns de seus textosforam muito divulgados e são bastante conhecidos. Algumas de suas frases são citadas e repetidas ad nau-seam. Sua denúncia das contradições intrínsecas do capitalismo, sua proposta de superação revolucionáriado modo de produção capitalista e sua confiança no movimento operário são pontos de referência óbvios,sempre que o nome do autor de O Capital  é mencionado.

Há em Marx um teórico crítico da política e um teórico critico da economia que se expressavam em tex-tos acessíveis, que vêm sendo lidos com freqüência desde o final do século XIX. Mas há também um filósofooriginal e vigoroso que desenvolveu uma concepção do sujeito humano, uma concepção da práxis e umaconcepção da história que custaram a ser assimiladas e ainda hoje são avaliadas em termos acentuadamente

diversos por diferentes intérpretes.

As idéias de Marx sobre a ética estão inseridas no conjunto dessas suas concepções filosóficas que têm seprestado a debates e controvérsias entre seus exegetas. E, de maneira geral, não escaparam às divergênciasque se manifestam nas “ leituras” feitas tanto por críticos como por autodesignados discípulos (os “marxis-tas” , entre os quais Marx nunca se incluiu).

Como Marx concebia os valores éticos? Qual a função que ele lhes atribuía? Que papel desempenhavamna história e na ação política?

Com certeza Marx não era um “ moralista” . Para ele, o “ moralismo” era uma forma de ideologia

(termo que na sua obra indicava uma representação distorcida da realidade). Na esteira de Hegel, Marxentendia que o discurso sobre o “ dever ser” afastava o sujeito humano de uma correta compreensãodas exigências do “ser” e impedia os homens de fundamentarem de modo realista suas opções. Os ide-ais necessários, adotados pelas pessoas em suas iniciativas, não provinham de uma esfera “exterior” aoser. Eram “momentos” essenciais, inelimináveis, da própria dinâmica do ser. Por isto, Marx dizia que oscomunistas não pregavam normas morais.

Essa recusa de pregar moral foi acolhida por uma compreensível desconfiança. Tratava-se, afinal, de umaperspectiva amoral? De uma postura cínica?

Essa interpretação se fortaleceu quando foi associada a uma “leitura” da concepção materialista da his-tória que transformava o processo histórico, tal como Marx o concebia, num “determinismo econômico”.

 O genro de Marx, Paul Lafargue, marido de Laura, tem uma grande responsabilidade na difusão dessa tese “reducionista” : após a morte do sogro, Lafargue publicou um livro de grande sucesso intitulado precisamenteO Determinismo Econômico de Karl Marx.

Outras versões dessa teoria da história que reduzia o movimento da transformação da sociedade a umaconseqüência direta do desenvolvimento das forças produtivas e das mudanças necessárias das relações deprodução (teoria que era atribuída a Marx) podem ser encontradas entre “marxistas” de diversas tendências,como Karl Kautsky e George Plekhânov. E aparecem tanto nos escritos stanilistas como de social-democratas.

Às vezes, o “ reducionismo” era temperado com a enérgica valorização das iniciativas políticas dos sujeitosrevolucionários, como se vê em Lênin. No entanto, o esquema teórico que associava a dinâmica da economia

à intervenção transformadora do partido leninista continuava a excluir qualquer reflexão sobre os valoresmorais (que eram assimilados e absorvidos pelos valores políticos, determinados pelo partido revolucionário).

Ética Marxista

137

Page 139: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 139/202

Compreende-se, então, que os observadores situados fora do campo “marxista” tenham manifestado comfreqüência a suspeita (quando não a certeza!) de que a perspectiva de Marx era a de um amoralismo, querdizer, de um soberano desprezo pelos valores éticos.

Na realidade, contudo, a visão que Marx tinha dos valores éticos não era aquela que lhe atribuíam muitos dosseus seguidores e que era combatida por muitos dos seus críticos. Ele não era nem um cínico, nem um utilitarista deesquerda, empenhado em promover uma substituição imediata dos valores éticos à eventual utilidade pública.

Para se entender o que Marx pensa sobre a ética, é necessário recordar alguma das características da suaconcepção do homem. A seu ver, o sujeito humano se inventa, numa constante transformação do mundo e desi mesmo. Por sua atividade criadora, ele se expressa e pode ser conhecido, apesar do seu poder de ser surpre-endente. A chave para nos conhecermos a nós mesmos, então, seria, segundo Marx, essa atividade: a práxis.

A forma original da práxis, seu ponto de partida, é o trabalho. O homem se distingue dos animaisporque o trabalho humano é teleológico, quer dizer, depende de uma antecipação na consciência dosobjetivos a serem alcançados.

Os animais agem instintivamente, guiados por forças naturais. As células que a abelha faz na cera não sãoprevistas e planejadas previamente por ela; as casas construídas pelo arquiteto, contudo, existem em forma

de planta antes de serem construídas.

A partir da sua capacidade de prefigurar a meta que deseja alcançar, o sujeito humano produtor passa aenfrentar situações novas na sua atividade quotidiana de produção dos bens essenciais à sua vida. Passa aenfrentar situações que surgem – sempre! – no intervalo entre o momento de antecipação do objetivo e omomento da realização efetivo das ações que o alcançam.

Por isso, o sujeito humano é levado a se defrontar com questões que não podem ser resolvidas apenasinstintivamente, com desafios que exigem análises, ponderações e decisões conscientes. Os homens sabemque precisam fazer escolhas e que suas escolhas comportam riscos. Sentem, então, necessidade de definircritérios confiáveis para lhes proporcionar alguma segurança na hora de decidir o que é mais importante e o

que é menos importante para eles. Precisam estabelecer uma hierarquia de preferências. Isto é: valores.Nas formações sociais mais antigas que conhecemos, os valores destinados a regular a conduta dos

homens eram determinados pela coletividade e os indivíduos deviam obedecer ao que a coletividade lhesprescrevia. Não é casual que a palavra moral venha do latim mores (que significa “os costumes”) e que a pa-lavra ética venha do grego ethos (que também significava “os costumes”). Os valores coletivos, obviamente,precederam os valores individuais.

Somente após uma longa e sofrida história, os indivíduos começaram a se tornar relativamente au-tônomos. A burguesia, como classe, desempenhou um papel decisivo nesse processo. O burguês precisade espaço para tomar suas iniciativas, para estar no lugar certo na hora exata, onde e quando ele podecomprar mais barato e vender mais caro.

Insurgindo-se contra os sistemas de valores pretensamente fundados em diferenças “naturais”, fixas,eternas, a burguesia lutou por uma sociedade na qual valores novos pudessem se afirmar através dacomposição. Os privilégios dos nobres com “sangue azul” passaram a ser cada vez mais questionados. NoDon Quijote , de Cervantes, já se lê que um homem não é mais do que outro a não ser que faça mais doque o outro. É o próprio Dom Quixote quem diz: “ Sábete, Sancho, que no es um hombre más que outro sino hace más que outro” (Livro I, cap.18). E Sancho, mais adiante, confirma ter assimilado a lição, quandoafiança: “ Cada uno es hijo de sus obras” (Livro I, cap. 47).

A busca dos novos valores se desenvolveu por múltiplos caminhos, paralelamente às experiênciaspráticas que iam sendo feitas no encaminhamento de transformações econômicas e políticas. Até que se

chegou a uma forma de organização da sociedade que girava em torno do mercado, um modo de produ-ção baseado na generalização da produção de mercadorias: o capitalismo.

8

Page 140: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 140/202

   P  e  n  s  a  m  e  n   t  o   F   i   l  o  s   ó   f   i  c  o

Na avaliação feita por Marx, esse processo viabilizou, por um lado, um movimento de autonomização dosindivíduos, cujas conseqüências são irrevogáveis; e, por outro, ele promoveu uma gravíssima pulverização dacomunidade, uma terrível destruição da dimensão comunitária da vida.

Tendo vivido a experiência extremamente enriquecedora da liberdade individual, os seres humanos, emsua grande maioria, não conseguiriam ser plenamente felizes, hoje, e não se sentiriam pessoalmente reali-zados, numa comunidade tipo formigueiro ou num coletivo tipo quartel. No entanto, também nas condiçõescriadas pelo capitalismo, as pessoas dão sinais inequívocos de uma profunda insatisfação. O mundo, sob o ca-pitalismo, se tornou um lugar assustador. Uma imensa prisão ao ar livre, nas palavras do marxista Adorno.

Na medida em que tudo tende a virar mercadoria, a ter um preço a ser vendável, a quantidade invade aesfera da qualidade e os valores intrinsecamente qualitativos deixam de ser reconhecidos. Tudo vai passandoa se traduzir em dinheiro. Porém Marx observa que o dinheiro, equivalente universal na troca de mercado-rias, não é e nunca pode ser verdadeiramente um valor, já que ele nos remete sempre a algo que não é ele,a algo que nós podemos comprar com ele.

A redução generalizada de tudo ao dinheiro, portanto, não leva à criação de novos valores, capazes desubstituir os antigos valores historicamente envelhecidos e reconhecidos como falsos ou insuficientes.Os velhos princípios éticos não têm mais eficácia porque não existem mais as antigas coletividades que os

faziam prevalecer através dos costumes. E os novos valores não conseguem se firmar porque não estão emcondições de constituir novos mores, um novo ethos.

 Valores que durante muitos séculos serviram de base sólida para princípios que inspiravam respeitoaos seres humanos e que, reformulados, repropostos, modificados, sempre ressurgiam, hoje são desig-nados por palavras cujo sentido concreto se tornou vago, nebuloso, para a maioria das pessoas: o quesignificam hoje termos como “amor”, “solidariedade”, “honestidade”, “sinceridade”, quando os encontra-mos em discursos de escassa credibilidade?

O próprio conhecimento, como valor, está bastante desgastado. A pressão utilitária que cobra dos conheci-mentos serventia imediata torna absurdo o apreço pelo momento gratuito do conhecer pelo gosto de conhecer e

faz do momento da busca da verdade pela verdade uma experiência absurda (ou então muitíssimo suspeita). Vale a pena relembrarmos algo do que se passou com três dos valores mais famosos entre aqueles em que pre-

tendia fundamentar-se a ética burguesa, no período em que a burguesia conquistou a hegemonia na sociedade.

No apogeu de sua criatividade, quando vencia sua batalha mais gloriosa contra o “antigo regime”, na Fran-ça, a burguesia apoiou um movimento revolucionário cujo tema indicava três valores: Liberdade, Igualdade eFraternidade. O que aconteceu com esses três valores ao longo dos mais de dois séculos que vieram depois?

Sob a bandeira da liberdade, foram alcançados alguns êxitos, sem dúvida preciosos. Contudo, os avançosque se realizaram ficaram restritos a determinados níveis da experiência dos homens e a determinados seto-res da sociedade. Em muitos aspectos, as liberdades individuais são cantadas em prosa e verso, homenage-

adas, proclamadas em textos legais, mas não chegam a ser asseguradas na prática. E em vastas regiões donosso planeta elas são quotidianamente espezinhadas, pelo autoritarismo, pela intolerância, mas tambémpela hipocrisia e pela miséria.

A igualdade teve um destino ainda mais decepcionante: passou a ser vista como uma reivindicaçãosuspeita, utopia irrealizável, utilizada por demagogos mal-intencionados para explorar o ressentimento dosde “baixo” contra os de “cima”.Há quem a veja como pressão ideológica niveladora, inimiga do franco reco-nhecimento e da resoluta aceitação das “diferenças”. Enquanto isto, as tensas desigualdades entre classessociais se agravam. E se aprofunda o fosso entre países ricos e países pobres.

Sobre a fraternidade, então, não se pode dizer nada de animador. Quando não fica reduzida a práticas assisten-

cialistas muito limitadas ou a ações caridosas socialmente inócuas, a fraternidade, como valor, é pura e simples-mente esquecida. É muito difícil convencer as pessoas de que precisam ser solidárias umas com as outras e cultivarrelações fraternas num mundo em que é essencial “levar vantagem”, ser um “winner”, um vitorioso, embora paraisto seja necessário servir-se utilitariamente dos outros, manipula-los e evitar-se envolver-se muito com eles.

139

Page 141: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 141/202

Os indivíduos que compõem a sociedade burguesa são (e nós somos como eles) criaturas divididas.Querem ser bons, no entanto precisam aprender a ser maus (Como se vê na peça A Alma Boa de Setsuan,

do poeta marxista Bertolt Brecht). São acometidos de efusões afetivas, porém precisam cultivar um certocalculismo capaz de se infiltrar, gélido, até mesmo na intimidade dos sentimentos amorosos. A generosidadese arrisca a virar burrice. Inteligência e esperteza se transformam em malandragem e matreirice. Os víciose as virtudes se misturam, promiscuamente. (O inglês Mandeville já proclamava no século XVIII: “os víciosprivados se tornam virtudes públicas”).

Marx construiu suas teorias e desenvolveu sua reflexão com olhar posto nesta paisagem humana e com apreocupação permanente de contrapor ao estado de coisas existente uma alternativa capaz de encaminhar umasolução exeqüível para a superação dos problemas sócio-econômicos, políticos – e éticos – que via à sua volta.

Podemos fazer uma distinção entre o burguês, categoria sociológica, proprietário dos grandes maiôs deprodução, e um certo modelo ideal de ser humano, que exerce uma influência maior ou menor, mas em todocaso ineliminável, sobre a sociedade como um todo: o homem burguês, o indivíduo que gostaria de ser bome justo, mas precisa ser sobretudo autônomo, empreendedor e competitivo.

Nós, homens de esquerda, socialistas, questionamos vigorosamente esse modelo, porém nos movemos nointerior de uma sociedade e de uma cultura fortemente condicionada pela hegemonia do ideal do homem

burguês. Até agora, não fomos capazes de construir uma sociedade alternativa, uma outra realidade social,que nos proporcionaria o chão com base no qual disporíamos de outro modelo concreto e a nossa crítica ul-trapassaria as fronteiras que ainda a limitam. Se as experiências socialistas tivessem sido bem sucedidas, seum novo modelo de homem socialista tivesse frutificado, poderíamos – quem sabe? – avaliar com suficienteradicalidade o homem burguês de um ponto de vista efetivamente externo a ele.

Por enquanto, contudo, continuamos numa situação similar à do velho Marx. Curiosamente, o fracasso daUnião Soviética, a constatação da gravidade dos problemas que se manifestaram nas experiências socialistasaté agora e a reabertura de antigas discussões internas do pensamento de esquerda nos reaproximaram deMarx. Nossa crítica da sociedade burguesa continua buscando – tateando!– os caminhos da construção de umasociedade alternativa mais livre, mais justa, mais fraterna e melhor. Mas pode continuar também - reaprovei-

tando elementos do arsenal do filósofo alemão – a aprofundar sua dimensão filosófica, sua dimensão ética.Isso, de certo modo, já vem sendo feito por alguns pensadores do século XX, que se inspiraram em Marx,

e, em vez de repeti-lo, deram passos importantes numa caminhada que os levou a uma reflexão filosóficaque traz contribuições novas para o que seria a “ética marxista” (título da exposição que me foi encomenda-da). É o que podemos ver, por exemplo, em textos de autores ligados à chamada “Escola de Frankfurt”, comoAdorno, Horkheimer e Walter Benjamin. Ou em Antonio Gramsci. Ou em alguns escritos de Georg Lukács.

Creio que o melhor exemplo, para concluir esta minha intervenção, poderia ser o do filósofo marxistatcheco Karel Kosik, que, num ensaio intitulado “A dialética da moral e a moral da dialética”, publicado novolume Moral e Sociedade, da editora Paz e Terra, em 1969, dizia que era necessário completar a dimensãocrítica do marxismo com uma vigorosa dimensão autocrítica. Para Kosik, um marxista precisa evitar a op-

ção tanto por ser uma “Bela alma” como pode ser um “Comissário”. A “Bela alma”, pra preservar sua purezaética, para evitar agir mal, deixa de tomar posição, esquiva-se aos riscos da ação. E o “Comissário” quertransformar os homens sem se preocupar em transformar-se a si mesmo: julga-se a própria encarnação daRevolução e age de modo a reduzir os outros a uma postura de aceitação passiva daquilo que lhes preserve(e que, por definição, está sempre certo).

Creio que esta é uma das idéias mais interessantes da literatura marxista produzida na segunda metadedo século XX a respeito da ética.

0

Page 142: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 142/202

   P  e  n  s  a  m  e  n   t  o   F   i   l  o  s   ó   f   i  c  o

I – Um intelectual de esquerda independente e sofrido

WALTER BENEDIX SCHÖNFLIES BENJAMIN nasceu em Berlim em 15 de julho de 1892, filho de Emil ePaula. Emil – então com 36 anos (Paula tinha 23) – era um próspero comerciante de tapetes e antiguida-des: ia todos os anos a Paris, comprava objetos que trazia para a Alemanha e revendia com lucro seguro.Benjamin era um menino míope e lia muito; desde cedo se desenvolveu nele a paixão pelos livros que oacompanhou pela vida afora. Mais tarde, já adulto, ele se interessava muito pelo mundo da prostituiçãoe no livro Einbahnstrasse (Rua de Mão Única) apontou vários pontos de aproximação entre as prostitu-tas e os livros. Com um senso de humor muito característico, Benjamin escreveu, por exemplo: “Livros eprostitutas a gente pode, querendo, levar para a cama”. E constatou: os livros são como as prostitutas,batem boca em público, despudoradamente.

No curso ginasial, Benjamin se interessou pelas idéias de um pedagogo alemão que chegou a ter grandeinfluência e depois ficou esquecido: Gustav Wyneken. Quando Wyneken se mostrou envolvido pelo entusias-mo patriótico e nacionalista dos alemães no começo da guerra dos 14, Benjamin se afastou completamentedas concepções dele.

Além disso, como judeu, Benjamin se interessou cedo pela teologia judaica. Já em 1913, entretanto, diziaque não estava inclinado a se tornar sionista e declarava que não sabia se ia se tornar um liberal de esquerdaou um socialista. (Isso está dito numa carta a Ludwig Strauss). Um dos melhores amigos de Benjamin pelavida afora, convém lembrar, foi Gerhard Schelem, que era sionista e veio a se tornar influente professor deteologia na Universidade de Jerusalém. Schelem se esforçou muito para levar Benjamin para Jerusalém e

achava que Benjamin era um talento para a leitura e interpretação da Kabbala; Benjamin parece ter hesita-do, mas acabou não indo.

Benjamin tinha amigos que se davam muito mal uns com os outros, que se detestavam uns aos outros.

Walter BenjaminTranscrito do Universitário, dezembro de 1986.

141

Page 143: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 143/202

Schelem não gostava nem de Theodor Wiesengrund Adorno, nem de Bertolt Brecht, que lhe pagavam namesma moeda e consideravam Schelem uma péssima influência sobre Benjamin. Por outro lado, Brechtachava Adorno um chato, pernóstico, e Adorno antipatizava com Brecht, que lhe parecia ser um comu-nista primário, um grosseirão.

Na vida amorosa, Benjamin sofreu bastante, teve muita pouca sorte: nada dava certo com ele. Pri-meiro, foi noivo de Grete Radt; depois se casou com Dora Sophie Pollak (e o casamento acabou numaseparação tumultuada). Em seguida, veio uma paixão infeliz por Jula Cohn. E o curioso é que, no finaldas contas, tudo ficou mais ou menos em família e quem sobrou ficou sendo mesmo o nosso autor: JulaCohn acabou se casando com Fritz Radt, irmão de Grete (a ex-noiva); Grete Radt acabou se casando comAlfred Cohn, irmão de Jula; e Dora Sophie Pollak, logo após a separação, se apaixonou por Ernst Schoen,que era muito amigo de Walter Benjamin.

Benjamin também veio a se apaixonar, na segunda metade dos anos vinte, por Asja Lacis, que vivia ma-ritalmente com Bernhard Reich; Asja correspondia, até certo ponto, ao amor que Benjamin lhe dedicava,porém jamais deixou Bernhard Reich.

Benjamin tinha pouquíssimo senso prático, manifestava uma extraordinária incapacidade para ganhar avida, coisa que causava imenso aborrecimento em seu pai. Em 1919, já casado com Dora, Benjamin conse-

guiu se doutorar (teve “summa cum laude”), com uma tese sobre o conceito da crítica de arte no romantismoalemão. Cinicamente, omitiu para o pai a notícia da conclusão de seus estudos universitários para podercontinuar a receber mesada; e fez uma pequena viagem de férias com sua mulher. Quando o pai soube disso,ficou furioso; e Benjamin precisou, afinal, fazer um acordo com o velho Emil, recebendo uma quantia emdinheiro (como antecipação da herança) e se comprometendo a deixar o pai em paz.

Nessa época, para ganhar dinheiro, Benjamin fez um pouco de tudo: chegou até a receber pagamento poranálises grafológicas (com sua inconvidável curiosidade por temas “marginais”, ele tinha estudado grafologia).

No início dos anos vinte, Benjamin também já suscita admiração em algumas pessoas pelos artigos que publi-ca em jornais e revistas. Isso lhe dá força para reagir à pressão do pai, que quer vê-lo empregado num Banco.

Para tentar resolver seu problema de subsistência, Benjamin prepara uma tese de livro docência sobre aorigem do drama barroco alemão, porém a tese desagrada profundamente aos professores Hans Cornelius eFranz Schultz, da Universidade de Frankfurt, e é recusada, em 1925. (Hoje, diga-se de passagem, o trabalho éconsiderado um “clássico” e está traduzido até para o português, num texto lançado pela Brasiliense e muitobem preparado por Sérgio Paulo Rouanet).

Benjamin, evidentemente, suportou mal o golpe; o fracasso na carreira universitária prenunciava umfuturo que não era nada animador. A tese tratava de peças de autores alemães antigos que não tinhamsido encenadas na época em que haviam sido escritas; aparentemente, um tema sem importância, umcapricho de erudito. No entanto, a questão em torno da qual Benjamin refletia era uma questão decisi-va, a seu ver, para todos nós: era o problema do barroco. Benjamin estava convencido de que o barroco

inaugurou a atmosfera espiritual na qual ainda hoje nos movemos. O barroco e dá conta de uma situaçãonova: a transcendência nos escapa, o sentido da nossa vida foge de nós e nós nos tornamos inseguros.

 Vivemos, desde o século XVII, sob o signo da ambigüidade barroca; e essa ambigüidade está se agravan-do, por força do funcionamento do mercado capitalista.

A ambigüidade – francamente reconhecida – não deve exercer sobre nós nenhum efeito paralisador.Precisamos reagir contra as tendências conformistas; precisamos desenvolver em nós o ímpeto que nos levaa lutarmos para transformar o mundo. O pensamento de Benjamin, na segunda metade dos anos vinte, seinclina, cada vez mais fortemente, para a esquerda.

No final de 1926, Benjamin vai a Moscou, numa tentativa frustrada de levar adiante o romance com Asja

Lacis, que estava reconciliada com Bernhard Reich. Em Moscou, Benjamin acerta a redação de um verbetesobre Goethe para a Enciclopédia Soviética; o verbete foi redigido, foi discutido, acabou sendo recusado.Benjamin, decepcionado, conclui que não era fácil se entender com os soviéticos.

2

Page 144: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 144/202

   P  e  n  s  a  m  e  n   t  o   F   i   l  o  s   ó   f   i  c  o

As decepções políticas não desviam Benjamin de seu caminho, do caminho que o leva a caminhar próximodos comunistas, sem jamais entrar no partido. A leitura de História e Consciência de Classe, de Lukács, o im-pressiona e fortalece nele a disposição de aproveitar o que o marxismo lhe proporcionava. Esse livro – escreveele a Schelem – me parece “muito, muito importante”. Ao mesmo tempo, Benjamin se entrega à admiraçãode autores que dão conta de outras experiências humanas, como Proust e Kafka. Sua ânsia por compreenderampla e profundamente a diversidade da condição humana é imcompatível com a adesão cega, definitiva, aqualquer ortodoxia. Essa ânsia o leva até mesmo às experiências com o haxixe, entre 1928 e 1933.

A ascensão de Hitler ao poder, na Alemanha, obriga Benjamin – judeu e intelectual de esquerda – a seexilar. Não só ele: calcula-se que até o final de 1933, 60.000 alemães deixaram o país. Tempos muito som-brios tinham começado. As condições de vida do escritor se tornam cada vez mais precárias. Em Ibiza – ondea vida naquela época era bem mais barata do que em qualquer outra parte da Europa – Benjamin pega ma-lária e a doença deixa seqüelas que lhe causariam aborrecimentos pelo resto da vida.

Amigos se mobilizam, procuram ajuda-lo, arranjam publicação de artigos remunerados em jornais. Ador-no e Horkheimer obtêm para ele uma bolsa, que lhe proporciona uma base estreita para sobreviver em esta-do de pobreza. Brecht o acolhe na casa que montara na Dinamarca, dá-lhe apoio moral, calor humano. Noentanto, Benjamin sabe que algumas de suas idéias não são aceitas por seus amigos. Brecht não aceita, porexemplo, o conceito de “aura”, que ele vinha desenvolvendo desde 1930, quando ele lhe ocorrera, numa das

experiências com haxixe.

Os campeões da chamada “Escola de Frankfurt” por sua vez, estão convencidos de que a abordagem porBenjamin de fenômenos políticos-culturais sofre graves prejuízos em decorrência de subestimação, por partedele, do poder corruptor da “indústria cultural”. Adorno e Horkheimer recusam tanto o jazz como os filmescurta-metragem de Chaplin; e se impacientam com Benjamin ao vê-lo propor uma linha de ação disposta afortalecer determinadas tendências estéticas em oposição a outras no interior desse “campo minado” que éo conjunto dos produtos da “indústria cultural”.

Benjamin – apaixonado, há vários anos, pela cidade de Paris – empreende na época a redação de umensaio sobre a capital da França, caracterizando-a como “a capital do século XIX”. Paralelamente, Benjamin

estuda em outro ensaio a presença da cidade na obra do poeta Baudelaire, na época de Napolião III. Umaparte deste segundo ensaio é encaminhado para publicação na revista do Instituto para a Pesquisa Social.Leo Löwenthal aprova a publicação do trabalho, mas Adorno faz objeções, cobra de Benjamin uma reelabo-ração do texto. Benjamin, que contava com o dinheiro que lhe seria pago pelo artigo, fica muito deprimido:ele tinha urgência de por a mão na remuneração...

É nesse período que o nosso autor prepara o texto do ensaio que nós fomos convidados a comentaraqui.”A Obra de Arte na Época da sua Reprodutibilidade Técnica”. Há mais de uma tradução do texto noBrasil: a primeira foi feita por Carlos Nelson Coutinho e saiu no n° 19/20 da Revista Civilização Brasileira,em maio-agosto de 1968. Depois, nos anos setenta, Luís Costa Lima aproveitou-a e a republicou, numacoletânea. José Lino Grunewald fez uma nova tradução, que é a que consta do volume dedicado à “Escolade Frankfurt” pela série Os Pensadores, da Abril Cultural. E há uma terceira tradução, feita por Sérgio Paulo

Rouanet para o 1° volume das Obras Escolhidas de Benjamin, lançado pela Brasiliense.

II - A Obra de Arte na época de sua reprodutibilidade técnic a

Benjamin começa o ensaio sobre a obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica com umaepígrafe de Paul Valéry: uma passagem na qual o escritor francês fala no aumento do poder de ação dos ho-mens sobre as coisas, assinala as mudanças acarretadas por esse aumento nas duas décadas que precederamsua observação e admite que os efeitos de tais mudanças podem modificar a própria noção de arte.

O nosso crítico se dispõe a refletir sobre essa modificação. Ele lembra que Marx, quando submeteuo modo de produção capitalista a uma severa análise crítica, se defrontou com fenômenos que estavamapenas começando; por isso, muito do que ele afirmou teve o valor de prognósticos. Na terceira década do

143

Page 145: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 145/202

século XX, as transformações supra-estruturais assinaladas por Valéry também se acham em fase inicial, porisso – explica Benjamin – seus juízos terão também algo de prognósticos.

Benjamin está muito longe de considerar seu trabalho um conjunto de conclusões mais ou menosdefinitivas.Ele justifica o texto resultante de seus esforços dizendo que os conceitos de que sua análi-se se serve têm a vantagem – em comparação com conceitos tradicionais, como “gênio”, “criação” ou“perenidade”, por exemplo – de não poderem ser utilizadas pelo fascismo. O fascismo – não podemosesquecer – era, naquele momento, uma preocupação central no pensamento de Benjamin: em 1936,Hitler e Mussolini estavam solidamente instalados no poder, os nazistas estavam preparando a segundaguerra mundial, e Benjamin se achava exilado na França, pressentindo – como judeu e como intelectualde esquerda – que grandes desgraças estavam se avizinhando.

O tema, mesmo, do ensaio de Benjamin é o das condições, formas e conseqüências da reproduçãodas obras de arte. O nosso autor cobra que, de um modo ou de outro, as obras de arte podiam serreproduzidas como imitações.

Perfil de um intelectual de esquerda independente e sofrido. Sua tra- jetória como crítico de arte. A análise da obra de arte na época de sua

reprodução técnica. A eclosão de movimentos fascistas e sua tese sobre a“estetização” da política e o final trágico com o início do segundo conflitomundial. O suicídio de Benjamin.

Os gregos eram capazes de fazer várias reproduções de estátuas de bronze, esculturas de terracota e mo-edas. Depois, a gravura em madeira permitiu a reprodução em série de desenhos. Na Idade Média, tambémse desenvolveram as técnicas da gravura em cobre e a água- forte. No século XIX, com a litografia, a repro-dução em série avançou muito, pois permitiu a multiplicação de desenhos mais matizados, que assumiamformas mais diversificadas. E a fotografia, então, representou um salto qualitativo no processo: a reproduçãodas imagens podia se fazer num ritmo muito mais acelerado, já que o olho capta as coisas com rapidez bemmaior do que aquela com que a mão pode desenhá-las.

Por fim, no nosso século, afiança Benjamin, o cinema acabou por impor uma radical mudança no quadro:a técnica de produção dos filmes funda diretamente a técnica de reprodução deles, “ela não só permite – damaneira mais imediata – a difusão do filme em escala massiva, mas ela a exige”. Os recursos investidos nafeitura de um filme não admitem, normalmente, que o filme fique reduzido a uma única fita de celulóide,um único original, que será exibido apenas para um público restrito.

O cinema, para Benjamin, nos desafia a repensar, retrospectivamente, a história das condições de repro-dução da obra de arte; e nos convida a extrair as conseqüências da mudança que nele se explicita.

Para o nosso crítico, a arte, em seu nascimento, se achava posta a serviço de um ritual, primeiro mágico,

depois religioso. A produção artística gerava objetos que só em proporção e formas secundárias podiam sereficazmente reproduzidos. Toda a história da arte, então, foi decisivamente marcada por objetos únicos in-substituíveis. Havia em cada um desses objetos a marca de um “aqui e agora” que sensibilizava as pessoas.Mais tarde, essa marca passou a ser chamada de “autenticidade”.

De certo modo, nesses objetos “autênticos” podia ser notada uma espécie de “aura”: aquela “luminosidade”característica da aparição única de algo que está sempre longe, por mais próximo que possa parecer. O conceitode “aura” desempenha um papel fundamental no pensamento de Benjamin e lhe serve de base para sua aborda-gem dos problemas da relação não só do homem com a arte, mas também do sujeito com o objeto, em geral.

O que está acontecendo com a arte contemporânea lança luz sobre a profundidade dos efeitos das mudançasprecipitadas pelo desenvolvimento das forças produtivas. A obra de arte está se emancipando da existência parasi-tária que lhe era imposta, tradicionalmente, pela sua função ritualística. A arte está assumindo uma função socialdiferente, num mundo que está se transformando mais drasticamente do que nós costumamos reconhecer.

4

Page 146: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 146/202

   P  e  n  s  a  m  e  n   t  o   F   i   l  o  s   ó   f   i  c  o

O que está se passando com a arte, entre nós, vale como sintoma. O valor que a obra de arte sempre tevecomo objeto de culto está cedendo lugar ao valor que ela adquire na medida em que passa a ser exposta.Mostra-se capaz de chegar, de fato, a um público amplo, ao seu destinatário, é algo importante. A quanti-dade está alterando a qualidade.

“O crescimento maciço do número de participantes mudou o modo de a participação se realizar”.

Na atitude do público em relação ao cinema fica muito claro, segundo Benjamin. O público tem umareação conservadora diante da pintura de Picasso, mas se mostra extremamente progressista em face deCharles Chaplin, sustenta o nosso autor. A massa dos espectadores do cinema se revela capaz de unir aapreensão do sentido crítico dos filmes à fruição do entretenimento agradável. Benjamin polemiza com aperspectiva conservadora do escritor francês Georges Duhamel, porém suas farpas atingem, na verdade, seuprimo e amigo Theodor W. Adorno, que desenvolvia uma crítica da “indústria cultural” que o levava a repeliro cinema e a televisão, acusando a diversão de atrofiar a imaginação da massa dos consumidores. O públicocinematográfico – insistia Benjamin – é um público que se distrai sem deixar de examinar aquilo que lheestá proporcionando distração.

O cinema, por sua própria linguagem, nos trouxe um aprofundamento e um enriquecimento da percepção.Com suas técnicas, com o zoom, com os cortes, com a contraposição dinâmica das imagens, com o recursoda câmera lenta, o cinema nos abriu as portas para descobrirmos nosso inconsciente visual, colaborandocom as investigações da psicanálise.

Na representação de formas de movimento para as quais não atentávamos suficientemente, o cinema con-seguiu realizar aquilo que os dadaístas tentaram, mas não chegaram a fazer. O movimento é visto e compre-endido como movimento humano, que pode se tornar inumano, mas pode também voltar a ser humano, isto é,pode reconquistar a criatividade inerente à práxis pela qual os homens transformam a realidade e se transfor-mam a si mesmos. “Se, por outro lado, o cinema nos faz melhor as necessidades que dominam a nossa vida, eleconsegue, por outro lado, abrir para nós um campo de ação imenso, de cuja existência nem suspeitávamos”.

A arte, em geral, está fortalecendo em nós a convicção subterrânea de que a nossa sensibilidade é capazde enfrentar novos desafios, novas tarefas. Nas condições tradicionais da relação dos homens com a arte, oindivíduo era levado a se retrair para, no retraimento, penetrar na riqueza estética das obras; nas condiçõesatuais, através, diz Benjamin, do efeito de choque, é a obra de arte que penetra nas massas.

Nas novas condições, cresce, objetivamente, o papel das massas. O fascismo leva em conta a novarealidade e trata de organizar as massas em função de um sistema de dominação que as subordinaa um comando que lhes é visceralmente estranho. As implicações políticas do novo quadro não sãoignoradas pelos fascistas; já que as massas estão se movendo, já que a produção cultural e artísticaestá chegando ao movimento de massas, o fascismo se empenha em “enquadrar” a cultura, se em-penha em “estetizar” a política, para garantir a preservação do modo de produção capitalista, para

assegurar a permanência do atual estatuto de propriedade.A dinâmica de “estetização” da política buscada pelo fascismo aponta, inelutavelmente, na direção da

guerra. “A guerra – e somente a guerra – permite que se forneça um objetivo aos grandes movimentos demassa sem que se tenha de tocar no estatuto da propriedade”. Na guerra imperialista pode culminar o pro-cesso de alienação que leva a humanidade a se sentir completamente estranha em face dela mesma. Elaterá se tornado “suficientemente estranha a si mesma para conseguir viver sua própria destruição comouma fruição estética de primeira ordem”, como um espetáculo magnífico. Para Benjamin, os comunistasestão desafiados a enfrentar o fascismo, chamando a atenção de todos para as implicações belicistas e ex-tremamente reacionárias do uso que os fascistas querem dar à arte: à “estetização” da política, promovidapelo fascismo, os comunistas precisam responder através da “politização” da arte, quer dizer, através daexplicitação das conseqüências políticas do emprego de categorias estéticas para legitimar e fortalecer umaação comprometida com a preservação de privilégios de classe e disposta até a precipitar uma catástrofe devastíssimas dimensões para defender os interesses dos privilegiados.

145

Page 147: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 147/202

III – O Final Trágico

A advertência de Benjamin não surtiu o efeito que ele desejaria. A política da “frente popular antifascista”chegou tarde; o fascismo já tinha aproveitado a desunião dos democratas e socialistas e já tinha se tornadosuficientemente forte para desencadear a guerra. A União Soviética, empenhada em ganhar tempo, fez umacordo de não-agressão com Hitler e as tropas nazistas invadiram a Polônia, em 1939, dando inicio ao se-

gundo conflito mundial.Sob a impressão dolorosa que lhe deixou, na hora, o pacto germano-soviético, Benjamin escreveu suas

“Teses sobre a Filosofia da História” ou teses “Sobre o Conceito de Historia” (os dois títulos foram usados emduas traduções brasileiras diversas). A amargura dessas teses é inegável. José Guilherme Merquior, que ad-mira Benjamin, considera-o um dos maiores críticos e “certamente o melhor ensaísta alemão deste século”,não disfarça seu constrangimento diante desse “testamento espiritual” do nosso autor; Merquior sugere quenas “teses” o pensamento de Benjamin manifestaria uma rendição em face do irracionalismo. A preocupaçãodo crítico brasileiro não me parece descabida, porém não estou convencido de que Benjamin tenha aban-donado suas convicções firmemente racionalistas. Sérgio Paulo Rouanet chama a atenção para uma frasedo último livro de Benjamin – Das Passagen-Werk  (o manuscrito que ele levava consigo ao tentar escapardo nazismo, atravessando a fronteira da França com a Espanha) – na qual se pode ler: “A razão deve tornar

transitáveis todos os terrenos, limpando-os dos arbustos da demência e do mito”.

As “teses” sublinham a rejeição dos esquemas “triunfalistas” que eram comuns no marxismo da épocae essa rejeição já se encontrava na perspectiva de Benjamin há vários anos. Enquanto os militantes comu-nistas, sob a liderança de Stálin, eram concitados a brandir certezas, o nosso crítico era um melancólico,inclinado às dúvidas. Do ângulo da dialética, nada é definitivo; tudo depende das iniciativas – dos erros eacertos – dos homens. O marxista não pode se sentir inserido na história como o maquinista de um trem quefosse explicando aos passageiros o inevitável itinerário a ser percorrido; o que lhe cabe – insiste Benjamin– é “escovar a história a contrapelo”.

Nas “teses”, a dialética recusa o determinismo. “Nada corrompeu mais a classe operária alemã do que a

convicção de que ela estava nadando a favor da correnteza. O desenvolvimento técnico era a crista da ondaque a classe operária pensava que a estava levando”. O pensamento revolucionário só pode preservar suavitalidade no questionamento da realidade objetiva se souber se questionar sempre a si mesmo, refletindosobre seus próprios limites.

O reexame autocrítico empreendido por Benjamin nas “teses” é coerente com suas convicções dialéticas.As cores sombrias de que ele se revestia era uma conseqüência natural da miserável situação da Europa e doensaísta. Ele devia estar pressentindo sua morte iminente: detido em Port Bou, na Espanha, ao tentar fugirda França ocupada (depois de ter estado preso num campo de concentração), Walter Benjamin se suicidou,em 26 de setembro de 1940, ingerindo tabletes de morfina que trazia com ele.

6

Page 148: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 148/202

       E     n      t     r     e     v       i     s      t     a     s

KONDER EM 3 TEMPOS

à UNIRIO (agosto 2006) 

ao Jornal do Brasil (agosto 2005)  

ao Pasquim (julho 2002) 

ntrevistaENTREVISTAS

Page 149: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 149/202

 Entrevistas

Page 150: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 150/202

Page 151: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 151/202

PAULO CAVALCANTE – Esse brilho que você es-tava falando, essa luz pode ser reativada nosolhos do brasileiro? Esse é seu esforço, nas suasobras, sua contribuição para o debate da políti-ca, da educação, da filosofia, do marxismo, dadialética, da difusão desses ideais?...

KONDER - Eu acho que não tem uma corrente filo-sófica, uma única teoria, uma única verdade cientifica,você tem condições nas quais determinadas idéias pre-valecem sobre outras idéias e essas idéias, que preva-leceram, são mais convincentes como encarnação daverdade, como legitimação do conhecimento. Agora,isso não quer dizer que você possa contar com issosempre. Marx disse coisas, escreveu coisas, que já erammuito avançadas no tempo dele e, paradoxalmente, setornaram mais avançadas ainda hoje, quando ele des-creve aquele processo de mundialização do regime es-tabelecido pelo capital – o modo de produção capita-

lista. O modo de produção capitalista existe segundoMarx expandindo, e o Marx diz então uma coisa queera exagerada no tempo dele: ele diz que o método deprodução capitalista penetra em todos os níveis da ati-vidade humana. Isto, no século XIX, não era verdadeiro,passou a ser no XXI, no século XXI é tranqüilo. Então,como fazer pra aproveitar essa verdade do Marx? Achoque a gente tem que ter o caminho do diálogo, maisuma vez, você vai enfrentar um interlocutor que é meioinimigo, meio adversário, mas é também meio concor-rente e meio interlocutor mesmo. Quer dizer, eu não sei

se eu posso atribuir divergências que aparecem na falado meu interlocutor, se eu posso atribuir unicamente àmá fé. Não é verdade, as vezes o sujeito é bem inten-cionado, as vezes o sujeito tem argumentos até maisconvincentes que os meus e me obriga a rever a minhaargumentação, agora isso aí não quer dizer que eu abramão das minhas convicções, eu tenho que ter abertura,mas não posso ter que renunciar as minhas convicções,são elas que me movem, são elas que me põem emmovimento, que me põem dando aulas e me põem dis-cutindo política... Essas convicções são preciosas, agora,eu preciso ficar atento ao fato de que elas, ao envelhe-

cerem, pedem uma discussão para serem renovadas.

PAULO CAVALCANTE – Será que a gente ensinaalguma coisa? Você se percebe, no seu oficio, nodia-a-dia da sua aula, oferecendo um exemplode como rever seus argumentos para os alunos?Para além de apenas ensinar a uma determinadacorrente filosófica, a um determinado contextohistórico, quer dizer, o aluno percebe isso tam-bém? Isso também se ensina? 

KONDER

 – Eu acho que mais importante do que oprofessor ensinar – eu acho que ele ensina – mas real-mente em condições precárias. E nunca se tem isto, se-gurança, certeza, do que se está ensinando. Mas acho

excesso na concessão desse título honroso. Filósofoera o Aristóteles que está lá em cima da mesa (apon-tando para uma pequena estátua do filósofo gregoque estava em cima de sua mesa de trabalho).

PAULO CAVALCANTE – Como professor, então, professor de filosofia, você se empenha para for-mar indivíduos, para produzir as condições deconscientização para a formação integral do serhumano. Conversando outras vezes com você,sempre achei muito bonito quando você falava so-bre as suas experiências de dar aulas, a imagemdo aluno que perde o brilho nos olhos fazendo vocêimediatamente retomar os argumentos para resti-tuir o brilho do entendimento. Daí surgem, natu-ralmente, duas questões na cabeça da gente: uma,como a educação pode ser vista como instrumentode desalienação e quais são seus limites?

KONDER  - Essa menção ao brilho do olhar nãoleva a definir um critério, mas, sim, de que o brilhono olhar é um indicador que o aluno está entenden-do. Quando os olhares ficam opacos – e o professorestá careca de saber, que não se leva em conta umaluno, mas, sim, que se leva em conta o conjunto– se um aluno ficar com o olhar opaco, tudo bem,eu ignoro, mas se a turma ficar com o olhar opacoé desesperador. Porque tem uma coisa mais impor-tante que o conhecimento que o professor tem damatéria: é a transmissão desse conhecimento, sem

isso não há educação. O processo educativo exigeque o conhecimento passe do professor ao aluno.E isso é possível se o professor levar em conta queo aluno tem seu próprio saber – desarticulado, con-fuso, ingênuo, muitas vezes, mas detém um saber– então, você tem que dialogar com o aluno. Isso euprocuro fazer também como professor e descubroque muitas vezes eu penso que fiz coisas e eu sim-plesmente não as fiz. Quando vou fazer a avaliaçãofinal do curso, eu penso que aquele ponto que euexpliquei, tão exaustivamente, para mim, ficou en-tendido; mas vejo que, ao contrário, não ficou abso-

lutamente percebido...

PAULO CAVALCANTE - E a educação, ela contri-bui para retirar a alienação do mundo? 

KONDER  - Acho que este é um anseio do edu-cador. O educador é um sujeito como qualquer ci-dadão. É um ser que tem seus valores – eu esperoque esses valores sejam os valores democráticos –,valores comprometidos com uma história, com umprojeto histórico de criar uma sociedade mais livre e

mais justa. Isso aí o educador tentando fazer, acabafazendo, na medida em que ele não domina, ele nãotem controle do processo, mas ele influi no proces-so, ele dá a contribuição dele, eu espero que sim.

0

Page 152: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 152/202

       E     n      t     r     e     v       i     s      t     a     s

que mais importante do que o ensino do professor é oaprendizado do aluno, o aluno aprende. Aprende como professor mais ou menos, com o professor bom ecom o professor ruim também. Então é essa confiançaque eu tenho na capacidade de aprender dos meusalunos, é isto que me anima. Embora eu perceba quenem sempre consigo corresponder plenamente aoque eles gostariam de receber, o aluno também é umser, um cidadão que conquista espaço próprio, quetem suas convicções, que tem suas explicações paraas coisas, mas ele é também um ser humano, isto é,falível, vaidoso, precipitado. Aí você tem um diálogomúltiplo, você tem um diálogo com os acertos dele eum diálogo com as falhas, com as deficiências, mas aío resultado é sempre problemático.

PAULO CAVALCANTE – Você acha que a univer-sidade brasileira consegue ser um local onde esse

 processo se estabeleça? Você que começou a vida

como advogado trabalhista, depois professor daUFF, e atualmente, já desde 1985 se não me en-gano, professor na PUC, como é que você avaliaesse lugar da universidade e o papel da universi-dade hoje também? 

KONDER  – Eu acho que a universidadetem, até porque ela é uma instituiçãointegrada na sociedade, funções contra-ditórias, é um lugar de pesquisa, é um lu-

gar de transmissão do saber, elaboraçãode experiências culturais e peculiarespróprias, mas ela é, também, um tem-plo que se afastou da massa dos cães , e o povo ficou de fora, o povo participa insuficientemen-te, porque a universidade não se abriu suficientementepara atrair a população, para atrair o homem comum. Háuma certa vaidade, a ideologia própria do povo da uni-versidade é cheia de pequenos contrastes que são curio-sos, não digo isso pra desmerecer a universidade porque,

apesar de todas essas limitações, ela continua desempe-nhando um papel muito significativo, muito importante.Mas  a universidade tem que ser trans-formada numa instituição mais interes-sada, mais comprometida com as raízesdas classes populares.

 PAULO CAVALCANTE  – Você acha que essa

abertura da universidade passa pelo que hojeestá se discutindo, que é a questão das cotas nauniversidade? 

KONDER – Eu tenho muitas dúvidas sobre isso, eutenho idéia de que é preciso fazer alguma coisa; nes-

se sentido, ponto para as cotas, porque as cotas sãouma iniciativa. Bom ou ruim, isso a gente não discu-te. As cotas atendem a uma demanda que é dramáti-ca. Agora, por outro lado, o resultado dessa iniciativanão é tranqüilo, porque há evidentemente um pater-nalismo muito grande, um risco de acontecer coisasque já estão acontecendo, como o comprometimentoda qualidade do trabalho, agora isso não é pra encer-rar a discussão, é pra abrir uma discussão.

PAULO CAVALCANTE – Você que escreveu o li-vro Introdução ao Fascismo, não te assusta terno congresso um projeto de estatuto de igualdaderacial? Há aqueles que na universidade acusamque um projeto mesmo de igualdade social é um

 projeto racista, porque re-estabelece a validadeou legitima um conceito de raça já tão fustigado,

 já até em desuso. O que você pensa disso?

KONDER  – Existe uma certa forçação de bar-ra, aí... O crime de racismo, que é grave, comportaformas gravíssimas e formas meio inconseqüentes,meio tolas. Então a gente, para se concentrar numcombate ao racismo, enfrentando as formas, que oracismo tem, não pode ficar perdendo muito tempo,com a reputação de elementos racistas enfraque-cidos, meio desautorizados, desmoralizados, comoesse que apareceu nessa redação infeliz, nessa res-surreição do velho conceito de raças, que é uma coi-sa muito típica da cultura brasileira do século XIX

e do século XX, o legado do positivismo com suastolices, entre as quais, algumas tolices desse tipo.

PAULO CAVALCANTE – Mudando o ponto e indo para um autor que lhe é muito caro, o Lukács,você afirmou, escreveu, que Lukács era um autorcrítico marxista simultaneamente preocupado ematacar o lado perverso da cultura das sociedadeshegemonizadas pela burguesia e também preocu-

 pado em salvar o lado bom, humanista da culturaburguesa. Este programa de Lukács também servea você? Você se vê nele? 

 KONDER – Eu me vejo nele, com menos preocu-pação que o Lukács mostrou em relação ao legadoda cultura clássica burguesa, que é europeu, é muitoeuropeu. O Lukács, como é comum nos pensadoreseuropeus marxistas, sofre um certo viés eurocêntri-co. Esse eurocentrismo me faz pensar que eu estoumeio distanciado dele, mas não estou tão distancia-do assim porque eu retomo categorias e conceitosdele para trabalhar. Quando ele admira um autor,ele admira muito. Thomas Mann foi o cara que o

inspirou nessa formulação. Thomas Mann seria oherdeiro daquilo que a literatura burguesa tem demelhor: ele quando ama, ele fica inteligente, ele es-creve coisas muito brilhantes e quando ele detesta,

151

Page 153: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 153/202

ele emburrece. Acho que é uma coisa que acontececom todo mundo, e com Lukács é muito claro isso,ele escreveu sobre a vanguarda, escreveu Kafka ouo Thomas Mann, num livro dele sobre realismo quetem essa dicotomia: ou Kafka ou Thomas Mann. Euquero ambos, eu quero os dois.

PAULO CAVALCANTE – O próprio autor, o próprioMarx, sobre a concepção de homem de Marx: umsujeito da práxis, aquele que existe transforman-do o mundo e se transformando, se inventando.Pergunto, como lidar com um processo, que é aomesmo tempo inexorável, é a descrição do movi-mento da realidade, mas que se quer dirigir auto-nomamente, produzindo a transformação? 

KONDER – É porque não se trata de um proce-dimento lúcido. Não é um procedimento vindo deum observador, de um analista, de alguém empe-

nhado em descrever fielmente a realidade. Isto seriaum momento que precisa ser superado, porque vocêsabe que a descrição já comporta uma experiênciaanterior, na qual certas opções foram feitas, o sujei-to tomou decisões, fez escolhas. Então, quando elevai descrever a realidade, ele já vai descrever de umângulo que é, mesmo que ele tenha um alto teor deuniversalidade, um ângulo particular. Eu acho que agente tem que assumir que o ser humano, o sujeitoda práxis, é tencionado pela própria ambigüidade,pela própria dicotomia que existe nele, que é reco-

nhecer o movimento da realidade objetiva e reafir-mar o seu poder de transformação subjetivo.

PAULO CAVALCANTE – Vamos para Brecht? Noseu livro A Poesia de Brecht e a história, citandouma das histórias de calendário, Brecht dá a pa-lavra ao seu alterego, Sr. Kened, aí eu cito “tenhonotado que muita gente se afasta das nossas teo-rias, por termos respostas para todas as questões.

 No interesse da nossa propaganda, não podería-mos fazer uma lista das questões que reconhece-

mos estarem longe de serem resolvidas?”. Você,Leandro, como um combatente da postura dialógi-ca contra o dogmatismo, por acaso teria aí a sualista das questões que não sabemos resolver?

KONDER – Eu acho que eu não fiz uma lista, por-que seria muito cansativo (risos), mas eu tenho idéiade que há maneira da gente enfrentar esse desafioproposto pelo Brecht, que é você pensar sempre nainserção do sujeito, na história, pensar sempre nadimensão infinita da práxis. A práxis é uma ativi-

dade na qual o homem se realiza porque se supera,e se supera infinitamente. Então essa infinitude doreal aproxima, curiosamente, os marxistas dialéti-cos e os místicos. Os místicos que eram abominados

pela literatura marxista, são muitas vezes agudosdialéticos, eles não tem consciência disso (risos),mas são preciosamente ricos em matéria de dialéti-ca, porque eles têm contato direto com a infinitude:o real é infinito, o real é inesgotável. Daí decorreuma postura que não pode ser prepotente, não podeser arrogante; quer dizer, se o interlocutor está en-xergando um ponto que eu não estou enxergando,que eu estou tendo dificuldade de reconhecer, épossível que esse ponto seja secundário, mas podeser um ponto essencial. Então, isso muda muito oquadro, quer dizer eu não estou querendo trans-formar os debates políticos em clube de discus-sões. É claro que tem umas divergências que sãomateriais, são profundas, são concretas e têm queser assumidas, mas o debate não se reduz a essaguerra entre representantes de interesses mate-riais diferentes, contraditórios.

PAULO CAVALCANTE  - E essa guerra tem umhumor também...

KONDER – Tem, e o humor é fundamental...

PAULO CAVALCANTE – ...Você escreveu naquelasua magnífica aula magna, que a gente encontrano site, na internet, você imaginou Brecht dizen-do: - Quem não tiver senso de humor, nunca mecompreenderá.

KONDER

- Foi uma coisa que Brecht disse sobreHegel, Hegel filósofo alemão, idealista mas gênioda dialética. Brecht disse: “quem não tiver senso dehumor, jamais compreenderá Hegel...”. E, empirica-mente, eu tenho constatado isso. As únicas pessoasa quem eu acho que consegui revelar o charme deHegel eram pessoas muito engraçadas, pessoas comsenso de humor desenvolvido, e, em alguns casos,eu constatei que a seriedade da pessoa tornava im-possível admitir aquele absurdo em dizer uma coisa,“é mais não é, é mais não é...”. Essa é uma coisa queeu fui viver logo depois do golpe de 1964, interro-

gado por um coronel no IPM do ISEB, eu falei sobredialética e o sargento datilógrafo, naquele tempotinha o sargento datilógrafo, e ele perguntou: o queé dialética, coronel, o senhor sabe? Ele disse sei, sei:É essa coisa que os comunas inventaram para dizer“é mais não é, é mais não é... (risos)”. Tem algunsque fizeram isso comigo, transformaram a dialéticanesse joguinho brincalhão.

PAULO CAVALCANTE - Nietzsche escreveu, numa passagem dele “zombei de todo mestre que não

zombou de si mesmo”. Você zomba de si mesmo?Você se toma como objeto desse humor?

KONDER – Esse é um dos aspectos mais essen-

2

Page 154: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 154/202

       E     n      t     r     e     v       i     s      t     a     s

ciais da minha relação comigo mesmo: como me le-var a sério? Eu estou em estado de permanente per-plexidade desde que vocês vieram me procurar prafazer essa entrevista... Essa entrevista não passoupela minha cabeça, aí tem uma manifestação clarade loucura, um movimento coletivo de loucos...

PAULO CAVALCANTE – E você está escrevendocolunas para os jornais cariocas, não é? Ontemmesmo escreveu Sapateira Anarquista.

KONDER – Escrevi vários anos para O Globo , de-pois escrevi para o Jornal do Brasil , e agora, umavez por mês, escrevo para o Jornal do Brasil, Ca-derno Idéias.

PAULO CAVALCANTE – E o Seu Canário? 

KONDER – Seu Canário é um inspirador do sapa-

teiro, do Alberto anarquista. Grande advogado sin-dicalista, e a direção do sindicato estava toda nasmãos dos partidos comunistas, e todos os represen-tantes de outras linhas, de outras tendências, erammeio maltratados. Até falei com o Plínio, diretor-presidente do sindicato: - Ô, Plínio, não pode fazerisso! Tratar mal o cara?! Ele me disse: - Ele veio re-petir o que o padre mandou ele dizer. (A história eraque havia um padre que era um teórico e líder domovimento de oposição à direção do sindicato peloPartido Comunista). Então eu repeti: - Anselmo,

deixa ele, então, dar o recado do padre, pô!. E havia,então uma assembléia, e o cara se inscreveu parafalar. Quando o cara começou a falar, a massa lide-rada, induzida pelo PC, começou a vaiar e ele tentouse defender mas o Plínio retrucou: Deixa para dizerdepois o que o padre te mandou dizer... Aí que elelevou vaia mesmo. O seu Canário venceu a resis-tência. O seu Canário entrava lá e falava: - “Tudocomuna, tudo comuna. Porque não sabem a impor-tância da sociedade auto-governada, auto-gestão.Pensam que a auto-gestão é aquela coisa, aquelaporcaria da Iugoslávia. Aquilo não é a auto-ges-

tão. Aquilo é palhaçada! Auto-gestão é séria. Vocênão tem que ter pátria!”. Então, ele fazia pregaçãoanarquista dentro deste baluarte dos comunistas.De repente, ele se virou para mim e disse: - “Senhoradvogado, o senhor é do Partido Comunista tam-bém, não é?”. Eu lhe respondi: “Sou”. Ele disse: “Ah,tinha que ser... tinha que ser...”. E eu lhe pergunteiassim: “E quais são as suas paixões, seu Canário?”.E seu Canário me disse, assim: “Em primeiro lugar, aanarquia. Depois, a Ópera. Em terceiro lugar: a mi-nha mulher!”. Seu Canário...

PAULO CAVALCANTE – É correto dizer que aesquerda hoje está desarticulada? 

KONDER – (Tempo). Está muito desarticulada (ri-

sos). Falta o advérbio muito. Muito. Realmente, estámuito desarticulada porque a esquerda apostou numconjunto de possibilidades que se exauriu. Apostouna possibilidade de um caminho. Soviético. Apostouna possibilidade de um caminho clássico chinês daRevolução Cultural de Mao-Tsé-Tung. Apostou emvários caminhos e todos se revelaram muito proble-máticos. Mesmo Cuba. Cuba é uma coisa grandio-sa, heróica, eu estou disposto a apoiar Cuba contratoda e qualquer tentativa de invasão. Já fui até lá.Mas, não quero me iludir: Cuba tem problemas qua-se insolúveis. Como é que se vai partir daquela rea-lidade cubana e instituir a pluralidade partidária, opluralismo? Como fazer isto? Você pode considerarnormal que uma equipe se perpetue no governo háquarenta anos? Não é normal... Não é. A plurali-dade dos partidos não pode prescindir da existên-cia de uma oposição efetiva. E Cuba não comportaisto. Então, o que vai ser de Cuba? Não sei. Mas

torço para que não se perca o que está vivo destaexperiência, o que é gigante, generoso... Agora, dequalquer maneira, Cuba não é uma fórmula válidapara a esquerda, num âmbito mundial. É uma coisamuito restritamente cubana, muito insular.

PAULO CAVALCANTE – Mesmo o Brasil com asua diversidade...

KONDER – Mesmo o Brasil. Eu acho que a gentetem que pensar, realmente, numa nova esquerda.

Uma esquerda que retome aquilo que há de vivo,de forte, de vigoroso na antiga esquerda, clássica,mas que atenda a uma nova demanda que valo-rize o indivíduo, valorize os homens na cidadania.Cidadania até do consumidor. Eu achei está idéiaboa. A esfera do consumo não é uma esfera de-gradada, mas é uma esfera que sofre um proces-so de degradação imposto. Então, as pessoas vãose adaptando. Mas, de repente, o fato do consu-midor ter direitos, permite que se pense tambémna possibilidade de o consumidor adotar – coisaque não é fácil – valores políticos. Agora, não é fá-

cil. O consumidor, por definição, tende mais a seralienado do que ser um cidadão combatível. Mas,em todo caso, acho que a gente tem que procu-rar caminhos para uma reproposição do socialismo.Nenhum dos problemas que Marx en-frentou, no tempo dele, foi resolvidopelo capitalismo posterior.Nenhum. Então, neste sentido, eu achoque o velho Marx renascerá.

PAULO CAVALCANTE – Pensando esta situaçãoda esquerda, no Brasil, à luz da sua própria tra-

 jetória – filiado ao Partido Comunista, depois, filiou-se ao PT, desfiliou-se do PT – como é que

153

Page 155: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 155/202

você vê a responsabilidade do Partido dos Traba-lhadores, evidentemente do Governo Lula, comtantos desencantos – entre eles particularmente,acho, a manutenção da política econômica dogoverno anterior – como é que você vê a respon-sabilidade do Partido dos Trabalhadores nesse

 processo de imensa desarticulação da esquerda? 

 KONDER – Eu acho que o Partido dos Trabalha-dores nasceu, em São Paulo, com uma aura muitoimpressionante. Porque era o primeiro partido demassas, resolutamente de esquerda, revolucionárioe pós-leninista. Eu gostei do pós-leninismo porqueo leninismo foi algo fantástico nos primeiros vinteanos, trinta anos, do século XX. E depois se exauriu,mas foi mantido artificialmente com uma burocra-cia pesada. Eu me lembro de fotos de reuniões doComitê Central, do Partido Comunista, já da UniãoSoviética, mas na sua época heróica do leninismo,

com o Lênin vivo ainda. E eles eram cinzas, eleseram sete, eles eram oito caras. E, ao lado, umafoto, reunião do Comitê Central, já dirigido peloBrejnev, nos anos oitenta, eles eram quatrocentose sessenta...(risos). Isto é brincadeira... Isto é brin-cadeira. Claro que mudou. Eu acho que o PT viveuum processo semelhante, em outra escala. Eu achoque, talvez, o PT não esteja ainda perdido para o so-cialismo. Existem muitos socialistas que ficaram noPT. Agora, eu estou velho, impaciente. Resolvi sair eacompanhar a Heloísa nesta coisa maravilhosa que

é o PSOL.PAULO CAVALCANTE  –  É fato, Leandro, que

 perdemos o debate econômico? Como é possívelcombinarmos valores humanos qualitativos comos valores do mercado? 

KONDER  – Eu acho que é uma combinação sem-pre arbitrária. Eu acho que ela corresponde a umanecessidade – as pessoas se empenham em com-binar – mas, cada vez mais, fica claro o seguinte:quando a economia deriva da centrali-dade do mercado, ela expressa o movi-mento global da realidade. A realidade,no seu todo, evolui na direção de umaditadura da economia. Então, nestahora, a preservação dos valores éticos,estéticos, humanos, se torna muitodifícil. As pessoas se acostumam a li-dar com este problema, sem reflexão. Um pouco na base da contemplação, do espetáculo.Enquanto a gente está aqui, reunido, está havendoem São Paulo o julgamento daquela menina cujonamorado matou os pais – se foi ela a cabeça arti-

culadora, ou não, eu não sei – mas eu sei que aquiloé abominável, abominável, e aquilo virou espetácu-lo... as pessoas se emocionam porque não precisampensar. Então, de certa forma, o que eu vejo é istoaí, é preciso lutar, precisamos lutar para reabilitaro pensar. O pensar é parte essencial deste processoe se nós não pensarmos vamos ficar reduzidos aessa posição de espectadores embasbacados... Umoutro exemplo, é aquele grupo de quatro pessoasque matou e estuprou um casal...Outro espetáculo.Cada dia os jornais inventarão catástrofes maiorespara atender uma demanda de pessoas que queremficar boquiabertas lendo essas coisas, mas sem seperguntar o que está se manifestando, o que estáse aparecendo aí?...

PAULO CAVALCANTE – Fica uma emoção menore uma ausência de reflexão... (Pausa) Você nãose calou, você o tempo todo está produzindo...

KONDER – Eu sou um falastrão...

PAULO CAVALCANTE – Um falastrão, não é? (ri-sos) Ano passado, a imprensa divulgou e alardeouo seminário Silêncio dos Intelectuais... Qual o lugardo intelectual nesta sociedade em que estamos? 

KONDER – Certamente, uma das pessoas quetêm se ocupado mais apaixonadamente deste temaé a professora Marilena Chauí, de quem eu gosto

muito, que eu respeito, eu admiro, mas que justa-mente ficou numa situação meio complicada quan-do surgiu, quando estourou essa discussão sobre osilêncio dos intelectuais porque ela justamente sesentiu mal de estar no PT e ter sustentado uma po-sição que estava sendo massacrada dentro do PT.Então a Heloísa subjetivamente saiu e ficou com avida mais ou menos facilitada... A Marilena não quissair e ficou com a vida dificultada dentro do PT.

PAULO CAVALCANTE  – Você tocou no proble-ma da violência, ainda há pouco, localizando

dois casos pontuais e que contribuem para estasociedade do espetáculo. Nós também estamosdiante de uma outra situação que é o agrava-mento desta violência sócia, agora organizada,ao que parece, pelos ataques coordenados doPCC em São Paulo. Nós mudamos de patamarde uma violência social, nós nos aprimoramosnisto ou aqui ainda estamos assistindo ao efeitodas políticas neoliberais para o estado mínimo?Como é que você tem assistido a essa situação?

KONDER

  – Eu acho que os dois caminhos tra-zem subsídios, trazem elementos importantes para anossa análise, a nossa pesquisa, mas eu não me sintode posse de uma conclusão definitiva, peremptória,

4

Page 156: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 156/202

       E     n      t     r     e     v       i     s      t     a     s

não. Eu me sinto meio perplexo. O que resulta dahegemonia da lógica do mercado. Eu me lembro quehouve um tempo em que, eu com uns quinze anosde idade, eu lia coisas, textos comunistas e os textosde divulgação das idéias do socialismo em Marx, e ostextos diziam assim: “o importante na concepção dahistória de Marx é que a economia dá a última pa-lavra”. E o importante é isto aí mesmo, mas não é sóisto: a economia não dá a última palavra, não, por-que não existe a última palavra. A economia prepon-dera em determinadas horas ou quem vai decidir, emúltima instância, vai decidir por razões compatíveiscom as exigências da economia. Então, o processoé muito mais complicado. Na época, a gente falavaque tinha que estudar filosofia, psicologia, estudarliteratura, tudo era visto – não era dito, mas era visto– do ângulo dos comunistas, como uma coisa se-cundária. O importante era a economia. Isto agoraacabou. Agora, a burguesia produz economistas e os

economistas excluem a contribuição dos cientistasdos outros setores, de outras áreas e ficam, então, oseconomistas falando demais...

PAULO CAVALCANTE – Não só os economistasmas os profissionais da administração tam-bém... Tem sido feita uma avaliação de queesta questão em São Paulo se deve a uma falhana gestão dos presídios. Será que nós não es-tamos diante de causas mais profundas, agra-vadas atualmente? 

KONDER – Com certeza... com certeza.Eu acho que nós estamos vivendo umprocesso de simplificação, reduçãodo social, do cultural ao econômi-co. E esta redução pressupõe uma es-pécie de desqualificação da história. Nós temos grande divergência filosófica des-te início do século XXI que está embutida nasmelhores paginas dos defensores do pós-mo-

dernismo. E é uma desqualificação da história.Por que?  Porque a história nos obrigaa pensar na participação desses sujei-tos múltiplos. Nas exigências diversasque marcam a mudança. A mudan-ça e a vida. A mudança e a realidade.Se a mudança não é encarada a rea-lidade já foi chutada para escanteio. Então aí vem esses cidadãos, que fazem análises,que são formais e eles são até sofisticados porquese baseiam em dados – são pesquisas quantitativas– e em critérios administrativos como você pontuou,mas que não resolvem nada... Podem resolver por

sorte, por acaso, um problema, mas outro vai surgir.Mas é um procedimento deles sob a influência dessahegemonia pós-moderna.

PAULO CAVALCANTE – E tudo dentro de um di-álogo muito conservador, pelo menos aos meusolhos. E já que reivindicamos aqui a história, mevem a pergunta, complicando um pouco maisas coisas: até que ponto esse conservadorismosocial brasileiro tem mais a ver com o passa-do escravista do que com este século e meio decapitalismo no Brasil? Se é que podemos datardessa maneira, não é?...

KONDER – Eu não sei se eu não formularia a ques-tão de outra maneira até para se evitar essa discussãoem torno de como datar fases, processos da nossa his-tória, eu diria o seguinte: na velha questão dialética,na velha dicotomia, continuidade e mudança ou con-

tinuidade e ruptura, existe um sujeito que se impôspela sua honestidade, pela sua lucidez que é o SérgioBuarque de Holanda. Num outro dia eu vi, no jornal,um ataque a ele, uma crítica a ele. E foi extraordiná-rio. Enfim, do lado de lá, alguém está tendo uma certalucidez em perceber o seguinte: o Sérgio teoriza exa-tamente o que eles não querem que seja teorizado.O Sérgio teoriza o quê? Raízes do Brasil. Teoriza umprocesso; no qual, os de cima mistificam, oprimem,reprimem os de baixo. Então, só há mudanças efeti-vas, nesta sociedade, quando a pressão cresce muito.

Aí a mudança torna-se inevitável. Ou então quando amudança é feita de cima para baixo e, portanto, ela élimitada, moderada. Isto aí cria um pólo conservadorfortíssimo na história do Brasil que corresponde àque-le século e meio a que você se referiu. Eu acho que sóo aumento de participação efetiva, democrática, podesuperar essa dinâmica perversa do conservadorismo nahistória do Brasil. Agora, as pessoas não querem isso:os donos do poder estão aí para difi-cultar a transformação necessária, poristo, eles desmistificam quando escre-

vem sobre desigualdade social, pulam otema e continuam no poder. O que levouo Darcy Ribeiro a dizer que era a classedominante mais inteligente que ele co-nhecia. A burguesia brasileira mente,faz safadezas e até hoje ainda está lá.

PAULO CAVALCANTE  –  (risos...) Uma última pergunta: olhar para trás e ver que o livro ma-terializa o imaterial, engessa o abstrato e por-tanto, o mutável o tempo todo, isto lhe dá uma

155

certa aflição, a você autor de vinte e cinco deles? 

Page 157: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 157/202

certa

KONDER – Um livro é um objeto material, semdúvida... mas, o que conta para mim, não é tanto oobjeto material – até conta, eu tenho ali a coleçãodeles, guardadinha... os vinte e seis...

PAULO CAVALCANTE – vinte e seis... KONDER – ... mas eles têm idéias que são reto-

madas e transformadas, modificadas, renegadas pe-los meus pares ou pelos meus interlocutores – osímpares – então, eu fico feliz com isso. Eu achoque eles são a minha tentativa de participação. Seeu escrevo muito, ponho livros na praça... os livrossão... – meu pai dizia isso – “vais ficar constrangidode entrar num sebo e ver um livro seu lá...”. Os mar-xistas e a arte , por exemplo, eu, em 1967, compreinum sebo em Portugal, em Lisboa, e o proprietáriotinha escrito assim: “vamos ver se se trata de umtrabalho sério ou se é mais uma iniciativa para en-

rolar os trouxas...”. Como ele leu aproximadamenteum terço do livro e depois visivelmente vendeu olivro para o sebo, eu acho que ele descobriu queera realmente uma tentativa de enrolar os trouxas...(risos). Mas esse momento de você sair de você eir ao outro... é um movimento... – eu gosto evocara etimologia, do latim: o outro é alter – você ir aooutro, é você admitir que você se altera, que vocêse modifica...

PAULO CAVALCANTE – Leandro, muito obrigado...

KONDER – Obrigado, digo eu..., por vocês fazeremesta empreitada...

6

Page 158: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 158/202

       E     n      t     r     e     v       i     s      t     a     s

Entrevista transcrita do Jornal do Brasil  de 07/08/2005  

Quem me apresentou o Leandro, há 40 anos, foi o seu pai, Valério Konder, médico sanitarista e um dosrecordistas de prisões no PCB. A partir de então, convivemos em momentos difíceis, na resistência cultural àditadura e no exílio na Alemanha. O Leandro é um dos maiores conhecedores de filosofia no Brasil, sobretudodo marxismo, com uma queda especial pelo próprio Marx – de quem escreveu uma biografia, Marx, vida eobra – por George Lukács e Antonio Gramsci. Mas sem jamais assumir aquele tom solene e professoral quemuita gente espera de um filósofo. Tanto que, como bom carioca (embora nascido em Petrópolis), fez atéum samba-enredo sobre a dialética de Hegel, obra sem perspectivas próximas de adentrar a passarela daSapucaí. Por isto, Leandro e o baiano Carlos Nelson Coutinho, seu parceiro de samba e de estudos lukacsia-nos, chegaram a ser chamados de os “Aprendizes de Lukács”, paródia da famosa escola de Paradas de Lucas.E foi com este bom humor de filósofo-sambista que ele nos recebeu, no seu apartamento do Leblon, paraeste bate-papo, que contou com a minha presença e a dos jornalistas do Caderno B Ricky Goodwin e ZezéSack, das colunistas Antonia Leite Barbosa e Maria Lucia Dahl, além da participação do filósofo RodolfoAthayde e de Caco Xavier, autor dos quadrinhos Filosofia de Boteco.

(Arthur Poerner) 

ARTHUR POERNER – Uma vez, isso nos anos 50,o PC tinha uma pichação marcada para sábado demanhã. Era um sábado de sol. Leandro Konder, éclaro, preferiu ir à praia e foi acusado de pequeno-burguês vacilante. Eu queria saber dele se agora,ao deixar o PT, preferindo ir para o PSOL, foi nova-

mente tachado de pequeno-burguês vacilante.

LEANDRO KONDER – Que eu saiba, não fuitachado de nada porque a confusão dentro doPT já era muito grande... Quanto a essa tarefa

 fundamental que você lembrou aqui, e a qualdeixei de cumprir, fui inclusive suspenso de mi-nha condição de militante, mas recuperado por

 Nikita Kruschev, que, ao denunciar os crimes dostanilismo, criou uma situação mediante a qualaqueles que me aplicaram a pena tiveram querecuar, reconhecendo que eu fora um pioneirode luta pela redemocratização do partido. Bem,eu não fui pioneiro coisa nenhuma, só achavaque ir à praia era algo mais humano. Minha

cabeça política não era tão boa assim, como,aliás, não é até hoje.

RICKY GOODWIN – Assim como Kruschev rea-bilitou sua dissidência praieira, o tempo também oreabilitará com relação à decisão de deixar o PT?

KONDER – Não sei. Só sei que me senti malcom a expulsão da Heloísa Helena, uma pessoaséria, apaixonada, íntegra e de talento político.

 Aquilo foi um toque de alarme.

ANTONIA LEITE BARBOSA – Que ironia: você terlutado tanto por um governo de esquerda, e, agora,que isso acontece você ir para a oposição.

KONDER – Sou pelo pluripartidarismo, en-tão torço para que o PT se recupere, pois os

 partidos de esquerda têm que ser vários e brigarentre eles mesmos, porque é assim que se equi-libram. Há muitas maneiras de ser de esquerda.

157

O filósofosambista aprendiz 

de Lukács

Page 159: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 159/202

 Algumas delas nem são muito legais.

POERNER – A do Lula, por exemplo?

KONDER – Lula é um ser politizado, compe-tente, mas seguiu um caminho problemático enão vejo como poderá resgatar as raízes do PT.

CACO XAVIER – O PT no poder significou um go-verno como todos os outros. Não houve a inversãode prioridades. E agora descobrimos que significoutambém fazer política como todos os outros. Ouseja: é um partido como todos os outros. Como ficaisso pro militante?

KONDER – Antes de ir pro poder, o PT tinhaum modo de fazer política que era diferente.Tornar-se igual aos outros é um fenômeno re-cente. (pausa) É muito melancólico. Meu medo

agora é que o PSOL passe por um processo se-melhante.

POERNER – Antes de sair do PT você já tinhasaído do PC, em 82. Os motivos foram as disputascom Prestes?

KONDER – Prestes sempre foi honesto e di-reto e dizia abertamente que queria um par-tido centralizado. Nós, influenciados peloscomunistas italianos, como Gramsci, querí-amos um modelo de partido mais pluralis-ta, mais envolvido com a sociedade. Pra va-riar, perdi a luta interna e saí. Entrei entãono único caminho viável para fazer política,que era o PMDB, mas acabei também saindo.

 Na época fiz até uma piada: “Entreino PMDB porque queria ser um pe-emedebista, mas acabei me tornan-do um peemedebesta. Antes que metorne um peemedebosta, vou dar um

 peemedebasta!”.ANTONIA – Como foi crescer numa casa em que

o pai era perseguido por ser de esquerda? Duranteseu primeiro ano de vida, seu pai esteve preso.

KONDER – (sorri) Não me lembro do meu primeiro ano de vida... Eu achava o marxis-mo uma religião meio doidinha. Havia sempreuma grande movimentação de comunistas lá emcasa, todos muito agitados.

RICKY   – E como foi que percebeu que estavaseguindo o mesmo caminho do pai?

KONDER – Na campanha eleitoral de 50, eutinha 15 anos, papai foi lançado candidato asenador pelo PC e participei colando cartazes,

 pichando, pregando faixas. Então me convida-ram para ter uma atividade constante, entrando

 para o partido através da União da JuventudeComunista. Não me dei muito bem. Eu começavaa dotar o marxismo mas achava o marxismo-le-ninismo uma coisa monstruosa. O que complicao marxismo são esses hífens. Fui um mau alunono curso, mas acabei sendo aproveitado pelo PC.Comecei subindo as favelas para distribuir ma-terial. E, mesmo assim, dividido entre achar queaquilo estava correto ou que estavam impondoaquilo sobre mim.

POERNER – Aquilo que eu contei: sábado de sol,com praia...

KONDER – E as festinhas no sábado à noite? Naquele tempo a barra era pesada, as festinhasde sábado eram nossa única esperança, emboraela sempre fosse malograda. Mas, como a es-

 perança é a última que morre, eu ficava até oraiar do dia, mesmo tendo que acordar às sete emeia da manhã para distribuir panfletos.

CACO – E quando foi que o pensamento filosó-fico autodidata começou a fazer a crítica de suaparticipação política até então sedutora?

KONDER – Demorou muito! A descoberta deLukács foi importante: era possível ser um mar-

 xista correto e, ao mesmo tempo, admirar osgrandes valores do passado, mesmo sendo bur-guês. Gramsci também foi fundamental. Essescaras me deram os degraus para eu me tornarmenos sectário.

POERNER – Depois, você pagou caro por ter setornado um marxista. Prisões, tortura, exílio...

KONDER – Tomei posições políticas porquestões de compromisso com meus valores. Eesse compromisso tem um preço. Não sei se pa-guei tanto... (pausa) Espero que não leiam issocomo incitação para que venham cobrar mais! 

POERNER – Quanto tempo você ficou no exílio?

KONDER – Seis anos e meio. Em 78 come-çou uma luta interna com relação à possibilidadede voltarmos ao Brasil. Se a abertura vinha da

 pressão social, tínhamos que acreditar nela, masmuito companheiros diziam que isso era ingenui-dade de nossa parte: “Querem que a gente apareça

 para cortarem nossa cabeça”. Resolvemos forçar,

8

Page 160: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 160/202

       E     n      t     r     e     v       i     s      t     a     s

mostrar que o clima havia mudado e viemos assimmesmo. Inicialmente, deu certo.

ANTONIA – Quando você voltou do exílio, teveque sobreviver dando aula, né?

KONDER – Comecei a lecionar com 17, 18anos, nos cursos de formação de base do parti-do. Não devo ter sido bom professor, porque como tempo todos os meus alunos saíram do PC.

Mas realmente, quando voltei ao Bra-sil, em 78, surgiu esta questão: o queum vagabundo pode fazer? Dar aula. Aídescobri como isto é encantador! Hojetalvez meus alunos não aprendam tan-to comigo quanto eu aprendo com eles.Em vez de transmitir respostas feitas

 para problemas já mapeados, dialoga-mos e nos defrontamos com problemasnovos, para os quais talvez nem hajasolução. Atualmente, temos discutido o problema vivo que é a morte. A finitu-de do indivíduo. A sugestão hegelianade que o indivíduo sempre passa algu-ma coisa para a comunidade, de modoque algo dele sobrevive.

RICKY  – Nós estamos aqui falando de sua vida enarrando sucessivas ondas de esperança e suas res-pectivas desilusões. A onda dos movimentos de basenos anos 60 e o golpe de 64. A onda da abertura, comsua volta do exílio, e mais tarde uma redemocratiza-ção, mas sem mudanças sociais. A onda de um go-verno de esquerda e a desilusão que vivemos agora.Como você consegue surfar nessas ondas?

KONDER – Tem um pensador socialista cha-

mado Charles François Fourier que tem algumasdas idéias mais bizarras que já li. Ele disse queo homem vai mudar ainda mais, pois, superadoo capitalismo, irá reorganizar a noção da comu-nidade em sua vida e vai viver mais tempo, vaidormir menos, porque a vida será mais agra-dável, vai aprender a ver no escuro e a respirardebaixo d´agua. Eu já cai uma porção de vezes,mas estou tentando aprender com Fourier a res-

 pirar debaixo d´água.

MARIA LUCIA DAHL – Eu queria voltar a falarda situação atual. A gente não consegue parar depensar nisso! Eu fico muito aflita: ainda há tempodo Lula dar uma virada?

KONDER – Acho difícil, não é provável. A ques-tão não é o Lula, e sim seu projeto desencadeadorinicial. Não sou crítico em relação ao Lula pesso-almente, mas não vejo mais como ele possa voltar

 pelo caminho que trilhou. Ele disse: “Não quero serum rebelde romântico, vou escolher um caminho

 político viável e adotar uma linha realista”.

RODOLFO ATHAYDE  – Realista e viável em re-lação a quê? Não está sendo nada viável. E estácompletamente fora da realidade das necessidadessociais do país.

KONDER – Ele quis que esse caminho fosseviável e realista. Para ele, eram aquelas as forçasque compunham o quadro. A sociedade brasi-leira tem um conservadorismo forte entranhadonela, e o Lula não queria entrar em conflito comesse conservadorismo. Mas jamais conseguiria o

seu apoio. Negociou acordos com o conservado-rismo, tentou mobilizar outros setores e achouque isso seria uma política realista.

RODOLFO – Antes mesmo da chegada do PT aopoder, houve um afastamento da política progra-mática com relação ao pensamento intelectual deesquerda, do qual você é um belo expoente.

KONDER – Existem condicionamentos dosquais o pensamento não toma conhecimento.

 Nunca consigo perceber o quanto sou influen-ciado por condições objetivas. Penso que estouconduzindo e sou conduzido. Lula não percebeque está sendo condicionado pela mixórdia dasociedade brasileira. Foi-se adaptando ao jogo eàs condições que ele impunha e acabou se per-dendo, travando a luta num terreno que já não éo decisivo. O que o povão quer é a justiça social,quer sair da desgraça, quer melhorar de vida,quer respirar. Isso é que deveria ser a base deuma proposta política básica.

RODOLFO – Não existia uma massa de pensa-mento crítico e coerente o suficiente para ser leva-do em conta pelo PT?

KONDER – Não havia um programa para aesquerda. Havia algumas convicções. Não cabetambém fazermos um programa precipitada-mente, sem viver uma experiência democráticade efervescência das massas, para que tragama nós elementos que futuramente possam sertransformados num programa. Não serão os in-

telectuais de esquerda que trarão subsídios, esim a experiência dos movimentos de massas.

CACO – Uma das críticas ao PT é a de que as

159

Page 161: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 161/202

massas nunca estiveram realmente presentes nasua construção. Isso teria conseqüências agora,neste modo de agir no governo?

KONDER – É um certo exagero. Na históriada esquerda brasileira, o PT tem característicasoriginais. Nasceu pós-leninista, mais dispostoa ouvir as massas. Mas não foi suficientementelonge na busca dessa interlocução.

RICKY   – Plínio de Arruda Sampaio, em umade nossas últimas entrevistas, teceu o raciocíniode que um partido de esquerda, neste momento,no Brasil, não deveria ter como propósito dispu-tar eleições para chegar ao poder, e sim trabalharnas bases, conscientizando as comunidades a fimde criar um respaldo popular que lhe garanta umfuturo quando chegar ao poder. Esse não seria umbom caminho para o PSOL?

KONDER – Não sei exatamente o que vai serdo PSOL. A idéia deste partido, inicialmente, meagrada. Precisamos de uma alternativa. Gostomuito do Plínio, uma figura humana maravi-lhosa, uma boa cabeça, mas o risco dessa po-sição dele é ser por demais romântica. Preferirnão ir pro poder pra ficar acumulando forças?Sua percepção é aguda, mas, pragmaticamen-te, todo partido busca o poder. A questão está,mais uma vez, na análise de Sérgio Buarque

de Holanda a respeito da prevalência da conti-nuidade: sem forças pra superar o que está aí,o pensamento se deixa impregnar de conserva-dorismo, por mais revolucionária e progressistaque seja sua retórica. A ida para o poder podedesarmar a pessoa, de modo a que não faça asrupturas necessárias.

POERNER – Fale um pouco mais sobre esse caráterintrinsecamente conservador da sociedade brasileira.

KONDER – Toda sociedade muda. Toda a so-

ciedade está em ação histórica. A nossa mudadevagar, sempre sobre controle, e de cima prabaixo. Sérgio Buarque de Holanda percebeu isso:tem sempre um mecanismo que mantém os debaixo desunidos, desarticulados, desorganiza-dos, garantindo, pela negociação, os privilégiosdos de cima. A persistência de determinados va-lores é, em si, um conservadorismo.

RODOLFO – Toda essa proposta baseada na so-cial-democracia não está já esgotando seu modelo,

em função das contradições do país?KONDER – Eu até gostaria de acreditar nis-

so, mas não consigo. Os problemas mais graves,

mais dolorosos e mais incômodos vão perdurar. Não estamos numa crise que caminhe para mu-danças práticas de orientação política. Há umamatriz conservadora, executores que trabalham

 por ela, e uma oposição desarticulada que levouuma paulada na cabeça e não conseguiu se re-cuperar.

POERNER – O capitalismo não está numa fase final?

KONDER – Não! Pagaram caro ao longo dahistória os marxistas, porque acreditaram nis-so. O capitalismo é inumano, é antidemocrático,mas é de uma eficiência que não deve ser igno-rada. Pra crescer a economia ele é bom.

ANTONIA – A ética conflita com o capitalismo?

KONDER – Nelson Coutinho diz: “Não sei se

o socialismo, tal como pensado hoje, correspon-de às demandas do desenvolvimento das quali-dades humanas, mas sei que o capitalismo cor-responde ao desenvolvimento dos seus defeitos”.O capitalismo, desde o seu início, se propõe aorganizar a sociedade reduzindo tudo a dinhei-ro. Uma das grandes sacações do Marx foi dizerque o dinheiro não é valor, que o dinheiro re-mete a algo que não é ele, e sim o que se podecomprar com ele. Assim, passa ser a chave queabre as portas que dão para todas as felicidadese que realiza todos os desejos. Valores autênti-cos como ética são absolutos, mas o dinheiro re-lativiza e quantifica tudo. Vinte milhões e vintebilhões, pra mim, são a mesma coisa, mas paraum banqueiro são coisas muito diferentes.

RODOLFO – Metodologicamente, a teoria mar-xista continua sendo uma arma importante?

KONDER – O marxismo está muito vivo em-bora machucado, meio tonto. Marx é meu inter-locutor dileto. Sua concepção da história e do

homem são importantes. Agora, tem coisas suasque precisam ser criticadas.

POERNER – Nós estamos falando muito de po-lítica, preocupados com a crise, mas você, maisdo que cientista político é um filósofo e escritor.Quantos livros têm?

KONDER – Não segui o conselho do meu pai.Quando publiquei meu primeiro livro, ele falou:“Meu filho; diga bobagens, mas não às escre-

va”. Tenho 25 livros publicados.POERNER – Qual lhe deu o maior prazer?

0

Page 162: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 162/202

       E     n      t     r     e     v       i     s      t     a     s

KONDER – Um de divulgação chamado O queé dialética, que foi também meu grande sucesso.

ANTONIA – A arte da palavra, seu lançamentorecente, também é para o grande público? Ou o fi-lósofo Leandro Konder intimida o jovem leitor?

KONDER – Não sei... (pausa) Não sei. Quan-do você publica livros vira um mito, né? Fui auma reunião, em Belo Horizonte, de coordenado-res de pós-graduação em educação, em que umcara chegou (dando um abraço): “Você é LeandroKonder?! Não posso acreditar! Você mudou a mi-nha vida! Mudou minha cabeça”. Chamou todomundo em volta fazendo elogios incríveis: “Temum livro seu que, quando acabei de ler, eu já nãoera mais o mesmo... um livro de uma capinhaamarela assim...”. Ficou procurando o título...Meio constrangido, tentei avivar sua memória:

“Marx, vida e obra?” Isso! “Freud, vida e obra!”(risos) E não dava pra eu corrigir a situação...

ANTONIA – Por que, em A arte da palavra, vocêreabre a experiência do realismo?

KONDER – Por interesse dos meus alunos,que começaram a puxar esse assunto. Lukácsdava muita importância às diferenças entre osgêneros literários, como a poesia, o romance,a crônica, o teatro, cada gênero tendo uma de-manda. Fiz um estudo sobre os gêneros literá-rios aplicando o conceito do realismo em Balzac– este é mole, com cenas de realismo ostensivo– e em Fernando Pessoa, onde tive que dar pi-ruetas. Com Fernando Pessoa, se o trapézio es-capasse, eu despencava no picadeiro. O ensaiodemonstra que o conceito de realismo tem quese renovar em função de cada obra de arte; eque toda grande arte é realista. Como pode serrealista um poeta como Fernando Pessoa? É pradar conta disso que o conceito de real precisaser readaptado.

CACO – Você partiu de um silogismo: toda gran-de arte é realista; Fernando Pessoa é grande arte;logo, Fernando Pessoa é realista.

KONDER – Fiquei feliz de escrever esse livro,tem material acumulado durante décadas, o quelhe dá uma certa estabilidade e clareza.

POERNER – E você está agora preparando o próximo?

KONDER – Terminei dois, para os quais faço arevisão. O primeiro é um romance policial. É meioobsceno. O título é O grande e o pequeno. Exata-mente por aquilo que vocês estão pensando! 

POERNER – Você já tinha escrito o romance po-licial A morte de Rimbaud...

KONDER – O segundo é um conjunto de en-saios sobre o drama dos marxistas hoje, comono caso de Adorno, Benjamim e Marcuse.

RODOLFO – Filósofos da Escola de Frankfurt. Elesse autodenominaram marxistas, mas se mostraramdistantes do marxismo.

KONDER – É, são marxistas desesperados.Procurei não trabalhar com um conceito muitodefinido de marxismo e aceitei a idéia de quemarxista é quem se declara como tal. Em segui-da, vejo que tipo de marxismo é aquele, porquerealmente tem coisas forçadas. Mas Marcuse émuito interessante. Walter Benjamim é brilhante 

CACO – E a experiência de escrever para jornal? Você acredita na popularização da filosofia?

KONDER – O ideal foi quando escrevi, porum ano e meio, para o Diário de Goiânia. Nin-guém comentava os artigos comigo. Mas as crô-nicas são uma coisa gostosa de se fazer. Às ve-zes escrevo coisas sérias demais, mas por erro,

 porque o jornal pede leveza. Tive uma experiên-cia engraçada com a Escola Superior de Guerra:

 por causa de minhas crônicas fui convidado a

 falar na ESG.POERNER – E você foi? Realmente é um peque-

no-burguês vacilante!

KONDER – Fiquei surpreso: “Os senhores sa-bem quem eu sou? Conhecem minhas posições?”.“Claro, sabemos, nos interessa exatamente este

 ponto de vista de esquerda”. Fui cinco vezes e que-riam me convidar de novo, eu é que não agüenta-va mais. Mas da primeira vez, cercado por aqueleverde-oliva falei: “Honestamente, confesso a vocês

que estou tenso aqui porque, há alguns anos, setivessem me chamado, eu entraria já de mãos aoalto e gritando que estava desarmado”.

ANTONIA – Você é o admirador mais ilustre doMinotauro. Fale sobre essa paixão pelo vale-tudo.

KONDER – As contradições podem me en-ganar – e geralmente enganam – mas gosto detentar enxergá-las. Não estou tão longe do reala ponto de trabalhar com uma visão harmônica.

 A harmonia é mais perigosa e ilusória que acontradição. Gosto de tocar nas contradições.Gosto das situações onde as coisas estão ex-

 plodindo. Gosto de excitações. O vale-tudo tem

161

Page 163: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 163/202

situações derivadas de um jogo absolutamentebrutal, mas no meio desse jogo há possibilida-des de a inteligência se manifestar. Tem lutado-res que só sabem lutar burramente. O Minotau-ro não é o mais forte, mas é muito inteligente.Comecei a sacar isso vendo suas lutas, comose preservava, como se poupava... Lembram deuma luta de boxe na África, com Muhammad

 Ali contra George Foreman? Muhammad Aliapanha, a toda hora está contra as cordas, pa-rece que Foreman está dominando, e isso dura

 por 11 rounds. De repente ele nocauteia um Ge-orge Foreman exausto.

RICKY – Puxa! Vocês falaram de Minotauroe pensei que íamos tratar de mitologia grega!

CACO – Nosso país é cheio de regionalismos edesigualdades, e no entanto a gente fala; assume e

ouve o tempo todo uma coisa que é a tal da “bra-silidade”, algo que nos dá unidade. Além das fron-teiras geográficas, além da língua, onde está essanossa brasilidade, no meio dessa diversidade toda?Temos uma nação madura artisticamente, com li-teratos fora de série, e ao mesmo tempo imaturapolítica e socialmente.

KONDER – Seguramente não está na obra doautor brasileiro que citei com o maior carinho,Sérgio Buarque de Holanda, que usou o conceitodo brasileiro cordial. É uma solução ruim. Agente anseia por uma certa visão em comum,um estilo brasileiro de viver e de pensar e deagir, e isso realmente existe, mas não vejo deuma forma positiva. Sou um filósofo.

CACO – Para a filosofia, é melhor fazer uma boapergunta do que dar uma boa resposta.

KONDER – Publiquei um estudo sobre o concei-to de ideologia em que me dei conta de que acabosempre questionando todos os autores. Conside-

ro todos os problemas mal resolvidos. A exceção éMarx, uma espécie de pai fundador, a quem tratocom carinho e deferência. Nos outros, dou cascudo! 

ZEZÉ – Alguma coisa que gostaria de falar antesde encerrarmos?

KONDER – Sim: que o senso de humor é fundamental. Sem humor não dá pé.

RICKY  – Ah! Então é essa a técnica pra surfaraquelas ondas das quais falamos...

KONDER – Humor e respirar debaixo d’água.

2

Page 164: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 164/202

       E     n      t     r     e     v       i     s      t     a     s

Leandro Konder 

Entrevistadores: Ziraldo, Ângela Dutra de Me-nezes, Zezé Sack, Arthur Poerner, Cláudio Cordovil,Ivan Alves Filho e Sérgio Augusto.

 Arthur Poerner   – É um prazer especial in-dicar o Leandro Konder para esta entrevista. Éum queridíssimo amigo que não via há muitotempo, companheiro de exílio. Antes mesmo euconheci sua família, dona Yone [mãe], conhecimuito o pai dele...

Leandro Konder – Se bem que eu pareço muitomais velho do que ele. Mas é uma amizade que euherdei do meu pai.

Poerner  – É verdade. Grande Valério Konder,figura ilustríssima, que todo dia se animava, àtarde, ia para a cidade, médico, sanitarista, ia àsreuniões...

Leandro – Velho bolchevique! 

Poerner  – Velho bolchevique. Estou falandoda fase posterior ao golpe militar. A resistênciacultural era muito concentrada na Editora Civi-lização Brasileira, do Ênio Silveira. O velho Va-lério todo dia se preparava ali da Praça GeneralOsório, e saía para a cidade para encontrar oÊnio e outros.

O reacionário mais furioso votaria na esquerda radical após conversar com o pensador marxista LeandroKonder, eleito o Intelectual do Ano pelo Fórum do Rio de Janeiro, da Uerj. Não por uma afinidade de idéias,naturalmente. Mas é que Leandro, ex- integrante do Partido Comunista Brasileiro, é uma figura cativante.Não há alma neste planeta que não seja confrontada por sua serenidade, bom humor, camaradagem, falamansa e idéias afiadas. Filho de pai comunista, o médico sanitarista Valério Konder, este professor de Fi-losofia da Educação da PUC-RIO dedicou quase cinco décadas de sua vida a pesquisar o legado de Marx. Egarante que ainda há ali água para o moinho do pensamento crítico de que precisamos. “Acho que a fecun-didade de Marx está longe de ter se esgotado”. A opção pelo marxismo surgiu cedo, aos 14 anos, intrigadoque estava por entender a esquerda que apaixonou seu pai e que o levou 20 vezes à prisão. Nesta vida depaixões e ideais que deram à família Konder um misterioso estado de graça, notável a quem dela se aproxi-ma, relatos de prisão são contados com humor pasquiniano por dona Yone, sua mãe. Presa ‘por engano’, elachegou a pedir com educação a seus captores para colocar ela própria o capuz. A amizade de Leandro como irmão Rodolfo daria uma peça teatral, na visão de Ziraldo. Rodolfo não se conformara com o fim da UniãoSoviética. “Fomos enganados!” Desorientado, buscou novas saídas, incluindo a decisão corajosa de aceitarconvite para ser secretário de Cultura do governo Maluf, em São Paulo. Mas o bom filho à casa torna, e Ro-dolfo já retoma seus caminhos à esquerda. O muro de Berlim caiu, mas para Leandro a fé na vida continuaintocável: “Eu mantenho a esperança. Gratuitamente, sem nenhum fundamento”.

(Cláudio Cordovil) 

Entrevista do Jornal O PASQUIM  de 02/07/2002 

163

OSerenoRebelde 

Page 165: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 165/202

Sérgio  – Mas, Leandro, vamos voltar umpouco mais atrás.

Poerner – Mais ainda?

Sérgio - ... falar da sua infância. É verdadeque você leu O Capital, primeiro volume só, aosquatro anos de idade?

Ivan Alves Filho – Ele revisou!

Leandro [brincando] – Acho que aos quatro anoseu já estava no segundo volume. Eu achei sensacio-nal encontrar mais tarde um marxista inglês, WilliamMorris, que disse assim: “Eu virei um marxista sim,mas não consegui ler O Capital. Vou logo avisando...”Ele era um intelectual corajoso. “Tentei ler mas nãoconsegui. Meu cérebro conheceu o medo da disso-lução, do caos” – disse ele. Eu consegui ler O Capi-

tal e montamos um grupo, isso já em 1960. O grupoacabou reduzido a duas pessoas, eu e um economista– cujo nome eu não direi –, que aprendeu com Marx oque era o capital, ficou muito rico e abandonou com-pletamente aquelas maluquices de esquerda.

Sérgio – foi um livro de auto-ajuda, de algu-ma forma.

Leandro – Um livro de auto-ajuda, exatamente! 

Sérgio – Mas como foi sua formação? Vocêsempre foi um garoto muito curioso e aprendeua ler cedo? Este negócio de ter um pai comunis-ta ajuda na formação de alguma forma.

Leandro – Pai comunista era um problema porque,meu velho, com essa coisa de ser visível (o Partido eraclandestino, mas ele era visível) foi preso 20 vezes. Eisso para mim era um problema desde cedo. Queriaentender. Conhecia meu pai e os amigos dele e acha-va que eles eram meio bizarros, meio doidinhos, masnão eram perversos. Por que as pessoas prendiam

meu pai e os amigos dele? Isso para mim já foi umponto de partida. Eu queria entender melhor o queera a esquerda e a cabeça dos que a reprimiam.

Ivan – Que idade você tinha nessa época?Quando você começou a formular este tipo deinquietação?

Leandro – Catorze ou 15 anos de idade. E aí pa-pai foi candidato ao Senado, eu participei da cam-panha. Tinha um comuna que já estava de olho e

perguntou: “Você não gostaria de desenvolver umaatividade política permanente, não só durante acampanha eleitoral? E aí ele me recrutou com 15anos para a União da Juventude Comunista. Na-

quele tempo, não se entrava direto para o Partido[Comunista Brasileiro].

Ivan – Aliciamento de menores.

Leandro – Agora, eu era um mal militante porqueo programa mais interessante de minha vida erafestinha de sábado à noite em Ipanema. Eu tinhaesperanças absolutamente vãs de conquistar umasmoças que, naquele tempo, eram muito pudicas,estritas em matérias de costumes. Então, eu nãoconquistava ninguém, mas varava a madrugada.E a principal tarefa acontecia no domingo de ma-nhã, seis da manhã: encontrar-se para subir o morroe distribuir material de propaganda na favela. En-tão, existia uma incompatibilidade entre a festinhade sábado e a tarefa de domingo. Eu acabava nãoconseguindo. Eu faltava.

Sérgio – Não emendava, não?

Leandro – Tentava emendar e não conseguia. Di-zia que ia tirar uma soneca de 20 minutos, dormia enão acordava nunca. Então era criticado, fazia au-tocrítica também, sentia-me um burguês vacilante.

Sérgio [rindo] – Vivendo entre a sacanageme a panfletagem.

Leandro – Eu não consegui resolver o problema e

acabei sendo suspenso. Fui suspenso por uma medi-da disciplinar: desidioso [preguiça, inércia, indolên-cia, negligência]. Sentia-me mal porque era desi-dioso mesmo. Fui salvo por Nikita Kruschev, quandodenunciou o estalinismo [no XX Congresso do Par-tido Comunista da União Soviética, em fevereiro de1956, Nikita Kruschev, dirigente da União Soviética,denunciou os crimes de Stálin, seu antecessor]. Daímudou tudo. Eu virei herói e confesso que não me-recia. Os caras diziam assim: “Você foi pioneiro daluta contra os métodos estalinistas”.

E eu falava: “Pioneiro porcaria nenhuma”. Por-

que eu achava que os métodos estalinistas eramhorríveis, mas eram naturais. Uma organização re-volucionária tinha que funcionar daquela maneira.Nunca fui contra, não.

Ivan – Você é que gostava de festas demais.

Leandro [irônico] – Eu era um pequeno-burguês.Mas aí fui salvo por esse mal-entendido. NikitaKruschev denunciando o estalinismo, e eu conside-rado precursor da luta contra Stálin.

Ivan – Você é formado em Direito, né?

Leandro – Formado em Direito. Fui advogado

4

Page 166: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 166/202

       E     n      t     r     e     v       i     s      t     a     s

trabalhista, advogado do Sindicato dos Trabalhado-res na Indústria de Calçados. Claro que os dirigenteseram comunistas e esse negócio foi mediação doPartidão [como é chamado carinhosamente o Par-tido Comunista Brasileiro].

Poerner – Na época em que existiam os Cal-çados Clark.

Leandro – Existiam os Calçados Clark e os diri-gentes do sindicato queriam muito recrutar a mas-sa que era trabalhadora de salário mínimo. A massanão vinha para o sindicato. Quem vinha eram os ar-tesãos, que faziam sapatos de mulher, sapatos desalto alto chamados de ‘Luís XV’. Eles eram os ar-tesãos luizquinzeiros, ganhavam bem, por tarefa, eeram comunas.

Sérgio – Queriam fazer a segunda revolução

dos sapateiros.

Poerner  – Você depois fez um concurso paraprocurador de Estado?

Leandro – Não. Eu era assistente jurídico e osprocuradores ganhavam bem. Como assistente ju-rídico, vivi uma situação muito interessante. Haviauns assistentes e procuradores do Estado que erammuito inteligentes. Raymundo Faoro eu conhecilá, procurador do Estado. Otto Lara Rezende tam-

bém. Eu fugia de minha sala para ir onde Otto es-tava para ouvi-lo contar histórias de Minas. Um dia,Otto está contando causos e chega outro procuradornervoso dizendo: “Saiu uma portaria de sete laudasdo doutor Sigaud, doutor Eugênio Vasconcellos Si-gaud, procurador-chefe, mudando o sistema de tra-balho, institucionalizando o plantão dos procurado-res”. E o cara chegou e perguntou: “Otto, você já leua última Portaria do doutor Sigaud?” “Ô, meu amigo,eu não li Dante, Petrarca, esses gênios da literatura,vou ler o doutor Sigaud?”, respondeu Otto.

Sérgio – Mas aí como é que você começou?Foi fazer o curso de filosofia...

Leandro – Não. Eu fui autodidata. Cheguei apensar em fazer o curso, mas [o cientista político]Wanderley Guilherme dos Santos disse: “Não façaisso! Estuda por conta própria.”. E eu disse: “Mas au-todidata delira”. “Melhor delirar do que fazer aquelecurso”, respondeu ele.

Sérgio – E sua relação com a imprensa do

Partido? Como é que você estreou ata fazeraquela denúncia onde ficou a favor dos escri-tores russos [Yrei Siniavski e Yuli MarkovichDaniel foram julgados e condenados no outono

de 1965 por terem publicado obras não-confor-mistas no estrangeiro]?

Leandro – Do Siniavski e do Daniel. Eu fiquei con-tra a medida que estavam tomando: prender os ca-ras por causa de escritos e de literatura. Escrevi umartigo em defesa deles no jornal Folha da Semana,do qual eu era editor cultural. E disse: “Olha, vou pu-blicar um negócio aqui porque quero que a direçãotome conhecimento. Conheço meus limites, sei quehá um problema delicado. Sei que o Partido, atravésde sua direção, concorda sempre com os soviéticos,e aqui tem uma divergência. Eu estou criticando ossoviéticos”. Falaram com alguém na direção e à noi-te chegou a resposta: “pode rodar”. Saiu o artigo pu-blicado e era a primeira vez que um jornal do PartidoComunista Brasileiro criticava uma coisa que tinhasido determinada pelo Partido Comunista da UniãoSoviética, que era a condenação dos dois escrito-

res. E criticava dizendo o seguinte: que os escritorespoderiam ser horrorosos, não sei, não li, mas é umaquestão de princípios: escritor não pode ser punidopor escrever. Poderiam ser punidos por cometeremum crime, mas o Estado não tem que interferir nis-so. A sociedade civil condena o cara porque ele estásendo reacionário. Se o Partido tem hegemonia nasociedade civil, condena perante a opinião pública,mas não na instância judicial. Isso saiu publicado!O velho [Valério, pai de Leandro] ficou puto: “Agoraresolveu divergir da direção do Comitê Central do

Partido Comunista da União Soviética!”.Sérgio – Dissidente em sua própria casa.

Ziraldo – Virou o Leonardo Boff.

Poerner  – Mas aí já estamos falando da fase...Isso foi antes do golpe...

Sérgio – Isso foi em 1966.

Leandro – No teu jornal! [referindo-se a Poerner].

Você estava envolvido nessa história também.

Ivan – A União Soviética começou a cair aí.

Poerner  – A Folha da Semana era o semaná-rio legal do Partido. Nessa época o debate eramuito acalorado ali no Pizzaiolo, onde tinhaMilton Temer, você, Nelson Xavier, a gente sereunia muito ali, lembra-se disso?

Leandro – Lembro. O Partido foi um pouco a esco-

la dos grupos que se desenvolveram depois do golpe.A esquerda já tinha começado a rachar antes, coma criação do Partido Comunista do Brasil (PCdoB),mas a proliferação de grupos em concepções dife-

165

Page 167: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 167/202

rentes foi posterior ao golpe e foi uma reação contraa incapacidade do Partido Comunista de tomar umaposição definida. Esta perplexidade foi vista comhorror pelo pessoal mais combativo e os grupos seformaram e partiram para direções diferentes.

Ivan – Mas naquele momento você ficou coma posição do Comitê Central.

Leandro – Fiquei. Eu achava que a análise da cor-relação de forças, que nunca foi nosso forte, mos-traria que não havia como fazer, não dava para vocêacreditar que a luta armada mudaria o regime, queela seria vitoriosa. Eu discuti muito e ficava meiomal porque quando os caras perguntavam qual eraa alternativa eu dizia: “Bom, a alternativa, não seibem”. O ponto fraco da nossa posição era esse, semdúvida. Mas eu tive muitos amigos que fizeram aopção pela luta armada.

Poerner  – E eu era diretor. Tive até os direitospolíticos suspensos. O Sérgio Cabral era secretário.

Leandro – Eu era editor cultural e tinha um co-laborador de cinema que era o Alex Viany, que eradisciplinadíssimo, fazia todas as tarefas. Mas, ecompensação, tinha uma coluna de teatro que eraum problema permanente enquanto o jornal durou,um ano e meio, dois anos.

Poerner  – Menos de dois anos.Zezé Sack – E sua amizade com o José Gui-

lherme Merquior [diplomata, sociólogo, escritore bacharel em Direito, de perfil conversador, fa-leceu em 1991 aos 50 anos de idade].

Leandro – Ele era um sujeito extraordinariamen-te competente, que lia tudo, e que tinha uma atitu-de muito generosa com relação a mim. Eu chegavasempre com algumas novidades, ela já conheciatodas. E ele tinha novidades que dava para mim,

passava a dica, “você tem que ler isso, ler aquilo etal”. Isso é uma coisa importante, porque hoje emdia não dá para ler tudo. Aliás, não dá para ler quasenada. Então, é importante ter alguém que tenha lidoe te diga o que conheça, que você saiba como pensa,que te dê algumas informações que possa usar.

Poerner  – Isso foi, sobretudo, no nosso tem-po na Alemanha.

Leandro – nosso tempo de Alemanha. Ele esta-

va lá como funcionário diplomático e me convidavauma vez por semana para comer na casa dele, o queeu aceitava.

Ziraldo – Mas o Merquior nunca passou pelaesquerda não, né?

Leandro – Não, ele teve um momento no plano te-órico, nunca no plano político, em 1963. E foi o únicomomento em que aprendeu alguma coisa comigo efoi sobre Lukács. Ele descobriu Lukács. Até o final davida ele o respeitara. Mas esta admiração nunca setraduziu em uma posição política, de esquerda.

Ivan – Então essa aproximação não era polí-tica, era pela estética.

Leandro – Era pela teoria estética.

Poerner  – Mas como Terceiro Secretário do Ita-maraty ele era considerado de esquerda, jovem.

Leandro – Sempre recaiu sobre ele esta suspeita,

“ele escreve umas coisas meio estranhas e tal”, e eletinha essa generosidade de me convidar e eu comiae bebia o seu scotch e mostrava que não me deixa-va corromper porque esculhambava a classe dele, aburguesia. E numa dessas ocasiões, num desses jan-tares, lembro-me do [jornalista] Fernando Pedreiraque estava convidado por ele e me ouviu, eu tiveuma crise de leninismo [o desenvolvimento da con-cepção científica da sociedade proposta por Lênin eMarx] agudo e ele ficou horrorizado.

Ziraldo – Mas quem teve a crise?Leandro – Eu tive.

Ziraldo – Mas o Pedreira também teve.

Leandro – Muito antes, no passado. Fernando já estava curado e se defronta com um novo surtode leninismo presente no conviva do jantar. E outrapessoa que estava lá e me ouviu fazer um discursoduro foi o Fernando Henrique Cardoso.

Ivan – Este não assimilou nada, então.

Leandro – Mas o Fernando era engraçado. Eu di-zia coisas como (eu estava já meio bêbado) “tudobem, Marx vocês engolem porque ele é filósofo, maso Lênin pegou a classe de vocês e top top (faz o ges-to obsceno de quem diz que prejudicou a vida deoutrem)”.

Ivan – Paredão.

Leandro – Não era propriamente um argumentosofisticado.

Ziraldo – Como é que foi sua convivência

6

Page 168: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 168/202

       E     n      t     r     e     v       i     s      t     a     s

com Fernando Henrique Cardoso, Leandro? Vo-cês eram amigos, não?

Leandro – Não, não éramos amigos. Encontrei-ona Alemanha, eu estava correndo daqui, auxiliadopor dois alemães que não tinham nada de comunis-tas, eram pessoas de inclinações conservadoras, masque estavam horrorizadas com aquela repressão noBrasil, com a ditadura militar. Então me ajudaram achegar à Alemanha e a me instalar lá.

Sérgio  – Era bom precisar a data para onosso leitor.

Leandro – Foi em 1972. aí essa moça, uma dasminhas amigas lá, disse: “Amanhã tem um congres-so de sociólogos na Universidade de Bonn e tem umbrasileiro, eu não sei quem é”. Eu disse: “Ah eu vou láver”. E o brasileiro era Fernando Henrique Cardoso.

Foi a primeira vez que conversei com ele, em Bonn,no dia seguinte ao da minha chegada. Ele ficou exi-lado na Alemanha. Era uma cara de esquerda, pos-teriormente eu estive com ele na casa de Merquior,tive alguns encontros com ele, poucos, mas encon-tros que sempre me deixaram com a impressão de setratar de um cara de esquerda. No Brasil, participeiem 1980, em São Paulo, numa mesa-redonda comele, fiquei sentado ao lado dele...

Sérgio – Cebrap (Centro Brasileiro de Análise

e Planejamento), não? Leandro – Cebrap. Então como tinha alguém

falando pra não interromper, eu passei um bilheteperguntando “Você leu um artigo de Carlos NelsonCoutinho que tem críticas muito duras a você? Elerespondeu: ”Li e aprendi muito com o artigo, gostomuito da franqueza do Carlos Nelson” e tal. Trouxeesse bilhete manuscrito, dei pro Carlos Nelson e ele

 jogou fora, pó! 

Ivan – Falta de visão histórica.

Zezé – Eu me lembro de um encontro seu nosanos 80, em um programa da TV Educativa quetive a honra de produzir, com o José Guilher-me Merquior, que estava lançando um livro Aderrota da dialética. E ele na hora da conversainverteu e disse A dialética da derrota e vocêfalou: “Isto é ato falho, José Guilherme!” Foimuito interessante.

Leandro – Ele fez uma comigo na televisão que

foi sensacional. Ele falou que não acreditava maisem esquerda e direita, que esta dicotomia estava ul-trapassada. E eu retruquei: “Você sabe que o filósofoAlain, que não era Marxista, dizia que toda vez que

ele ouvia falar em essa dicotomia estava ultrapas-sada ele observava bem a pessoa que falava e per-cebia que ela nunca era de esquerda”.

Poemer – Quem disse isso?

Leandro – O Alain.

Ivan – Um francês ligado ao Partido Radical,das classes médias da França, um filósofo muitointeressante, um humanista.

Leandro – Isso. E eu citei e o José Guilherme medeu o troco. “Não, eu entendo a posição do Alain,é uma posição inteligente porque esta era a posi-ção real na França na primeira metade do século 20.Era o que ele via, ele tinha razão. Mas agora mu-dou muito, né, Leandro? Agora é difícil dizer quem éesquerda e quem é direita. Você diria, por exemplo,

que Leonid Brejnev (ex-dirigente do Partido Comu-nista da União Soviética) é esquerda? Aí eu fiqueigago: “em termos, em termos”.

Ziraldo – Podíamos falar um pouco de seuirmão também (Rodolfo Konder), do caminhode vocês dois?

Leandro – O Rodolfo foi um militante apaixona-do e que depois ficou muito decepcionado com acoisa da União Soviética. Ele dizia: Eu fui enganado!

E eu pra ele: “Não! Nós nos enganamos, é uma coisadiferente. “Nós queríamos ser enganados. Então aíveio a coisa da União Soviética, que foi muito do-lorosa pra ele. Ele saiu do Rio, foi pra São Paulo edesenvolveu uma trajetória toda peculiar. Na épo-ca, fiquei muito assustado: aceitou ser secretario deCultura do Paulo Maluf.

Ziraldo – É, mas você fez uma coisa boa, bo-tou uma avenida com o nome de Hélio Pellegri-no em São Paulo, e isso é ótimo.

Leandro – O Rodolfo aproveitou a coisa do Malufpara ser um bom secretário de Cultura.

Ziraldo – Todo mundo sabe disso.

Leandro – Maluf para mim é um nome simbólico.

Ivan – Pois é. E que símbolo!

Leandro – Minha vida é uma trajetória pontilha-da de sustos.

Ziraldo  – Mas é engraçado conversar com você sobre o destino pessoal dos companhei-ros depois da dissolução da União Soviética. A

167

Page 169: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 169/202

rapaziada está toda aí, toda em seu lugar. Vo-cês estão minando o sistema por dentro, é isso? Acho que você tinha que escrever um livro sobreesse negócio porque você é um humanista. Achoque essa coisa de destino de cada um, como afé em uma porrada de princípios agiu em nossas vidas... Não é do cacete essa conversa?

Leandro – Acho que tem um problema político,ficou muito difícil propor um programa políticoconvincente, definido, realista. Tem a questão dosprincípios éticos que é uma coisa delicadíssima. Emalguns momentos há um afrouxamento deles e háum estilo pessoal de se viver as coisas que se be-neficiam da tolerância. Sei que os clássicos do li-beralismo usaram esse conceito de tolerância meiocalhordamente em alguns momentos: você tolera oque é intolerável. Não pode ser assim. Mas uma cer-ta tolerância básica é fundamental.

Ziraldo – Deixa eu te fazer outra pergunta jáque eu toquei no assunto. Você levou um sustoquando viu o Rodolfo em São Paulo, depois fa-lou de tolerância, mas como é que foi a conver-sa dos dois irmãos, porque isso dava uma peçade teatro do cacete. Mas eu desisti.

Leandro – A própria vida não teve competênciapra desenvolver essa peça, porque não houve esse...Houve alguns diálogos, em geral curtos, porque da

minha parte aconteceu um certo desânimo. Tudopor causa de uma frase de um escritor que estavaesquecido e agora está sendo relançado, um escri-tor carioca chamado Marques Rebelo, figura muitocuriosa. Ele tinha uma frase assim: “ninguém con-vence ninguém porque quem se deixa convencer jáestava convencido”. Isso me vem freqüentementeà cabeça. E eu começava a discutir com o Rodolfoe dizia “mas eu não vou convencê-lo porque ele jáestá convencido de outra coisa”.

Ziraldo – Onde ele está agora?

Leandro – Ele está meio que refazendo o seuacervo princípios e convicções em um deslocamentopara a esquerda.

Sérgio (brincando) – Pensei que você ia dizerque estava com o Quércia agora.

Ziraldo – Está vindo aos poucos...

Ivan – Sem pressa pequeno-burguesa, né?

Poerner - Estávamos falando daquela época e, tal- vez fosse bom falar, que o que levou você ao exílio foia prisão. Inclusive foi torturado, é importante falar.

Ziraldo – Como é que foi essa história? Porque e como pegaram você?

Leandro – O Partidão tinha um comitê cultural...

Ziraldo – Ah! Espera aí. Você foi preso na-quela coisa do Jornal do Brasil, quando o restodo Partidão todo levou o Marco Antônio?

Ivan  – Não ele foi preso em 1971, não?O Marco Antônio foi em 1974.

Leandro – Eu fui em 1970.

Ziraldo – Mas foi uma traição. Ninguém espe-rava mais que fosse ter aquilo e deram aquela...

Leandro – Aí envolveu problemas internos, quei-xas e suspeitas. O lado noturno de um partido revo-

lucionário é meio assustador. A história é a seguin-te. O partido tinha um negócio chamado de “ComitêCultural do Rio de Janeiro”, que era um comitê naqual faziam parte Dias Gomes, Ferreira Gullar, AlexViany, tinha um grupo de pessoas que dava assis-tência às reuniões da base de teatro, de cinema.Este comitê, que eu me lembre, nunca condenouobra nenhuma de ninguém. Mas pé engraçado queo pessoal de fora, o Paulo Francis, por exemplo, nun-ca pertenceu ao partido, foi trotskista, mas nuncapertenceu ao Partido Comunista, tinha uma visão

do Partido totalmente irrealista. Eu me lembro dediscutir com ele e dizer:”Francis, o Partido não temessa eficiência não”. O Francis imaginava uma coisameio demoníaca, portanto meio eficiente. Eu dizia:“É muita inépcia. É um lugar bacana porque discuti-mos ali exatamente nossas perplexidades. Cada umtem sua opinião, mas não há consenso”. O ComitêCultural estava querendo tirar uma revista, seriaevidentemente uma revista política com mascarade cultura. Começamos a procurar informações, or-çamentos e tal, e de repente o cara que estava comesse material na mão foi preso e muito torturado e

entregou tudo. Aí veio aquela coisa de o que fazeragora (cair na clandestinidade?). Algumas pessoasoptaram por ela, mas outras resolveram levar vidalegal, tipo “sei que vou ser preso, mas o quê vou fa-zer?” Estão muito mais preocupado com a luta ar-mada do que conosco, então vão nos prender, mas agente se segura”. Eu fiquei legal. Mas acontece umnegocio complicador: a irmã da minha ex-mulhercasou-se com o secretário de organização do Par-tido Comunista Brasileiro, José Salles. Eles queriampegar o Salles e sabiam que eu o encontrava. Então

me prenderam. Sérgio – Você ficava no índice remissivo deles?

8

Page 170: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 170/202

       E     n      t     r     e     v       i     s      t     a     s

 Leandro – Ficava no índice remissivo. E aí elesdisseram o seguinte: ”Você tem de entregar o JoséSalles”. E eu respondi: ”mas eu não sei onde elemora”. Não sabe. Vocês são amigos, concunha-dos!” “Sim, mas eu sou uma pessoa legal e ele éuma pessoa completamente clandestina e é secre-tário de organização do Partido Comunista Brasi-leiro. Então, vocês que tem experiência sabem queeu não posso ter o endereço dele, ele não pode medar”. “Não vocês eram muito amigos! Vocês têmintimidade.” Aí foi um abacaxi danado. Eu falei:“Pó não posso nem entregar o fdp, porque não sa-bia mesmo o endereço dele”.

Ziraldo – Mas você foi torturado?

Leandro – Não. Ele escapou. Ele não foi preso,porque queriam esse endereço dele.

Ziraldo – Você foi torturado?

Leandro (desconversando) – Mas também nãoinsistiram muito não, quer dizer...

Ziraldo – Viram que você não sabia mesmo.

Leandro – Acho que eles perceberam, mas tentaram.

Ivan – E aí você decidiu sair do país apóseste episódio.

Leandro – Pois é. Aí o advogado na época disseo seguinte: ”Normalmente os processos feito pelosmilitares são mal feitos. Eles não tem assessoria ju-rídica muito boa, mas o teu processo está bem- feito.Então tudo indica que você será condenado”. Entreoutras coisas, eles pegaram lá em casa também ma-terial subversivo em grande quantidade, impresso.Foram lá no apartamento e pegaram.

 Ivan – Tipo o que, Voz Operária?

Leandro – Não. Pior. Tinha um negócio que eraum jornal que o Luiz Inácio Maranhão...

Ivan – Foi assassinado.

Poerner  – Do Rio Grande do Norte.

Leandro – ... que tinha um jornal que era cha-mado Foto Novo, que era uma aliança com a direitamilitar nacionalista, uma coisa muito doida. Entãoo Partido dizia para não distribuir aquilo e pilhas se

acumulavam lá em casa. Até explicar... Aí aconteceuo seguinte: eu fui para a Alemanha, mas depois fuiabsolvido. Já estava na Alemanha, trabalhando lá.

Ivan – Você foi ser correspondente da Visão,quando eu cheguei.

Leandro – exatamente. Para poder arranjar um jeito de legalizar minha permanência. E aí eu fui ab-solvido. Nessa hora meu tio entrou na história e deuuma idéia sensacional, que era dizer: “O pai dele jámorreu, mas esses subversivos custam muito a to-mar conhecimento das novidades, então mandameste material subversivo para o pai dele, que, estan-do morto, já não pode ser punido”. E aí ele pegou omaterial e conseguiu um envelope com o nome domeu pai. Pronto, destruiu a prova. Mamãe foi presatambém, ficou 11 dias na prisão.

 Yone – Eu já contei para eles a minha his-tória. E a minha filha diz que eu adoro contarporque eu fui proibida de contá-la pelos mi-litares. Eu fui presa pelo Exército, passei 11

dias, primeiro no Dops, e eu sou muito otimista.Quando me chamaram de madrugada, eu pen-sei: “Vão me soltar”. Mas aí eu fui encapuzada.Quando foram colocar o capuz, eu disse: “Podedeixar que eu mesma coloco”, que eu não gostode nada apertando no pescoço. Aí a moça que vinha atrás disse assim: “esta comuna já estátão traquejada que até já se oferece para colo-car o capuz”, aí no último dia fui levada paraa Marinha. E a pessoa que me integrou falou:“O exército viu que realmente a senhora não

tem nenhuma atividade política, mas, para nãocriar um acaso entre a Marinha e o Exército, asenhora não conte para ninguém que estamossoltando a senhora”.

Leandro – E aí eu fui solto, mas fui aconselhadoa ir para o exterior. E fui ajudado Poe este casal dealemães. Fui para Bonn e fiquei lá. Primeiro comeceia fazer um doutorado em Marburg, uma cidadezi-nha muito simpática, meu orientador acabou sen-do um índio colombiano chamado Rafael GutierrezGiraldo que se casou com uma alemã e foi aluno de

Heiddeger no início do pós-guerra. Ele era marxista-heideggeriano...

Ivan – Pior do que aquele samba-enredo que você narrou.

Ziraldo – Você ficou quanto tempo na Ale-manha?

Leandro – Fiquei cinco anos.

Ziraldo – Cinco anos sem voltar aqui?Leandro – Cinco anos e depois fiquei mais um

ano e meio na França.

169

Page 171: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 171/202

Ziraldo – Você leu a entrevista do [Ferreira]Gullar em O PASQUIM 21, onde ele fala sobre ocapitalismo? Está lembrado?

Leandro – Estou lembrado.

Ziraldo – Porque tem essa coisa do lado má-gico do capitalismo, muito bem colocado, que oque o capitalismo oferecia era demais para vocêpoder enfrentar com a sua fé.

Leandro – O Carlos Nelson Coutinho tem umafrase de que eu gosto muito. “Eu não sei se o socia-lismo vai conseguir prevalecer apoiado nas qualida-des humanas. Mas, seguramente, o capitalismo serevelou eficientíssimo na exploração dos defeitoshumanos”.

Sérgio – É isso mesmo.

Ivan – Premia o mau caráter.

Poerner  – Na Alemanha nós tínhamos umabase do Partido, lembra? Eu era o secretário.

Leandro – Você vê que a nossa base vivia numestilo muito peculiar.

Cláudio Cordovil – O Ignácio Ramonet, di-retor do Le Monde Diplomatique, na entrevista

que deu a O PASQUIM 21, disse que o grandemistério do nosso tempo era a causa do colapsoda União Soviética. Segundo ele, era algo quenão estava previsto e ninguém consegue conce-ber como teria se dado. Você tem alguma leiturasobre isso?

Leandro – A União Soviética para mim era desdehá muitos anos uma coisa misteriosa. Como é queaquilo funcionava? Eu virei comunista um pouco naconvicção de que o Marx tinha uma idéia utópica,mas fascinante, que era do fim do Estado. Eu che-

guei à União Soviética (fui três vezes à União Sovié-tica, todas as três muito rapidamente) e o que maisvia era o Estado.

Sérgio – Era a coisa mais antimarxista possível.

Leandro – Mais antimarxista imaginável.

Ziraldo – Aqueles livros de capa amarela, abiografia o Marx, foi você que escreveu?

Leandro - Foi.Ziraldo  – Eu sempre fico na dúvida se foi

 você ou o Rodolfo, porque eu li.

Leandro – Eu me lembro uma ocasião em que o Mil-ton Temer veio falar: “O Ziraldo gostou do teu livro!”.

Ziraldo – Eu lembro que fiquei animadíssi-mo porque eu queria filmar. Ele fez um roteirocinematográfico [dirigindo-se a todos]. Era dequal editora?

Leandro – Inicialmente era José Álvaro. Depois aPaz e Terra comprou. Tenho até uma história diver-tida daquele livro com a capinha amarela. Eu umavez fui a Belo Horizonte em um negócio do departa-mento de educação da Puc, uma reunião de coorde-nadores da pós-graduação. Fui para lá e achei umachatice, discutindo coisas chatíssimas. De repente,se aproxima um cara dizendo “pó, você é o Lean-dro Konder? Cara, to emocionado de conhecer vocêpessoalmente porque você mudou a minha vida, feza minha cabeça. Você fez um livro incrível que fez

a minha cabeça de maneira irreversível. Eu penso oque penso graças a você. Você e seu livro Freud: vidae obra”. Eu não pude corrigir porque qualquer coisaque eu falasse seria uma catástrofe.

Sérgio – O cara teve que bancar...

Leandro – Banquei.

Ziraldo – Até aí este era o meu discurso, sóque eu ia falar “Marx”.

Leandro – Eu tenho uma idéia de que o Marx re-almente é meu interlocutor predileto, um cara queainda é o número 1, o mais importante, mas ficoimaginando como seria conhecê-lo pessoalmente.Não dava para ser amigo cara.

Ziraldo – Primeiro não tomava banho, nãofazia a barba...

Ivan – Cheio de furúnculos.

Ziraldo – Cheio de piolho e ainda comia aempregada! No livro, uma simpatia é o Engels.Porque ele fica bem, aquele negócio da mulherde Marx dizer “volta, vem cá que o Marx estáem crise”.

Leandro – Depois que o Marx morreu, o Engels semanteve muito em contato com as filhas dele, con-tinuou dando dinheiro para elas. E tem uma cartadele onde Engels, com muita intimidade, fala em umcongresso em que foi em 1893, eu acho (ele morre

em 1895). Escreve uma carta para a filha do Marxdizendo “conheci aqui uma operária, uma graça,sensacional e ela, por incrível que pareça, está inte-ressada em mim”. E ele fica lisonjeado ainda.

0

Page 172: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 172/202

       E     n      t     r     e     v       i     s      t     a     s

Ivan – Comunista comia criancinha, né?

Cláudio Cordovil – Com relação à crítica mar-xista atual. Nos Estados Unidos vemos a proe-minência do Frederic Jameson. Ainda há algoque o marxismo pode dizer para nós, apesar detoda esta ideologia que diz que está ultrapassa-do? Por que vemos a proeminência dos críticosmarxistas no diálogo contemporâneo?

Leandro – Acho que a fecundidade do Marx estálonge de ter se esgotado. Marx, depois que acaboua União Soviética, inclusive, pode ser relido numaabertura muito maior. Antes, entre nós e Marx haviaaquela pretensa realização do marxismo na práticaque era a União Soviética. E que era complicadíssi-ma, desanimadora. Agora não. Você vai a Marx e fi-cou mais complicado. Onde é que isso pode ser pos-to em prática? Mas há a idéia de que o pensamento

dele é muito fecundo sim. Acho que não só temosmarxistas interessantes, como Perry Anderson, in-glês, e Frederic Jameson, norte-americano, mas vêse também na obra de autores que não são estri-tamente marxista uma utilização do instrumental.O Marx está muito presente. Entre historiadores istoé impressionante. Os grandes historiadores que nóstemos são devedores de inspiração marxista, EricHobsbawm, por exemplo.

Ivan – E no plano dos partidos políticos isso

não acorre. Será que é um mecanismo de com-pensação? Antes isso ocorria demais... Não háaí também uma coisa mal resolvida não?

Leandro – Eu acho uma coisa mal resolvida, semdúvida. Acho que inclusive a gente não vai conse-guir reler Marx de uma maneira mais fecunda senão resolver esse problema da tradução do pensa-mento dele em ação.

Ivan – Que é método de análise e guia para ação.

Leandro – Foi experimentado e não deu certo.Mas o desafio persiste. A gente continua a pensarcomo é que vai fazer para criar uma sociedade so-cialista. Mas, se não quiserem este nome, mais jus-ta, mais democrática.

Poerner – Você não acha que o desmantela-mento da União Soviética e do bloco do lestefoi a derrota de um modelo de socialismo e nãodo socialismo?

Leandro – Ah sim! Sem dúvida. Eu acho que asexperiências socialistas têm tido diferentes grausde dificuldades e, em alguns casos, fracassos es-trondosos sem dúvida, no caso da União Soviética.

Mas uma experiência socialista que mostra um êxi-to muito bem definido eu não conheço. Então é umacoisa muito complicada para nós. Talvez o Chile deAllende, se as circunstâncias não tivessem sido tãotrágicas. Mas é difícil, porque a social-democraciatambém não funcionou historicamente. Os paísesque tentaram este caminho chegaram a uma situ-ação na qual a social-democracia gerenciava o ca-pitalismo e só.

Sérgio – Como a terceira via, né?

Cordovil  – Dos conceitos marxistas, quais osque você acha que são ainda hoje unidades de aná-lise interessantes para se pensar o mundo atual?

Leandro – O Marx que me fascina não é tanto ocientista social, que eu sei que ele também é. Eu seique tem contribuições importantes a dar, que pre-

cisam ser rediscutidas mas que estão vivas. O Marxque me empolga é o Marx filósofo, que tem umaconcepção do homem, sujeito da práxis, que diz queem si ele está sempre se reinventando e ele nos es-capa. Mas o homem se expressa no que faz. Essefazer é a práxis. É toda uma teoria que ele desenvol-veu filosoficamente que eu acho maravilhosa.

E a outra é a concepção dele da História, que euacho que foi uma coisa não muito bem compreen-dida, porque a tal da dialética dançou e virou umdeterminismo vulgar. O genro dele, o Paul Lafargue,

que é uma figura humana maravilhosa, simpati-císsima, muito doido... O Lafargue casou-se com aLaura, filha de Marx, e publicou, quando Marx mor-reu, um livro chamado O determinismo econômicode Karl Marx, que é uma vingança dele de genro,que o Marx encheu o saco dele...

Ivan – Com o direito a preguiça, que é o con-trário de Marx.

Leandro – Marx era um sogro muito brabo. Antesde ele casar, quando Paul namorava a Laura, Marx

escreveu uma carta que o Millôr de vez em quandopublica. Dizia assim: “não venha com essa históriade temperamento cubano, porque estamos sobre omeridiano de Greenwich e nós aqui seguimos normasde conduta que convêm ao meridiano. Então, vocênão respeita a sua noiva porque toca muito nela empúblico. E quem ama não toca”. Uma coisa assim.

Sérgio – Amar é não tocar?

Leandro – Boa. Depois ele disse: “você, um estu-

dante profissional, só pensa em política. E quem vaisustentar a minha filha que está acostumada comum padrão de vida...” 

171

Page 173: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 173/202

Ivan – Altíssimo! Altíssimo!

Sérgio – Ela não come qualquer queijo.

Cordovil – E com relação aos atentados de 11de setembro, que é um assunto já batido? Qualé a sua análise?

[Poerner pede um copo d´água. DonaYone faz as honras da casa e diz quetem cerveja].

Leandro – Eu providenciei cerveja. Quem pre-fere cerveja? 

Ivan – Não, eu bebo água.

Leandro [gozador] – Que coisa estranha! Já nãofazem mais O Pasquim como antigamente.

Ivan – O partido está mais sóbrio!

Leandro – Quando a esquerda pensa grande pro-põe coisas que mexem com a cabeça. Você tem essacoisa que está na utopia, que não é um programa po-lítico sensato, mas mexe com as pessoas por inteiro,mexe com a alma por inteiro. Acontece que isto estáfaltando. Fica uma esquerda sensata e miúda, pro-pondo coisinhas, rearranjos, a gente pode apertarmais este parafuso aqui, pode soltar mais esta peça.

E isto é muito frustrante. Há uma demanda, portan-to, que não está sendo satisfeita. Neste vazio, en-tram os fanatismos variados que são politicamentemuito equivocados, mas que têm uma razão de ser.Impressiona-me muito o fato de os americanos sóverem o mal, encarnado nos fundamentalistas, naAl Qaeda, no Bin Laden. E não vêem também quetem todo um sentimento anti-americano...Os carasusam tecnologia, dão um golpe espetacular, quenão tem desdobramentos. A Al Qaeda não tem umaproposta para mudar o que está aí. É uma coisamuito comprometida com a destruição pura e sim-ples, uma coisa unilateral e, portanto, politicamen-te equivocada. Não é um caminho, mas é um sinto-ma. Você não acha que, se existisse uma esquerdamadura e definida, com propostas não destituídasde grandeza, de certa forma neutralizaria ou pelomenos diminuiria em parte este fenômeno? 

Ivan – Você embriões dessa esquerda em al-gum lugar?

Ziraldo  – Pois é! Esses movimentos como

Seattle, essas coisas de globalizar o protesto.Que sintoma você vê disso aí? Você leu, agiuem cima do que aprendeu, quer dizer, não fi-cou lendo e enfim. Então desaguou nisso. O fim

da União Soviética, esta confusão da globaliza-ção, essa campanha estranhíssima com quatrocandidatos com o mesmo discurso. Ficou muitoconfuso. Dá uma luz para nós...

Leandro – Sinto que você tem grandes expecta-tivas a respeito da minha opinião e que vou frustrá-las completamente.

Ziraldo – Por isso a gente veio aqui. A gentequer a luz dessa conversa. Nós estamos num im-passe. A gente ouviu Ferreira Gullar e você...

Cordovil – Estamos fazendo um fórum.

Ziraldo – Exatamente.

 Angela Dutra de Menezes – O senhor é deuma família de políticos, não?

Leandro – Família de políticos .

 Angela  – O senhor é primo do Jorge Bor-nhausen? [Presidente do PFL]

Leandro – Ele é primo do meu pai. A história écomplicada. Meu avô...

Sérgio  – É só o teu pai, você não tem ne-nhum parentesco com ele não, né?

Leandro – Meu avô era o mais velho, teve três ir-mãos e várias irmãs. E, quanto mais ia passando otempo, maior era a diferença de idade. Então a irmãmais moça do meu avô tinha idade realmente paraser filha dele. Esta irmã casou com Bornhausen eela teve filhos.

Ziraldo – Um deles é o Jorge Bornhausen.

Leandro – Um deles é o Bornhausen. A minhatia-avó é mãe do Bornhausen.

Sérgio – Então você é primo-neto dele?

Poerner – O pai dele era brasileiro, Valério,conheci muito.

Leandro – Meu avô, pai do meu pai, que era cul-turalmente muito alemão (ele já era brasileiro, nas-cido no Brasil). Eu tenho essa cara de alemão masé por acaso. Tenho uma história interessante queminha avó, mulher desse meu avô, que em um de-

terminado momento era simpatizante do Hittler...Nunca chegou a ser nazista, mas ficou impressio-nada. Foi lá ver as Olimpíadas e falou: “muito bemorganizado”. Essa coisa meio preocupante. E a mu-

2

Page 174: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 174/202

       E     n      t     r     e     v       i     s      t     a     s

lher dele, minha avó paterna, era uma mulher deuma personalidade muito forte. Lembro-me dela.Quando ela morreu, eu tinha onze anos. Lembro-me claramente da cara dela, o olhão dela, que atra-vessava a gente. Ela teve nove filhos e neurotizoutodos os nove. Uma mulher fantástica. E a históriadela, que gosto muito, que fiquei sabendo depois,é que ela era assinante de publicação francesa emItajaí, 1905. Ela recebia os livros de socialistas utó-picos, Saint Simon e Fourier. E reuniu os filhos e foipara uma colina que tem perto do porto de Itajaí edizia assim: “ um dia vocês vão crescer, vão conhe-cer o mundo. O mundo está lá. Isto aqui é Itajaí, istonão é o mundo”.

 Angela – Cabeça boa.

Leandro – Não é fantástico? 

Ziraldo – Mas a pergunta que começou todaesta coisa. Na entrevista mesmo você falou queera do comitê cultura, que era aonde a rapaziadada militância se amparava para afiar o discurso.Eu me lembro das duzentas mil reuniões que agente teve naquela época. Eu tinha pouca inti-midade com você, mas sempre te reconhecia noslugares, você sempre tinha uma palavra do “in-formadão”. Você desde garoto que é meio guru.

Leandro [e o seu sense of humour britânico] – Por

isto a gente está nesta situação desgraçada em quenos encontramos.

Sérgio – Você foi ouvido demais. Deram-lhemuita trela.

Ziraldo – Esqueçam tudo o que eu falei né,Leandro? Mas essa é uma das razões da entre- vista: “vamos ouvir o Leandro porque há muitotempo que a gente não faz isto”. Não fica tristenão, que não estamos decepcionados, não.

Leandro – Tem que conseguir mudar de assuntose não acabamos entrando em depressão [risos].

Sérgio – E, por favor, Leandro, não improvise!

Poerner  – Como “intelectual do ano” ele deveter uma previsão boa aí.

Cordovil – Eu ia perguntar sobre como foi odia em que você constatou a queda do Muro eBerlim, mas também já não vou mais perguntar .

Leandro – Eu me lembro que fiquei muito divididoporque, por um lado, percebia a derrota política e, poroutro, havia uma limpeza de terreno porque aquilo lá

era muito chato. Não ajudava a gente. Quando nósexpúnhamos as idéias de Marx, elas tinham um cer-to sucesso. Mas a tradução dessas idéias na práticana União Soviética era a desgraça total.

Ziraldo – E essa coisa de a gente ser refém domercado, esta coisa impressionante? O pesso-al que detém o capital quer especular mesmo equer o lucro. Agora estão nos ameaçando com aargentinização do Brasil. Então nós temos qua-tro candidatos, vamos fazer uma análise. Vocêtem prestado atenção nisso? Tem se interessadonessa coisa?

Leandro – Não me sinto em condições de fazerisso não. Eu em princípio voto no Lula.

Ziraldo - Sim. Claro.

Poerner  - Você é do PT, inclusive.

Leandro – Não sei até quando, mas é uma neces-sidade que sinto de tentar me entrosar com algummovimento coletivo que esteja desempenhandopapel importante na política. Eu tenho idéia de quesozinho a gente conta pouco.

Sérgio – Você não está querendo falar só so-bre política, porque diz que não tem nada paraacrescentar, que é uma coisa que não está clara

na sua cabeça, está perplexo. Talvez pudesse fa-lar sobre a parte cultural. Você não sente sau-dades da lista dos best-sellers de 30 anos atrás,quando tinha Harold Robins. Ela não era muitomelhor do que a lista de best-sellers hoje?

Ziraldo – Essa é uma pergunta engraçada.

Leandro - Até os best-sellers estão piorando.

Sérgio – Eu tenho saudades do Harold Rob-bins. Só tem livros de auto-ajuda e de picareta.

Leandro – Acho que é uma expressão, na cul-tura, dos impasses e descaminhos da vida política,dos projetos. Os projetos são todos amesquinhados.Então a cultura é o reflexo disso. E aí temos a me-diocridade absoluta.

Sérgio – Tem duas coisas que eu acho que ca-minham paralelamente a isso. Você tem cada vezmenos tempo, é tanta informação, você é tão ocu-pado, e se quiser levar adiante, tem que fazer tanta

coisa para ganhar dinheiro que você não tem tempopara solidificar determinadas informações, para fil-trar aquilo e ter condições de separar o joio do trigo.As pessoas têm opiniões superficiais sobre tudo.

173

Page 175: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 175/202

Isso tudo contribui para você... É uma coisa quepega desde a infância. Nós todos aqui somos de umageração que não tinha entre seus programas o vertelevisão. Tinha várias modalidades de brinquedo,como jogar botão, pelada, soltar pipa, ir a cinema,ouvia-se muita rádio quando era se pequeno. Televi-são é uma coisa que eu raramente via. Mas, ao mes-mo tempo, você tem algo fantástico na internet queajudou a desmontar o golpe de Hugo Chávez. Isso éuma arma incontrolável, essa que é a verdade.

 Angela – E é também a democratização dainformação.

Sérgio  – É um bundalelê no bom sentido.Não é mais aquele negócio. Olha, a rádio estána nossa mão, e as televisões e os jornais estãosob censura. Aí você dá um golpe e ninguémfica sabendo. Com a internet não tem.

Ivan – Fala-se que só é possível filosofar em ale-mão. Mas existe filosofia com sotaque brasileiro?

Leandro – Eu acho que esse problema da filoso-fia é parte do problema da cultura em geral. Vocêtem um quadro que é muito caracteristicamentecontraditório. Isso que você lembrou da internet éimportante. Acho que nós não podemos cair em umpessimismo total, desespero, sentar e chorar. Paraa gente continuar a ter a esperança de melhorar

as coisas temos que acreditar que estão vindo ele-mentos práticos que nos permitem lutar com algu-ma chance de vitória por determinadas mudanças.Acho que temos, não só no caso da internet, masno caso da sobrevivência do talento nas artes, naliteratura. Tudo que é bom é expressão de uma vi-tória, para nós, porque está tudo tão difícil... Nãoimpossível, ao contrário, no meio das malandragensque nos impingidas vêm elementos que se tornamlibertadores. Então fico pensando no seguinte: Nafilosofia o avanço não virá, no momento atual, desábios com respostas.

Sérgio – Maitre à penser...

Leandro – Maitre à penser não está com nada.Se conseguirmos organizar um balanço permanen-te dos problemas, estamos dando uma contribuição.Temos de pensar nisso. A Escola de Frankfurt: sãohistéricos? São. Exageradíssimos, mas eles chama-ram atenção para uma série de contradições reais,importantíssimas.

Poerner  – Eles quiseram renovar o marxis-mo, não? Tiveram esta intenção.

Leandro – Tiveram. Eu acho que contribuíram

muito. Se você comparar a contribuição filosóficada Escola de Frankfurt com a da União Soviética nãohá termo de comparação.

Ziraldo – Guardadas as devidas proporções,temos que manter O PASQUIM 21 porque senão você fica sem canal nenhum.

Sérgio – Só sobra a internet.

Ziraldo - Sim, claro!

Ivan – Mas e aqui no Brasil ou aqui por per-to: Mariátegui, Astrogildo Pereira foi um pen-sador original dentro das condições brasileirasda época?

Leandro – São personagens da vida cultural quenão podem ser subestimados, têm a sua importân-

cia. Mas não são filósofos. Aí a gente poderia criaruma filosofia ilusória da história da nossa sociedadee isso não nos convém. Estou partindo do princípiode que não tem havido um território fecundo para afilosofia. E aí a pergunta: Por quê? Tem um proble-ma sério aí. Entre outras coisas, por causa do auto-ritarismo de nossa sociedade. O carcereiro não estáinteressado em desenvolver uma argumentação fi-losófica que convença o prisioneiro de que aquelecastigo é justo. Está interessado em verificar se asgrades da cadeia são sólidas.

 Angela – O senhor mantém a esperança?

Leandro – Eu mantenho a esperança. Gratuita-mente, sem nenhum fundamento.

Poerner  – E a tua experiência como autor deromance policial? Tem isso também. Como é onome do livro mesmo?

Leandro – A morte de Rimbaud.

Sérgio – Daquela coleção [Literatura ou Mor-te] da Companhia das Letras. Aliás, a coleçãocomeçou com você, não foi?

Leandro – Eu falei: “Luiz [Schwarcz, editor], euescrevi um romance policial e quero te mandar, massó com uma condição, que você leia. Não pede pa-recer a ninguém, não. Quero que você leia”. Ele res-pondeu: “Tudo bem, eu assumo o compromisso”. E aíele leu, gostou, e disse que teve a idéia de fazer umacoleção envolvendo crime e literatura. Aí ele bolou

a coleção.Sérgio – Você está com outro romance en-

gavetado?

4

Page 176: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 176/202

       E     n      t     r     e     v       i     s      t     a     s

Leandro – Tentei, tentei. O problema é o seguinte:ensaio dá para a gente programar mais ou menos.

Sérgio – Ficção é um...

Leandro – Tudo pode acontecer, inclusive nada.

 Angela – Que, aliás, é o mais natural.

Sérgio – Você já procurou pensar se seria di-ferente para você caso tivesse se dedicado so-mente à ficção?

Leandro – Eu tenho uma curiosidade enormesobre Balzac, estou planejando escrever um ensaiosobre ele. Balzac é um cara possuído pelo espíritode ficcionista. E aí começam a acontecer as coisasmais estranhas do mundo. Ele compra uma casa...

Sérgio – Lembra o que ele fazia com os móveis,ele desenhava na parede, “aqui é uma cadeira”.

Leandro – Exatamente. Ele não tinha dinheiropara comprar. Ele pegava um crayon e pintava aqui-lo... “Cômoda!”.

 Angela – Olha que cabeça maravilhosa. Issoé lindo.

Leandro – Ele comprou uma casa e gastou o di-

nheiro que tinha e não tinha. E viaja com a Con-dessa Hanska. Quando eles voltam da lua-de-mel oempregado que ele botou na casa enlouqueceu e fe-chou-se dentro dela e não a abria de jeito nenhum.E Balzac teve que chamar a polícia para arrombá-la.Ficção é uma coisa diferente.

Ivan  – Se o Lukács fosse apresentado aosseus romances, ele diria o quê?

Leandro – Acho que eu estava mal. [Risos].

Poerner  – Você chegou a conhecê-lo pesso-almente, não?

Ivan – Foi. Entrevistou o Lukács.

Poerner  – Lá em Budapeste.

Leandro – Foi. Em 1969.

Cordovil – E teve aquela emoção do jornalis-ta que entrevista o ídolo?

Leandro – Desde o começo dos anos 60 eu man-dava coisas para ele. Tudo que saía sobre ele, eu cor-tava e dizia “sei que o senhor não pode ler português,

mas aqui saiu uma matéria sobre o senhor dizendoisso assim assim”. Alimentei o ego do velho durantedécadas. E chaguei lá um dia. Fui a Berlim, na voltapassei por Budapeste, e aí telefonei para ele. Lukácsperguntou: “O senhor não pode vir amanhã?”.

Eu disse: “Não. Amanhã já estou viajando”. “En-tão venha hoje!”. Fui lá e fiz a entrevista com ele.Voltei e o Jornal do Brasil queria publicar mais es-tava com... Isso era em 1969. Em dezembro de 68tinha havido o AI-5 e o pessoal estava meio assus-tado. Queriam dar a entrevista, mas estavam cheiosde dúvidas. Aí eu sugeri: “Põe um título assim: ‘Au-tocrítica do marxismo’”. [Risos]. E aí saiu.

Ziraldo – Saiu no JB? Com esse título?

Leandro – Saiu. Quatro de Julho de 1969.

Ziraldo  – Mas você ficou muito emocionado

quando chegou lá? Foi uma coisa carinhosa ou fria?

Leandro – Ele estava um velhinho de oitenta etantos anos. Ele próprio abriu a porta. Eu fiquei meioemocionado nessa hora. Ele abriu a porta! 

Sérgio – Esperava o quê? Um mordomo?

Leandro – Esperava. Esperava.

Ivan – Estamos num país socialista, camarada!

Ziraldo – Ele lembrava das coisas que vocêmandava para ele?

Leandro – Lembrava.

Ivan – Você tem cartas do Lukács?

Leandro – Tenho. Isto está publicado inclusive. OCarlos Nelson Coutinho e eu escrevíamos para ele eLukács respondia. Estas cartas típicas, desfaçatez.

Ziraldo – Ele mandava em inglês?

Leandro – Não. Ele escrevia em alemão.

Ziraldo – Você escreve em alemão?

Leandro – Não. Aprendi alemão depois. Na épocaera Francês mesmo.

Cordovil – Você falava da desfaçatez.

Leandro – Desfaçatez. Dois bundões escrevendopara ele coisas. “Sua opinião sobre Gramsci”. E elerespondia! Pegamos esse material e foi publicado,falando dessas coisas todas.

175

Page 177: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 177/202

Sérgio – Mas aí você estava dizendo que oLukács abriu a porta para você.

Leandro – Falei: “Eu seio que o senhor não gos-ta de fotografia”, porque eu tinha pedido a ele paramandar uma fotografia, e ele disse que “era coisapara artista de cinema”. “Mas eu vou fazer uma fo-tografia aqui que tem que ser publicada no jornal”.“Então está bom, eu autorizo”. Tirei a foto dele, elemal-humorado pra burro. Aí ele começou a falar etinha duas coisas meio contraditórias. Uma delas éque ele tinha mania de velho de repetir as coisas.Ele começou a falar: “Estou convencido que umadas desgraças do pensamento contemporâneo éeste neopositivismo que diz que tudo é construçãoda mente. Se um neopositivista for atravessar a rua,o que ele vê é uma representação do automóvel.Porque se não for uma representação do automóvel,mas o automóvel real, ele será atropelado”. Ele re-

petiu esta história umas três vezes. Ele estava gagá,o velho. Por outro lado me impressionou muito po-sitivamente uma outra coisa que ele dizia: que nãohavia novidades na literatura marxista contempo-rânea sobre determinados temas como a estruturado capitalismo hoje. “Tem Alguma coisa inovadora?”Eu respondia: “Tem sim, Monopoly capital, de PaulBaran e Paul Sweezy”. “Qual foi o livro que o senhorfalou?”, perguntava ele. E eu repeti o nome e ele es-creveu num papel. “Sabe qual é a editora?”. Um caracom 80 anos interessado em um livro, achei legal! 

Ivan – Ele chegou a falar algo sobre a ques-tão da liberdade política na Hungria? Porque aHungria era um país um pouco especial dentrodo bloco socialista. Aí veio uma política cultu-ral mais aberta. Ele chegou a se referir a isso?

Leandro – Ele estava muito isolado e tinha re-cém-voltado ao partido e os amigos mais íntimosdele discordavam completamente disso e estavamem guerra contra o partido, Agnes Heller.

Ivan – Ela rompeu definitivamente com opartido?

Leandro – Depois da temporada australiana en-tão, ela ficou...

Ivan – Uma liberal hoje.

Leandro – Uma liberal. Ela esteve aqui três vezes,estive com ela e percebi que estava meio que pio-rando a cada visita.

Ivan – É melhor não vir mais.

Leandro – Uma gafe horrorosa.

Sérgio – Se ela vier agora, diz que vota noEnéas.

Ivan – Ou melhor, o Enéas não, é muito es-querda!

[Risos] 

Ivan – Qual foi a figura mais impressionanteque você conheceu dentro do Partido?

Leandro – Gregório Bezerra. Gregório como todosanto era politicamente uma catástrofe. Santo empolítica é um negócio complicado.

Ivan – O Roberto Freire [senador do PPS] falaa mesma coisa.

Leandro – O santo é incompatível com o partidode massa. Porque as massas não têm a menor vo-cação para a santidade. Então, santo é um cara di-ferente. Quando Gregório voltou para o Brasil, seuscompanheiros baianos resolveram convidá-lo parafazer uma palestra. E tinha muitos homossexuais naplatéia. E eu aí falei com o cara: “Você vai ter pro-blemas. O Gregório não é pessoa politicamente fácilnão”. Chegou lá, o Gregório com a simpatia dele, eraencantador, cativou os caras e um deles pergun-tou assim: “Companheiro Gregório Bezerra, estáde acordo com os companheiros cubanos que, para

castigar os homossexuais, mandam os caras corta-rem cana, trabalhar na lavoura”. E ele respondeu:“Não estou de acordo com os companheiros cuba-nos”. Aí houve a animação. “Não estou de acordocom os companheiros cubanos porque não acho queo homossexualismo seja um crime, é uma doença, ecomo tal tem que ser tratada”. Aí a euforia passourápido. [Risos].

TODO PODER AO SAMBA-ENREDO

 A apoteose da luta de classes.

Poerner  – E aí você se formou. Participou domovimento estudantil?

Leandro – Pouco. Participei mais nele depois deformado, porque eu era amigo do Vianinha [Odu-valdo Viana Filho, dramaturgo], freqüentava a UNE[União Nacional dos Estudantes] e ficava ali dizendocoisas sobre o CPC [Centro Popular de Cultura]. Aí,

em um determinado momento, eu descubro [Georg]Lukács, era quadradão, tinha uma certa sabedoriae dizia: “Arte de propaganda é uma arte que nãofunciona. Ele criticava a arte soviética dizendo que

6

Page 178: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 178/202

       E     n      t     r     e     v       i     s      t     a     s

era uma arte demagógica e eu criticava a arte doCPC porque era uma arte de agit-prop [contraçãodas palavras agitatsiia e propaganda, era atividadeonipresente na União Soviética pós-revolucioná-ria e buscava inculcar e promover valores de classesocial apropriados entre as massas]. Então eu eraoposição, mas o Vianinha dizia pra mim: “Ô alemão,você é chato pra cacete, você não faz porra nenhu-ma, mas esculhamba o que agente está fazendo”.

Sérgio – Você só objetava.

Leandro [faz pose] – Ficava lá dizendo: “SegundoLukács!”.

Poerner  – Nessa época, aliás, ele e o CarlosNelson Coutinho foram apelidados de ‘Aprendi-zes de Lukács’ [parafraseando o nome de umafamosa escola de samba da época, a Aprendizes

de Lucas, que mais tarde, em 1966, juntamentecom a Unidos da Capela, daria origem à Unidosde Lucas].

Leandro – Isso foi um segundo momento. No pri-meiro momento, eu estava sozinho. Depois descobrique na Bahia tinha esse cara que lia [Antonio] Gra-msci e Lukács e ele aí ficou meu amigo.

Ivan – Foi o período em que vocês fizeram osamba-enredo?

Leandro – Não. O samba-enredo veio um poucodepois.

Ivan – Que era maravilhoso! Tive a oportunidadede ouvir quase em primeira audiência.

Leandro – Como fazer isso? Como fazer o mar-xismo chegar ao povo do Rio de Janeiro? Um povoalienado, mas bom, com potencial revolucionário,precisamos levar o marxismo para eles! Nós pensa-mos em um samba-enredo.

Ivan – O proletariado é herdeiro da filosofiaclássica alemã. Isso eu me lembro até hoje.

Leandro – O título do samba era esse.

Poerner  – Dá só uma palhinha...

Leandro [afinadíssimo] – A primeira parte era so-bre Kant e a segunda sobre Hegel.

Quando veio a burguesia,O velho Kant se pôs a filosofar 

E chegou um belo dia A elaborar 

Seu idealismo racional,Onde a gnoseologia

 Não juntava com a moral.Mesmo sendo uma tremenda

antinomiaFez-se um progresso na filosofia.

Depois o refrão:O proletariado não quer 

Perder de vista esta lição: A experiência do idealismo

Clássico alemão.

Depois vem a parte do Hegel:

Hegel foi quem resolveu esse problema,

Uniu a lógica e a História Numa grande ontologia,

Que fez sua glória. Ao seu idealismo genial Dinâmico e totalizante 

Mais profundo que o de Kent Só faltava a dimensão materialistaQue lhe daria a práxis marxista.

[A turma do O PASQUIM 21 ovaciona Lean-dro e cai na gargalhada].

177

Page 179: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 179/202

Leandro – Já pensou isso na avenida? 

Sérgio – Com a ala das baianas!

Leandro – Com a ala das baianas! 

Sérgio – Puxado por Jamelão, isso é que é!

Leandro – Ninguém menos que Jamelão.

Ivan – Jamelão é kantiano ou hegeliano?

Leandro – É transição! 

Poerner  – Esse é um samba-enredo no estilode Silas de Oliveira, só que marxista. Muito bom!

“ Quando a esquerda pensa grande propõe coisas que mexem com a cabeça.Você tem essa coisa que está na utopia,que não é um programa político sensa-to, mas mexe com as pessoas por inteiro,mexe com a alma por inteiro. Aconteceque isto está faltando. Fica uma esquer-da sensata e miúda, propondo coisinhas,rearranjos, a gente pode apertar maiseste parafuso aqui, pode soltar mais esta

 peça. E isto é muito frustrante. Há umademanda, portanto, que não está sendosatisfeita. Neste vazio, entram os fanatis-mos variados que são politicamente mui-to equivocados, mas que têm uma razãode ser. Impressiona-me muito o fato deos americanos só verem o mal, encarnadonos fundamentalistas, na Al Qaeda, noBin Laden. E não vêem também que temtodo um sentimento anti-americano...Os caras usam tecnologia, dão um golpeespetacular, que não tem desdobramen-tos. A Al Qaeda não tem uma proposta

 para mudar o que está aí. É uma coi-sa muito comprometida com a destrui-ção pura e simples, uma coisa unilaterale, portanto, politicamente equivocada.

 Não é um caminho, mas é um sintoma.Você não acha que, se existisse uma es-querda madura e definida, com propos-tas não destituídas de grandeza, de certa

 forma neutralizaria ou pelo menos dimi-nuiria em parte este fenômeno? ” 

8

Page 180: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 180/202

   I  m  p  r  e  n  s  amprensIMPRENSA

Page 181: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 181/202

Imprensa

Page 182: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 182/202

   I  m  p  r  e  n  s  a

181

Jornal do Brasil, 18 de maio de 2002 

Page 183: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 183/202

2

Jornal do Brasil, 28 de dezembro de 2002 

Page 184: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 184/202

   I  m  p  r  e  n  s  a

183

O Globo, 28 de maio de 2002 

Page 185: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 185/202

4

Jornal do Brasil, 16 de junho de 2004 

Folha de São Paulo, 16 de maio de 2002 

Page 186: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 186/202

   I  m  p  r  e  n  s  a

185

Cadernos do Terceiro Mundo Nº 241, maio/junho de 2002 

Page 187: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 187/202

6

Revista FAPESP Nº 82, dezembro de 2002 

Page 188: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 188/202

   B   i  o  g  r  a   f   i  a

iograBIOGRAFIA

Page 189: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 189/202

Page 190: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 190/202

   B   i  o  g  r  a   f   i  a

MAGISTÉRIO 

1973-1977 Professor de lingua e literatura de Portugal e doBrasil (“Lektor”) na Universidade de Bonn/Rhein.

1982-1986 Professor de metodologia das ciências sociais no Nu-cleo de Pesquisa e Pós- Graduação do Instituto Me-todista Bennett, RJ.

1984 até julho de 1997 Professor-Adjunto do Departamento de História daUniversidade Federal Fluminense.

1985 até dezembro de 2002Professor-Associado do Departamento de Educaçãoda PUC/Rio de Pomovido a Professor Titular (AulaMagna em 28-3-2003).

1996-1997 Coordenador da Pós-Graduação no Departamentode Educação.

1998-1999 Integrante da Comissão Central de Carreira Docente.

TRADUÇÕES 

1963 A Origem da Familia, da Propriedade e do Estado,Friedrich Engels, ed. Civilização Brasileira, RJ.

1965A Necessidade da Arte, Ernst Fischer, ed. Zahar, RJ.

O Século de Grete Samsa, Karel Kosik, ed. Insti-

tuto de Letras da Universidade do Estado do Riode Janeiro.

1966 Marxismo do Século XX, Roger Garaudy, ed. Paz eTerra, RJ.

1968Introdução a uma Estética Marxista, Georg Lukács,

ed. Civilização Brasileira (em colaboração com Car-los Nelson Coutinho).

1969 Na Colonia Penal, Franz Kafka, ed. Civilização Bra-sileira, RJ.

1978Carta sobre o Estalinismo, Georg Lukács, ed. Seara

Nova, Lisboa.

189

Nome: Leandro Augusto Marques Coelho KonderData e local de nascimento: 03 de janeiro de1936, Petrópolis - Rio de Janeiro, Brasil.

 Atuação: Professor, filósofo, intectual, escritor

Page 191: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 191/202

1988Walter Benjamin, o Marxismo da Melancolia, ed.Campus, RJ.

1989 Hegel, a Razão Quase Enlouquecida, ed. Campus, RJ.

1990 Intelectuais Brasileiros & Marxismo, ed. Oficina deLivros, Belo Horizonte e São Paulo.

1992 O Futuro da Filosofia da Práxis, ed. Paz e Terra, SP.

1994Flora Tristan, ed. Relume-Dumará, RJ.

1995Bartolomeu, ed. Relume-Dumará, RJ.

Idéias Socialistas no Brasil, ed. Moderna, SP.

1996 A Poesia de Brecht e a História, ed. Jorge Zahar, RJ.

1998Fourier, o socialismo do prazer, ed. Civilização Bra-sileira, RJ.

2000A Morte de Rimbaud, ed. Cia das Letras, SP.

O indivíduo no socialismo, ed. Fundação. PerseuAbramo, SP. (em colaboração com Frei Betto).

Os Sofrimentos do “Homem Burguês”, ed. SENAC, SP.

2002A Questão da Ideologia, ed. Companhia das Letras, SP.

0

1981 História do Marxismo, Eric J. Hobsbawm e outros,2 vol., ed. Paz e Terra (em colaboração com CarlosNelson Coutinho).

LIVROS PUBLICADOS 

1965 Marxismo e Alienação, ed. Civilização Brasileira, RJ.

1967 Os Marxistas e a Arte, ed. Civilização Brasileira, RJ.

1968

Kafka, Vida e Obra, ed. Paz e Terra, RJ.

Marx, Vida e Obra, ed. Paz e Terra, RJ.

1977 Introdução ao Fascismo, ed. Graal, RJ.

1980A Democracia e os Comunistas no Brasil, ed. Graal.

Lukács, ed. L&PM, Porto Alegre.

1981O que é Dialética, ed. Brasiliense, SP.

1982 Barão de Itararé, o Humorista da Democracia, ed.

Brasiliense, SP.

1984O Marxismo na Batalha das Idéias, ed. Nova Fron-teira, RJ.

1987  A Derrota da Dialética, ed. Campus, RJ.

Page 192: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 192/202

Page 193: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 193/202

1967  “A rebeldia, os intelectuais e a juventude”, re-vista Civilização Brasileira, nº 15.

1968 “Libri marxisti nel Brasile d’oggi”, Critica Marxista,(Roma) n 6.

1969 “La sovversione di Origene”, Religioni Oggi-Dialo-go, (Roma).

1975 “L’importance politique et culturelle de la musique

populaire brésilienne”, Etudes brésiliennes, (Paris).

1978 “Marxismo e Cristianismo”, Encontros com a Civi-lização, nº 6.

1979“Hegel e a práxis”, Temas de Ciencias Humanas, nº 6.

1980 “La sociedad civil y el Estado en Brasil”, Plural (México).

1984 “A poesia de Carlos Drummond de Andrade e a defesado meio ambiente”, Pau Brasil, SP, nº 2.

1985 “O marxismo e a teologia da libertação”, Cadernosdo ISER nº 11.

1987“Estado e política cultural no Brasil”, Revista do Pa-trimônio Histórico e Artístico Nacional nº 22.

1991“Marxismo y melancolía”, La Ciudad Futura, Mon-tevideo, nº 1.

2

A Psicologia em Contexto, ed. do Departamento dePsicologia da PUC/Rio. “O Sujeito e a História”.

1997 A Sociologia no Horizonte do séc. XXI, org. Leila daCosta Pereira, ed. Boitempo, SP, . “O calor da utopia

e a frieza da ciência”.

1998O Manifesto Comunista 150 anos depois, org. Da-niel Aarão Reis, ed, Contraponto, Rio, “Marx, Engelse a Utopia”.

Historiografia Brasileira em Perspectiva, org. Mar-cos Cézar de Freitas, ed. Contexto e UniversidadeSão Francisco, SP. “História dos Intelectuais nosanos 50”.

 Nos últimos cinco anos

2001 Teoria e Educação no Labirinto do Capital, org. Ma-ria Ciavatta e Gaudêncio Frigotto, ed. Vozes. “Li-mites e possibilidades da dialética de Marx” (pp.91-104).

Sociologia para educadores, org. Maria de LourdesRangel Tura, ed. Quartet, “Marx e a sociologia daeducação” (pp. 11-24).

Pecados, org. Eliana Yunes e Maria Clara Bingemer,ed. Loyola/ PUC-Rio, “Inveja” (pp. 72-74).

 Virtudes, org. Eliana Yunes e Maria Clara Bingemer, ed.

Loyola/PUC-Rio, “’Etica” (pp. 86-91).

Cecília Meireles. A Poética da Educação, org. Mar-garida de Souza Neves, Yolanda Lima Lobo e AnaChrystina Mignot, ed. Loyola/PUC-Rio, “O EspíritoPoético da Educação” (pp. 17-22).

ENSAIOS PUBLICADOS 

1961 “A fisionomia ideológica de Fernando Pessoa”, Es-tudos Sociais.

Page 194: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 194/202

   B   i  o  g  r  a   f   i  a

1989 Alicia Catalano de Bonamino, Saviani e Gramsci, mes-trado, PUC/Rio, Dep. Educação, 24-4.

1990 Angela Maria Maia, Literatura se aprende na escola?,

mestrado, PUC/Rio, Dep. Educação, 11-4.

Aparecida Afonso, Formação de professores no Ins-tituto de Educação de Minas Gerais, PUC/Rio, mes-trado, Dep. Educação, 6-4.

Sandra Vinagre Paes, A consciencia política do pro-fessor, PUC/Rio, mestrado, Dep. Educação, 7-5.

Maria Aparecida Pantoja Ciavatta Franco, Educação etrabalho, PUC/Rio, Dep. Educação, doutorado, 30-11.

1991 Siomara Borba Leite, Conhecimento e Educação, PUC/Rio, Dep. Educação, doutorado, 19-3.

Francesco Trotta, Os anarquistas do Rio no começodo século e a educação, PUC/Rio, Dep. Educação,

mestrado, 27-3.

Maria da Graça Nóbrega Bollmann, Formação daconsciência de classe entre trabalhadores da regiãodo rio Itajaí, PUC/Rio, Dep. Educação, doutorado, 4-4.

1992 Sonia Kramer, Por entre pedras: arma e sonho naescola, PUC/Rio, Dep. Educação, doutorado, 15-5.

Angela Parente Mazzi, Razão comunicativa e educação,PUC/Rio, Dep. Educação, doutorado, 21-8.

1993  Vania Soares de Magalhães, Teatro de Reticências.O teatro brasileiro nos tempos do Estado Novo,Universidade Federal Fluminense, Dep. História,mestrado, 18-1.

 Vera Lucia Mota Rodrigues, A expressão e o uso dalinguagem em crianças que se alfabetizam, PUC/Rio,Dep. Educação, mestrado, 29-4.

193

1992“É preciso teologia para pensar o fim da histó-ria ?”, revista USP nº 15, set.

1994Entrevista a Pablo Gentili na revista Espacios, da

Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade deBuenos Aires, nº de março.

1995“Depoimento de um socialista sobre o pádre Ávila”,PUC-Ciência, nº7.

“Ideologia na Linguagem: Benjamin”, Palavra nº 2.

 Nos últimos cinco anos

2001 “Paul Celan e sua Fuga”, revista Estudos de Sociologia,da UNESP de Araraquara, número 11.

“A Questão da Ideologia na Ficção Literária”, re-vista SEMEAR da Cátedra Padre Antonio Vieira de

Estudos Portugueses, PUC/Rio, número 5.

2002 “O Cardeal Nicolau de Cusa”, revista ALCEU, PUC/Rio, número 4.

DOUTORADO 

Tese de doutorado em filosofia intitulada “A Derro-ta da Dialética” defendida em 26-5-1987, aprovadapor unanimidade, com nota 10, pela banca integradapelos professores Gerd Bornheim (orientador), Aqui-les Cortes Guimaraes (presidente), Katia Muricy, LuizWerneck Vianna e Ciro Flamarion S. Cardoso.

Orientador de Teses

e Dissertações 

Page 195: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 195/202

Rona Hanning, O Risco do Bordado. Contos de Fa-das e educação infantil. PUC/Rio, Dep. Educação,mestrado, 5-10.

1999 

Alessandro Lucciola Molon, Gracchus Babeuf, UFF,Dep. História, mestrado, 16-6.

2000 Mônica Regina F. Lins, A TV Escola e a Educação àdistância, PUC/Rio, Dep. Educação, mestrado, 23-3.

2001 Sheila Cabo Geraldo, O Expressionismo Alemão,

suas raízes românticas. UFF, Departamento de His-tória, doutorado, 11-7.

Luiza Helena Lamego Felipe, Uso de computado-res no ensino fundamental público, PUC/Rio, Dep.Educação, mestrado, 6-4.

Angeli Rose do Nascimento, Uma travessia de leito-res. PUC/Rio, Dep. de Educação, mestrado, 26-9.

2003 Marisol Barenco de Mello, A Zona de AmplificaçãoCultural, Dep. Educação, PUC/Rio, doutorado, 10-3.

Rita Marisa Ribes, “Nossos comerciais, por favor”, Dep.Educação, PUC/Rio, doutorado, 5-5.

2004 Luiz Fernando de Souza, Teatro para Crianças, PUC/Rio, Educ. 12-4.

2005 Cláudia Fenerich, “ Para que serve a ética, Professo-rers ?”. Dep. Educação, PUC/Rio, mestrado, 8-4.

Lea Tiriba, “ Natureza e Educação Infantil”, Dep.Educação da PUC/Rio, doutorado.

Ricardo Figueiredo Castro, A "Oposição Internacio-nal de Esquerda" e o PCB, Universidade Federal Flu-minense, Dep. História, mestrado, 27-5.

1995 

Andréa Cecília Ramal, Pedro Poveda, PUC/Rio, Dep.Educação, mestrado, 31-9.

1996  André Luiz Faria Couto, A Aliança Nacional Libertadora(ANL) em 1935, UFF, Dep. História, mestrado, 11-1.

Maria Marta Martins de Araújo, O Binômio: Pasquimou Panfleto?, UFF, Dep. História, mestrado, 11-1. 

Paulo Roberto Curvelo Lopes, A Prática Democráti-ca na Educação Popular, PUC/Rio, Dep. Educ., dou-torado, 20-6.

Renato José de Oliveira, Razão e Utopia, PUC/Rio,Dep. Educ, doutorado, 12-11.

1997  

Julio Cesar dos Santos, O Lazer na Escola, PUC/Rio,Dep. Educação, mestrado, 31-7.

Silvana Assad, O Brás Cubas de Machado de Assis ea modernidade, UFF, Dep. História, mestrado, 15-12.

Moema de Rezende Vergara, Três figuras de Flora Tristan,UFF, Dep. História, mestrado, 22-12.

1998 Sonia Maria Rummert, Educação de Qualidade: di-ferentes visões, PUC/Rio, Dep. Educação, doutora-do, 6-3.

Daniela da Silva Guimarães, Educação e InfânciaExcluída: o Modelo Casa-Dia, PUC/Rio, Dep. Educa-ção, mestrado, 23-3.

Carlos Cortez Romero, Educação, Inovação e

(In)competitividade, PUC/Rio, Dep. Educação, dou-torado, 19-8. 

4

Page 196: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 196/202

   B   i  o  g  r  a   f   i  a

CONGRESSOS E SEMINÁRIOS

1979 3º Forum do Núcleo de Estudos em Psicologia e Psi-quiatria, SP, 24-8. 

1980 Simpósio de Filosofia “De Adorno a Sartre”, da Uni-versidade de Caxias do Sul (RS), 24-10.

1983 Seminário da UFMG sobre o centenário da morte deMarx, Belo Horizonte, de 7 a 9-11.

1984 Seminário da UERJ sobre O Jovem Marx, 5-6.

1986  Seminário “20 anos do mestrado em educação”,PUC/Rio, Dep. Educação, 19 a 21-11.

1987  1º Congresso Internacional da Faculdade de Letras da

UFRJ, 18-9. Texto: “Sobre o conceito de ideologia”.

Seminário “Ciências humanas em questão”, PUC/Rio, CTCH, 25 a 27-11.

1990 Seminário do Instituto Goethe “Sete perguntas aWalter Benjamin”, SP, de 25 a 28-9. 

4º Encontro Nacional de Filosofia, Associação Na-cional de Pós-Graduação em Filosofia, RJ, 16-10.

1991 Seminário comemorativo do 10º aniversário do IBASE,RJ, 4-4. Texto: “Por que a democracia ?”.

Seminário do Instituto Tancredo Neves e da Fun-

dação Fr. Naumann em Brasília, 5-11, “Sobre JoséGuilherme Merquior”.

1992 Seminário “As mediações sócio-políticas em ques-tão”, Centro João XXIII,IBRADES e ISER, de 19 a 21-3.

Encontro Internacional de Direito Alternativo do

Trabalho, Florianópolis (SC), 5-9.Simpósio Walter Benjamin, Dep. Filosofia da PUC/Rio, 11-9.

1993 Seminário Lukács, da UNICAMP, 5 e 6-10-. Texto:“Lukács, a estética e a cidadania”.

Seminário “A crise de paradigmas e a educação”,

PUC/Rio, Dep. Educação, 10-3.

1995 Semana de História na PUC/Rio, “A nova desordemmundial e o fim das utopias”, 8 a 10-11.

Simpósio sobre “Trabalho e gênero”, PUC/Rio, Dep.Serviço Social, 22-11.

1º Encontro Nacional de Pós-Graduandos em His-tória, UFF, ICHF, Niterói, 3 a 5-4.

Simpósio “A sociologia no horizonte do século XXI”,UNICAMP, IFCH, Campinas (SP), 2 a 4-5.

1997  Seminário “A crise dos paradigmas”, UFF, PUC/Rio,UFRJ, debatedor de Agnes Heller, 15-5.

Seminário “30 anos do mestrado em educação”,PUC/Rio, de 9 a 11 de novembro.

1998 Primeiro Seminário Internacional de Neo-Socialis-mo, UFSC, Florianópolis, 26 a 28 de março, confe-rência de abertura.

Encontro Internacional realizado em Paris sob o

patrocínio de Espaces-Marx, de 13 a 16 de maio,apresentação de trabalho escrito: “Marx, Engels etl’ utopie”.

195

Page 197: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 197/202

“Marx e o marxismo”, Faculdade de Filosofia deCampos (RJ), 24-9.

“O romance de língua alemã no século XX”, Institu-to Cultural Brasil-Alemanha, 16-12.

1984 “Franz Kafka”, Fundação Cultural de Curitiba, Pa-raná, 11-6.

1985 “A Questão Democrática”, Associação de Ensino Unifi-cado do Distrito Federal, Brasília,17-5.

“O escritor e o poder”, 19º Encontro Nacional de

Escritores, Brasília, 7-9.

1987 “O legado de Marx”, Centro de Estudos Baianos daUniversidade Federal da Bahia, Salvador, 14-8.

1988 “Estética marxista e cinema”, Jornada Nacional de Ci-neclubes, UNICAMP, Campinas, 28-7.

1991“Psicanálise e História”, Colégio Brasileiro de Ci-rurgiões, lançamento da Revista de Psicanálise,RJ, 10-5.

“O socialismo e a cultura”, Secretaria de Cultura doGoverno Federal, Brasília, 5-11.

1992 “A chamada Escola de Frankfurt”, Escola de ServiçoSocial da UFRJ, 13-5.

“A filosofia da práxis”, Curso de Ciências Sociais da Uni-versidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 24-11.

1993“Os socialistas brasileiros do começo do século”, Fórumde Ciência e Cultura da UFRJ, 18-2. 

6

Simpósio Internacional sobre o centenário de BertoltBrecht realizado no Rio de Janeiro sob o patrocíniodo Instituto Goethe de 26 a 28 de agosto, apresen-tação de trabalho escrito. 

1999 Simpósio promovido pelo Dep. Psicologia da PUC/Rio, RDC, “Criação e repetição na cultura de mas-sas”, 21-10.

Simpósio sobre Antonio Candido, UFRJ/Letras, 25-10. Texto: “Os 40 anos de Formação”.

2000 Seminário “500 anos de política no Brasil. Autorita-rismo x democratização”, Assembléia Legislativa doEstado do Rio de Janeiro, 9-6.

PALESTRAS 

1980 “Sobre o fascismo”, Faculdade de Ciências Humanas

da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 29-4.

“Sociedade Civil e Estado no Brasil”, Associação dosUniversitários para a Pesquisa em História do Bra-sil, SP, 31-5.

“Cultura Popular”, Diretoria de Atividades Culturaisda ABI, RJ, 19-5.

1982 “Cultura e Democracia”, Instituto de Ciências Hu-manas e Letras da Universidade Federal de Juiz deFora (MG), 3-9.

“Trabalho e Desejo”, Instituto de Psicologia daUFRJ, 7-10.

1983 “Marx e o jornalismo”, Escola de Comunicação eArtes da USP, 6-6.

Page 198: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 198/202

   B   i  o  g  r  a   f   i  a

“Liberalismo, democracia e socialismo”, Escola deComando e Estado Maior do Exército, RJ, 31-3.

“Os valores da sociedade e a mídia”, Escola Superiorde Guerra, 24-6.

“O conceito de práxis”, Coordenação de Pós-Gradu-ação em Educação da PUC/SP, 24-6.

“O marxismo hoje”, Departamento de História daUniversidade de São Carlos (SP), 7-10.

1994 “Problemas políticos do liberalismo e da democra-cia”, Escola de Comando e Estado Maior do Exér-

cito, RJ, 3-5.

1996  “Modernização, mercado e cultura”, Escola Supe-rior de Guerra, 18-7.

“Os últimos dias de Walter Benjamin”, Cine-Esta-ção Botafogo, 22-7.

“O século de Piaget, Vygotsky e Freinet”, Escola deProfessores, UERJ, 25-7.

1997  “Marx no séc. XXI”, UFF, Dep. Educação, 25-6.

1998 “A poesia de Brecht”, Teatro Dulcina, Rio, 6-4.

1999 “Utopia e Psicanálise”, Sociedade Brasileira de Psi-canálise do Rio de Janeiro, 15-4.

“A Ética e o Homem Burguês”, aula inaugural naUniv. Juiz de Fora, 31-5.

2000 “Cultura, Educação, Cidadania”, Univ. Católica dePetrópolis, 16-6.

197

“Etica e Escola”, Colégio São Marcelo, 29-6.

“O conceito de Ideologia”, UNICAMP, a convite deAna Luiza Smolka, 19-7.

“Educação e História da Cultura Brasileira”, SENAC,

Teatro Guararapes, Recife, 14-9.

HOMENAGENS 

1998“Jornada Leandro Konder”, Sexta Jornada de Ciên-cias Sociais, UNESP, Marília (SP), 6 a 8.

1999Medalha Pedro Ernesto, concedida pela Câmara Municipaldo Rio de Janeiro e recebida em 17-5.

2002 Medalha do Mérito Legislativo, concedida pela Câ-mara dos Deputados, em Brasília, 27-11.

Leandro Konder - A Revanche da Dialética, livro pu-blicado com colaborações de participantes da “Jor-nada Leandro Konder”. Org. Maria Orlanda Pinassi,artigos de Carlos Nelson Coutinho, Maria OrlandaPinassi, Raimundo Santos, Marco Aurélio Noguei-ra, Francisco Alambert, Lincoln Secco, Marcos delRoio, Ivo Tonet, Octávio Ianni e Sergio Lessa. Ed.UNESP & Boitempo.

Prêmio Darcy Ribeiro concedido ao “intelectual do ano”

pelo Forum do Rio de Janeiro, da UERJ, em 20-5.

Escolhido “Homem de Idéias”de 2002 pelo cadernoIDÉIAS do jornal do Brasil, dezembro.

Page 199: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 199/202

“- Infelizmente, não segui o sábio conselho do meu falecido pai: diga bobagens, mas não as escreva.” 

“ Para mim a dialética, construção humana, está perma-nentemente sujeita a tropeçar em deficiências inesperadase precisa questionar-se a si mesma de modo radical: não pode se limitar a reformar-se com prudência e não pode

se enrijecer doutrinariamente por medo de morrer.” 

Page 200: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 200/202

   B   i  o  g  r  a   f   i  a

Prestes e ValérioDeve ter sido efeito da gripe. Acordei pensando em Luiz Carlos Prestes, emquem pouquíssimo penso. Falei com ele apenas duas vezes por telefone. Na última ele me cumprimentou pela novela “Kananga do Japão”, um projeto meu que foi ao ar e tratou com carinho a sua participação nahistoriados anos 30. A primeira foi quando escrevi um livro sobre Vargas e contatei-o para medar um depoimento. Ele estava na clandestinidade e designou um amigocomum, Valério Konder, para me atender.Médico, ex-senador, homem bonito e educadíssimo, Valério me passou boasinformações. Jamais esqueci a tarde em que, contando a ida de Prestesao comício de Vargas, logo após ter saído da prisão, os dois ocuparam omesmo palanque. Vítima e carrasco se deram as mãos.Valério ficou com os olhos cheios de lágrimas. Era um bom, um emotivo.

 Achava - como também eu achava - que o gesto de prestes era de umaheroicidade raríssima nos anais da história. Anos mais tarde - Valério já estava morto - quem ficou com os olhos cheiosde lágrimas fui eu. Vi uma foto do velho líder, já caído em desgraça peranteseus companheiros de partido. Em cima de um carro, às 6h da manhã, fazia um comício solitário defronte a Central do Brasil, aqui no Rio.Ele aderira à campanha pelo Brizola. E achava que sua palavra, àquelahora da manhã, incendiaria os proletários que vinham dos subúrbios para a faina diária da exploração capitalista. Não era candidato a nada, nem partido tinha. Sua infra-estrutura eraum velho fusca e a voz já rouca de ancião. Nem sequer era um brizolista,apenas achava que naquele contexto, sua opção tinha que ser aquela.Uma pena que homem tão puro, quase sempre ingênuo, tenha dado a vida por uma causa que tantos homens impuros exploraram e avacalharam.

Carlos Heitor Cony Folha de São Paulo, 18 de janeiro de 2000

Page 201: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 201/202

“Hoje encontrei dentro de um livro uma velhacarta amarelecida

Rasguei-a sem procurar ao menos saber de quemSeria...Eu tenho um medo

Horrível  A essas marés montantes do passado,

Com suas quilhas afundadas, comMeus sucessivos cadáveres amarrados

aos mastros e gáveas...

 Ai de ti, ó velho mar profundo,Eu venho sempre à tona de todos os naufrágios!” 

Mário Quintana

Leandro Konder e sua mãe 

Page 202: Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

7/21/2019 Chronos UNIRIO Leandro Konder-libre

http://slidepdf.com/reader/full/chronos-unirio-leandro-konder-libre 202/202