Christian Jacq - Pedra de Luz

download Christian Jacq - Pedra de Luz

of 270

Transcript of Christian Jacq - Pedra de Luz

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    1/270

    A Pedra de LuzPaneb O Ardente - Volume III

    Christian Jacq

    http://groups-beta.google.com/group/digitalsource

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    2/270

    Que esta histria seja dedicada a todos os artesos do Lugar de Verdade queforam depositrios dos segredos da Morada do Ouro e conseguiram transmiti-losnas suas obras.

    1.

    Penetrar por arrombamento no templo do Lugar de Verdade, a aldeia secretaimplantada na margem oeste de Tebas, para roubar um tesouro inestimvel: eraessa a misso dos cinco homens que tinham conseguido aproximar-se da zonainterdita.

    Pensando na enorme recompensa prometida, o guia do comando sorriu:ningum, nem mesmo Sobek, o chefe da polcia local, podia prever tudo. Aoperao era tanto menos arriscada quanto os ladres beneficiavam dacumplicidade de um traidor no interior da confraria que se considerava bemprotegido, por trs dos seus altos muros.

    O corao do traidor batia acelerado. Aproveitando o perodo perturbadodurante o qual o novo Fara ainda no fora coroado, ele e o seu comanditriotinham decidido tentar um golpe de fora enviando um bando de aguerridosbandidos apoderar-se da Pedra de Luz, pela qual velavam ciosamente os artesosencarregados de escavar e decorar as Moradas de Eternidade dos faras no Valedos Reis.

    Dentro de algumas horas, o traidor teria definitivamente abandonado aquelaconfraria onde vivera longos anos, aprendera a sua profisso e partilhara tantossegredos e horas exaltantes. Porque no o tinham escolhido os seus confrades

    como chefe de equipa, quando possua as qualidades necessrias para desempenharessa funo?

    Ao despeito sucedera o ressentimento e o desejo de se vingar daquelaassemblia ingrata. E quando o destino lhe abrira um novo caminho, no hesitara:fazendo perecer aquela confraria, gozaria enfim de bem-estar, disporia de uma belacasa e de um grande jardim, e daria ordens a um batalho de zelosos servidores.Acabados estavam os dias de trabalho arrasador durante os quais era necessrioobedecer ao mestre-de-obras, terminadas as tarefas ingratas em benefcio do Fara;a partir de agora, o traidor aproveitaria a vida e no tardaria a esquecer o seujuramento e o seu passado.

    Felizmente, assegurara a cumplicidade da esposa, encantada com aperspectiva de se tornar uma dona de casa abastada e considerada. Ocultara-lhedurante muito tempo os seus projectos, receando uma reaco negativa da partedela; mas a esposa mostrara-se to determinada como ele. E fora ela a preparar apoo para drogar o guarda, agora mergulhado num profundo sonho.

    Desta vez, o xito estava prximo, to prximo que o traidor tremia: tentavacontrolar-se para no ser dominado pelos nervos naquela noite serena em que osanos de pacincia seriam finalmente coroados de xito.

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    3/270

    Em breve, os homens enviados pelo seu comanditrio ultrapassariam omuro da cerca no lugar em que ele instalara uma escada de corda e conduzi-los-iaao templo.

    Uma srie de gritos roucos despertou Paneb o Ardente. Aos trinta e seis

    anos, o colosso de olhos negros que se tornara filho adoptivo do mestre-de-obras eda Mulher Sbia do Lugar de Verdade, parecia cada dia mais forte. Dormia pouco,mas detestava ser importunado no sono.

    - O que se passa? - interrogou a esposa, Uabet a Pura, sem abrir os olhos.- Dorme, eu vou ver.O filho, Aperti, cuja altura e peso anunciavam um gigante, no sara dos seus

    sonhos. Mas a culpada vagueava pela cozinha onde, depois de ter devoradotmaras, atacara o cesto do po.

    - Nunca deveria ter feito a vontade ao meu filho e permitir-te a entrada nestacasa! - disse Paneb volumosa gansa que fazia jus ao seu nome de Besta Terrvel.

    Insolente, agressiva e ladra, tinha sempre fome. Com o bico e as patasvermelhas, o pescoo amarelo estriado de riscas pretas, as asas acastanhadas, oventre branco e a cauda preta, Besta Terrvel era a melhor camarada de brincadeirasde Aperti: mordia os seus adversrios atacando-os por trs e nem sequer tinhamedo dos ces.

    - Fora - ordenou Paneb - ou mando-te assar!Levando a ameaa a srio, a gansa deixou-se expulsar emitindo vigorosos

    protestos.

    Dissimulado num canto do muro, o traidor viu o primeiro membro docomando franquear o muro utilizando a escada de corda. Preferiu esperar que os

    seus camaradas se lhe juntassem antes de ir ao encontro deles.De repente, quando o quinto tocava o solo, um dos patifes deu um grito de

    dor. A gansa acabava de lhe morder a barriga da perna e agredia j uma nova vtimaque no conseguiu evitar uma exclamao.

    - Estamos a ser atacados!Rpida, sem se deixar apanhar, a gansa mordia e tornava a morder,

    grasnando cada vez com mais fora.Tetanizado, o traidor permanecia pregado ao cho; os seus aliados tentavam

    em vo agarrar a ave e apostrofavam-se, esquecendo a imperativa ordem desilncio.

    Por fim, um dos ladres agarrou o pescoo da gansa.- Vou estrangular-te, malvado animal!O homem no ps em prtica a sua ameaa porque Paneb o estendeu no

    cho com um soco.Alertado pelos grasnidos da Besta Terrvel e sabendo que ela nunca se

    manifestava sem motivo, o colosso sara de casa.Enquanto a gansa se eclipsava e o traidor, rente s paredes, tentava regressar

    a casa o mais depressa possvel, os quatro ladres vlidos lanaram-se em conjunto

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    4/270

    sobre o arteso, certos de o dominarem sem dificuldade.Mas o joelho de Paneb embateu no baixo-ventre do primeiro assaltante, o

    cotovelo na tmpora do segundo e a testa no nariz do terceiro; apenas o quartoconseguiu bater no peito do colosso, sem no entanto o abalar.

    Vendo os seus cmplices fora de combate, precipitou-se para a escada de

    corda. No momento em que a agarrava, Paneb puxou-lhe pelos ps, f-lo dar meiavolta e atirou-o de encontro parede.- Ningum foge assim, meu rapaz!Semi-inconsciente, o ladro desembainhou um punhal.- Larga essa arma - ordenou Paneb.O ladro continuou a amea-lo. De repente, o colosso identificou-o.- Tu... Tu ousas atacar o Lugar de Verdade!Com um gesto enraivecido, o homem cortou a garganta.Como a Besta Terrvel continuava a grasnar percorrendo a rua principal,

    vrios aldees tinham acordado. O primeiro a chegar ao local do drama com umatocha na mo foi o desenhador Unesh o Chacal.

    O seu olhar inquisidor fixou-se nos membros do comando. Trs jaziaminconscientes, outro torcia-se com dores.

    - So lbios! - exclamou Unesh.- E aquele que est a esvair-se em sangue?O desenhador iluminou o homem que agonizava.- No, impossvel...Vrios outros artesos se lhes juntaram. Um a um, os aldees saam de suas

    casas e Nfer o Silencioso, o mestre-de-obras, em breve estava ao lado do filhoadoptivo.

    Enquanto Unesh atava os quatro lbios e a Besta Terrvel se pavoneava para

    mostrar bem que a sua interveno tinha sido decisiva, Nfer descobriu o cadverdo homem do punhal.

    - Um dos polcias encarregados de garantir a nossa segurana! - constatoucom espanto.

    2.

    Com setenta e dois anos e sofrendo de mil doenas, Kenhir continuava a sero escriba do grande e nobre Tmulo dos Milhes de Anos a ocidente de Tebas,encarregado de manter o Dirio onde anotava todos os dias os pequenos e grandes

    acontecimentos. Competia-lhe igualmente vigiar as entregas, pagar os salrios emprodutos agrcolas, distribuir as ferramentas, verificar a validade dos motivos deausncia nos estaleiros, fazer o inventrio dos bens da confraria, em suma, garantiruma gesto impecvel e resolver os mil e um problemas quotidianos que nodeixavam de surgir numa aldeia onde viviam os artesos, as esposas e os filhos, semesquecer os celibatrios dos dois sexos.

    E o pior acabava de acontecer: a cerveja que bebia estava quente e o leito emchamas!

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    5/270

    - Acordai, Kenhir!O escriba do Tmulo abriu os olhos e viu um homem de quarenta e seis

    anos, elegante, com uma grande testa descoberta, olhos cinzentos e estaturamediana mas bem constitudo.

    - s tu, Nfer... Esqueci-me de esfregar o rosto com ervas frescas molhadas

    numa mistura de cerveja e mirra e tive um pesadelo! Segundo a Chave dos sonhos,vo roubar-nos e seremos obrigados a expulsar algum.- No andais longe da verdade. Um grupo de lbios introduziu-se na aldeia

    com a cumplicidade de um polcia.- O que ests a dizer... Um homem do chefe Sobek?- Infelizmente, sim.Kenhir levantou-se com dificuldade e Nfer ajudou-o a pr-se em p.Apareceu a jovem criada do escriba, Niut a Vigorosa, uma bonita morena

    pequenina que considerara prefervel deixar o mestre-de-obras acordar o seupatro, cujo mau humor matinal durava muitas vezes a maior parte do dia.

    - Desejais o pequeno-almoo?- Bolos quentes e leite, mas depressa.Corpulento, de andar desajeitado, Kenhir deslocava-se sempre com uma

    bengala, excepto em certas ocasies em que reencontrava, como por milagre, aagilidade da juventude. Quando se sentou num cadeiro baixo, em frente de umamesa de madeira de sicmoro, os olhos da idosa personagem brilhavam de clera.

    - Ousar atacar assim o Lugar de Verdade! Vou redigir imediatamente umrelatrio destinado ao Fara.

    - Admitindo que Seti II seja ainda reconhecido como tal - objectou Nfer -porque ningum foi ainda coroado.

    - Esses patifes tinham escolhido bem o momento... preciso convocar o

    chefe Sobek.- J convoquei. Espera-nos na porta principal.Grande, atltico, com uma cicatriz sob o olho esquerdo, mos enormes

    habituadas a manejar o cajado, o chefe Sobek era um nbio autoritrio, de palavrascortantes, que fizera toda a sua carreira na polcia. No suportando que discutissemas suas ordens, tinha o costume de assumir as suas responsabilidades e nunca aslanar sobre os seus subordinados.

    Quando viu entreabrir-se a grande porta da aldeia, onde no tinha o direitode penetrar, e aparecer o escriba do Tmulo e o mestre-de-obras, teve a certeza queia passar por uma dura prova. Cerca de vinte anos antes, um dos seus homens fora

    assassinado e, apesar das suas investigaes, ainda no conseguira identificar oculpado que, segundo ele, s podia ser um dos artesos da confraria; e eis que outromembro das foras de segurana desaparecia em circunstncias trgicas. Mas, destavez, comportara-se como um criminoso!

    Kenhir tinha a cara dos maus dias.- Identificaste o malfeitor que cortou a garganta?- Era realmente um dos meus homens - declarou Sobek.Tinha-o contratado

    apenas o ano passado.

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    6/270

    - Que tarefa lhe tinhas confiado?- A vigilncia de uma das pistas, nas colinas.- Pergunto a mim mesmo porque se ter suicidado...- muito simples - afirmou o nbio. - Quando constatou que no

    conseguiria fugir, preferiu matar-se a sofrer o meu interrogatrio. Teve razo.

    - Interrogaste os quatro lbios?- O primeiro perdeu a cabea por causa do soco que recebeu, o segundo mudo, o terceiro tem a lngua cortada e o quarto no fala uma palavra de egpcio.Tenho de os entregar administrao central da margem oeste para conseguir umaidentificao.

    - E o guarda?- Foi drogado e acaba de sair do seu torpor.- Sabemos que um arteso nos trai - lembrou Kenhir, irritado - mas

    ignorvamos que um dos teus polcias era seu cmplice! E foi este ltimo,evidentemente, que guiou os lbios.

    - Se suspeitais que eu tenha participado de perto ou de longe nessaconspirao - retorquiu secamente Sobek no deveis hesitar em apresentar contramim uma acusao em forma. Bem entendido, apresento-vos imediatamente aminha demisso.

    - Tens a nossa confiana - interveio Nfer - e continuas a ser o chefe desegurana da aldeia.

    J uma vez o mestre-de-obras tomara partido em favor do nbio; tambmdesta vez o escriba do Tmulo no se ops a Nfer o Silencioso.

    - Como havemos de acreditar que outros polcias no se vendero aoinimigo? - resmungou Kenhir.

    - Cometi uma falta grave - reconheceu Sobek. - Este canalha no pertencia

    ao meu cl. No devia t-lo contratado. Este lamentvel erro no se repetir,prometo.

    - Que medidas tencionas tomar?- Apertar a vigilncia em torno da aldeia, tanto de noite como de dia, e

    suprimir todas as licenas at coroao do novo Fara. Seria prefervel quenenhum de vs abandonasse o Lugar de Verdade antes da situao estaresclarecida.

    A aldeia estava em estado de choque.Para conjurar a sorte, o mestre escultor Userhat o Leo e os seus dois

    assistentes, Ipui o Examinador e Renup o Jovial, executavam uma pequena estelana qual figurariam sete serpentes.Implantado na proximidade da porta principal, no interior do recinto, o

    modesto monumento contribuiria para repelir as foras negativas.Mas no havia uma nica famlia que no se sentisse angustiada pelo futuro

    do Lugar de Verdade; se o novo Fara deixasse de ser o seu principal protector, serebentasse uma guerra civil, o que aconteceria s setenta casas brancas mantidascom tantos cuidados?

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    7/270

    Apesar do rosto redondo e jovial e da barriga volumosa, o desenhador Pai oBom po sentia-se de tal forma torturado pelo medo que perdera o apetite;inquieta, a esposa decidira lev-lo a casa da Mulher Sbia, curandeira e meespiritual da confraria.

    Embora no estivesse muito orgulhoso de si, Pai sentia-se to deprimido que

    nem se opusera. Bateu portanto porta de Clara, esposa do mestre-de-obras, cujasala de consultas era contgua morada oficial atribuda a Nfer o Silencioso.Respondeu-lhe um latido.A Mulher Sbia abriu, com um jovem co ao colo.- O Trigueiro est um pouco nervoso - explicou. - Obriguei-o a engolir bolas

    de artemsia com propriedades vermfugas.J crescido, de focinho alongado, olhos avel brilhantes de inteligncia,

    orelhas compridas e pendentes, Trigueiro no parecia em perigo. O seupredecessor, que tinha o mesmo nome, fora mumificado e repousava num pequenotmulo com as suas almofadas preferidas, um recipiente cheio de leo sagrado euma suculenta refeio, tambm mumificada.

    Todas as vezes que tinha a oportunidade de contemplar Clara, Pai o Bompo soobrava sob o encanto da Mulher Sbia, quarenta anos deslumbrantes; doseu belo rosto de traos to puros emanava uma luz que, por si s, acalmava asalmas. Com cabelos aloirados, olhos azuis, esguia e gil, a esposa do mestre-de-obras falava com uma voz doce e melodiosa. Ela e Nfer tinham casado antes deserem admitidos no Lugar de Verdade que, passados longos anos de formao etrabalho intenso, os escolhera para o dirigir.

    - No me sinto bem - confessou Pai o Bom po, lamentoso.- Queixas-te de alguns sintomas precisos?- No, sinto-me mal um pouco por toda a parte... e tenho falta de apetite.

    Como suportar a incerteza na qual estamos mergulhados? Talvez amanh a aldeiaseja destruda e ns sejamos dispersos.

    - Deita-te na esteira, Pai.Dotada j de slidos conhecimentos mdicos, Clara beneficiara dos

    ensinamentos de uma prtica de excepo, a mdica-chefe Neferet, e dos daMulher Sbia que a precedera. Tinham-lhe transmitido um saber elaborado dia apsdia, e legado o laboratrio onde ela preparava os remdios.

    A pele, o odor do corpo e o hlito eram os primeiros elementos teis aodiagnstico, mas era sobretudo necessrio tomar o pulso poisando a mo sobre anuca do paciente, o cimo da cabea, os pulsos, o ventre e as pernas. Desta forma, a

    Mulher Sbia ouvia a voz do corao que a informava sobre o estado dos diferentesrgos e dos canais que veiculavam as energias.Como Clara estava a demorar muito tempo, a inquietao de Pai o Bom po

    cresceu.- grave?- No, descansa, mas algumas condutas esto prestes a entupir por causa da

    tua ansiedade.A Mulher Sbia prescreveu um ungento composto de gordura de touro,

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    8/270

    resina de terebintina, cera, bagas de zimbro e gros de brionia com o qual Paiuntaria o busto quatro dias seguidos para devolver s condutas toda a suaflexibilidade.

    O desenhador levantou-se.- J me sinto melhor, mas a minha cura s ser completa quando a aldeia

    estiver fora de perigo. Dizem que podes decifrar o futuro, Clara... O que vs tu?- Sigamos o caminho de Maet e nada teremos a temer.

    3.

    Mehi, administrador-principal da margem oeste de Tebas e generalencarregado de comandar as foras armadas da grande cidade do Alto Egipto, eraum quarento corpulento, de rosto redondo, cabelos negros colados ao crnio,lbios grossos, torso largo e vigoroso, mos e ps gorduchos. Nos olhos castanho-escuros, a arrogncia de um alto dignitrio seguro de si, ambicioso e determinado, eum brilho que apenas a sua esposa, Serketa, herdeira de uma grande fortuna, sabiadecifrar. Um brilho que traduzia a obstinada vontade de se apropriar dos segredosdo Lugar de Verdade e, sobretudo, da Pedra de Luz, graas qual dominaria o pas.

    Para se tornar o senhor da rica regio tebana, Mehi tivera que suprimiradversrios incmodos; no acreditando nem nos deuses nem nos demnios, nohesitara em assentar a sua carreira no crime, garantindo a incondicionalcumplicidade da doce Serketa, que sentia intenso prazer em suprimir a vida aalgum.

    Quisera a ironia da sorte que ele, o pior inimigo da confraria, fosseoficialmente encarregado pelo Fara de a proteger e assegurar aos artesos um realdesafogo que lhes permitisse trabalhar nas melhores condies. Fora portanto

    obrigado a agir na sombra, com a ajuda de um arteso que no hesitava em trair afim de poder usufruir dos bens acumulados no exterior da aldeia em troca deservios prestados.

    Mas os resultados no eram ainda altura das suas esperanas e a suapacincia estava a ser submetida a rude prova. Felizmente, a guerra civil que seanunciava criaria um clima favorvel para que desferisse, na sombra, golpes fatais confraria.

    Usando uma luxuosa peruca e envergando um amplo vestido rosa quedissimulava as suas formas opulentas, Serketa regressava de Tebas cabea de umalegio de servidores transportando tecidos, vasos e mveis que tinha comprado na

    cidade. Com as pupilas de um azul-deslavado que revirava com ares derapariguinha, contemplou Mehi que andava de um lado para outro da sala de quatrocolunas da sua vasta manso da margem oeste, rodeada de um jardim plantado comsicmoros, accias, palmeiras, alfarrobeiras e figueiras.

    - Ao que parece - avaliou ela - ests contrariado.- Nem uma notcia do polcia nbio que subornmos.- No sejamos pessimistas, meu amor querido.Serketa pendurou-se ao pescoo do marido, sempre sensvel ao seu

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    9/270

    volumoso peito, que apalpava com uma brutalidade apreciada por ela.- Se fssemos beber vinho de palma para o nosso quarto?Fingindo-se satisfeita, como era habitual, Serketa sonhava com os anos

    exaltantes passados na companhia de Mehi desde que este lhe revelara os seusprojectos. Conquistar o poder absoluto utilizando as armas da cincia e da tcnica,

    exercer o direito de vida ou de morte sobre todos e, sobretudo, aniquilar aqueleLugar de Verdade depois de lhe ter arrancado os tesouros, eram os nicosobjectivos que verdadeiramente distraam Serketa.

    Se o seu maravilhoso marido no tivesse sido sincero, ter-se-iadesembaraado dele como uma manta religiosa; tornando-se sua cmplice,assassinando para deixar livre o caminho a Mehi, tomara gosto pela aventura que osunia.

    E mais valia que o general no a decepcionasse.Estendeu-se sobre ele, como se o quisesse sufocar.- Tens notcias da capital?- Seti nunca renunciar ao trono.- Controlas realmente o prncipe Amenms?- No sei como reagir quando for anunciada a coroao do pai.Num exlio dourado em Tebas, por ordem de Seti, Amenms sonhava

    tornar-se Fara e Mehi no deixara de o encorajar na esperana de desencadear umconflito de que seria o principal beneficirio. Mas o jovem Amenms hesitava emescolher o seu caminho entre submisso e revolta.

    Com o olhar vago, o general pensava no primeiro assassnio que cometera,na montanha do Ocidente, matando um polcia que o surpreendera quando espiavaos membros da confraria transportando a Pedra de Luz para o Vale dos Reis.

    Nesse instante, Mehi compreendera que o Lugar de Verdade era detentor do

    segredo essencial do Egipto, o que permitia a um Fara reinar e vencer a morte.Por isso a aldeia, colocada sob alta proteco, permanecia inacessvel aos profanose mesmo aos dignitrios.

    Com o objectivo de se apoderar dessa Pedra fabulosa, o general percorrera jum longo caminho semeado de cadveres, extorses, mentiras e chantagens, mas ocombate encontrava-se ainda longe de estar ganho.

    E ele havia de fazer lamentar quela maldita confraria ter recusado receb-lono seu seio.

    Com Serketa, que aprovara a forma como Mehi se desembaraara do sogropara ficar com a sua fortuna, dispunha de uma aliada implacvel cujo amor pelo

    crime lhe era muito til. Um dia, sem dvida, mergulharia na loucura e ele teria de asuprimir.- As nossas armas novas esto prontas? - perguntou ela.- Possumos uma quantidade suficiente para travar batalha com um exrcito

    vindo do norte e no falei a Amenms dos novos carros de combate queaperfeioei. Graas s vantagens que no cessei de lhes proporcionar h longosanos a esta parte, oficiais e soldados adoram-me. Mesmo que o prncipe tomasse ocomando, as tropas tebanas s a mim obedeceriam. Mas desconfio de Seti... Tem

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    10/270

    carcter e no se contentar em reinar sobre o Delta. por isso que enviomensagens confidenciais para lhe garantir a minha absoluta fidelidade e lhe prestarcontas da situao... minha maneira.

    - Como excitante! - exclamou Serketa, que esmagava o rosto do generalcom os seios.

    Cansado da sua posio inferior, Mehi f-la tombar para o lado. Serketa deupequenos gritinhos de susto como se receasse ser agredida.Vrias pancadas violentas fizeram abanar a porta do quarto.- General, vinde depressa, a polcia! - implorou a voz assustada do

    intendente.Interditos, Mehi e Serketa entreolharam-se.- Nunca me prendero - declarou ela.O general levantou-se.- No com certeza nada de grave.- E se Amenms te tivesse trado?- Sem mim, ele no existe!Mehi enfiou uma tnica e saiu do quarto.- O porteiro no deixou entrar ningum - informou o intendente - mas o

    polcia insiste em ver-vos imediatamente.Mehi avanou a grandes passos at porta da manso que dava para o

    jardim onde se tinham reunido vrios criados.- Voltem ao trabalho - ordenou secamente. - E tu, abre.Espalharam-se como pardais ao mesmo tempo que o porteiro obedecia.Mehi descobriu a elevada estatura de Sobek, acompanhado por vrios

    polcias nbios que enquadravam quatro homens de mos atadas atrs das costas.- Chefe Sobek... O que se passa?

    - Um dos meus subordinados tentou introduzir-se na aldeia dos artesoscom estes quatro bandidos. Como representais a autoridade suprema na margemoeste e tendes o encargo de proteger o Lugar de Verdade, fiz questo de vosinformar com a maior brevidade.

    - O que aconteceu ao teu polcia?- Cortou a garganta e os abutres encarregar-se-o dele.- Esses, so lbios... Interrogaste-os?- O nico que est em condies de se exprimir no parece conhecer o

    egpcio.- Levo-os para a caserna principal... Podes crer que l sabero soltar-lhes a

    lngua!- Essa caserna est na margem Este, fora da minha jurisdio, e esseshomens so meus prisioneiros.

    - Como muito bem disseste, eu represento aqui a autoridade suprema equero saber quem so estes bandidos, o que queriam e ordem de quem agiram.

    - Permiti que assista ao interrogatrio, general.O grande nbio no gostava de Mehi, que considerava demasiado ambicioso

    e capaz de conspirar para afirmar a sua posio e preservar as suas vantagens. Mas

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    11/270

    at agora no possua qualquer indcio srio contra ele e no podia atacar semprovas incontestveis um notvel daquela envergadura.

    Se Mehi o afastasse daquele inqurito, no estaria a dar um comprometedorpasso em falso? Sobek fingiria submeter-se, mas dirigiria um relatrio capital,sublinhando o comportamento duvidoso do general.

    - O teu pedido no l muito regulamentar - considerou Mehi - mascompreendo-o; como reagiu o escriba do Tmulo ao descobrir a traio de um dosteus polcias?

    - Tanto ele como o mestre-de-obras continuam a conceder-me a suaconfiana e no os desiludirei. - No tenho qualquer razo para no os imitar. Vou-me vestir e levo-te caserna.

    Mehi no considerava com leviandade a interveno do nbio, que ele sabiaincorruptvel e obstinado. Todas as iniciativas para o subornar, transferir ousimplesmente desestabilizar tinham fracassado porque Sobek estava visceralmenteligado ao Lugar de Verdade, ele que era no entanto apenas um homem do exterior.

    Por vezes, o general tinha a sensao que Sobek o olhava de forma estranha,como se pensasse, sem ousar confessar, ter sua frente o assassino que perseguiah vinte anos. Mas Mehi sabia no deixar qualquer vestgio atrs de si e ainvestigao do nbio estava votada ao fracasso.

    Logo que Mehi envergou o seu traje militar, Serketa acorreu, intrigada.- Srios aborrecimentos - confessou ele. - O comando fracassou

    lamentavelmente, o nbio que tinhas subornado suicidou-se para escapar aointerrogatrio do seu chefe, mas restam esses quatro lbios imbecis e sou obrigadoa levar Sobek caserna a fim de no despertar as suas suspeitas. Tenho que sairdesta embrulhada.

    - No sinto qualquer inquietao, meu querido afirmou Serketa, beijando o

    torso do marido e acariciando o cabo do punhal que, em caso de dificuldade muitograve, faria calar o chefe Sobek.

    4.

    Os quatro lbios foram alinhados de encontro parede da sua cela. Oajudante-de-campo do general Mehi saudou o seu superior e o chefe Sobek.

    - Estes bandidos tentaram introduzir-se no Lugar de Verdade - revelouMehi. - Graas interveno do chefe Sobek, foram detidos; mas apenas um temcapacidade para se exprimir e s fala lbio. Como uma lngua que o meu ajudante-

    de-campo domina bem, vai interrog-lo... Mas tenho uma pergunta a fazer-lhe:visto que ele quem contrata a totalidade dos mercenrios empregados pelo nossoexrcito, reconhece estes homens?

    O olhar insistente do general fez compreender ao ajudante-de-campo queMehi lhe dava uma ordem muda na presena de um civil que devia permanecerignorante dos segredos militares. Mas deveria responder sim ou no?

    O oficial examinou de perto os prisioneiros e depois voltou-se para o generalque se colocara recuado em relao a Sobek a fim de poder abanar a cabea

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    12/270

    afirmativamente sem que o nbio se apercebesse.- J vi estes fulanos - declarou o ajudante-de-campo, fingindo uma derradeira

    hesitao. - Interrogo-me mesmo se no se trataro dos ladres que roubaramarmas o ms passado, durante um exerccio.

    - Com efeito, eram mercenrios lbios e foram declarados desertores!

    Desertores, ladres e sem dvida criminosos, general! A sentinela que atacarampara se introduzirem na armaria no sobreviveu aos ferimentos.- Procede ao interrogatrio.O ajudante-de-campo fez apenas uma pergunta qual o lbio respondeu com

    frases curtas e entrecortadas.- Perguntei-lhe se ele e os cmplices eram culpados e ele confessou tudo.- Porque tentou penetrar na aldeia e por ordem de quem?O lbio exprimiu-se com o mesmo nervosismo.- Ele e o seu bando tinham decidido pilhar as aldeias da margem Oeste e

    depois regressarem a casa pelo deserto com um mximo de esplio.- Vamos ento entreg-los ao chefe Sobek para que ele os apresente ao

    tribunal.- Lamento contradizer-vos, general, mas isso impossvel.Mehi pareceu contrariado pela recusa do seu ajudante-de-campo.- O que queres dizer?- Estes criminosos devem comparecer imediatamente diante de um tribunal

    militar; se decidirdes de outra forma, general, sereis vs prprio condenado porfalta grave. Considerando os factos, devo redigir um relatrio circunstanciado emant-los na cela at ao julgamento.

    Depois da partida do chefe Sobek, forado a vergar-se ao regulamento, ogeneral Mehi deu ordem de colocar os lbios no segredo antes de um julgamento

    apressado que os enviaria para os trabalhos forados do osis de Khargeh, de ondenunca mais sairiam.

    - Colocareis o vosso selo no documento final? - interrogou o ajudante-de-campo.

    - intil - respondeu Mehi. - No quero tornar a ouvir falar desses canalhas.- Suponho que a minha atitude vos satisfez, general.- Foste perfeito.- Tive que compreender-vos por meias palavras... e podia ter-me enganado

    nas respostas que esperveis.- No foi esse o caso e felicito-te. Tu e eu trabalhamos para a glria do

    exrcito e no esquecemos nunca que a disciplina a primeira das virtudes.- Tenho inteno de continuar a obedecer-vos sem discutir, mas estafidelidade no merecer... uma recompensa?

    Mehi sorriu.- Desde que serves sob as minhas ordens, aprendeste a conhecer-me e sabes

    que detesto perder a iniciativa. Se tentasses fazer chantagem...- Claro que no, general!- Se o meu reconhecimento se manifestasse sob a forma de duas vacas

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    13/270

    leiteiras, uma cama de grande qualidade e trs cadeiras de luxo, esquecerias estesmiserveis lbios?

    - Sem dvida nenhuma - afirmou o ajudante-de-campo.

    Quando o chefe Sobek franqueou o quinto e ltimo fortim para penetrar na

    zona ocupada pelos auxiliares ao servio do Lugar de Verdade, constatouimediatamente que a situao era anormal. O ferreiro, o caldeireiro, o oleiro, ocurtidor, o tecelo, o sapateiro, o lavadeiro, o lenhador, o padeiro e os seusauxiliares tinham sado das suas oficinas e formavam um crculo, vociferando.

    Armado com um cacete, o guarda de servio mantinha-se em frente da portada aldeia, como se receasse um ataque dos auxiliares. Os polcias permaneciam distncia; tinham recebido ordem para barrar a passagem a qualquer intruso masno para prender os trabalhadores pagos para garantirem o bem-estar da confraria.

    O nbio quebrou o crculo no centro do qual se encontrava o escriba doTmulo apoiado na sua bengala. H mais de uma hora que enfrentava os auxiliaresdos quais Beken o oleiro era o porta-voz.

    - Acalmai-vos - exigiu Sobek. - Caso contrrio, ordeno aos meus homenspara vos fazerem dispersar!

    - H uma semana que as nossas raes de peixe seco no chegam! -protestou Beken. - Devamos ter recebido pelo menos quatrocentos gramas por diae por pessoa. Se isto continuar, deixaremos de ter fora para trabalhar.

    - Os membros da confraria no esto mais bem abastecidos - retorquiuKenhir - e no posso fazer nada mais seno dirigir protestos administrao-principal da margem Oeste que, por seu lado, espera a nomeao de um novo vizir.

    - Ento o que comeremos enquanto esperamos?- O tribunal do Lugar de Verdade deu o seu acordo para que vos fossem

    distribudas conservas. A coroao do Fara no deve tardar e recomearo osfornecimentos.

    Kenhir teria gostado de ter a certeza; pelo menos, a firmeza do seu tomacalmou os auxiliares que acederam regressar ao trabalho arrastando os ps.

    - Haveis corrido riscos - disse Sobek ao escriba do Tmulo.- Na minha idade, j no receio ningum; e depois, compete-me resolver este

    gnero de problemas. O general Mehi recebeu-te?- Levou-me mesmo caserna principal de Tebas, onde o seu ajudante-de-

    campo interrogou o nico lbio em estado de falar.- O que confessou ele?

    - A acreditar no ajudante-de-campo, tratar-se-ia de um bando de ladres quetinham inteno de atacar todas as aldeias da margem Oeste e que, alm disso,seriam desertores suspeitos de crime. por isso que sero julgados por um tribunalmilitar. Na minha opinio, nunca mais os veremos.

    - Se as acusaes contra eles so assim to pesadas, sero efectivamentecondenados a trabalhos forados. Porque pareces contrariado, Sobek?

    - Porque esta histria no se agenta em p! Se estes patifrios tivessemrealmente roubado armas num arsenal, por que no estavam equipados com elas

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    14/270

    para atacar o Lugar de Verdade? E alis, esta no uma aldeia como as outras!Esqueceis que tinham um cmplice, um dos meus prprios homens? Visto que asua condenao certa, escaparo s outras jurisdies e a nica verdade de quedisporemos ser a dada pelo ajudante-de-campo do general.

    Kenhir apoiou-se firmemente na bengala.

    - Vai at ao fundo do teu pensamento, Sobek.- No tenho nenhuma confiana naquele Mehi! A ambio transpira-lhe portodos os poros da pele e considero-o capaz das mais srdidas manipulaes.

    - Se me no engano, s um homem razovel que desconfia das miragens eno gostarias de cometer um novo erro de avaliao como o que, h muito tempo,te levou a acusar injustamente o actual mestre-de-obras da confraria.

    Kenhir lembrava-lhe cruis recordaes e o slido nbio sentiu-se abalado.- A situao muito diferente...- Tens a certeza? Consideremos apenas os factos: o general Mehi no o

    protector oficial da aldeia?- No entanto, as entregas de peixe esto interrompidas.- Durante este perodo de luto, entre a morte do antigo Fara e a subida ao

    trono do novo, a lei imposta pelo vizir. E acabo de receber uma carta de Mehique nos abrir as reservas da administrao central, se necessrio. Desde que foinomeado para ela, tivemos uma nica ocasio para nos queixarmos dele?

    - No, no me parece...- Tentou travar a tua investigao?- Aparentemente, no - admitiu Sobek.- No te levou caserna principal de Tebas, longe do teu territrio, quando

    teria podido legalmente recusar-te o acesso?- verdade, mas...

    - No te permitiu assistir ao interrogatrio?- Sim e at...- At o qu, Sobek?O nbio sentia-se aborrecido por fornecer aquela informao, mas tinha de

    ser honesto.- O general Mehi queria confiar-me os lbios e foi o seu ajudante-de-campo

    que lhe lembrou, no sem firmeza, que eles no podiam ser retirados justiamilitar.

    Irritado, Kenhir bateu na bengala.- No gostas de Mehi e ests no teu direito; essa personagem irrita-me tanto

    como a ti, admito, e continuarei a desconfiar dela. Mas estou convencido que oLugar de Verdade no passa de uma etapa na sua carreira e que tem interesse emvelar por ele para no ser censurado pelo Rei.

    - E se o novo monarca decretasse o encerramento da aldeia?O peso dos anos tornou-se de repente muito maior sobre os ombros do

    escriba do Tmulo.- Seria o fim da nossa civilizao, Sobek, e os deuses abandonavam esta

    terra.

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    15/270

    5.

    A casa de Paneb e Uabet a Pura, situada na parte sul, no era a mais bonitanem a maior das casas da aldeia onde viviam os trinta e dois artesos, divididos em

    equipa da direita e equipa da esquerda, e as respectivas famlias, mas a esposa docolosso conseguira torn-la alegre e confortvel.Na centena de metros quadrados habitveis, o primeiro compartimento era

    consagrado ao culto dos antepassados e tinha um leito ritual ao qual se acedia portrs degraus; o segundo, cujo tecto plano era sustentado por uma coluna feita deum tronco de palmeira coberto de gesso, possua igualmente um valor sagrado,com a mesa de oferendas, a estela representando uma porta de comunicao com ooutro mundo e outra estela encastrada na parede representando um protector daconfraria, o esprito eficaz e luminoso de R, que vogava na barca do Sol etransmitia a vida aos seus sucessores. Fora Nfer o Silencioso que oferecera aquelaobra ao seu amigo Paneb, tornado seu filho adoptivo.

    Vinham em seguida um quarto, uma sala de gua e uma cozinha com tectode ramagens fcil de levantar. Dali partia uma escada que dava para o terrao. Duascaves, uma para as jarras com alimentos e a outra para o vinho e azeite,completavam um habitat onde a frgil e bonita Uabet encontrara a felicidade.

    Com trinta e seis anos, tal como o marido, parecia ter menos dez.Do boio de brecha, uma pedra dura com veios vermelhos e brancos

    puxando para o amarelo, retirou um pouco de galena com um bastozinho paratraar uma delgada linha negra sobre as sobrancelhas. Depois, inclinando para opescoo uma concha de alabastro imitando na perfeio uma concha do Nilo,incluindo o pednculo de ligao do molusco, deixou cair um pouco de leo

    perfumado pensando nesse esposo que tinha de partilhar com Turquesa, a suaesplndida amante.

    Eram ambas sacerdotisas de Hathor e nunca se tinham chocado, como serespeitassem um pacto mudo. Turquesa fizera voto de permanecer celibatria ePaneb nunca passava a noite em casa dela; a sua nica esposa era Uabet, que lhedera um filho de uma excepcional robusteza e cumpria as suas tarefas de dona decasa. Embora se mostrasse tolerante por amor, no se comportava como umamulher submissa e o seu colossal marido tinha-lhe respeito.

    Colocando em redor do pescoo o colar de cornalinas e de jades vermelhosque Paneb lhe oferecera, Uabet sentiu-se verdadeiramente bela.

    - Continua a no haver peixe seco esta manh! - exclamou o marido, furioso.- a guloseima preferida do meu filho e no suporto que seja privado dela.- No podemos fazer outra coisa seno esperar.- No, Uabet, h melhor a fazer!- No desafies os peixeiros, Paneb; receberam ordens e no so responsveis

    pela interrupo dos fornecimentos.- Pois eu sou responsvel pelo bem-estar do meu filho.Instalado num pequeno barco de papiro, Paneb mergulhara na gua do rio

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    16/270

    quatro grandes anzis presos a slidas cordas. Depois de uma hora de esforos,conseguira pescar um soberbo barbo com sessenta e cinco centmetros decomprimento, com corpo de um branco-prateado e barbatanas vermelhas. Paraevitar sofrimento ao animal, matara-o com uma pancada.

    Encorajado por este primeiro xito, Paneb dirigiu-se para guas mais

    profundas. E a sorte sorriu-lhe quase de imediato: travou-se um feroz combateentre o pescador e uma perca do Nilo, a lates, que media quase um metro e meio eno pesava menos de setenta quilos.

    Em geral, era necessrio utilizar um arpo e uma rede para vencer aquelevaloroso guerreiro; apesar da fragilidade da sua embarcao, Paneb no desistiu. Acada sobressalto da perca, respondia apertando a priso.

    O colosso saiu vencedor da luta e no se esqueceu de saudar a alma do peixeque, quando ele o pintava na parede de um tmulo, ajudava o Sol a vencer odemnio das trevas.

    Bastaram-lhe alguns minutos para regressar margem aproveitando acorrente. Transportando a sua presa no ombro esquerdo e segurando na modireita o cesto onde metera o barbo, o arteso seguia pelo meio das altas ervasquando uma violenta pancada nas pernas o fez tropear. Caiu-lhe uma rede emcima e, embora conseguisse levantar-se, o colosso ficou preso.

    Em frente dele, Nia, o chefe dos peixeiros e trs dos seus aclitos com osquais Paneb j discutira.

    - No devias ter sado da tua aldeia - declarou Nia. - Quando se est nosegredo, no se sai de l!

    - Cheiras mal como um peixe podre. Liberta-me imediatamente.O barbudo de proeminente barriga rebentou num riso profundo.- No ests em posio de te fazeres orgulhoso, meu rapaz! No te avisaram

    que apenas eu e os meus empregados temos o direito de pescar aqui?- Se esperas continuar auxiliar do Lugar de Verdade, retoma os teus

    fornecimentos a partir de hoje mesmo. Se assim no for, tratarei pessoalmente doteu caso.

    - Esto a ver isto... J tremo! Para j, vou saborear a soberba perca quepescaste. Mas no antes de te ter dado um correctivo para te ensinar a viver!Vamos, rapazes!

    Quatro cacetes abateram-se sobre o colosso. As espessas malhas da redeamorteceram as pancadas desferidas com demasiada fria para serem exactas,enquanto Paneb cortava uma delas com os dentes. Alargou a abertura soltando um

    grito de raiva que fez estacar os quatro pescadores durante alguns instantes.Saindo da rede, o colosso serviu-se dela como de uma arma; fazendo-a girar,ceifou dois dos aclitos de Nia que caram no cho com o rosto ensangentado; oterceiro, fugiu.

    - No me toques! - urrou o mestre-pescador largando o seu cacete. - s umarteso do Lugar de Verdade e no tens o direito de brutalizar um auxiliar!

    Havia um tal fogo no olhar do seu adversrio que Nia julgou chegada a sualtima hora. Mas Paneb atirou a rede para longe.

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    17/270

    - Traz os meus peixes e vamos ao viveiro - ordenou a Nia.- Tu... tu no me vais atirar ao canal?- Eu, sujar as guas com um corpo to malcheiroso como o teu? Mas se me

    importunares mais uma vez, quebro-te o crnio e abandono-te aos abutres, namontanha.

    Nia apressou-se a apanhar a perca e a seguir pelo caminho do viveiro. Alieram criadas vrias espcies destinadas aldeia que, fossem quais fossem asestaes e as condies climticas, nunca tinha falta de peixe fresco.

    Dois guardas grelhavam uma tainha que partilhariam com o responsvel peloviveiro.

    - Bela pesca, Nia! - exclamou um deles. - Mas onde vais tu assim?- Vai lev-la ao Lugar de Verdade - respondeu Paneb. E vocs, vo encher

    os cestos de peixe fresco e seguir-nos.Os dois homens empunharam os cacetes.- Faziam melhor em obedecer-lhe - recomendou Nia. Ns ramos quatro e

    ele levou a melhor.Os guardas recuaram um passo.- Quem s tu?- Paneb, arteso do Lugar de Verdade.- Temos ordens! Ningum deve tocar no viveiro.- So ordens estpidas, visto que esse viveiro pertence confraria. Encham

    os cestos.- No fundo - interveio o pescador responsvel - Paneb no deixa de ter

    razo.Os dois guardas consultaram-se com o olhar. Era evidente que ficariam ss a

    bater-se contra aquele colosso de musculatura inquietante. Mesmo que o

    conseguissem derrubar, o que parecia bastante improvvel, no sairiam indenes doconfronto. Como no eram suficientemente pagos para apanhar pancada, baixaramas armas. E se a administrao os censurasse, afirmariam ter sido obrigados a agirsob a ameaa de um grupo de agressores.

    Os auxiliares e o porteiro de servio viram chegar um estranho cortejo, cabea do qual avanava Paneb.

    - Peixe fresco! - exclamou o ferreiro com os punhos nas ancas. - para ns?- Tereis a vossa parte - respondeu Paneb.- Quem to deu?- Nia mostrou-se muito cooperante e o nosso viveiro est cheio de soberbos

    exemplares.- Ento os fornecimentos vo recomear?- No se v?Foram oferecidos dois cestos aos auxiliares, que se extasiaram com as

    tainhas de cabea arredondada e grandes escamas.Alertadas pela agitao, as donas de casa saram da aldeia para receberem,

    com transportes de alegria, aquela abundante entrega que lhes ia permitir preparar oseu prato favorito.

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    18/270

    Quando Paneb depositou a perca em frente da porta do escriba do Tmulo,este surgiu, carrancudo.

    - J comi maiores - concedeu o colosso - mas, mesmo assim, deveramossabore-la.

    - De onde vem esse peixe?

    - Eu prprio o pesquei... No proibido, pois no?- At proclamao do nome do novo Fara, ningum est autorizado a sairda aldeia.

    - Agi para o bem da comunidade - considerou Paneb.Visto que o viveiro nospertence, porque no havemos de aproveitar?

    - Um regulamento um regulamento, Paneb! Viol-lo uma falta grave.- Todos os aldees comero de novo peixe fresco, no isso o essencial? Se

    fosse preciso esperar que os poderosos regularizassem as suas contas entre eles,no tardaramos a morrer de fome.

    Irritado, Kenhir bateu no cho com a bengala.- Volta para tua casa e no voltes a sair.- Perteno a esta confraria mas continuo a ser um homem livre!- Vou pedir ao mestre-de-obras que pronuncie uma censura contra ti. A

    partir deste instante, probo-te de participar nos trabalhos da equipa da direita.

    6.

    - Deixa-nos - ordenou Kenhir criada Niut a Vigorosa que fora buscar omestre-de-obras e a Mulher Sbia, obrigada a interromper as suas consultas.

    - Os aldees esto muito ansiosos - revelou ela ao escriba do Tmulo. - Noparo de prescrever calmantes.

    - E no vai ser o comportamento de Paneb que nos facilitar a existncia! -resmungou Kenhir.

    - Se vos referis chegada do peixe fresco, estamos todos felizes por opodermos consumir.

    - Paneb no tinha nem o direito de sair da aldeia nem o de se substituir aomestre-pescador que recebera ordens rigorosas da administrao. Tenho tenes deredigir um relatrio sobre esta falta de disciplina e proibir esse revoltado detrabalhar na equipa da direita durante trs meses.

    - Quanto forma - considerou Nfer - no deixais de ter razo, mas quantoao fundo... A interveno de Paneb no nos despertou? No dependemos de

    nenhuma administrao e no recebemos ordens formais a no ser do Fara.Porque havamos de aceitar sermos privados de peixe? Se necessrio nomear umaequipa para retirar todos os dias do viveiro as peas que nos competem, eu assumoa responsabilidade.

    Kenhir esperava uma reaco muito diferente da parte do mestre-de-obras eficou perplexo alguns instantes.

    - Mas... Paneb cometeu uma falta imperdovel e deve ser sancionado.- O nosso filho adoptivo tem por vezes tendncia para esquecer o

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    19/270

    regulamento - admitiu a Mulher Sbia, com um sorriso simultaneamente terno edivertido ao qual o escriba do Tmulo no pde ficar insensvel.

    - No presente caso, no causou nenhum prejuzo e recordou-nos que a nossasobrevivncia s depende de ns mesmos. na nossa coerncia que bebemos anossa fora.

    - De qualquer maneira...Niut a Vigorosa voltou ao gabinete.- Ordenei que te afastasses! - rabujou Kenhir.- Imuni, o vosso assistente, informa-vos de um incidente de excepcional

    gravidade: a quantidade de gua que nos devia ser entregue foi reduzida a metade.Kenhir levantou-se como se tivesse vinte anos menos e saiu de casa com o

    andar de um rapaz, seguido pelo mestre-de-obras e a Mulher Sbia, to inquietoscomo ele.

    O trio apressou-se at ao enorme reservatrio com parapeito de pedra, dedois metros de dimetro, instalado perto da entrada norte.

    Vrias donas de casa rodeavam o escriba-assistente Imuni e comeavam amostrar-se agressivas.

    - Espervamos cinqenta burros - precisou o pequeno escriba de rosto deroedor e olhar fugidio. - Chegaram... mas com muito poucos odres!

    - E os transportadores de gua que os acompanhavam?interrogou Kenhir.- Vinham de mos a abanar.- Que explicao te deram?- Nenhuma - respondeu Imuni com a sua voz melflua -, mas mesmo assim

    registrei as suas declaraes numa tabuinha de madeira a fim de que possais copi-las para o Dirio do Tmulo.

    Tendo prospias sobre a literatura, que no tinha valor a seus olhos se no

    fosse particularmente difcil de ler, Imuni nunca se deslocava sem o seu material deescriba, que tratava com os mesmos cuidados manacos que dispensava ao seu finobigode.

    - Verificaste as nossas reservas? - inquietou-se o escriba do Tmulo.- A grande jarra da parede sul ainda est meio cheia e h bastante gua no

    poo do templo de Hathor para celebrar os rituais durante muitas semanas.- A gua entregue hoje foi distribuda? - perguntou Clara.- Opus-me a isso - declarou Imuni com orgulho. - Nenhuma das nforas

    colocadas nas ruelas foi cheia.Os grandes recipientes de terracota rosa coberta por vidrado implantados no

    cho tinham os nomes dos soberanos que os tinham oferecido aldeia, tais comoAmen-hotep I, Hatchepsut, Tutms III ou Ramss o Grande. Com a altura de doismetros, ofereciam s donas de casa o precioso lquido em grande quantidade.

    Clara, acompanhada por Nfer, dirigiu-se para a porta do norte.- A luz do teu olhar desapareceu bruscamente - disse ele.O que receias?- Que a gua que acabam de nos entregar esteja envenenada.O chefe Sobek em pessoa velava pelos odres amontoados junto da porta de

    acesso. Os burros e os transportadores tinham j partido para o vale.

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    20/270

    - Algum se aproximou destes odres? - perguntou Nfer.- Ningum - afirmou o nbio.Clara abriu-os um a um.- Nenhum odor suspeito... Um auxiliar que traga amndoas e frutos de

    balanite. E tu, Sobek, ordena a um dos teus homens que traga uma gara-real.

    Em cada odre de cerca de vinte litros, Clara lanou vrios frutos destinados amanter a gua lmpida e preservada de qualquer miasma; mas esta precauo nolhe bastava e esperava a interveno da gara-real, que dois nbios tinhamconseguido capturar num campo na margem do Nilo sem a ferir.

    A Mulher Sbia acalmou o belo pssaro branco magnetizando-o; este deualguns passos na direco dos odres. Se bebesse, seria a prova de que a gua noestava conspurcada com nenhuma impureza.

    O bico da ave desviou-se e ela levantou vo.- Esvaziem estes odres e queimem-nos - exigiu Clara.- Desta vez - exclamou Kenhir que assistira cena demais! Privam-nos

    de peixe e de gua pura e tentam envenenar-nos! Partir amanh para a capital umrelatrio pormenorizado sobre estes acontecimentos.

    - Tenho que prevenir o general Mehi - considerou o mestre-de-obras - eidentificar o autor deste ignbil atentado.

    - Acompanho-te.- No, Kenhir; permanecei aqui e tomai todas as medidas necessrias para

    defender a aldeia contra uma eventual agresso.- Todas?- No temos outra opo. - Os caminhos no so seguros, mesmo na

    margem oeste; leva Paneb contigo.

    Mehi estava estupefacto.- O que fizeste, Serketa?- Como estava um bocado aborrecida, envenenei os odres destinados ao

    Lugar de Verdade. Bastou-me roubar um frasquinho ao nosso amigo Daktair edeitar o seu contedo nesses odres, menos numerosos do que habitual, segundome disseram. No loucamente divertido? Daqui a algumas horas, boa parte doshabitantes da aldeia estar morta ou doente!

    O general esbofeteou to violentamente a esposa que esta caiu para trs.- Fui eu que reduzi o nmero de odres para espalhar a perturbao na

    confraria, provocar os seus protestos e fazer-lhes crer que o responsvel era

    Amenms... Sem suficiente quantidade de gua, os artesos teriam sido obrigados aabandonar a aldeia temporariamente e eu teria podido revist-la vontade! E tu, secalhar, mataste o nosso aliado do interior!

    - E se estiverem todos mortos? - sussurrou Serketa com voz de meninapequena.

    - Esqueces que beneficiam da cincia de uma Mulher Sbia capaz de tratardeles! E esqueceste sobretudo que sou eu e s eu que determino a nossa estratgia.Nunca mais te lembres de tomar este gnero de iniciativas, Serketa!

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    21/270

    Com a bochecha em fogo, ela arrastou-se aos ps do seu senhor e mestre.- Perdoas-me, amor querido?- No o mereces.- Perdoa-me, suplico-te!Mehi de boa vontade espezinharia aquela insensata, mas ela podia ainda ser-

    lhe til. Agarrou-a pelos cabelos.Apesar da dor, Serketa permaneceu silenciosa. No dia em que o maridocedesse piedade, mat-lo-ia.

    - Se falhaste o golpe, a confraria no tardar a reagir. Podia fazer acusarDaktair, mas ainda nos indispensvel.

    Serketa beijou o largo torso do marido.- Tenho uma idia - murmurou ela.

    Armados com cacetes, Nfer o Silencioso e Paneb o Ardente tinham seguidoo caminho regulamentar reservado aos artesos que saam do Lugar de Verdade.Depois de terem franqueado o posto de controlo que proibia a qualquer pessoausar aquele itinerrio em sentido inverso, tinham passado ao lado do Ramesseum, oTemplo dos Milhes de Anos de Ramss o Grande, para se dirigirem aos edifciosda administrao da margem oeste.

    A atmosfera era pesada. No havia rias de flauta nos campos nem canes;todos olhavam o vizinho com um olhar suspeitoso e observavam comdesconfiana quem passava. Alguns murmuravam que era inevitvel uma guerracivil e que a provncia tebana pagaria cara a fidelidade ao prncipe Amenms.

    - Tens a certeza que o escriba do Tmulo no redigir um relatrio contramim?

    - Tenho a certeza, Paneb.

    - Porque mudou ele de opinio?- Porque as tuas faltas de disciplina no passam de ninharias em relao ao

    atentado perpetrado contra a aldeia.- E tu, tinhas tomado a minha defesa?- Quando um regulamento se revela estpido, contrrio harmonia de

    Maet.Quando se aproximaram dos edifcios administrativos, reinava uma agitao

    fora do habitual. Soldados e escribas corriam em todas as direces, os graduadosberravam ordens contraditrias e no havia guardas para controlar a entrada.

    Os dois artesos avanaram at ao grande ptio onde os cavalos no

    cessavam de relinchar.Quando Nfer ia a franquear o limiar do edifcio onde se encontrava ogabinete de Mehi, surgiram dois soldados e apontaram-lhe as lanas ao peito.

    - Acabamos de prender o culpado! - gritou o mais nervoso.

    7.

    "Todas as medidas necessrias", dissera o mestre-de-obras. Legalista, o

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    22/270

    escriba do Tmulo solicitara no entanto a aprovao da Mulher Sbia e do chefe daequipa da esquerda, tendo em vista o carcter extraordinrio das ordens que deveriadar.

    Kenhir saiu da aldeia e fez convocar o chefe Sobek.- Os teus homens esto em p de guerra?

    - Ningum se aproximar da aldeia sem ser detectado. As minhas ordens sorigorosas: uma intimao e depois um disparo de flechas se o interpelado no seimobilizar de imediato.

    - Vamos a casa do ferreiro.Desde a morte do Rei Merenptah, Obed o ferreiro, um srio barbudo, de

    pernas curtas e braos musculados, tinha muito menos trabalho. Aproveitava paradormir e se empanturrar de pes quentes recheados de queijo de cabra.

    Quando viu entrar na sua forja o escriba do Tmulo e o chefe da polcialocal, perguntou a si mesmo se no estaria a sonhar. Era a primeira vez que Kenhirse aventurava no seu mundo e Obed receou que o telhado lhe casse na cabea.

    - Que falta cometi eu?- Nenhuma, Obed, descansa.- Mas ento...- Fabricas excelentes ferramentas e repara-las to depressa quanto possvel;

    os chefes de equipa e eu prprio s temos que nos felicitar pelo teu trabalho. Mashoje sou incapaz de afirmar que o Lugar de Verdade continuar a funcionar comono passado. E se nas altas instncias decidirem atacar a sua integridade, ele devepoder defender-se.

    - essa a minha misso - espantou-se o chefe Sobek.- verdade, mas os prprios artesos devem poder colaborar contigo em

    caso de necessidade.

    O ferreiro fez estalar os dedos que, no dizer das crianas da aldeia, seassemelhavam a crocodilos e cheiravam pior do que os ovos de peixe.

    - Quereis que eu, Obed, fabrique... armas?- essa a deciso do mestre-de-obras - precisou Kenhir.- ilegal! - protestou Sobek. - S a administrao mas pode dar e...- O que que a administrao nos d? gua envenenada! Na condio de

    responsvel pelo bem-estar do Lugar de Verdade, considero indispensvel reforara nossa autonomia em todos os campos.

    O nbio reconheceu que Kenhir no deixava de ter razo. E visto que ele eo seu corpo de polcias deviam obedincia ao escriba do Tmulo, a sua

    responsabilidade estava salvaguardada.Quanto a Obed, considerou bastante interessante essa inesperada tarefa ealimentou o seu fogo de carvo de madeira e caroos de tmara.

    Com a segurana de mo de um profissional experimentado, deitou p decarvo em vasos de cermica que se pareciam vagamente com um canino; graas aum pequeno orifcio redondo, a chama da forja penetrava no interior, inflamava op e levava ao rubro o vaso que o ferreiro segurava com pinas de bronze, depoisde lhe ter introduzido pedaos de metal que transformaria em punhais e espadas

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    23/270

    curtas.- A fabricao comea de imediato - declarou.Kenhir e Sobek saram da forja.- No tendes com certeza a inteno de armar os artesos, pois no? -

    inquietou-se o nbio.

    - As armas sero contabilizadas pelo meu assistente e armazenadas na casa-forte - respondeu o escriba do Tmulo. - Eu e apenas eu procederei suadistribuio se tal for necessrio. E se for necessrio, darei aos membros daconfraria meios para se defenderem.

    - Lembrais-vos que h um traidor entre vs e que dar-lhe uma arma otransformar inevitavelmente em assassino?

    - Tenho excelente memria, Sobek, e estou consciente que o interesse geralimplica certos riscos. At nova ordem, apenas os teus homens estaro armados. Etu, no te estars a esquecer que esse engolidor de sombra poderia servir-se dequalquer ferramenta como se fosse uma arma?

    - Condenaria a sua alma destruio!- No te parece que j est condenada?

    - Sou o mestre-de-obras do Lugar de Verdade, acompanhado de um arteso- declarou Nfer com calma. - Baixa a tua lana, soldado, e conduz-nos ao generalMehi.

    A serenidade do suspeito desconcertou o soldado. O colega observava cominquietao a envergadura de Paneb, que fazia passar de uma mo para a outra umenorme cacete. Trespassar o peito do que se afirmava mestre-de-obras parecia fcil,mas o colosso daria cabo deles.

    - Vou chamar reforos... Vocs so culpados, tenho certeza!

    - O que se passa, soldado? - perguntou Nfer em voz calma.- Como se tu no soubesses!- Envenenaram a gua de uma cisterna - respondeu o colega a quem a

    atitude de Nfer tranqilizava. - H j dois mortos e vrios doentes. O general deuordem para procurar todas as pessoas que beberam e deter os suspeitos.

    - Conduz-nos at ele, tenho importantes informaes a comunicar-lhe.Subjugado pela fora tranqila que emanava do mestre-de-obras, o soldado

    acedeu.O vasto gabinete de Mehi estava cheio de oficiais e de escribas que pipilavam

    como pardais; uns faziam relatrios, outros pediam instrues.

    Com o cacete, Paneb bateu nas lajes.Todos se voltaram para os dois artesos.- Mestre-de-obras... Estais ileso! - exclamou Mehi. Ia enviar um

    mensageiro aldeia para saber se haveis utilizado a gua envenenada.- Graas perspiccia da Mulher Sbia, no temos nenhuma vtima a

    deplorar.- Excelente notcia! Infelizmente, o mesmo no se passa aqui.- O que aconteceu, general?

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    24/270

    - Sa - ordenou Mehi aos oficiais e aos escribas -, e comeai por restabelecera calma. Anunciai que j no corremos qualquer perigo e que foram encontradas ascausas deste drama.

    Tranqilizado, o grupo abandonou o gabinete. Fingindo abatimento, Mehideixou-se cair numa cadeira de alto espaldar.

    - Sentai-vos, peo.- Preferimos permanecer em p, general.- Que horrvel vingana... Sem a vigilncia de um mdico militar, teria havido

    dezenas de mortos. Perdoai, tenho a garganta seca... Um pouco de aguardente detmaras?

    - No, obrigado.Com as feies contradas, Mehi bebeu um copo de um gole.- Sucederam-se tantos acontecimentos trgicos que tenho dificuldade em pr

    os meus pensamentos em ordem... Houve primeiro essa proibio vinda da capitalem relao ao consumo de peixe no perodo de luto e depois a nova ordem doprncipe Amenms em relao ao fornecimento de gua vossa aldeia.

    - Tratam-se de intolerveis violaes da lei que se aplica no Lugar deVerdade - lembrou o mestre-de-obras.

    - Eu sei, eu sei... Emiti imediatamente uma nota de protesto dirigida sautoridades provisrias e expliquei ao prncipe Amenns que nenhumracionamento de qualquer espcie podia ser imposto vossa confraria sem ordemdo Fara. Mas o filho de Seti tem por vezes tendncia para se considerar como onovo senhor do pas...

    - Devo confessar-vos, general, que retirmos peixe do nosso viveiro.- Excelente iniciativa, Nfer; mais no haveis feito do que substituir-vos a

    uma categoria de auxiliares impedidos de trabalhar e ningum, sobretudo eu, vos

    censurar por isso. Como administrador, apoiar-vos-ei sem reserva. No que dizrespeito gua, no consegui impedir a confuso que hoje se verificou; ouvoltamos ao normal a partir de amanh ou demito-me e estabelecer-se- umconflito entre Amenms e os que pretendem manter o respeito pela Lei de Maet.

    Colocando assim todo o seu peso na balana, Mehi provava confraria queesta no tinha melhor aliado. E como manipulava o jovem e crdulo Amenms, ogeneral no corria qualquer risco de ser demitido das suas funes.

    - Sabeis a razo pela qual a gua foi envenenada? - perguntou Nfer.- Uma vingana de inaudita crueldade... O irmo de um dos lbios que

    tentaram introduzir-se na vossa aldeia trabalhava nas cavalarias. Quando soube

    que os seus cmplices tinham sido detidos e severamente condenados, essemonstro roubou drogas na enfermaria e poluiu os odres destinados ao exrcito e aoLugar de Verdade. Felizmente, um mdico verificou o desaparecimento de vriosfrascos e deu imediatamente o alarme. Mas dois palafreneiros, uma sentinela e umescriba da contabilidade j estavam a vomitar e vrios soldados torciam-se comdores. No conseguimos salvar todos.

    Nfer estremeceu. Se a Mulher Sbia no tivesse pressentido o perigo,quantos aldees teriam sucumbido?

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    25/270

    - Como haveis identificado o culpado? - perguntou Paneb.- Um oficial reparou na sua atitude estranha e teve a idia de lhe revistar a

    cabana. Encontrou os frascos roubados. O miservel tentou fugir e os archeirosabateram-no. Graas aos colegas desse assassino, soubemos quem ele era e porquetinha agido assim. Tomei disposies para que a gua e os alimentos sejam

    verificados todos os dias pelos servios sanitrios a fim de evitar que se repita umdrama to terrvel.Mehi omitiu explicar que fora a doce Serketa a colocar em casa do lbio as

    provas da sua culpabilidade, ou seja, os frascos que ela prpria roubara naenfermaria, para evitar que um eventual inqurito se orientasse para o laboratriodeDaktair.

    - Sem duvidar da qualidade dos vossos controlos - prometeu o mestre-de-obras - ns tambm verificaremos.

    - Mais valem duas precaues do que uma s.- Se as quantidades de gua habituais no nos forem entregues amanh de

    manh, receio uma revolta dos artesos.O general Mehi levantou-se.- Estou consciente da gravidade da situao e tudo farei para evitar o pior.

    8.

    De acordo com a tradio, a casa do mestre-de-obras era uma das duas maisbonitas da aldeia, juntamente com a do escriba do Tmulo. Tal como todas asmanhs, Nfer e Clara levantaram-se antes do amanhecer para fazerem as suasablues e depois dirigiram-se ao templo a fim de celebrarem os rituais do

    renascimento da luz em nome do Fara e da Rainha do Egipto.O mestre-de-obras gostava de acender as lmpadas que ele prprio fabricara;

    eram constitudas por taas de bronze cheias de leo de rcino ou de azeite,colocadas sobre pequenas colunas papiriformes de madeira de accia, fixas numabase de calcrio em meia esfera. Sempre que a chama surgia, Nfer pensava nomilagre que se realizava quotidianamente no Lugar de Verdade, onde os vivostentavam comunicar com as foras divinas para oferecer a Maet um local deencarnao. Apesar dos seus defeitos e insuficincias, homens e mulheres tinhamdecidido reunir-se e consagrar a sua existncia a uma obra que os ultrapassava.

    Graas Pedra de Luz, transmitida de mestre-de-obras em mestre-de-obras,

    era possvel transmudar a matria, viajar da pedra estrela e da estrela pedra.As lmpadas iluminavam os mveis que os artesos tinham oferecido aNfer o Silencioso quando o Fara o confirmara na sua funo de mestre-de-obras:uma cadeira de espaldar alto decorada com espirais, ltus, losangos e romsenquadrando um sol, outra cadeira ornada com uma latada e cachos de uvas, umassento de dobrar com embutidos de marfim e bano, mesas baixas rectangulares,aparadores, cofres de arrumao... Motivos para satisfazer qualquer notvel e torn-lo orgulhoso do seu xito.

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    26/270

    Mas esta casa estava construda no corao de uma aldeia que no seassemelhava a nenhuma outra e o chefe da confraria tinha como nica ambiotransmitir os ensinamentos recebidos na morada do Ouro a fim de que templos etmulos fossem edificados de acordo com as leis da harmonia.

    Nfer contemplou a esposa. Para se proteger dos ardores do sol, espalhava

    sobre a acetinada pele um ungento lquido e perfumado com flor de acciacontido num frasco de gargalo alto; depois, fez deslizar a tampa de um cofre dejias e retirou dele dois brincos de jaspe vermelho decorados com trs fios de ouro.Prendeu-os, olhando-se num espelho feito num disco solar de bronze queencimava uma coluna verde simbolizando a boa sade e o desabrochar.

    Nfer poisou docemente as mos sobre os ombros de Clara.- Quem poderia cantar a tua beleza?Silencioso como o seu dono, Trigueiro saltou ao pescoo de Clara com

    delicadeza e lambeu-lhe ternamente a face; a longa cauda agitava-se com vigor paramanifestar a sua alegria por receber carcias, to importantes como um prato bemcheio. Quando o elegante co negro regressou ao seu tapete, Clara abriu um cestocircular de onde retirou um colar floral composto por duas fiadas de ptalas deltus enquadrando uma fiada de flores de mandrgora amarelas separadas por fitasvermelhas.

    - Porque levas um colar to frgil?- uma oferenda destinada deusa do silncio.- Vais subir colina para encontrar a cobra fmea, no verdade?- Precisamos da sua ajuda, Nfer; apenas o seu poder mgico nos permitir

    enfrentar os golpes da sorte e modificar o curso dos acontecimentos.- De cada vez que a fazes sair do seu antro arriscas a vida.- No devemos correr todos os riscos para proteger a aldeia das infelicidades

    que a espreitam?Nfer beijou a esposa no pescoo.Revelada pelos primeiros raios do levante, a paisagem era esplndida. Entre

    o ocre do deserto e o verde dos campos cultivados, a ruptura era brutal; no entanto,os dois mundos completavam-se mais do que se confrontavam e era a austeridadedo primeiro que tornava to calorosos os segundos, ritmados por bosquezinhos depalmeiras.

    Clara subia a passo regular em direco colina do Ocidente, na qualofereceria o colar e um ramo composto por flores de papiro e de papoula, folhas deconvlvulos e de mandrgoras. Esperava desta forma acalmar o furor da montanha

    sagrada, no topo da qual vivia uma gigantesca serpente. A Mulher Sbia que iniciaraClara na sua funo de me da confraria recomendara-lhe que venerasse a deusa dosilncio a fim de que ela se tornasse o seu guia e o seu olhar quando o futuroescurecesse.

    A colina culminava a quatrocentos e cinqenta metros e o seu topo, emforma de pirmide, situava-se no eixo dos Templos dos Milhes de Anos dispostosem leque em relao quele derradeiro santurio que tocava o cu; quanto sMoradas de Eternidade do Vale dos Reis, estavam colocadas sob a proteco de a

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    27/270

    grande colina do Ocidente, filha da luz no seu nome de Maet.Era l no cimo que se revelava a me divina, senhora dos nascimentos e das

    transformaes, regente dos seres que viviam em rectido, socorredora dos que aveneravam, protectora para quem a trazia no seu corao; mas esta soberanamisteriosa no suportava nem a mentira nem a ganncia e o seu amor podia tomar

    a forma de um fogo temvel.Apenas a Mulher Sbia era capaz de franquear os limites do oratrio ondevivia a cobra real, encarnao da deusa da colina; no corpo da serpente, tofrequentemente representada nas paredes dos tmulos reais, realizava-se aregenerao quotidiana do Sol. Era ela a vencedora do tempo e a que dava forma ressurreio.

    Tendo chegado ao cume, Clara depositou o ramo e o colar sobre umpequeno altar e salmodiou um hino luz renascente que animava de novo todas asformas de vida.

    Lentamente, a cobra fmea saiu do seu antro e depois, com uma vivacidadesurpreendente, ergueu-se em posio de ataque. Tal como ela, a Mulher Sbiabalanava-se da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, sem rigideznem brusquido; nunca deixou de fixar os olhos do rptil, onde brilhava um fogovermelho cuja agressividade se foi atenuando pouco a pouco.

    Tranqilizada pela voz melodiosa da superiora das sacerdotisas de Hathor, acobra da deusa imobilizou-se como se se transformasse em esttua de granito eouviu as perguntas daquela que conseguira encant-la.

    A maior parte dos aldees tinham dormido mal, dominados pela inquietao:a gua potvel de que tinham necessidade ser-lhes-ia entregue em quantidadesuficiente? No entanto, como todas as manhs, as mulheres tinham cumprido o seu

    dever de sacerdotisas de Hathor, depositando oferendas nos altares dosantepassados, cuja proteco se revelava mais indispensvel do que nunca.

    - As autoridades esto a brincar conosco - considerou Karo o Mal-humorado, talhador de pedra atarracado, de braos curtos e poderosos, narizquebrado e espessas sobrancelhas. - No nos vo fornecer gua, nem po, nemlegumes!

    - s demasiado pessimista - retorquiu Renup o Jovial, escultor de grandebarriga e cabea de duende malicioso. - Graas a Paneb, j conseguimos peixefresco.

    - No passou de um fogacho - afirmou Nakht o Poderoso, outro talhador de

    pedra com envergadura de atleta que caminhava batendo pesadamente com os psno cho. - Ningum lhe tinha pedido nada e s nos vai arranjar aborrecimentos.- Senta-te no tamborete e no te mexas - ordenou-lhe Renup, que servia de

    cabeleireiro e barbeiro.- Os meus cabelos no esto compridos de mais! protestou Nakht.- Hoje a tua vez. No ds maus exemplos, se no a existncia tornar-se-

    impossvel.O Poderoso no quis contrariar o Jovial, que afiara a navalha num slex e se

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    28/270

    mostrava de grande destreza. Com ele no havia o perigo de golpes e uma loodepois da barba acalmava as irritaes da pele.

    O grande arcaboio, um pouco mole, do desenhador Gau o Exacto, de narizdemasiado longo e rosto desagradvel, aproximava-se dos seus camaradas daequipa da direita.

    - Novidades? - perguntou com a sua voz rouca.- Nenhuma - respondeu Karo. - Userhat o Leo foi ver porta principal.O chefe-escultor, de peitoral to soberbo como o de uma grande fera,

    regressava para junto do pequeno grupo em companhia do talhador de pedra Casao Cordame, de rosto quadrado iluminado por pequenos olhos castanhos.

    - Nem um burro vista - declarou o ltimo.- No olhaste para ti - ironizou Renup.- Se no tivesses uma navalha na mo, fazia-te engolir isso!- Acalma-te - recomendou Userhat -, e no comecemos a atacar-nos

    mutuamente.Ainda ensonado, o desenhador Pai o Bom po, de barriga proeminente e

    faces rechonchudas, saiu de casa em passo hesitante.- A minha mulher pede-me gua para a cozinha.- Vai esperar, como as outras! - afirmou Casa, irritado.- No me digam que os burros no chegaram... No me atrevo a voltar para

    casa!- Se for preciso - prometeu Didia o Generoso, um carpinteiro de elevada

    estatura e gestos lentos -, ofereo-te asilo.O ourives Tuti o Sbio, enfezado e frgil, mantinha-se em silncio, tal como

    o desenhador Unesh o Chacal, ainda mais fechado do que o habitual.Querendo esquecer as preocupaes, o talhador de pedra Fened o Nariz,

    muito emagrecido desde o seu divrcio, e o escultor Ipui o Examinador, esguio enervoso, jogavam aos dados.

    - No tm mais nada que fazer seno estar para a a tagarelar? - interrogou opintor Ched o Salvador.

    O nariz recto, os lbios finos e o pequeno bigode muito bem cuidadodavam-lhe um ar desdenhoso.

    - O que propes? - insurgiu-se Caro o Mal-humorado.- Da manuteno das nossas ferramentas s encomendas do exterior,

    trabalho que no falta... E cada dia em que no aperfeioamos a profisso umdia perdido.

    - Quando o quotidiano no est garantido - afirmou Pai -, no h profissopossvel!- Onde foi agora Paneb? - inquietou-se Nakht.- Ei-lo! - disse Casa o Cordame.O colosso corria em direco aos companheiros.- Os burros esto a chegar! - anunciou. - So pelo menos uma centena.Rapidamente alcanados pelos colegas da equipa da esquerda, os membros

    da da direita precipitaram-se para a porta do norte e saram da aldeia.

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    29/270

    Nunca os valentes jumentos lhes tinham parecido to simpticos, com o seumaravilhoso carregamento!

    Karo o Mal-humorado apoderou-se de um odre.- Estou a morrer de sede - confessou.A mo do mestre-de-obras poisou sobre o pulso do escultor para o impedir

    de beber. - Esqueceste que essa gua pode estar envenenada?9.

    - Temos de esperar pelo regresso da Mulher Sbia para que ela nos garanta aqualidade desta gua - decidiu o mestre-de-obras.

    - Onde foi ela? - perguntou Nakht o Poderoso.- Subiu colina.- E se no voltar? - afligiu-se Fened o Nariz.O mestre-de-obras voltou-se para a montanha sagrada.- A luz muito pura esta manh; Clara ter sabido beber no silncio as

    foras que nos so necessrias.Os auxiliares descarregaram os quadrpedes, aos quais foi oferecida

    forragem, e os odres foram acumulados junto da porta principal da aldeia.Iniciou-se uma ansiosa espera. Alguns entretinham-se com ocupaes mais

    ou menos irrisrias, outros olhavam o carreiro que a Mulher Sbia percorreria pararegressar aldeia.

    Quando a intensidade do Sol do meio-dia tornou dolorosas as gargantassecas, o escriba do Tmulo mandou distribuir raes de gua depois de as mulherese as crianas terem recebido as suas. A esperana ia diminuindo e os pessimistasficaram convencidos que nunca mais voltariam a ver a esposa do mestre-de-obras.

    Tal como a Mulher Sbia que a precedera, desvanecera-se na montanha, absorvidapela deusa.

    - Bebe um pouco - recomendou Paneb ao mestre-de-obras.- Ela volta - murmurou Nfer.O colosso perscrutou a encosta.Em vo.- Bebe e vai descansar.- Clara volta.O olhar de guia de Paneb permitiu-lhe distinguir uma silhueta que descia ao

    longo do carreiro pedregoso.

    - Tens razo, Nfer... ela, mesmo ela!A boa notcia propagou-se imediatamente e vrias crianas, entre as quais ofilho de Paneb, foram autorizadas a correr ao encontro da Mulher Sbia.

    Resplandecente, Clara foi acolhida por gritos de alegria; a sua presenaprovava que a soberana da colina acedera splica da me da confraria e quecontinuaria a estender a sua proteco sobre a aldeia.

    - A gua foi entregue? - perguntou Clara.- Sim - respondeu Nfer -, mas ningum bebeu.

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    30/270

    A Mulher Sbia abriu um odre e bebeu um gole antes do marido ter tempode intervir.

    - Clara, no devias...- No temos nada a recear.A Mulher Sbia poisou a mo sobre cada um dos odres.

    - Que esta gua seja distribuda.Em alguns minutos, a aldeia regressou vida. Os seus habitantes podiam denovo beber, lavar-se e cozinhar.

    - Mehi manobrou bem - considerou o escriba do Tmulo. - Conseguindorestabelecer esta distribuio vital, prestou-nos um grande servio. Enquanto elenos apoiar, sobreviveremos.

    O prncipe Amenms mudara muito. Ele, o amante de cavalos e deinterminveis passeios pelo deserto, tornara-se indolente, saboreando os prazeresinesgotveis da existncia tebana. Banquetes faustosos onde eram servidos vinhosinesquecveis, deliciosos passeios pelo Nilo, banhos no lago da luxuosa mansoposta sua disposio pelo general Mehi, ligaes fugazes com jovens beldadespouco ariscas, sem esquecer um pequeno exrcito de cabeleireiras, manicuras emassagistas que faziam desaparecer qualquer dor... Que melhor podia desejar?

    Mehi inclinou-se diante de Amenms.- Desejais ver-me, prncipe?- Acabo de acordar, general! Desde que aqui estou no paro de engordar e

    perco energia... Este sonho, por muito encantador que seja, no pode durar mais!Tomei a deciso de regressar a Per-Ramss.

    - Sem informaes precisas, correis grandes riscos.- Apesar de tudo, Seti meu pai!

    - Espero enganar-me, prncipe, mas receio que a luta pelo poder apague oslaos de famlia. Se regressardes capital, que sorte vos estar reservada? Aqui,estais em segurana.

    - Esta segurana sufoca-me! Estarei condenado a tornar-me um notvel deTebas que morrer obeso nos braos de uma rapariga de prazer?

    - O vosso futuro parece-me muito mais prometedor disse Mehi sorrindo -desde que no cedeis impacincia.

    - A impacincia! H quanto tempo estou eu enfeitiado pela magia destaprovncia? Enquanto saboreio os seus encantos, o meu pai prepara-se para tornar-se Fara!

    - provvel, mas Seti tem conscincia que no poder reinar sem Tebas. Esabe que a vossa estadia na cidade do deus Amon vos tornou a popular e quetendes vossa disposio foras armadas cuja reputao no precisa ser exaltada.

    Amenms ficou intrigado.- Quais so as vossas concluses, general?- Que o vosso pai talvez tente negociar convosco a fim de vos associar ao

    trono; a sua principal preocupao no evitar uma guerra civil?A argumentao de Mehi abalou o prncipe mas no o convenceu.

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    31/270

    - O meu pai no tem um carcter conciliador... Ordenar-me- que lheobedea!

    - Ento, a derradeira deciso ser vossa.

    Ao cair da noite, Fened o Nariz, equipado com um longo cajado nodoso,

    guiou os artesos da equipa da direita at ao local que lhe estava reservado, nolimite da necrpole, no sop da colina do Norte.Gau o Exacto pediu a cada arteso que dissesse o seu nome antes de

    franquear o portal que dava acesso a um pequeno ptio a cu aberto onde forainstalada uma bacia de purificao de forma rectangular. Pai o Bom po retirou delegua com uma taa e derramou-a sobre as mos estendidas dos seus colegas, antesdeles penetrarem na sala de reunies cujo tecto, sustido por duas colunas, estavapintado de um amarelo-ocre.

    Sentaram-se em bancos de pedra dispostos ao longo das paredes, depois domestre-de-obras ter tomado lugar a oriente, no cadeiro de madeira que os seuspredecessores tinham ocupado. Por trs dele, separado da sala por um murete, umsanturio composto por um naos que abrigava uma estatueta da deusa Maet e pordois pequenos compartimentos laterais onde eram conservados objectos rituais.

    Fora naquele espao sagrado, apenas acessvel ao mestre-de-obras, quePaneb vira brotar a luz da Pedra secreta da confraria, uma luz to potente queatravessara as portas de madeira do naos.

    Mas naquela noite o local de reunio encontrava-se iluminado apenas porlmpadas.

    Outro arteso estava desiludido com a ausncia da Pedra: o que traa os seusirmos e procurava s escondidas trocar aquele tesouro inestimvel pela belafortuna que os seus aliados tinham reunido para ele no exterior. certo que o lugar

    estava fechado fora das assemblias, mas Nfer no cometera a imprudncia de alideixar a Pedra de Luz.

    - Prestemos homenagem aos antepassados - disse ele. Possam elescontinuar a iluminar o nosso caminho e a guiar-nos pelo caminho da rectido. Queo banco de pedra mais prximo de mim seja ocupado pela fora criadora do meuantecessor, ressuscitado entre as estrelas e sempre presente entre ns.

    O assento do defunto permaneceria vazio para sempre, porque todos oschefes de equipa do Lugar de Verdade permaneciam substituveis.

    - Ainda no sabemos quem, se Seti, se o seu filho Amenms, governar embreve as Duas Terras - precisou Nfer - e que sorte reservar o novo Fara nossa

    confraria. por isso que, sem esperar resposta a estas interrogaes, desejavaconsultar-vos a fim de tomar decises.- Na minha opinio - declarou Renup o Jovial alguns afligem-se para

    nada; um Fara no pode preparar a sua eternidade sem o trabalho do Lugar deVerdade. Quando o novo Rei for coroado, h-de pr-nos a trabalhar.

    - Ningum tira o veneno serpente nem ao homem mau - objectou Gau oExacto. - Se o novo Rei nos for hostil, podemos recear o pior.

    - Com certeza! - reforou Nakht o Poderoso. - E no para se distrair que o

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    32/270

    ferreiro fabrica armas. Por mim, bater-me-ei at ao fim para defender a nossaliberdade!

    - Somos artesos, no soldados - lembrou Ipui o Examinador. - Se o exrcitodecidir mandar evacuar a aldeia, ser insensato resistir.

    - Submeter-se seria uma imperdovel cobardia! - exaltou-se Paneb. - De que

    vale sobreviver se abandonamos tudo o que nos querido e se nos comportamoscomo carneiros?- No insultes o teu irmo! - protestou Casa o Cordame.- Basta - interveio o mestre-de-obras. - Esqueceis que falar mais difcil do

    que qualquer outro trabalho e que no deveis manifestar-vos a no ser paraapresentar solues?

    Paneb no conseguiu impedir-se de formular a pergunta que lhe queimava oslbios.

    - A Pedra de Luz ser deslocada e oculta fora da aldeia para evitar que caianas mos de eventuais agressores?

    - Receias uma invaso iminente? - inquietou-se Didia o Generoso.- A luta pelo poder ser implacvel... E arriscamo-nos a figurar entre as suas

    primeiras vtimas - adiantou Tuti o Sbio.- Devem ser tomadas todas as precaues a fim de salvaguardar o nosso

    tesouro mais precioso - considerou Pai o Bom po.- Onde estar mais em segurana do que no interior deste recinto? -

    interrogou Ched o Salvador. - Se nos virem sair da aldeia com esse precioso fardo,no seremos espiados, at mesmo seguidos? aqui e em nenhum outro lugar que necessrio dissimular a Pedra de tal forma que nenhum ladro conseguir descobri-la.

    Iniciou-se uma discusso serena, mas a soluo proposta pelo pintor acabou

    por recolher todos os sufrgios.- Uma palavra perfeita est mais bem escondida do que uma pedra preciosa -

    concluiu o mestre-de-obras, citando uma mxima do Sbio Ptah-hotep. - Mas, noentanto, encontrada junto das servas que trabalham na m. No esqueamos osnossos deveres quotidianos, respeitemos a nossa regra de vida e salvaguardaremosos nossos tesouros.

    10.

    Kenhir estava a ter um sonho delicioso. O deserto tinha desaparecido, as

    rvores floresciam, as casas brancas da aldeia brilhavam sob um clido sol e o velhoescriba no tinha nenhum incidente a inscrever no Dirio do Tmulo.- Acordai, esto vossa procura!Aquela voz autoritria e acidulada... No era a da sua criada Niut a Vigorosa?

    O sonho quebrou-se e Kenhir abriu os olhos.- Tu outra vez... Mas que horas so?- Horas de levantar e ir imediatamente para a grande porta onde a vossa

    presena requerida.

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    33/270

    - J no tenho idade para me apressar.- Eu digo-vos o que me pediram para vos dizer; agora, tenho a casa para

    arrumar.Ante a idia da ronda infernal das vassouras, Kenhir preferiu levantar-se. E a

    realidade saltou-lhe aos olhos: se pediam a sua comparncia na grande porta

    porque uma nova catstrofe acabava de ocorrer!Com as pernas rgidas e as ancas dolorosas, o escriba do Tmulo trotou pelarua principal e, ao sair da aldeia, esbarrou com o oleiro Beken, o chefe dosauxiliares. Conhecido pela sua dissimulao, o barbudo estava com um ar aflito.

    - A gua no foi entregue? - perguntou Kenhir.- Foi, foi... Mas espervamos legumes e no h um nico! Segundo os

    condutores dos burros, o exrcito requisitou todos os jardineiros da margem oeste,incluindo os que trabalhavam para o Lugar de Verdade. Murmura-se que o prncipeAmenms est decidido a combater o pai.

    Kenhir dirigiu-se para o quinto fortim onde o chefe Sobek dava instrues auma dezena de polcias. O tom era seco e a palavra nervosa.

    - Para os vossos postos, imediatamente! - exigiu o nbio.Sobek tinha os olhos vermelhos de um homem privado de sono.- Tm algum fundamento os rumores de guerra civil? - perguntou-lhe

    Kenhir.- No sei nada, mas a requisio dos vossos jardineiros no bom sinal.

    Assemelha-se a uma mobilizao geral.- Ento em breve isso estender-se- a ti e aos teus homens...- No recebo ordens seno do escriba do Tmulo e do mestre-de-obras do

    Lugar de Verdade.- Essa atitude pode trazer-te graves aborrecimentos.

    - Mesmo que isso acontea, cumprirei a minha misso.- Se Amenms se proclamar Fara e decidir apoderar-se da aldeia, no sers

    obrigado a entregar as armas?- Reflecti longamente nesse problema - confessou Sobeke -, e adoptei um

    princpio: permanecer fiel palavra dada. Sou pago para defender esta aldeia contraos seus inimigos, sejam eles quais forem, e honrarei portanto o meu contrato. Eprometo-vos que nenhum dos meus homens desobedecer.

    De acordo com a vontade da deusa da colina, os habitantes do Lugar de Verdadetinham abandonado as tarefas quotidianas para se consagrarem durante um dia

    inteiro aos seus deveres sagrados. No recorriam aos servios de um ritualista doexterior visto que de acordo com os estatutos da confraria, os artesos eramtambm sacerdotes sob a autoridade do mestre-de-obras e as mulheres sacerdotisasde Hathor tendo como superiora a Mulher Sbia. Estavam todos purificados,ungidos com mirra, envergando trajes de linho de qualidade real e calados comsandlias brancas. Dirigiam-se em procisso para o templo de Maet e de Hathorcom os braos carregados de oferendas: pes com mltiplas formas, jarras de leite,cerveja e vinho, espelhos, potes com ungentos, simulacros de madeira

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    34/270

    representando coxas de touro, antlopes ou patos. Era o conjunto das maravilhas dacriao e dos alimentos que davam a energia que seria assim apresentada ao grandeDeus nascido de si mesmo, capaz de se manifestar sob milhes de formas sem nadaperder da sua unidade, ele que criava a cada instante o cu, a terra, a gua e asmontanhas e que dava vida aos humanos.

    Depois das oferendas terem sido depositadas sobre os altares, a MulherSbia e o mestre-de-obras, agindo em nome do casal real que governava o Egiptodesde a primeira dinastia, elevaram uma figurinha da deusa Maet para a prpriaMaet a fim de que o dom fosse total, que o semelhante se unisse ao seu semelhantee que a unidade se concretizasse sem abolir a multiplicidade e a diversidade, vistoque Maet, por si s, simbolizava a totalidade das oferendas.

    - Enquanto o cu estiver apoiado sobre os seus quatro suportes e a terraestvel sobre os seus alicerces proclamou o mestre-de-obras - enquanto o Solbrilhar de dia e a Lua luzir de noite, enquanto Orion for a manifestao de Osris eSothis a soberana das estrelas, enquanto a inundao vier na sua hora e a terra fizercrescer as suas plantas, enquanto o vento do norte soprar no momento certo e achama purificar o que deve ser purificado, enquanto os decanos desempenharem assuas funes e as estrelas permanecerem no seu lugar, este templo ser estvelcomo o cu.

    - Possa esta morada celeste acolher a dama do ouro, da prata e das pedraspreciosas - implorou a Mulher Sbia. - Que ela preserve a nossa alegria e a nossacoerncia face adversidade.

    Durante toda a cerimnia, o traidor s pensara na Pedra de Luz e pusera emcausa as hipteses por si formuladas segundo as quais o mestre-de-obras aescondera ou no templo principal da aldeia ou no local da confraria. Durante muitotempo, elaborara planos para se introduzir l e o fracasso do comando lbio no

    abalara a sua determinao.Mas no estaria a enganar-se no alvo? Nfer e a Mulher Sbia sabiam que um

    engolidor de sombras rondava em busca da sua presa e tinham forosamentepreparado ciladas.

    No consistiria a mais eficaz em fazer crer ao ladro que a Pedra de Luz sestaria em segurana num dos lugares sagrados da aldeia?

    Era sem dvida mais hbil escolher um esconderijo aparentemente maisexposto, talvez mesmo de tal forma visvel que ningum lhe prestaria ateno. Eno se teria Nfer o Silencioso trado evocando a palavra perfeita, mais oculta queuma pedra preciosa, mas que no entanto se encontrava junto das servas que

    trabalhavam na m?A pedra da m, indispensvel para moer os cereais utilizados no fabrico dopo e da cerveja, no era uma pedra banal. Tratava-se de um dolerito, uma pedra decor castanha-esverdeada de excepcional dureza. Era ela, igualmente, que substituao corao de carne do viajante do Alm; assim equipado com um coraoindestrutvel podia enfrentar o tribunal do outro mundo e os seus perigos.

    Uma m na zona dos auxiliares, vrias na aldeia... E se uma delas servissepara dissimular a Pedra de Luz, um dolerito magicamente animado pelos rituais e

  • 7/29/2019 Christian Jacq - Pedra de Luz

    35/270

    dotado de uma energia especial?Depois de durante tanto tempo ter seguido uma pista errada, o traidor ia

    finalmente enveredar pelo caminho que conduzia ao tesouro.

    - De quem fazeis troa? - insurgiu-se Uabet a Pura. - Julgais que vamos

    aceitar roupas semi lavadas e panos nos quais subsistem ndoas?Os lavadeiros baixaram a cabea. Um deles tentou no entanto lutar contra amulherzinha encolerizada.

    - Fazemos o que podemos... O nosso trabalho esgotante e difcil e somosmal pagos!

    - Tendo em vista o resultado, o que lhes pago ainda demais!Apenas homens estavam ligados quela tarefa ingrata sobre a qual Uabet, a

    esposa de Paneb, estava encarregada de velar. Como a higiene era a base da sade,no tolerava qualquer descuido.

    - No tendes o direito de nos tratar assim... Podamos parar de trabalhar!- Se isso os tenta, no hesitem mais: sero todos despedidos e substitudos j

    amanh. No terei qualquer dificuldade em encontrar lavadeiros melhores.A jovem mulher fez meno de regressar aldeia.- Esperai, estamos de acordo em melhorarmos os nossos mtodos!- Hoje no recebem salrio. E no recomecem a portar-se de forma to

    deplorvel ou no terei qualquer indulgncia.Com a cabea ainda mais baixa, os lavadeiros voltaram para o canal com a

    firme inteno de corrigir os seus erros e vencer o atraso, por