Christian Jacq - Pedra de Luz 4 - O Lugar de Verdade

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Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET A PEDRA DE LUZ O LUGAR DE VERDADE VOLUME IV CHRISTIANJACQ Livraria Bertrand Digitalizao e Arranjo Agostinho Costa Christian Jacq no s um romancista que escreve sobre o antigo Egipto. um egiptlogo cujas investigaes histricas foram galardoadas pela Academia Francesa, e autor de numerosos romances histricos e ensaios de grande xito, junto de leitores de todo o mundo. Em Christian Jacq conseguido um notvel domnio da tcnica de ficcionista e, nomeadamente, do romance policial, que fez dele um dos escritores franceses mais apreciados pelo grande pblico. O autor leva-nos desta vez a uma localidade interdita, onde alguns homens detm os segredos do antigo Egipto, sendo o mais importante de todos, a Pedra de Luz. Era uma povoao fechada, cujo nome significa Lugar de Verdade (Set Maet, em egpcio), onde viveram durante cinco sculos, de 1500 a 1070 a. C., dinastias de artistas e artesos que deram forma lenda do Egipto. A sua misso: preparar as Moradas de Eternidade dos Faras. A foram concebidas e executadas as obras-primas que adornam os tmulos do Vale dos Reis, cuja beleza continua a povoar o nosso esprito, trs milnios depois. Christian Jacq decidiu reviver essa aventura extraordinria, num romance em que se cruzam, numa exploso de criatividade, os destinos dos Faras, dos cortesos, dos escultores, dos soldados, das sacerdotisas... O Lugar de Verdade encerra a tetralogia A Pedra de Luz, um imenso xito j publicado em 23 lnguas em cerca de 50 pases. GRANDES ROMANCES O Lugar de Verdade est de luto... O mestre-de-obras Nfer, o Silencioso foi selvaticamente assassinado e uma sombra malfica paira todas as noites sobre a aldeia, provocando o terror na confraria. Em Per-Ramss, a atmosfera no melhor: a Rainha Tausert faz o que pode para manter a paz, mas o seu poder contestado Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET pela casta militar que deseja frente do Egipto um homem forte. A bela Tausert precisa de ajuda e vai procurar Paneb. Uma terna amizade nasce entre eles, mas pode realmente um simples mortal aproximar-se de uma divindade? Paneb sente-se muito s, embora a sua autoridade seja finalmente reconhecida pelo Lugar de Verdade. Tem de velar por Clara, a Mulher Sbia, cuja vida ameaada, fazer constantemente frente aos ataques do traidor, procurando cada dia uma inspirao nova para criar as obras-primas das Moradas de Eternidade dos Faras... Mas o desaparecimento de Nfer, seu pai espiritual, mergulha-o em tal tristeza que o desencorajamento comea a domin-lo, assim como a conduta irresponsvel do seu filho Aperti, que se v forado a expulsar do Lugar de Verdade. E se Paneb, o Ardente renunciar, quem ser capaz de salvaguardar a existncia do Lugar de Verdade e a grandeza e fora imortal do Egipto? Quem ir acabar por julgar os temveis Mehi e Serketa, e quem ir descobrir o traidor infiltrado na confraria que tanto mal causou ao longo dos anos? Ttulo Original: Le Place de Vrit Traduo de MARIA DO CARMO ABREU BERTRAND EDITORA CHIADO 2002 Edio Maro de 2002 Que esta histria seja dedicada a todos os artesos do Lugar de Verdade que foram depositrios dos segredos da Morada do Ouro e conseguiram transmiti-los nas suas obras. 1. O Lugar de Verdade, a aldeia secreta dos artesos encarregados de escavar e decorar os tmulos do Vale dos Reis, estava mergulhado em angstia. Desde o assassinato do mestre-de-obras Nfer o Silencioso, homens, mulheres, crianas e at mesmo animais domsticos como o co Trigueiro ou Besta Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET Terrvel, a gansa de guarda, receavam o pr do Sol. Logo que este mergulhava na montanha para iniciar a sua viagem nocturna ao corao do mundo subterrneo, todos os aldees se fechavam nas suas pequenas casas brancas. Em breve, uma sombra malfica sairia do sepulcro de Nfer em busca de uma presa. Uma adolescente escapara-lhe no ltimo momento, mas ningum ousava importunar Clara, a Mulher Sbia, encerrada no seu luto e desespero na sequncia do desaparecimento do marido. Ela e Nfer tinham sido iniciados juntos nos mistrios de o Grande e Nobre Tmulo dos Milhes de Anos a Ocidente de Tebas, segundo a designao oficial da confraria, e tinham-se tornado o pai e a me da pequena comunidade que agrupava uma trintena de artesos, -os que tinham ouvido o apelo-, e os seus familiares. - Isto no pode continuar! - exclamou Paneb o Ardente, um colosso de olhos negros cuja clera fez estacar Uabet a Pura, a sua linda e frgil esposa. - Escondemo-nos como ratos e j no temos qualquer alegria de viver! 12 - Esse espectro talvez acabe por se ir embora - avanou Uabet, depois de se certificar que Selena, a filhinha de dois anos, dormia serenamente na sua cama. O seu insuportvel filho de quinze anos, Aperti, desenhava caricaturas num pedao de calcrio para tentar esquecer o medo. - S a Mulher Sbia poderia acalmar a alma do seu esposo defunto - considerou Paneb - mas ela j no tem fora para isso... E vo acabar por acusar-me outra vez, vais ver! Filho adoptivo de Nfer o Silencioso e de Clara, a Mulher Sbia, dois seres que ele venerava, Paneb fora escolhido como chefe da tripulao da direita no barco simblico que permitia confraria dos Servidores do Lugar de Verdade vogar para o conhecimento e a realizao da Grande Obra. E o pior dos seres, um traidor e um assassino oculto no prprio seio da comunidade, tentara fazer passar Paneb por assassino do seu pai espiritual. Ilibado pela Mulher Sbia em pessoa, o colosso sentia no entanto olhares desconfiados pesarem sobre ele. - Tenho que ser eu a resolver este caso - decidiu. To minscula quanto o marido era forte, Uabet a Pura lanou-se nos seus braos. - No corras esse risco - suplicou. - A sombra de Nfer particularmente perigosa! - Porque hei-de rece-la? Um pai no ataca o filho. - No passa de um fantasma vido de vingana... Introduz-se nos corpos por qualquer canal e impede o sangue de circular. Ningum, nem mesmo tu, capaz de o vencer! Aos quarenta e um anos, nunca Paneb fora to forte e at agora nunca encontrara adversrio sua altura. - Recuso comportar-me como um prisioneiro na minha prpria aldeia! Devemos continuar a circular livremente, tanto de noite como de dia. - Tens dois filhos, Paneb, e uma bela casa de chefe de equipa! No traves um combate perdido de antemo. Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET O colosso tomou a esposa pela mo e conduziu-a ao segundo compartimento da sua casa, que Uabet soubera tornar graciosa, espiando incessantemente o mnimo gro de poeira. 13 - Contempla esta estela que eu prprio esculpi e que encastrei nesta parede. Representa o esprito eficaz e luminoso de Nfer, a sua alma imortal que viaja na barca do Sol e espalha sobre ns as suas bnos. O mestre-de-obras fez viver esta confraria, no pode provocar-lhe a morte. - Mas esse espectro... - O nome secreto do meu pai Nfer-hotep. Hotep significa o poente, a paz, a plenitude-... Se esta sombra se manifesta, porque um dos seus rituais funerrios no foi correctamente realizado. Estvamos todos to transtornados pelo seu assassinato que devemos ter cometido um erro grave. E a alma de Nfer manifesta-se assim para reclamar a paz qual aspira. - E se se tratar apenas de um espectro vido de sangue? - Impossvel. Paneb verificou que trazia consigo os dois amuletos indispensveis para se lanar numa aventura to perigosa: um olho e um escaravelho. O olho em esteatite era um presente de Ched o Salvador, o mestre que lhe revelara os segredos do desenho e da pintura. Esse precioso talism tinha sido animado pela fora celeste e pela Mulher Sbia; graas a ele, o olhar de Ardente discernia os aspectos da realidade que escapavam aos outros homens. Quanto ao escaravelho, talhado na Pedra de Luz, o principal tesouro do Lugar de Verdade, incarnava o corao justo, o rgo de percepo do invisvel e das leis eternas da harmonia. - O meu nome est bem visvel? Uabet verificou se as palavras Paneb o Ardente escritas a tinta vermelha no ombro direito do colosso, estavam correctamente traadas. - Uma ltima vez - implorou ela - suplico-te que renuncies. - Quero provar definitivamente a minha inocncia e a de Nfer. Levantara-se um vento estranho, que penetrava nas casas, embora estas estivessem bem calafetadas, e a sua voz lgubre parecia proferir ameaas. 14 Assustado, Aperti tentou esconder-se num cesto de roupa, mas a sua corpulncia, que fazia dele o mais forte dos adolescentes da aldeia, no lhe permitiu dissimular seno o busto. Paneb agarrou-o pelas ancas e colocou-o brutalmente de p. - s grotesco, Aperti! Segue o exemplo da tua irm, que dorme tranquilamente. Foi o momento escolhido por Selena para rebentar em soluos. A me acalmou-a, embalando-a. - Eu volto - prometeu Paneb. A noite de lua nova estava escura e o Lugar de Verdade Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET silencioso. Bem protegida atrs de altos muros, a aldeia parecia adormecida. Mas ao passar pela artria principal, com orientao norte-sul. Paneb ouviu farrapos de conversas, murmrios e queixumes. Situada a quinhentos metros dos limites das cheias mais fortes, a pequena aglomerao ocupava todo o espao de um vale desrtico, um antigo leito de torrente ladeado por colinas que //bairavam a vista. Isolado do vale do Nilo, a igual distncia do Templo dos Milhes de Anos de Ramss o Grande e da colina de Djeme onde repousavam os deuses primordiais, o Lugar de Verdade vivia margem do mundo profano; dispunha do seu prprio templo, de capelas, oratrios, oficinas, cisternas, silos, uma escola e duas necrpoles onde eram enterrados os artesos e os seus prximos. Paneb imobilizou-se. Julgara ver algum esgueirar-se numa ruela secundria. Insensvel ao medo, observou as Moradas de Eternidade da necrpole do oeste, a maior parte delas encimadas por pequenas pirmides pontiagudas em calcrio branco. Quando R estava visvel no cu, cintilavam com uma luz por vezes ofuscante. Estelas de cores vivas, jardinzinhos plantados com flores e arbustos, capelas acolhedoras com fachadas brancas, retiravam qualquer carcter funerrio ao lugar sereno no qual os antepassados da confraria velavam pelos seus sucessores. Mas naquela noite, no carreiro que levava ao tmulo de Nfer o Silencioso, Paneb detectou uma presena hostil. E se se tratasse apenas do traidor que imitasse os fantasmas para mais facilmente o atrair a uma cilada e o suprimir? 15 O colosso alegrou-se com esta ideia: que prazer teria em esmagar o crnio do perjuro! A ltima morada de Nfer o Silencioso era to vasta como esplndida. Diante da entrada da capela acessvel aos vivos, Clara plantara uma persea que crescia com extraordinria rapidez, como se a rvore tivesse pressa de estender a sua sombra benfica sobre o ptio a cu aberto onde viriam fazer banquetes em honra do defunto. Paneb franqueou o pilone semelhante ao de um templo e imobilizou-se de novo, no meio daquele ptio. A presena hostil afirmava-se e aproximava-se. Mas de onde surgiria o espectro a no ser da fenda deixada na parede da capela para dar esttua viva de Nfer a possibilidade de olhar o mundo terrestre? O colosso aproximou-se em passo comedido, como se descobrisse um lugar que, no entanto, conhecia melhor do que qualquer outro, visto que ele prprio decorara totalmente a Morada de Eternidade do seu pai espiritual. Se se tivesse precipitado, como era seu hbito, Paneb no teria visto a sombra vermelha brotar do poo funerrio, apesar deste estar tapado com pedras. O espectro tentou estrangular o Ardente. que se libertou no ltimo momento e lhe bateu na face. Mas o seu punho perdeu-se no vcuo. Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET Ondulando como uma serpente, a sombra vermelha procurava ngulo de ataque. Paneb correu at capela onde uma tocha se consumia lentamente. Avivou-a e avanou a direito sobre o seu inimigo. - Aposto que no deves gostar da luz! O rosto da sombra vermelha no era o de Nfer. Fazia constantes esgares, como se estivesse dominado por atrozes sofrimentos. Mal o fogo o roou, o espectro desapareceu no poo. - No vais esconder-te a dentro, meu malandro! O colosso tirou duas lajes entre as quais entalou a tocha e comeou a esvaziar o poo pedra por pedra, decidido a atingir o esconderijo da sombra malfica. 2. Depois de ter assumido a funo simblica de sis a viva durante a celebrao dos mistrios, Clara, a Mulher Sbia do Lugar de Verdade, vivia na sua prpria carne essa terrvel provao. Nfer o Silencioso tinha sido o seu nico amor e assim permaneceria. Desde a sua morte, Clara deixara de ter vontade de viver. Receando o pior, Trigueiro no a abandonava um instante. Vigilante como nunca, o co negro de cabea alongada e plo curto dormia com um s olho. Com o olhar, observava constantemente a dona e participava no seu luto, no reclamando brincadeiras nem passeios. Clara realizava um mnimo de tarefas para manter a casa onde conhecera uma felicidade intensa e quotidiana em companhia de Nfer. O magnfico mobilirio era um presente dos artesos, que assim tinham honrado o seu mestre-de-obras cuja autoridade natural, a firmeza de carcter e as excepcionais competncias sempre os tinham conduzido ao sucesso. Aos quarenta e oito anos, Clara era uma mulher encantadora, de corpo esguio e gil, traos puros e cabeleira sedosa com reflexos louros. Emanava-lhe do rosto uma luz doce e tranquilizadora, a voz era melodiosa e os olhos azuis um deslumbramento. Os aldees veneravam-na, tanto mais que a todos tratara, um dia ou outro, com exemplar dedicao. Mas a Mulher Sbia j no tinha fora para desempenhar a sua funo. A ausncia de Nfer absorvia a sua prpria vida e ela deixava-se deslizar para a morte com o desejo de se lhe juntar. 17 O quarto era iluminado apenas por uma nica lmpada, uma obra-prima esculpida pelo carpinteiro da confraria, Didia o Generoso.-sobre uma pequena coluna em forma de papiro, fixa a uma base em calcrio, estava colocado um recipiente em bronze contendo leo que alimentava uma mecha de linho que no produzia fumo, como as utilizadas nos tmulos. Era a ltima luz a que Clara se prendia, durante as suas noites sem sono; na doura da chama julgava detectar, por Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET vezes, o rosto do marido, mas a iluso rapidamente se dissipava, mergulhando-a ainda mais no desespero. Trigueiro poisou a pata no brao da Mulher Sbia, como se adivinhasse a sua terrvel deciso. Clara no iria mais longe, no sofreria durante mais tempo aquela prostrao; afogando-se no Alm, poria finalmente termo ao seu suplcio. O contacto da pata do co e a ternura que leu nos seus olhos cor de avel provocaram uma espcie de milagre: Nfer apareceu na luz e falou-lhe. Se eu fracassasse ou desaparecesse, disse, no deixes apagar a chama do Lugar de Verdade. Em nome do nosso amor, Clara, promete continuar. O mestre-de-obras pronunciara estas palavras quando estava vivo, mas ela esquecera-as. E Nfer regressava do Alm para lhe lembrar o seu dever e a sua funo, sem lhe deixar a possibilidade de chorar sobre si prpria. Ressoaram na sua cabea pancadas violentas. Inquieto, Trigueiro correu a ladrar para a porta da casa. Algum batia. - Abre, Clara! Abre, peo-te! A viva reconheceu a voz de Uabet a Pura. Trigueiro parou de ladrar e Clara abriu. - Vem, grave! - Explica-te, Uabet. - Paneb foi ao tmulo de Nfer... Se se obstinar em combater o espectro, morrer. S tu o podes convencer a desistir. Clara esboou um pobre suspiro. 18 - Achas que ainda posso ajudar algum? - Paneb s a ti dar ouvidos... E no quero perd-lo! - Espera. A viva do mestre-de-obras retirou-se para o seu quarto onde abriu um cofre de jias decorado com placas de marfim. Pela primeira vez desde a morte do marido, adornou-se com um colar, brincos e pulseiras antes de se contemplar num espelho de cobre cujo cabo tinha a forma de uma haste de papiro, smbolo do desabrochamento e da fora vital. Descobriu nele o rosto de uma mulher esgotada pela dor que teve de maquilhar com cuidado para lhe devolver uma aparncia de vigor e juventude. A transformao foi to perfeita que maravilhou Uabet a Pura. - Nunca foste to bela! Vem depressa... Precedidas por Trigueiro e seguidas por Besta Terrvel, as duas mulheres subiram at ao tmulo de Nfer o Silencioso. O Oriente avermelhava-se; a brisa fez estremecer Uabet, que acelerou o passo. Depois de vrias horas de esforos ininterruptos, Paneb conseguira esvaziar o poo funerrio. Infatigvel, acabava de alcanar a porta em madeira da cmara de ressurreio de Nfer o Silencioso selada por um selo de argila. Erguendo os olhos, apercebeu o rosto de Uabet a Pura que se destacava sobre o fundo do cu enrubescido. - Sobe, Paneb! Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET - Nem pensar. - No tens o direito de violar um tmulo! - A sombra dissimula-se aqui, quero procur-la. - A Mulher Sbia probe-te que o faas. - A Mulher Sbia! Mas... - Ela est aqui. Agarrando-se s asperezas dos blocos, Paneb trepou com a velocidade de um felino. No acreditando em Uabet, queria verificar por si mesmo. 19 Clara estava realmente ali, envergando o seu longo vestido vermelho de superiora das sacerdotisas de Hathor e adornada com as suas mais belas jias. - Tu... Tu probes-me de ir mais longe? - Devo descer contigo. - demasiado perigoso! Vi a sombra vermelha, temvel. E no Nfer. - S se pode tratar de uma fora malfica nascida de um erro de ritual durante os funerais. - Tambm a minha opinio e vou faz-la sair do covil. Impede--a de fugir se me escapar. Paneb voltou a descer ao fundo do poo. Sem hesitar, quebrou o selo e abriu a porta que dava para o jazigo. Afastou as ferramentas, as arcas de roupa, os cestos contendo alimentos mumificados e as esttuas do defunto para abrir caminho em direco ao sarcfago. A qualquer momento, a sombra vermelha podia surgir do seu esconderijo e lanar-se sobre ele. Com os sentidos atentos como um caador na pista de uma presa to temvel que no tinha a certeza de a dominar, Paneb deslocava cada objecto com lentido. Apesar da sua fora fsica, o pintor sabia mostrar-se de extrema delicadeza e mover-se como um gato. Coberto com uma mortalha muito fina, o sarcfago estava colocado sobre um leito. Em redor do pescoo da mmia, um colar de cinco voltas de flores de ltus branco e de folhas de salgueiro; sobre o peito, um ramo composto por folhas de persea e de vinha. Um raio de luz penetrou no jazigo, cujo fundo permanecia escuro. A sombra ocultava-se ali, mas Paneb no a conseguia distinguir. Valia sem dvida mais voltar a sair para ir buscar tochas e iluminar o compartimento a fim de reduzir o espectro impotncia; mas se o colosso recuasse, o adversrio no aproveitaria para o atacar? De repente, a anomalia saltou aos olhos de Paneb: porque razo o disco de cobre celeste colocado por baixo da cabea da mmia no emitia qualquer luz? Coberto com textos hieroglficos, deveria envolv-la num //nimlx) dourado que teria afastado os demnios das trevas, O colosso aproximou-se at lhe tocar e constatou que o precioso smbolo tinha sido colocado... ao contrrio! Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET 20 No era um erro mas um acto de malevolncia. No contente por ter assassinado Nfer, o traidor provocara tambm o aparecimento de um espectro. No instante em que Paneb poisou a mo sobre o disco, a sombra vermelha saltou dele! Com a boca contorcida, a testa rasgada por uma ruga vertical, tentou uma segunda vez estrangular o arteso. Em vez de lutar contra aquele inimigo que no oferecia qualquer ponto de apoio, o Ardente apressou-se a voltar o sol da mmia e coloc-lo correctamente sob a sua nuca. O aperto do agressor era to forte que j lhe faltava o ar. Depois, brotou uma chama do disco e tocou a sombra vermelha cujos olhos se dilataram bruscamente a ponto de lhe devorarem a cabea e depois todo o corpo. Paneb conseguiu respirar, mas uma atroz queimadura no pescoo arrancou-lhe um grito de dor. Instintivamente, bateu no espectro que se reduziu a uma pequena bola de fogo antes de desaparecer no cho. Cambaleante, o colosso tentou sair do jazigo para reencontrar o ar livre. Mas as paredes do poo funerrio aproximaram-se e ele soube que ia morrer. - Sobe, Paneb! - gritou Uabet a Pura - Sobe depressa! 3. Depois de ter cheirado o prato que o seu cozinheiro lhe apresentava, o general Mehi atirou-lhe cara as costeletas de borrego. - Demasiado grelhadas, imbecil! - Mas respeitei as vossas exigncias e... - A tua salada de pepino estava infecta e ousaste servir-me um vinho que cheirava a rolha! Desaparece e no voltes a pr os ps nesta casa. A clera de Mehi no era fingida e o cozinheiro eclipsou-se. No se discutiam as decises do homem mais poderoso da rica provncia de Tebas. Pequeno, rosto redondo, olhos castanho-escuros, lbios grossos, cabelos negros colados ao crnio, torso largo e poderoso, mos e ps gorduchos, Mehi tinha comeado a sua carreira nos carros de combate. Seguro de si e ambicioso, tornara-se o chefe das tropas tebanas e o administrador-principal da margem oeste e uma das suas funes consistia em garantir a segurana e o bem-estar do Lugar de Verdade. O Lugar de Verdade!... Aquela maldita confraria que tinha ousado recusar a sua candidatura quando ele era adolescente e que possua um tesouro inestimvel, a Pedra de Luz, de que ele deveria apoderar-se para se tornar o senhor do pas! Mehi vira aquela Pedra uma noite, do alto de uma colina que dominava o Vale dos Reis onde os artesos celebravam um ritual; mas tinha sido detectado por um polcia de que se desembaraara esmigalhando-lhe o crnio. Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET 22 O seu primeiro crime, seguido de vrios outros que realizara pessoalmente ou encomendara para afastar do seu caminho adversrios que se arriscavam a impedi-lo de atingir o tesouro supremo. - Lava os dedos, meu querido leo - sugeriu Serketa, apresentando ao marido um jarro de prata provido de um longo bico de onde corria uma gua perfumada. Serketa, uma falsa loura de olhos deslavados e peito opulento, sempre preocupada com o seu peso. Serketa, uma assassina nata que ele revelara a si mesma associando-a sua progressiva conquista do poder. Aprovara a eliminao do seu prprio pai, que cara numa armadilha organizada por Mehi a fim de lhe captar a fortuna, e depois assassinara ela prpria, tirando disso um vivo prazer. Como Serketa apenas lhe dera duas filhas, cuja sorte no lhe interessava minimamente, o general pensara em repudi-la, mas ela adivinhara os seus verdadeiros projectos. Pressentindo que a mulher podia tornar-se perigosa, preferira torn-la sua aliada. Desde esse instante, no ocultavam nada um ao outro e agiam de perfeito acordo. Mehi bebeu uma taa de vinho de palma, muito licoroso, saturado de aromas e que atingia os 18 graus. A bebida arrumava a maior parte dos amadores, mas o general aguentava bem o lcool e gozava de excelente sade, com excepo de uma doena de pele que se traduzia pelo aparecimento de pequenas borbulhas vermelhas na perna esquerda quando era contrariado. E, precisamente, comeava a coar-se... Serketa ajoelhou diante dele para lhe beijar as coxas. - Porque hs-de preocupar-te assim, meu terno crocodilo? - sussurrou com uma vozinha de menina pequena. - Porque o assassinato de Nfer o Silencioso no nos est a dar os resultados pretendidos! - Um pouco de pacincia... Em primeiro lugar, o nosso principal adversrio est morto e bem morto; depois, o traidor que o suprimiu por nossa ordem est definitivamente ligado a ns; por fim, as suas ltimas informaes confirmam que a confraria est dominada por profunda perturbao. - Talvez, mas continua a existir... 23 - Em que estado? Ao inverter a posio do disco luminoso colocado sob a cabea da mmia, o traidor provocou o aparecimento de um espectro que aterroriza a aldeia. Os seus habitantes esto persuadidos que Nfer o Silencioso quer vingar-se deles e acabaro por odiar-se uns aos outros. - Esperemos que tenhas razo! Mas teria preferido que uma delegao me anunciasse que os aldees abandonavam o Lugar de Verdade e o entregavam nas minhas mos... Teramos revistado o local com toda a legalidade e descoberto o esconderijo da Pedra de Luz. - Os artesos no a teriam levado com eles? Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET - Nesse caso, teriam sido vtimas de uma agresso que eu teria lamentado nos mais comovidos termos! Mas no cometeram esse erro... E continuam a enfiar-se atrs dos seus altos muros cuja estabilidade eu, seu inimigo figadal, devo assegurar! - Era indispensvel assassinar Nfer o Silencioso - considerou Serketa. -- Sem ele, essa confraria deixou de ter alma. Ningum capaz de lhe suceder. O chefe da equipa da esquerda no passa de um tcnico sem brilho, o escriba do Tmulo demasiado velho e a Mulher Sbia no se recompor da morte do marido. - Esqueces Paneb, o novo chefe da equipa da direita! - Segundo o nosso informador, demasiado impulsivo para ser designado como mestre-de-obras. A perda do seu pai espiritual vai enlouquec-lo, tenho a certeza. Tal como tnhamos previsto, o Lugar de Verdade destruir-se- do interior e ns no teremos mais a fazer do que recolher as suas riquezas e segredos. O general levou Serketa para o luxuriante jardim da sumptuosa manso da margem oeste, uma das suas propriedades cuidadosamente mantidas por um numeroso grupo de empregados domsticos. Sentaram-se ao abrigo de um pavilho rodeado de sicmoros e de alfarrobeiras. Mehi detestava o campo, o calor e o Sol, cujas mordeduras receava. Um servidor trouxe-lhes imediatamente cerveja fresca que Serketa recusou. - Encontrei esse Paneb h muito tempo, em casa de um curtidor - recordou Mehi. - Era jovem ento, insolente e j forte como um touro selvagem. Evidentemente, um futuro militar! 24 No entanto, recusou alistar-se e servir sob as minhas ordens... Como imaginar que se tornaria um dos pilares do Lugar de Verdade? - O nico pilar era Nfer o Silencioso. Orientava a obra e fazia cessar as querelas; podes ter a certeza que nunca ser substitudo. O espectro far fugir diversas famlias e outras calamidades em breve cairo sobre a confraria. Um dos guardas encarregados de vigiar a manso veio ao encontro do casal. - General, uma mensagem de Per-Ramss. O soldado entregou o papiro selado a Mehi e depois voltou para o seu posto. - Uma carta do chanceler Bai - constatou o destinatrio. -O Fara Siptah e a Rainha Tausert desejam ver-me para ouvir o meu relatrio sobre a situao econmica de Tebas e conhecer os resultados do meu inqurito sobre o assassinato de Nfer o Silencioso. - No entanto, sabem que no tens o direito de penetrar na aldeia! - Com certeza, mas fazem questo de verificar que fao tudo para identificar o culpado e garantir a segurana da confraria. - E se essa Tausert te preparasse uma cilada? - capaz disso... Mas a sua preocupao principal no consiste em manter o poder controlando a sua alma danada, o Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET chanceler Bai, que conseguiu fazer subir ao trono o jovem Siptah, um doente? A corte de Per-Ramss no passa de um ninho de vboras. Desde o desaparecimento de Ramss o Grande, a autoridade faranica nunca mais deixou de enfraquecer... E a nossa hiptese, minha linda! Quando possuirmos a Pedra de Luz, o pas pertencer-nos-. pena que eu no possa mandar os meus soldados arrasar essa aldeia e matar os seus habitantes! Face ideia de semelhante carnificina, Serketa estremeceu de prazer. - O que tencionas fazer para j? - Em primeiro lugar, dirigir-me zona dos auxiliares para me encontrar com o escriba do Tmulo e lhe perguntar se o seu inqurito interno avanou; em seguida, tomar um barco para Per-Ramss. Tu acompanhas-me, bem entendido. 25 Serketa esperava esta afirmao. Nunca deixaria o seu querido marido jogar o prprio jogo sem lhe estar associada da forma mais ntima. E se ele tivesse a ideia de lanar um s olhar sobre uma jovem beleza, estrangularia a delambida antes de castigar Mehi. Mas o marido era um homem razovel. Tinha tomado conscincia que no venceria sem o concurso activo de Serketa, que de boa vontade executava as obras mais baixas, desprovida de qualquer humanidade ou senso moral. E como essa deliciosa companheira, mais perigosa do que uma vbora de cornos, era to ambiciosa como ele, o futuro anunciava-se risonho. - No deverias suprimir as entregas de abastecimentos aldeia? - Pensei nisso -- confessou Mehi - e faria acusar um dos meus subordinados para o substituir por um escriba mais zeloso. Mas j eliminei os incmodos e, na nossa ausncia, o velho escriba do Tmulo faria um escndalo tal que as suas ressonncias me atingiriam mesmo em Per-Ramss. No esqueas que sou o protector oficial do Lugar de Verdade e que o meu comportamento deve parecer irreprensvel ao poder central. At ao presente, esta linha de conduta valeu-me elogios e promoes. Enquanto maquilhava os olhos com uma pintura verde de primeira qualidade que afastaria os insectos e a protegeria das poeiras, Serketa parecia preocupada. -- a Rainha Tausert que te preocupa? - temvel, verdade, e espero que o cl do jovem Siptah consiga elimin-la o mais depressa possvel... No, era em Paneb que pensava. No te enganas... Esse colosso, dotado de um temperamento de fogo, ser sem dvida tentado a impor-se e a reinar sobre a confraria maneira de um tirano. - Segundo o que sabemos da regra dos construtores, impossvel! - objectou Mehi. - Paneb no receia fazer-se detestar e espezinhar as leis da aldeia, sejam elas quais forem. Um bafo de angstia contraiu a garganta do general. 26 Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET - Mas ento... o traidor ter morto Nfer o Silencioso para nada? - Certamente que no! Supondo que Paneb tome o poder, no o exercer com a sabedoria do seu predecessor. E se ousasse faz-lo, interviramos para que o seu entusiasmo rapidamente se quebrasse. -J tens um plano? - Claro que sim - respondeu ela com um sorriso feroz. 4. Os talhadores de pedra enchiam de novo o poo funerrio do tmulo de Nfer o Silencioso. - Paneb est certamente morto - afirmou Karo o Mal-Humorado, um homem corpulento, de espessas sobrancelhas, nariz quebrado e braos curtos e fortes. - Enganas-te - retorquiu o seu colega Casa o Cordame, bem firme sobre as enormes pernas. - Est estendido na capela e tenho a certeza que a Mulher Sbia o devolver vida. - Quando acabou, acabou - afirmou Fened o Nariz, que ainda no engordara desde o divrcio. - Fui eu que o tirei do poo - lembrou Nakht o Poderoso, quase to forte como Paneb - e ainda respirava. Elegante, com os cabelos e o bigode bem tratados, o pintor Ched o Salvador, que no participava em nenhuma tarefa, poisava um olhar desencantado sobre os colegas. Userhat o Leo, o chefe-escultor de imponente peitaa, assegurou-se que o preenchimento estava terminado. Renup o Jovial, de grande barriga e cabea de gnio malicioso, assistido pelo magro Ipui o Examinador, preparava-se para fixar as lajes de cobertura. - O ourives vem a sair da capela! - exclamou Renup. To frgil que parecia ir partir-se a qualquer momento, Tuti o Sbio corria para os seus companheiros da equipa da direita. - Paneb est vivo! 28 - Vivo... Como? - interrogou Fened. - Como uma pedra, um legume ou um homem? - Ainda no se sabe bem. - Vamos ver! Talhadores de pedra e escultores dirigiram-se para a capela cuja entrada era guardada por trs artesos: Pai o Bom-Po, de bochechas rechonchudas, cuja habitual alegria desaparecera; Gau o Exacto, de rosto feio devido ao nariz demasiado comprido e de pesado corpo um pouco mole; Unesh o Chacal, cujo fsico evocava o do predador. Quanto ao carpinteiro da equipa da direita, Didia o Generoso, um rapago de gestos lentos, ajudava Hai, o taciturno chefe da equipa da esquerda, a manter direito o busto de Paneb para que Clara o pudesse auscultar. Userhat o Leo empurrou Unesh e Pai. Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET - Fala ou no? - Cala-te l - recomendou Gau. - A Mulher Sbia escuta-lhe a voz do corao. Com os olhos abertos mas totalmente inerte, Paneb assemelhava-se a uma esttua. Tinha a pele avermelhada como se acabasse de ser escaldado. Felizmente, no perdera nem os olhos nem o corao; e Clara esfregava os dois amuletos entre os polegares a fim de lhes devolver plena eficcia. A Mulher Sbia no pronunciara uma nica palavra e no se discernia no seu olhar nenhuma luz de optimismo. J magnetizara a nuca e os rins do colosso sem conseguir fazer circular a energia. De repente, um enorme gato malhado de branco, preto e ruivo saltou para as pernas do Ardente-, mais parecendo um lince do que um animal domstico, aninhou-se numa bia e ronronou. De imediato, os olhos de Paneb perderam a fixidez e Clara deu um suspiro de alvio. Incarnando a vitria do Sol sobre as trevas, o felino absorvera os ltimos vestgios dos fluidos perniciosos projectados pelo espectro na carne do pintor. O colosso despertou por fim. 29 - A sombra...As paredes...As paredes que me sufocam... Onde esto? - No passava de uma iluso - disse Clara com doura - e eis-te de regresso entre ns. - Eu bem sabia que ele era indestrutvel! - exclamou Renup o Jovial, - No se diz que parte do ka de Ramss o Grande passou para o de Paneb? Graas a essa energia, salvou a confraria! Glria a Paneb! O entusiasmo do escultor revelou-se comunicativo e foi sob as aclamaes dos seus confrades que o miraculado se levantou. - Deixem-me passar - ordenou a voz guinchada e autoritria de Kenhir, o escriba do Tmulo, de setenta e sete anos. Representante do poder central no Lugar de Verdade, renunciara a uma brilhante carreira em Karnak para se consagrar quela aldeia e aos seus habitantes, cujos inmeros defeitos no parava de criticar mas que amava mais do que tudo no mundo, a ponto de a administrao ter tido que renunciar a p-lo na reforma. Corpulento, de ps grandes, Kenhir j s se deslocava com uma bengala, excepto quando tinha pressa de chegar a bom porto e se esquecia de adoptar a atitude de um velho tolhido de dores. Encarregado de manter o Dirio do Tmulo, no qual registava os grandes e pequenos acontecimentos da vida comunitria, Kenhir surgia aos artesos como um verdadeiro guarda das gals que no tolerava o mnimo laxismo. Verificava sem complacncia qualquer motivo de ausncia ao trabalho e, em caso de doena, confirmava junto da Mulher Sbia que o arteso estava realmente doente e incapaz de desempenhar a sua funo. Competia-lhe igualmente velar pelo bom estado das ferramentas, propriedade do Fara, distribu-las, recuper-las e mand-las reparar. Cada membro da confraria estava no entanto autorizado a fabricar as suas prprias ferramentas para uso pessoal e Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET podia-se contar com Kenhir para evitar qualquer confuso. - Dizem que a sombra venceu Paneb - avanou com voz inquieta. O escriba-assistente Imuni, com ar de roedor, estava preparado para tomar notas. 30 - Foi o contrrio que se verificou - declarou o colosso. Kenhir examinou longamente Paneb. - Com efeito, tens um ar bem vivo. - Paneb salvou a aldeia! - afirmou Nakht o Poderoso. - Se a sombra tivesse continuado a aterrorizar-nos, vrias famlias teriam partido. - Arriscou a vida por ns - constatou Fened o Nariz. - No apenas semelhante acto o lava de qualquer acusao, como ainda o designa como o nosso nico chefe. O escriba do Tmulo consultou com o olhar a Mulher Sbia e Hai, o chefe da equipa da esquerda. Com um sinal, deram-lhe a sua aprovao. O traidor estava aterrado. J ao ver surgir Encantador fizera um movimento de recuo, pois fora aquele gato monstruoso que o arranhara quando procurava a Pedra de Luz, to bem escondida que ainda no conseguira descobrir a sua localizao; e agora, depois da sua vitria sobre a sombra vermelha, Paneb tornava-se o heri da confraria, que ia reconhec-lo como mestre-de-obras! Mas o essencial continuava no entanto a ser o desaparecimento de Nfer o Silencioso, amado por todos e cuja autoridade ningum contestava. Colocando ao contrrio o disco de luz sob a cabea da mmia, o traidor tentara matar Nfer uma segunda vez; e mesmo que a interveno do seu filho espiritual tivesse aniquilado o espectro, o Silencioso no regressaria. O tribunal da aldeia talvez no cedesse ao entusiasmo do momento em favor de Paneb o Ardente e, depois de madura reflexo, recusaria certamente a sua candidatura. Se o elegesse, cometeria um erro irreparvel, porque Paneb seria um mestre-de-obras execrvel: dividiria os artesos e criaria mltiplos conflitos no interior da aldeia. Competia ao traidor saber aproveitar a desordem. Era ele e nenhum outro que deveria dirigir o Lugar de Verdade h muito tempo; visto que no tinham reconhecido o seu valor, a vingana era legtima! O general Mehi e a esposa tinham-lhe permitido acumular riquezas no exterior, em troca das informaes que ele lhes fornecia. Era j um homem rico. 31 Faltava apoderar-se da Pedra de Luz e negoci-la. - Graas a Paneb - precisou Clara, meditativa - Nfer est finalmente em paz. A luz brilha sob a sua cabea, o seu corpo de ressurreio recebe a fora secreta do Sol e o seu nome de Nfer-hotep est realizado. Tornou-se um dos antepassados benfeitores da nossa confraria, um esprito eficaz e Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET cintilante que veneraremos todas as manhs em cada uma das nossas casas. Para ele, terminaram as provas; e em sua honra e a fim de prolongar o seu ensinamento que continuaremos a lutar para que o Lugar de Verdade viva. Todos sentiram que a tristeza nunca mais abandonaria o olhar de Clara; mas a Mulher Sbia estava de novo em funes, ultrapassava o seu desespero para se preocupar com a pequena comunidade. Com o auxlio da sua magia, nenhum obstculo seria intransponvel. - Tenho uma terrvel constipao - queixou-se Fened o Nariz. - Acedes a tratar-me? - O meu gabinete de consulta est de novo aberto - declarou Clara com um sorriso bondoso. - Eu - exclamou Casa o Cordame - tenho um ferimento no p que nunca mais sara e muito mais grave do que a constipao do Fened! Clara examinou o doente. - um mal que conheo e posso curar. Tuti o Sbio dirigiu-se a Paneb. - Quais so as tuas intenes? - Tornei-me o servidor do ka de Nfer o Silencioso, meu pai espiritual, e probo a quem quer que seja que se aproxime do seu tmulo. Serei eu e apenas eu que levarei as oferendas e cuidarei da sua Morada de Eternidade. - Como quiseres - aquiesceu Unesh o Chacal. - Mas desejas suceder a Nfer em todas as suas funes? - Ser chefe da equipa da direita basta-me perfeitamente. Agora, afastem-se; desejo ficar s com a Mulher Sbia para venerar a memria do ser insubstituvel que amamos. Ningum protestou e organizou-se uma procisso. 32 - Paneb ser um excelente mestre-de-obras - sugeriu o traidor ao escriba do Tmulo. - Compete ao tribunal decidir- respondeu Kenhir. Mal este franqueou o limiar da sua casa, a jovem esposa, Niut a Vigorosa, com a qual realizara um casamento branco, saltou-lhe ao pescoo. - O general Mehi est na entrada principal da aldeia e deseja ver-vos urgentemente! 5. O general Mehi tivera que declinar o nome e ttulos em cada um dos cinco fortins colocados no caminho que conduzia entrada principal da aldeia. Os polcias nbios no brincavam com a disciplina imposta pelo chefe Sobek e qualquer visitante, fosse qual fosse a sua posio, tinha que respeitar o regulamento. No quinto fortim, fora Sobek em pessoa a receber Mehi. Incorruptvel, o slido nbio era perseguido h vinte anos por um enigma: quem matara um dos seus homens numa das colinas que dominavam o Vale dos Reis? O drama era longnquo e as Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET investigaes tinham sido interrompidas; o assassinato de Nfer o Silencioso parecia relegar esse crime para segundo plano, mas Sobek continuava persuadido que h muito que havia quem conspirasse contra a confraria e que os dois casos estavam ligados. O nbio no gostava de Mehi. Considerava-o pretensioso, convencido e arrivista, mas no tinha qualquer razo para lhe recusar o acesso zona dos auxiliares onde os homens do exterior, sob a direco de Beken o oleiro, trabalhavam para o bem-estar da confraria. - Nenhum problema a assinalar, Sobek? - perguntou Mehi com arrogncia. - No que me diz respeito, nenhum. - No hesites em alertar-me. Fao questo de manter a excelncia da minha gesto. - Os auxiliares recebem bons salrios, apreciam as suas condies de trabalho e a aldeia no tem falta de nada, parece. 34 - Manda prevenir o escriba do Tmulo que desejo v-lo com urgncia. Enquanto o polcia se desempenhava da sua tarefa, Mehi contemplou as oficinas dos auxiliares que, ao cair da tarde, regressavam s suas casas, na orla das terras cultivadas. O trabalho estava organizado com rigor, de maneira a evitar aos artesos um mximo de tarefas e permitir-lhes concentrarem-se na sua razo de ser; fazer brilhar nas suas obras a Pedra de Luz e incarnar os mistrios da Morada do Ouro. Em breve aquele domnio pertenceria ao general e seria ele o nico a dar ordens. Avanando com passo hesitante, Kenhir dirigia-se para o visitante. Em frente de Mehi, o velho escriba apoiou-se na bengala. - Como vai a vossa sade, Kenhir? - Mal, muito mal... O peso dos anos sobrecarrega-me cada dia mais. - No devereis pensar numa bem-merecida reforma? - Ainda tenho muita coisa para fazer, sobretudo depois do drama que nos toca. - precisamente por causa do assassinato de Nfer que aqui estou. O Rei chamou-me capital e quer conhecer os resultados do meu inqurito... Mas o nico autorizado a investigar na aldeia sois vs! - Com efeito, general. - Haveis identificado o culpado? - Infelizmente, no. - Suspeitas? Kenhir pareceu incomodado. - Vou dizer-vos a verdade, general, se me garantirdes guardar silncio. Mehi ficou hirto. Teria o velho escriba desmascarado o traidor? - Exigis muito, Kenhir..., No posso ocultar nada a Sua Majestade. Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET - O Rei Siptah um adolescente que vive em Per-Ramss, bem longe do Lugar de Verdade que vs e eu temos o dever de proteger. Em inteno do Rei, redigirei um relatrio circunstanciado sobre o inqurito em curso, 35 e tranquiliz-lo-eis declarando que a confraria continuar a trabalhar como se nada se tivesse passado. Os msculos do general contraram-se e sentiu comicho na perna esquerda. Portanto, o desaparecimento de Nfer no conseguira quebrar os rins dos artesos! - Entendido, Kenhir. Prometo-vos guardar silncio. - Estamos quase certos que o culpado um dos membros da confraria. - Isso significar... que h um traidor entre vs? - Receio que sim - deplorou o velho em voz cansada. - Tenho dificuldade em acreditar nisso... A minha hiptese parece-me muito mais plausvel. - Posso conhec-la? - perguntou Kenhir, intrigado. - Na minha opinio, o assassino do mestre-de-obras s pode ser um auxiliar. - Um auxiliar... Mas -lhes interdito o acesso aldeia! - O culpado deve ter conseguido entrar sem ser detectado pelo guarda, sem dvida com inteno de roubar objectos preciosos em casa de Nfer. Este ltimo t-lo- surpreendido e o ladro matou-o. - Um auxiliar... - murmurou o escriba do Tmulo, com um brilho de esperana no olhar cuja vivacidade permanecia intacta. - Aconselho-vos a interrog-los. Se os resultados forem decepcionantes, interpel-los-ei em casa deles, fora do territrio do Lugar de Verdade, e os meus especialistas f-los-o falar E se o assassino realmente um deles, confessar. - Vou propor a vossa estratgia ao tribunal, - Direi portanto ao Rei que conjugamos os nossos esforos para descobrir a verdade. - Dizei-lhe sobretudo que esperamos as suas directivas para a construo da sua Morada de Eternidade e do seu Templo dos Milhes de Anos. - Quando eu regressar, tornaremos a ver-nos para fazer o ponto da situao; espero que tereis detectado o assassino. - Tambm espero, general. 36 Conseguindo conter a sua raiva, Mehi subiu para o seu carro sem ter formulado a pergunta essencial: quem tinha sucedido a Nfer o Silencioso a no ser Paneb o Ardente? Apenas o colosso pudera salvar a confraria da debandada. O traidor no tardaria a confirmar-lho e Serketa tivera razo em elaborar um plano para se desembaraar daquele sujeito incmodo. - Um auxiliar? - espantou-se o chefe Sobek depois de ter Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET ouvido com ateno o escriba do Tmulo. - Porque no? - O guarda t-lo-ia visto introduzir-se na aldeia. - O melhor dos guardas no pode estar atento todos os segundos... E o assassino deve ter arranjado meio de escalar um muro sem ser notado. - No interior teria sido rapidamente detectado - objectou Sobek. - Receando isso mesmo, redobrou de precaues. - E um auxiliar teria sido suficientemente louco para matar o mestre-de-obras... - Agiu sob o impulso do pnico. - Gostaria que Mehi tivesse razo - admitiu o polcia - e que todos os artesos estivessem inocentes, mas continuo perplexo. - Interroga os auxiliares, Sobek, recolhe os seus testemunhos e procura descobrir um indcio. - Contai comigo. Enquanto o velho escriba regressava aldeia, o nbio fazia a si mesmo uma pergunta: porque razo o general Mehi, sabendo que o inqurito lhe seria inevitavelmente confiado, no lhe falara da sua hiptese? Paneb terminara uma mesa de oferendas em alabastro que depositaria na capela do tmulo de Nfer o Silencioso, junto da porta de pedra, coberta de hierglifos, que dava acesso ao outro mundo. No interior da forma rectangular, esculpira uma pata e costeletas de vaca, um pato, cebolas, pepinos, couves, 37 figos, uvas, tmaras, roms, bolos, pes, bilhas de leite, de vinho e de gua. Magicamente animada pela Mulher Sbia, aquela mesa de oferendas funcionaria por si mesma, fora de qualquer presena humana, dando ao ka de Nfer as essncias subtis dos alimentos incarnados no alabastro. Desta forma, mesmo quando os mais prximos do mestre-de-obras tivessem desaparecido, a Pedra viva continuaria a aliment-lo. Mas o filho espiritual do mestre-de-obras assassinado no se contentava com aquela homenagem prestada a todos os defuntos; ele, o pintor, aventurava-se em novas tcnicas que aplicava depois de ter investigado o trabalho dos escultores. Como aquando das suas precedentes exploraes no mundo da matria, Paneb constatava que a mo era esprito. Guiado pelos conselhos da Mulher Sbia, o Ardente decidira fazer uma esttua de Nfer dotada de olhos excepcionais, correspondendo realidade anatmica que a medicina egpcia decifrara ao descobrir as diversas partes do olho: uma crnea de cristal de rocha para sublinhar a acuidade do olhar, uma esclertica em carbonato de magnsio contendo xidos de ferro que traduziam a presena das vnulas, a pupila perfurada no cristal de rocha e a ris materializada pela resina castanha, imprimindo as dissimetrias necessrias entre a pupila e a crnea()1. Nascia a madrugada quando Clara penetrou na oficina onde o Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET miniaturista acabava de poisar as suas ferramentas. Um raio de sol iluminava a esttua cujo olhar contemplava a eternidade. A esposa do defunto no conseguiu reter as lgrimas. Graas ao gnio do seu filho espiritual, Nfer estava vivo, fora do alcance da decrepitude e da morte. Em p, com a perna *1. Esta descrio baseia-se num recente estudo cientfico dos olhos do clebre escriba do Louvre-. Veio assim provar os notveis conhecimentos dos oftalmologistas do antigo Egipto. 38 direita frente, os braos ao longo do corpo, avanava sobre os belos caminhos do Ocidente e continuava a guiar a confraria para o Oriente. Clara quase ajoelhou em frente da esttua, mas Paneb impediu-a. - O seu ka subsistir na pedra - disse-lhe ele - mas em ti que ele vive e s tu que s depositria da sua sabedoria. Tu, que s a soberana do Lugar de Verdade, no nos abandones. 6. Nem Mehi nem Serketa prestaram a mnima ateno aos esplendores de Per-Ramss, a capital criada por Ramss o Grande no Delta, na proximidade do corredor de invaso de nordeste. Assim, o Fara intervinha rapidamente ao mnimo alerta. Servida por um porto que permitia a acostagem de barcos de carga, - a cidade de turquesa - era percorrida por canais orlados de pomares, jardins e manses luxuosas; tornava-se agradvel viver na cidade, embora acolhesse uma guarnio de elite e um arsenal de onde sairiam as armas destinadas a equipar as tropas encarregadas de vigiar a fronteira. O general e a esposa foram conduzidos ao palcio sobre cujas paredes se liam os nomes de Ramss, inscritos em ovais que simbolizavam o universo para sempre percorrido pela real alma. O chanceler Bai recebeu-os imediatamente no seu gabinete, cujos armrios de papiros se curvavam sob o peso dos documentos. Pequeno, magro, nervoso, com uns olhos negros muito mveis, o queixo ornado por uma barbicha, o chanceler era um homem da sombra que mantinha com firmeza as rdeas da administrao, ao servio da Rainha Tausert, que admirava, e do jovem Fara Siptah, que fizera subir ao trono a fim de sufocar querelas e intrigas. - Feliz por vos ver, general... E estou igualmente encantado por poder cumprimentar a vossa encantadora esposa. Espero que a viagem no tenha sido demasiado fatigante. - Para mim, foi um momento de repouso. 40 Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET - Tanto melhor, tanto melhor... Ficareis alojados num apartamento do palcio e dei ordens para que a vossa estadia na capital seja das mais agradveis. Suponho que a vossa esposa sente necessidade de se refrescar e repousar. Apareceram duas criadas e foi uma Serketa despeitada que se viu convidada a segui-las. Quando a porta do gabinete se fechou, a amabilidade forada do chanceler esfumou-se. Mehi encontrou-se perante um chefe de governo inquisidor e severo. - O que se passa exactamente em Tebas, general? - A situao perfeitamente normal, podeis estar descansado; e posso desde j anunciar-vos colheitas fabulosas e excelentes lucros fiscais. - Ningum duvida das vossas notveis qualidades de gestor, meu caro Mehi, mas o que pensar do assassinato de Nfer o Silencioso? - Esse drama terrvel transtornou-me. O escriba do Tmulo e eu prprio conjugaremos os nossos esforos para identificar o culpado. - Alegro-me com isso... Mas tendes j uma pista fivel? - Apenas Kenhir pode conduzir o inqurito no interior da aldeia, chanceler. Se precisar da minha interveno no exterior, fornecer-lhe-ei todos os homens que forem necessrios. - Tenho a impresso que tendes suspeitas precisas, general. - Precisas no, mas... Mas estou persuadido que o criminoso um dos auxiliares. Bai consultou um papiro. - Foi com efeito o que Kenhir me escreveu e ele no est longe de partilhar a vossa opinio. Mehi sentiu-se mortificado. Continuando a comunicar directamente com o poder central sem avisar o general, o escriba dirigira uma mensagem ao chanceler por barco especial. - Kenhir garantiu-me que a confraria continuaria a trabalhar com o mesmo rigor e que o Fara podia contar com ela para assumir a totalidade dos seus deveres. - De acordo com a sua carta - acrescentou o chanceler -um espectro ter tentado perturbar a serenidade da aldeia, mas a coragem de Paneb, o novo chefe da equipa da direita, fez fugir essa fora das trevas e restabeleceu a tranquilidade. 41 O mestre-de-obras Nfer repousa actualmente em paz e os artesos preparam-se para criar os monumentos indispensveis ao pleno esplendor do reino. - O pas inteiro se alegrar com isso -- afirmou Mehi com o mximo de convico. - Mas necessrio que o assassino seja castigado e que a confraria se sinta descansada quanto sua segurana externa. - uma das minhas misses, chanceler, e fao o possvel por desempenh-la bem! - Compreendamo-nos, general: vs e eu j conseguimos evitar uma guerra civil e devemos actualmente fortalecer a autoridade do Fara Siptah e da Rainha Tausert. Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET - Insinuais que... esto em perigo? - No vos faais ingnuo, Mehi. Siptah dotado de uma inteligncia excepcional mas no possui qualquer experincia de governao e a sua sade frgil; sem o apoio de Tausert, seria incapaz de suportar o peso da sua funo. A prpria Rainha deve ter em conta temveis adversrios... Uma parte da corte no lhe perdoa que seja uma mulher, e a outra que seja a viva de Seti II. - Sua Majestade possui uma personalidade fascinante que impressionou muito os tebanos... Na minha opinio, tem tambm a envergadura de um Fara. - Sem dvida nenhuma, mas a casta militar de Per-Ramss deseja ver cabea do Egipto um homem forte, capaz de resistir a um eventual invasor ou mesmo de desencadear uma guerra preventiva. - Esse homem forte... j se manifestou? - Chama-se Sethnakht. Um dignitrio idoso, verdade, mas que conhece perfeitamente a Siro-Palestina e tem o apoio das tropas de elite. - A ponto de... se apoderar do poder pela fora? - Ainda no, general, ainda no... Mas essa eventualidade no infelizmente de excluir. Espero que Sethnakht seja um legalista e no ouse lanar-se numa aventura destrutiva. 42 Ser demasiado optimista seria um grave erro, no vos parece? Mehi demorou algum tempo a reflectir. O chanceler Bai no destilava por acaso informaes to importantes e no o convocara portanto a Per-Ramss apenas para lhe falar da situao econmica em Tebas e do desaparecimento de Nfer o Silencioso. Face a to temvel estratego, o general era obrigado a correr um risco. - A vossa confiana e as vossas confidncias honram-me, mas o que esperais de mim? - Excelente pergunta, Mehi... As minhas informaes, com efeito, poderiam ser qualificadas como segredos de Estado. Segredos de que vos tornais depositrio e que fazem de vs um dos dignitrios melhor informados deste pas. O que eu espero de vs uma colaborao sem pensamentos reservados. Bem entendido que podereis ter a ideia de prestar apoio a Sethnakht na esperana de vos tornardes seu primeiro-ministro. - Chanceler, garanto-vos que... - Conheo bem a natureza humana, general, e prefiro prevenir do que remediar. Se tentardes trair o Fara legtimo, serei implacvel. Mehi e Serketa figuravam entre o nmero dos convidados de um faustoso banquete que a Rainha Tausert honrava com a sua presena. Consideraram-na mais bela e mais perigosa do que nunca e Serketa teve cimes do seu porte. Pelo claro que lhe perturbou o olhar, Mehi compreendeu que sentia desejos de matar. Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET - Acalma-te, minha doura - murmurou-lhe ao ouvido. -No seu territrio, a Rainha est fora do teu alcance. Serketa sorriu a um velho dignitrio que no pronunciara uma palavra desde o incio da refeio, - Haveis nascido aqui? - perguntou-lhe para tentar faz-lo descontrair. 43 - Tive essa sorte, bela dama, e fiz uma carreira perfeita sem cometer o menor erro. Tive tambm o privilgio de servir verdadeiros chefes. - O Rei Siptah no ser um deles? - espantou-se Mehi. -Todos respeitamos o Fara legtimo, evidente, mas receamos a sua juventude e inexperincia. Esperemos que o tempo seja seu aliado e que ele aprenda a governar. - Ele nunca assiste a festividades deste gnero? - interrogou Serketa. - Nunca. Passa a maior parte do seu dia no templo a estudar os escritos dos Antigos depois de ter celebrado o ritual da madrugada. Semelhante fervor de louvar, mas arrisca-se a ser inadaptado situao actual. - Sou uma tebana - lembrou Serketa ronronando como uma garotinha - e conheo mal a corte de Per-Ramss... No estais a tentar fazer-nos compreender que a Rainha Tausert o verdadeiro senhor do pas? - Ningum duvida disso. - Essa certeza no parece merecer a vossa aprovao - observou Mehi. Com as costas da mo, o dignitrio afastou uma jovem criada que lhe oferecia pato assado. - No sejais demasiado curioso, general, e contentai-vos com o que possus. Tebas uma cidade agradvel que vs governais com mo-de-ferro e os vossos resultados so apreciados pelo seu justo valor. Desejar mais conduzir-vos-ia por caminhos perigosos onde no encontrareis nenhum aliado. - Ignorais que o chanceler Bai me honra com a sua confiana? - No ignoro nada do que se passa nesta cidade e aconselho-vos a partir o mais depressa possvel. Vexado, Mehi insurgiu-se: - Quem sois vs para ousar falar-me nesse tom? O velho dignitrio levantou-se e o casal constatou que a sua potncia fsica era surpreendente para um homem daquela idade. 44 - As minhas obrigaes so numerosas e no estou habituado a frequentar os banquetes oficiais, mas este proporcionou-me ocasio de vos encontrar. Antes de regressar minha casa, fao questo de vos afirmar que Sethnakht no precisa de vs e que o primeiro dever de um general consiste em obedecer ao seu Rei. 7. Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET Logo que Beken o oleiro, chefe dos auxiliares, chegou zona que lhes estava reservada, Sobek interpelou-o. - Rene os teus subordinados diante da forja de Obed - ordenou o polcia nbio. Insolente, o oleiro enfrentou-o. - O que que se passa? - Vais ver. - Exijo explicaes. Sobek coou a cicatriz que tinha por baixo do olho esquerdo, recordao de uma luta de morte com um leopardo na savana da Nbia. Para quem conhecia bem o chefe da polcia do Lugar de Verdade, aquele gesto traa uma irritao crescente, preldio de uma clera devastadora. - No te enerves - recomendou Beken, cuja voz vacilava. -Desejava apenas saber se... - Rene os auxiliares. Beken considerou prefervel obedecer, mas teve as maiores dificuldades em reunir os do exterior, entre os quais figuravam lavadeiros, carniceiros, padeiros, cervejeiros, caldeireiros, curtidores, teceles, lenhadores, pescadores e jardineiros, todos nomeados para garantir o bem-estar dos aldees. Obed o ferreiro foi o primeiro a protestar com vigor. 46 - Tratas-nos pior do que aos bois destinados ao matadouro! O que te deu, Beken? - Ordem do chefe Sobek... Eu no tenho nada a ver com isso! - No ests encarregado de defender a nossa causa em caso de abuso de autoridade? - Queixa-te aos responsveis. De origem sria, barbudo, de pernas curtas, Obed o ferreiro era um homem de carcter. No hesitou portanto em fazer frente a Sobek, que observava a barafunda com ar impaciente. - Somos trabalhadores livres - declarou o ferreiro - e no tens quaisquer direitos sobre ns. - Tens falta de memria - fez-lhe notar o nbio. - Em caso de falta grave da parte de um auxiliar, tenho o dever de o prender. Obed franziu o sobrolho. - Ento, cometemos todos uma falta grave? Troas de ns, Sobek, e vou imediatamente prevenir o escriba do Tmulo! - Estou a agir por sua ordem, pois sois todos suspeitos de assassinato na pessoa de Nfer o Silencioso. O ferreiro ficou de boca aberta. Como por milagre, o barulho das vozes interrompeu-se para dar lugar a um pesado silncio. - Colocai-vos em linha - ordenou o polcia - e permanecei quietos. Interrogar-vos-ei um a um no meu gabinete. - Exijo que Beken esteja presente para me defender! - interveio o caldeireiro. - Conhecemos os teus mtodos... Fars qualquer pessoa confessar! Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET Sobek fulminou o contestatrio com o olhar. - Tens um exemplo determinado a citar? O caldeireiro baixou os olhos. - No, no... - Preciso de respostas claras e demorarei o tempo necessrio para as obter. Como os inocentes tm as mos limpas, nada tm a recear e sero rapidamente mandados embora. No tentem sobretudo mentir-me: tenho o faro de um co de caa. Beken aproximou-se do polcia. - Posso falar a ss contigo? - Calha bem... Tencionava interrogar-te em primeiro lugar. 47 Os dois homens entraram na forja. O lugar agradava a Sobek. pois simbolizava de forma perfeita a antecmara do Inferno onde arderia o assassino. - Tu, oleiro, tens revelaes a fazer-me? - Falta um auxiliar. - Tens a certeza? - Libu, um lavadeiro, filho de uma lbia e de um tebano. Tem cinquenta anos e trabalha duramente para alimentar a famlia. Rouba tecidos grosseiros de tempos a tempos, mas fecho os olhos. - Estar doente? - Nesse caso a mulher ter-me-ia prevenido. Esta ausncia perfeitamente anormal, garanto-te! - Vou a casa dele. Enquanto esperam o meu regresso, retomem as vossas actividades. Libu sonhava acordado. De esprito lento, tinha dificuldade em compreender o que lhe acontecia. Quando uma camponesa o abordara no caminho que conduzia ao Lugar de Verdade, julgara que ela o tomava por outro. Mas fora realmente o seu nome que ela pronunciara e sabia tudo sobre ele, incluindo os seus pequenos roubos. Inquieto, Libu defendera-se evocando a sua modesta situao e as necessidades da sua famlia. A camponesa tranquilizara-o. Era enviada pelos seus colegas lavadeiros que acabavam de receber um lote de roupas novas sadas das oficinas do Ramesseum e tencionavam proceder a uma partilha discreta das melhores peas antes de comearem o trabalho. Uma sorte a no perder! - No te conheo... Saste de onde? - Sou uma nova sobrinha de Beken o oleiro - respondeu Serketa com voz aguda. - Ah, bom... E ele no te aborrece? - to simptico! graas a ele que essa partilha se realiza. Serketa saiu do caminho para se dirigir a um pequeno bosque de tamargueiras, na orla do deserto. 48 Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET - o ponto de encontro - precisou ela. - O lugar sossegado. - Melhor assim! Se o chefe Sobek nos apanhasse, perderamos o nosso emprego e apanharamos uma pesada pena de priso. - No tenhas medo... Beken previu tudo. Libu pensava j nas trocas vantajosas que a mulher realizaria graas aos belos tecidos que ele lhe levaria. Embora a profisso de lavadeiro fosse dura, tinha certas vantagens. O olhar do auxiliar poisou sobre as formas opulentas da camponesa. - Beken escolhe bem as sobrinhas... Mas acabou de arranjar uma! Em geral, conserva-as mais tempo. - Neste momento, tem muita energia. - Que velho chibo! Se tivesse sabido, no teria casado e viveria como ele. - Sabes, no sou assim muito arisca... E o que d para um, d para dois. Libu poisou uma mo calosa sobre os seios de Serketa. - Se a minha mulher soubesse... - Quem lhe vai dizer? O lavadeiro inclinou a cabea para lhe beijar os mamilos e depois desceu at ao ventre. A sua posio era perfeita. Serketa retirou da peruca uma longa agulha embebida em veneno e cravou-a na nuca de Libu com uma preciso de cirurgio. O corpo do auxiliar retesou-se em poucos instantes. Ela repeliu-o com violncia e assistiu, excitada e feliz, horrvel agonia. Depois, recuperou a agulha, despiu a sua vtima e vestiu-a com um soberbo saiote que trouxera por baixo da ampla tnica. Pertencia a Nfer o Silencioso e fora roubado pelo traidor. Depois de se ter assegurado que o local estava deserto, a camponesa desapareceu nos campos de cultura. No havia dvida possvel: Libu o lavadeiro fugira. A esposa chorava e o chefe Sobek ordenara aos seus homens que passassem em revista o Lugar de Verdade e os arredores. 49 Se essas investigaes no dessem qualquer resultado, seria obrigado a pedir a Mehi que interviesse. - Com certeza Libu cometeu um delito suficientemente grave para o levar a desaparecer e a abandonar a famlia - considerou Beken. - Nada prova que tenha assassinado Nfer- objectou Sobek. - Ele manifestou animosidade contra o mestre-de-obras? - No, mas trata-se com certeza de uma infeliz coincidncia de circunstncias. Libu era um ladrozeco, como te disse, e deve ter tentado um grande golpe introduzindo-se no domiclio de Nfer, que estava em casa no momento errado. - E ningum o viu? E no h qualquer vestgio do roubo em casa de Libu? As perguntas do polcia perturbaram o oleiro. Procurava Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET respostas, quando um polcia irrompeu no gabinete de Sobek. - Pronto, chefe, encontrmo-lo! O problema que est morto. O nbio dirigiu-se imediatamente ao local. - Viste o saiote? - interrogou um dos seus homens. - De grande luxo! Tem mesmo uma marca em hierglifos... O corao e a artria da traqueia, por outras palavras, o sinal que servia para escrever a palavra "Nfer". Sobek apoderou-se da pea de vesturio. - evidente que no h testemunhas. - Nenhuma, chefe. De manh cedo este lugar deserto. Clara examinou o saiote. - Sim, pertencia a Nfer. Possua dois saiotes novos a mais e acabo de verificar: falta um. - O caso est encerrado - concluiu Kenhir. - Foi esse Libu que assassinou o mestre-de-obras. Quando soube que o chefe Sobek ia interrogar os auxiliares, decidiu fugir. Mas o destino no permitiu que ficasse impune e a morte apanhou-o antes que tirasse proveito do seu crime. - Ser esse ento o teor do vosso relatrio - avanou Sobek. 50 - Do nosso relatrio - rectificou o escriba do Tmulo. - No assinarei. - Porqu? - perguntou Clara. - Porque no acredito na morte natural desse lavadeiro. - Esse saiote... No ser uma prova da sua culpabilidade? - insistiu Kenhir. - Algum tenta enganar-nos. - Nesse caso, assina o relatrio - recomendou Clara. - O monstro que se oculta por trs deste novo crime ficar convencido de nos ter ludibriado. 8. Graas incessante actividade de Niut a Vigorosa, a morada oficial de Kenhir brilhava como uma jia. Nem um gro de poeira ofendia um mobilirio requintado e a jovem conseguia mesmo fazer a limpeza no gabinete do escriba do Tmulo sem espalhar a desordem nos seus arquivos. Como era tambm uma excelente cozinheira, Kenhir deveria ser o mais feliz dos maridos e poder, fora das suas obrigaes oficiais, consagrar-se sua obra literria cuja jia era uma Chave dos Sonhos. Mas a atitude de Niut afligia-o. - Senta-te um instante, por favor. - A ociosidade no o pior dos vcios? - Fazes-me tonturas e gostava de te falar seriamente. A dona de casa instalou-se numa cadeira empalhada. - Oio-vos. - Sou um velho, tu s uma jovem. Casei contigo unicamente para te legar todos os meus bens, precisando bem que eras livre de ter uma existncia a teu gosto. Porque razo te hs-de Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET consagrar incessantemente a esta casa e ao meu conforto, esquecendo a tua prpria felicidade? - Porque me sinto feliz desta maneira e todos os meus desejos esto satisfeitos. Preparei-vos roupa nova para o tribunal e espero que tomeis a deciso correcta. O Lugar de Verdade precisa de um verdadeiro chefe como Paneb. 52 A assembleia do esquadro e do ngulo recto, o tribunal especfico do Lugar de Verdade, reuniu-se no ptio a cu aberto do templo de Maet e Hathor. Dele faziam parte a Mulher Sbia, o chefe da equipa da esquerda, o escriba do Tmulo, Turquesa e mais quatro jurados tirados sorte: Ched o Salvador, Nakht o Poderoso, Gau o Exacto e uma sacerdotisa de Hathor. Oito como as foras primordiais, os membros do tribunal emitiam julgamentos que nenhuma autoridade contestava. Encarregados de distinguir a verdade da mentira e de proteger o fraco do forte, arbitravam os assuntos referentes vida da confraria, desde as declaraes de sucesso at aos conflitos entre aldees. - Foi-nos apresentada por vrios artesos uma proposta oficial - declarou Kenhir: - nomear Paneb o Ardente como mestre-de- -obras e sucessor de Nfer o Silencioso. No preciso de sublinhar a importncia de tal deciso, que s pode ser tomada por unanimidade. - Paneb arriscou a vida para salvar a confraria - lembrou Nakht o Poderoso. - No aprecio o seu carcter, todos sabem, mas factos so factos. Quando tivermos que defender-nos de novo, ser o nosso melhor baluarte. - Quando o filho espiritual fiel ao pai - interrogou a Mulher Sbia - no deve suceder-lhe? - Paneb no apenas um tcnico excepcional - declarou Hai - como possui um temperamento de chefe. A sua maneira de dirigir no ser semelhante de Nfer e provocar muitas complicaes, mas no temos escolha e proponho que confiemos nele. - Essa atitude nem parece tua - fez notar Kenhir. - S interessa a confraria. E estou convencido que Paneb a servir com todas as suas foras. - Aprovo o chefe da equipa da esquerda - apoiou Gau com a sua voz rouca. -- Penso tambm que a sua falta de diplomacia causar conflitos, mas temos necessidade da sua coragem e da sua energia. Turquesa e a outra sacerdotisa de Hathor mantiveram-se em silncio. - Se bem compreendo - observou Kenhir - ningum se ope nomeao de Paneb o Ardente como mestre-de-obras. - Esqueceste-te de mim - interveio Ched o Salvador. 53 - Paneb foi teu aluno e sempre o apoiaste. -Justamente. - Explica-te, Ched. - Desde o primeiro instante soube que Paneb seria um grande Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET pintor; mas foram necessrios longos anos para o formar e permitir sua mo expressar-se livremente, respeitando no entanto as regras da harmonia. Que ele seja hoje chefe de equipa, tanto melhor; j aprendeu a mostrar-se menos fogoso e provou que sabe dirigir sem trair o esprito da confraria. Se queimarmos etapas, Paneb acabar por ser consumido no seu prprio fogo. Demos-lhe o tempo de se instalar na sua funo e julguemo-lo pelos seus actos. - No dispomos desse tempo! - afirmou Nakht o Poderoso. - O nosso escriba do Tmulo est em excelente forma e saber representar-nos perante as autoridades enquanto os dois chefes de equipa se consagraro s suas tarefas. Depois, tomaremos uma deciso definitiva. - Se faltar apenas uma opinio positiva, a tua, aceitas modificar a tua posio? - interrogou Kenhir. - Seria uma cobardia imperdovel. Um fogo da natureza de Seth anima o corao de Paneb, um fogo to aterrador como o raio; destri no importa que obstculo que se erga no seu caminho, mas aniquilar o Ardente se exigirmos demasiado dele. Como a Mulher Sbia no retomou a palavra, Kenhir limitou-se a formular a deciso do tribunal: Paneb no seria nomeado mestre-de-obras do Lugar de Verdade. Turquesa tirou o carapuo de linho que fechava o boio bojudo contendo um precioso colrio composto por galena, pirite, carvo vegetal, cobre e arsnico. Como assistente directa de Clara, superior das sacerdotisas de Hathor do Lugar de Verdade, a deslumbrante ruiva, com uma quarentena leve como uma pluma, velava pelos objectos rituais utilizados no templo e pela preparao dos produtos de beleza que transformavam simples donas de casa em servidoras da deusa. Nessa aldeia que no se assemelhava a nenhuma outra, todos exerciam uma funo sagrada; os artesos e as companheiras eram os seus prprios sacerdotes e sacerdotisas e nenhum celebrante exterior intervinha nas suas cerimnias. 54 Eles prprios construam a sua hierarquia com completa independncia e apenas reconheciam como autoridade suprema o Fara e a Grande Esposa Real. Turquesa contou os boies de unguentos para se assegurar que no faltava nenhum; bojudos, estveis e estanques, fechados por carapuos de linho, eram outras tantas obras-primas talhadas em calcrio, alabastro ou serpentina. Terminado o seu inventrio, a sacerdotisa enfeitou com ramos armados os altares do templo no qual em breve iria oficiar a Mulher Sbia. Outrora, ela entrava ali acompanhada pelo mestre-de-obras para celebrar o ritual da madrugada enquanto que, em cada casa, os aldees apresentavam o fogo aos bustos dos antepassados e derramavam gua sobre as flores dispostas em sua honra a fim de as fazer libertar o perfume que encantaria o seu ka. Assim era garantida a circulao da oferenda sem a qual a confraria no teria sobrevivido. Hoje Clara estaria s, visto que o tribunal recusara a Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET nomeao de um novo mestre-de-obras. Ela seria simultaneamente o Rei e a Rainha, o mestre-de-obras dos artesos e a superiora das sacerdotisas. Adornada com o colar de granadas que Paneb lhe oferecera, no regresso de uma expedio no deserto, Turquesa atravessou o ptio a cu aberto pensando na estranha ligao que a unia ao colosso. um facto que continuavam a proporcionar um ao outro um prazer cuja intensidade no diminua e nenhuma nuvem empanava a sua paixo. Paneb sabia que Turquesa respeitaria o seu voto de continuar celibatria e que no seria nunca autorizado a passar uma noite em casa dela. O que ignorava que Turquesa lhe transmitia uma fora mgica que Uabet a Pura no possua. Desde o seu primeiro encontro, Turquesa pressentira que Paneb o Ardente desempenharia um papel decisivo na histria da confraria e que ela o deveria ajudar a forjar uma alma de chefe, capaz de ir para alm de si mesmo e das suas imperfeies. Paneb ardia com um fogo que apenas a Grande Obra acalmaria. 55 Competia a Uabet proporcionar-lhe o equilbrio de uma dona de casa e a Turquesa manter nele o dinamismo do desejo. O que Nfer o Silencioso tivera a sorte de encontrar numa nica mulher, Paneb vivia na experincia da dualidade. No procurava nem a sabedoria nem a serenidade, como o seu pai espiritual, mas uma fora criadora que no era deste mundo. Por vezes, a prpria Turquesa se sentia assustada; mas ao contrrio da maior parte dos humanos, Paneb possua a capacidade de incarnar plenamente o seu destino. A ela, a mgica, competia orient-lo para o amor da obra e da confraria, evitando que o colosso se perdesse no pntano da ambio. Ched o Salvador tivera razo em recusar a nomeao ao Ardente. Se fosse necessrio, Turquesa t-lo-ia apoiado. Quando avanava pela rua principal, a aldeia dormia ainda. Paneb o Ardente vinha ao seu encontro. - J levantado? - Est to agradvel... E tinha vontade de te ver. - a hora dos rituais, Paneb, no do prazer. - Justamente... No necessrio pensar em embelez-los constantemente? Como um chefe de equipa deve conhecer todas as tcnicas, trabalhei muito com o ourives Tuti nestes ltimos tempos. E pensei que, na tua funo de sacerdotisa de Hathor, este adorno no seria intil. Os primeiros clares da madrugada poisaram sobre uma fina tiara de ouro, de incrvel leveza, ornada de rosetas coloridas e duas minsculas cabeas de gazela maravilhosamente cinzeladas. Estupefacta, Turquesa deixou-se coroar pelo colosso com mos de fada que se afastou no momento em que os aldees comeavam o seu dia celebrando o culto dos antepassados. 9. Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET Com a altura de um cvado e meio(1), ovides, perfeitamente estanques, bem cozidas em toda a sua espessura, pintadas de vermelho e marcadas com o nome dos seus proprietrios, as nforas de cereais figuravam no nmero dos objectos essenciais utilizados pelos aldees. Fabricadas com uma argila do Mdio Egipto, eram simultaneamente leves e fceis de manejar. Instado pela esposa a encher duas, o chefe-escultor Userhat o Leo dirigia-se a passos lentos para os silos instalados a noroeste da aldeia. Os seus antecessores tinham talhado na marga paredes verticais com ngulos rectos bem marcados, tendo o cuidado de garantir a homogeneidade da argamassa que cobria o solo rochoso. Os gros eram distribudos por vrios compartimentos, em funo da sua qualidade e da data de entrega. Graas gesto rigorosa do escriba do Tmulo, os silos estavam sempre cheios e, mesmo em perodo de crise, o Lugar de Verdade tinha a garantia de no ficar sem po. Qual no foi a surpresa de Userhat ao encontrar Hai, o chefe da equipa da esquerda, diante do primeiro silo em grande discusso com as esposas furibundas de Pai o Bom-Po e de Gau o Exacto! Em termos pouco lisonjeiros, as duas donas de casa apostrofavam o imperturbvel Hai que recusava deix-las aceder s reservas de cereais. *1. 0,78 m. 57 - Qual o problema? - perguntou Userhat, espantado. - O vizir requisitou os silos - respondeu o chefe de equipa. - proibido tocar neles at nova ordem. - Esta requisio ilegal! - tonitroou Paneb. - verdade - reconheceu o escriba do Tmulo - mas deixa em paz as minhas paredes e os meus mveis. No fui eu que assinei essa carta mas sim um assistente do vizir. - Vs que haveis nomeado Hai como guarda! - Enquanto esperamos para esclarecer a situao, intil fazer a comunidade correr o mnimo risco. Ainda temos cereal suficiente para fazer po e cerveja durante vrios dias antes de encetarmos as reservas dos silos. - Mas estais imobilizado pela artrite e por uma crise de gota... - Reforo o tratamento habitual - precisou Clara que acabava de auscultar o seu paciente - mas Kenhir no poder estar a p antes de dois dias. - Irei ento sozinho a casa do general Mehi - decidiu Paneb. - Compete-lhe acabar com esta injustia e evitar este gnero de disparates no futuro. - Tenta mostrar-te um pouco diplomata... Trata-se apenas de um erro administrativo. - Ns, quando criamos uma pintura ou esttua - retorquiu o Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET Ardente - no temos o direito ao erro! Avanando a passo rpido, Paneb estava decidido a abanar o administrador-principal da margem oeste sem tolerar a menor justificao da sua parte. Rasgaria diante dele a requisio e reclamaria indemnizao sob a forma de uma entrega imediata de cosmticos de primeira qualidade. Uma lngua doce lambeu-lhe a perna. - Trigueiro!No te pedi para me acompanhares... Com os seus grandes olhos cor de avel, o co dirigiu ao colosso um olhar suplicante e cmplice. 58 A meia distncia entre o Lugar de Verdade e os gabinetes da administrao, um quinquagenrio robusto e mal barbeado barrou o caminho a Paneb. - Ol, amigo! Lindo dia, no verdade? - Depende para quem. - Gostaria de ter uma pequena conversa contigo. - No nos conhecemos e tenho pressa. - No s muito amvel... - Sai do meu caminho; repito-te que tenho pressa. - Para ser franco, os meus camaradas gostariam de participar na nossa conversa. Dos campos de trigo saram vrios homens que rodearam o arteso. Paneb contou nove e notou que eram parecidos: mesma morfologia, mesma atitude, mesma testa baixa. E cada um deles brandia um cajado. - Ests a ver - disse o mal barbeado - devamos ficar todos calmos e no nos incomodarmos uns aos outros. Mas tu tornas-te irritante. Ento, os meus camaradas e eu vamos ensinar-te a ficar quieto. Definitivamente quieto. - E se eu pronunciasse uma palavra, uma nica, que pudesse resolver a situao? O chefe do grupo ficou surpreendido. - Uma palavra... Mas qual? - Ataque! Trigueiro saltou e cravou dois dentes no antebrao do mui barbeado que deu um grito de dor. Paneb lanou-se sobre o seu aclito mais prximo, de cabea, e bateu-lhe em pleno peito. Depois, desviando-se para o lado, evitou uma pancada de cajado e conseguiu, com os punhos juntos, quebrar a nuca do seu agressor. Violentamente atingido nas costelas, o colosso por pouco no caiu. S a sua excepcional resistncia dor lhe permitiu permanecer em p e, com o joelho, quebrou o maxilar do adversrio. Mas outro cajado se abateu sobre o seu ombro esquerdo e tomou conscincia que aquele bando era formado por bandidos treinados no combate corpo-a-corpo. 59 Tocado no flanco, Paneb atirou-se ao cho, ergueu um pesado fulano agarrando-lhe os testculos e atirou-o de encontro a dois dos seus camaradas que caram para trs. Rpido como um Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET animal selvagem, o colosso acabava de esmagar com o calcanhar o nariz de um deles quando a ponta de um cajado o atingiu nos rins. Abandonando a sua presa, Trigueiro mordeu a barriga da perna do que se preparava para dar cabo de Paneb. Surpreendido, este largou a arma, de que o arteso se apoderou. Com a vista turva, coberto de sangue, o colosso conseguiu erguer-se e fazer girar o cajado. - Vamos embora! - gritou o chefe. Os aclitos apanharam os desmaiados e o bando dispersou-se como uma revoada de pardais. Trigueiro de boa vontade os teria perseguido, mas preferiu ficar junto de Paneb que, retomando o flego, o recompensou com uma longa srie de carcias. Os soldados da guarda apontaram as espadas curtas para a espcie de monstro coberto de feridas que acabava de penetrar no ptio onde se abriam os gabinetes da administrao central da margem esquerda. Assustado, um escriba largou os rolos de papiros e refugiou-se em casa do seu superior. Trigueiro rosnou e mostrou os dentes, preparado para novo combate. - Sou Paneb o Ardente, arteso do Lugar de Verdade, e exijo ver imediatamente o general Mehi. A reputao do colosso tinha ultrapassado os muros da aldeia e todos sabiam que podia vencer, de mos nuas, um nmero considervel de homens armados. - Vou preveni-lo - prometeu o graduado. - Espera aqui e segura no teu co. A espera foi de curta durao. Foi um Mehi vestido ltima moda que veio buscar o seu hspede. - Paneb! Mas em que estado... - Agrediram-me. Nove homens com cajados. E no eram camponeses. 60 - O que queres tu dizer? - Eram profissionais que sabiam bater-se. O rosto de Mehi ensombrou-se. - Era o que eu receava... Paneb insurgiu-se: - Sabeis que iam tentar matar-me? - No, claro que no, mas h relatrios alarmantes referindo bandos de mercenrios lbios que tero atravessado o deserto para penetrarem na regio e cometerem desacatos. Vou duplicar imediatamente as patrulhas a fim de que esses bandidos sejam presos o mais depressa possvel. Nove homens... E conseguiste venc-los? - Fugiram e alguns tm ossos partidos. - Vou levar-te enfermaria. - A Mulher Sbia tratar de mim. Como chefe da equipa da direita, devo apresentar-vos um problema grave... Tendo em conta a importncia da minha funo, sede menos familiar comigo e parai de tutear-me. - Muito bem, muito bem... Vamos ao meu gabinete. Como Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET Trigueiro os seguisse, Mehi imobilizou-se. - Esse co no deveria ficar c fora? - Trigueiro um guerreiro nobre e corajoso. Acompanha-me. - Pois sim... Paneb detestou o gabinete de Mehi, que considerou sobrecarregado de vasos pretensiosos e pinturas medocres. - Sentai-vos, Paneb. - No vale a pena. - Deveis ter sede? - Sede de justia, sim. O general abriu os olhos, espantado. - De que injustia vos queixais? - A requisio dos silos do Lugar de Verdade. - Mas... totalmente ilegal! - No entanto, recebemos um documento assinado por um assistente do vizir. Paneb colocou o documento sujo de suor e de sangue sobre a secretria de Mehi, que o leu atentamente. - falso - concluiu. - Este assistente no existe. 10. Naquela manh, Mehi estava a fazer um verdadeiro massacre de guarda-rios, poupas e patos na floresta de papiros onde caava com ferocidade h mais de cinco horas. Mas esta matana no bastava para lhe acalmar os nervos, que controlara com dificuldade enquanto escutava Paneb. Nove soldados pagos a preo de ouro para se calarem, nove veteranos que j tinham partido para a fronteira lbia... Como tinha o arteso, por muito colosso que fosse, conseguido venc-los? O plano de Serketa funcionara perfeitamente: Atrado para fora da aldeia pela falsa requisio dos silos, Paneb cara na cilada preparada pelo grupo que recebera ordem para interceptar um perigoso malfeitor e suprimi-lo se resistisse. A um contra nove, o Ardente no tinha qualquer hiptese! Uma nica explicao; Paneb gozava de um poder sobrenatural proporcionado pela Pedra de Luz. Alimentava-se da sua energia e desenvolvia em seguida uma fora contra a qual ningum podia lutar. Esta certeza decuplicou em Mehi o desejo de se apoderar do tesouro supremo do Lugar de Verdade! Era a Pedra que tornava a confraria capaz de resistir adversidade e enfrentar as piores provaes sem desesperar. Enquanto a possusse, os ataques, por mais duros que fossem, provocariam apenas desgastes mnimos. evidente que o protector oficial do Lugar de Verdade fora alm das exigncias de Paneb, apresentando desculpas oficiais ao escriba do Tmulo e oferecendo confraria potes de unguentos e jarros de vinho para fazer esquecer o lamentvel erro da administrao. 62 - 63 Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET A beleza e elegncia da Rainha Tauserr subjugavam o chanceler Bai. A qualquer hora do dia, a soberana estava deslumbrante, maquilhada com arte e adornada por discretas jias de ouro devidas ao talento do ourives Tuti. Fiel memria de Seti II, Tausert no voltara a casar; com autoridade mas sem ostentao, governava o Egipto evitando choques com os partidrios de Siptah. - A sade do Fara melhorou, chanceler? - Infelizmente no, Majestade; mas o Rei no se queixa, de tal forma se sente feliz por ler os textos dos Antigos e conversar com os sbios do templo. - Esqueceu definitivamente os assuntos de Estado? - Deposita em vs plena e absoluta confiana. - Era o que tu previras, no verdade? Bai baixou os olhos. - O velho corteso Sethnakht agita-se muito, nestes ltimos tempos - continuou a Rainha. - O seu nome, "Seth vitorioso", assaz inquietante. Controlas a situao? - No por completo, Majestade. A palavra desse dignitrio tem muito peso e ele considera necessrio prosseguir a linha sethiana interrompida por morte do vosso marido. - Quais so os seus argumentos? - Pensa que o Egipto est a enfraquecer e que no vos preocupais suficientemente com o exrcito. Do seu ponto de vista, seria indispensvel uma demonstrao de fora na Siro-Palestina. - No essa a minha poltica, com efeito. Consideras que seja suficientemente audacioso para tentar apoderar-se do poder? - Sethnakht um homem ponderado mas voluntarioso; convm portanto lev-lo muito a srio. - Portanto, o nmero dos meus inimigos no diminuiu... - Infelizmente no, Majestade, e a composio actual da corte no me incita ao optimismo. Mas no lhes deixo o campo livre e reforo constantemente o meu sistema de defesa para vos permitir governarem paz. O sorriso da Rainha fez corar o chanceler. - Tinha-te prometido uma surpresa, lembras-te? Este mundo no passa de uma nfima parte da realidade, Bai, e devemos pensar na nossa Morada de Eternidade, A Mulher Sbia ainda no determinou a localizao da minha no Vale das Rainhas, mas tomei uma deciso no que se refere tua. A garganta do chanceler contraiu-se. Tudo o que desejava era ficar perto de Tausert para alm da morte aparente. - Residirs no Vale dos Reis, no longe de Seti II que serviste fielmente. O chanceler por pouco no teve um chelique. - Eu, no Vale dos Reis, mas... - Devido tua dedicao ao servio do pas, mereceste essa honra excepcional. Amanh, partirs para o Lugar de Verdade e confiars a sua nova misso confraria: construir o Templo dos Milhes de Anos de Siptah e dois tmulos, o do Rei e o teu. - Majestade, como... Como posso agradecer-vos? - Continuando a ser tu mesmo, Bai. Trmulo de emoo, o chanceler ousou murmurar o pedido que o sufocava: - Quando os deuses vos coroarem Fara, Majestade, possa a minha Morada de Eternidade ficar prxima da vossa. Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET - O templo ser construdo entre o de Tutms III e o Ramesseum - anunciou Hai, o chefe da equipa da esquerda, na presena da Mulher Sbia, de Paneb e do escriba do Tmulo. - Quanto ao tmulo de Siptah, detectmos uma boa localizao, um pouco a norte do de Seti II. O chanceler Bai aprovou com um sinal de cabea. - Visto que sois o servidor desses dois Reis - continuou Hai - o vosso ser escavado perto do de Siptah, portanto no mesmo sector do Vale. - Suponho que se trata de um simples jazigo no decorado, no verdade? - esse o costume no que diz respeito s personalidades no reais, com efeito, mas no esse o desejo da Rainha Tausert, 64 de acordo com o Fara Siptah - precisou Kenhir. - Eis o plano que elabormos. Vrios corredores de enfiada, uma sala do sarcfago, paredes para decorar... Bai estava estupefacto. - Mas... Dir-se-ia um tmulo real! - esse o desejo da Rainha - confirmou a Mulher Sbia. - Esta Morada de Eternidade no ser consagrada como a de um Fara, mas evocar a vastido da tarefa realizada pelo seu ocupante. Pela primeira vez desde que trabalhava ao servio do Egipto, o chanceler Bai sentiu-se perdido. Fened o Nariz verificou uma ltima vez a localizao escolhida, da qual a Mulher Sbia, munida de um malho e do cinzel em ouro de Nfer o Silencioso, se aproximou com respeito. Dando o primeiro golpe na rocha, no a feria mas revelava a sua vida secreta, preservada no silncio. E, esta vida tomaria a forma da Morada de Eternidade do Fara Siptah. Inquieto, Sobek duplicara a guarda entrada do Vale dos Reis e inspeccionara pessoalmente as colinas que dominavam "a grande plancie" onde, dia aps dia e noite aps noite, se operava a transmutao da alma dos reis que ali repousavam. A agresso de que Paneb fora vtima preocupava-o no mais alto grau; se se tratavam de mercenrios lbios, no hesitariam em atacar as necrpoles na esperana de a encontrar ouro e o Vale dos Reis deveria ser objecto de precaues especiais. Seria no entanto possvel acreditar nas declaraes de Mehi? certo que o polcia nbio no correria qualquer risco, mas no podia impedir-se de pensar que aquele general demasiado ambicioso ocultava a verdade. Graas aos unguentos da Mulher Sbia, os ferimentos de Paneb no passavam de uma m recordao. E foi com a energia intacta que o colosso brandiu a grande picareta sobre a qual o fogo do cu traara o focinho e as duas orelhas do animal de Seth. Com aquele simples gesto, transmitiu sua equipa entusiasmo e Encontre outros livros como esse em WWW.JOROROBA.CJB.NET desejo de realizar com xito uma nova obra-prima. 65 Os talhadores de pedra secundaram-no, os outros artesos prepararam uma oficina para preparar o programa de escultura, pintura e ourivesaria. E o milagre repetiu-se: graas ao canto das ferramentas, comunho dos pensamentos e coordenao dos esforos, a alegria reinou no estaleiro. Para surpresa geral, Paneb no manifestou qualquer autoritarismo; velou pelo trabalho de cada um com serenidade, resolveu as dificuldades sem impacincia e deu o exemplo em todas as circunstncias. -- Nfer no se enganou ao escolh-lo como filho espiritual -admitiu Karo o Mal-humorado. - No nos alegremos demasiado cedo - recomendou Unesh o Chacal. - De momento, Paneb contm-se, mas a sua natureza no tardar a vir ao de cima. - Enganas-te - objectou Gau o Exacto. - Como chefe de equipa, est consciente dos seus deveres. - Tens muitas iluses - considerou Fened o Nariz. - De maneira nenhuma - cortou Nakht o Poderoso. - Eu, que fui o adversrio declarado de Paneb, constato que as responsabilidades o transformaram e que tivemos razo em confiar-lhe o lugar. Quando Kenhir se instalou no assento escavado na rocha de onde observava o desenrolar dos trabalhos, estava com um humor terrvel. Atormentado por um pesadelo, passara mal a noite e receava que o dia fosse uma sucesso de catstrofes. A primeira verifcou-se a meio da manh, quando Casa o Cordame foi incapaz de se endireitar. - Lumbago - queixou-se com uma careta. Paneb interveio imediatamente. Utilizando a tcnica que lhe ensinara a Mulher Sbia, manipulou o talhador de pedra para restabelecer o alinhamento correcto das vrtebras a fim de que a circulao da energia fosse garantida ao longo da coluna, a rvore da vida. - Vai ter necessidade de vrios dias de repouso - disse Paneb ao escriba do Tmulo. Alguns minutos mais tarde, foi a vez de Pai o Bom-Po parar de trabalhar. 66 - Pulso esfolado - afirmou. - Preciso de uma ligadura. Kenhir constatava a realidade do ferimento que comeava a inchar quando o berro de Ipui o Examinador o fez sobressaltar; o p direito do arteso acabava de ser esmagado pela grande picareta que escapara da mo de Nakht o Poderoso. Os colegas rodearam o infeliz e estenderam-no sobre uma padiola. - razo para nos interrogarmos se este estaleiro no est ama