CHINA EM TRANSFORMAÇÃO CHINA EM TRANSFORMAÇÃO

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CHINA EM TRANSFORMAÇÃO DIMENSÕES ECONÔMICAS E GEOPOLÍTICAS DO DESENVOLVIMENTO CHINA EM TRANSFORMAÇÃO DIMENSÕES ECONÔMICAS E GEOPOLÍTICAS DO DESENVOLVIMENTO Marcos Antonio Macedo Cintra Edison Benedito da Silva Filho Eduardo Costa Pinto (Organizadores)

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  • Misso do IpeaAprimorar as polticas pblicas essenciais ao desenvolvimento brasileiropor meio da produo e disseminao de conhecimentos e da assessoriaao Estado nas suas decises estratgicas.

    9 788578 112516

    ISBN 978-85-7811-251-6

    A experincia chinesa combinou o mximo de competio a utilizao do mercado como instrumento de desenvolvimento com o mximo de controle das instituies centrais da economia competitiva moderna: o sistema de crdito, a poltica de comrcio exterior, a administrao da taxa de cmbio, os mecanismos de fomento inovao cientfica e tecnolgica. Os bancos pblicos foram utilizados para dirigir e facilitar o investimento produtivo e em infraestrutura.

    Agora, a China ingressa em uma nova fase de seu desenvolvimento, que exige reformas institucionais em diversas reas cruciais: o papel do setor pblico, a distribuio de renda, a propriedade da terra, o sistema financeiro, a internacionalizao da moeda, a abertura da conta de capital. Essas reformas so muito mais delicadas e complexas do que aquelas implementadas nos ltimos trinta anos. Isso demandar reavaliaes e revises, com avanos e recuos, dado o mtodo experimental por tentativa e erro utilizado pelas autoridades chinesas. O xito das reformas dever consolidar a transio econmica da China de uma economia de comando para uma economia mista, em que o mercado ter papel importante, mas no exercer influncia na formulao das estratgias de longo prazo.

    A despeito de diferenas substantivas entre a sociedade chinesa e a brasileira, compreender a experincia do gigante asitico, de manter o sistema aberto s transformaes de longo prazo, por meio de um planejamento indicativo, liderado pelo Estado, pode ser muito til para o debate em torno do processo de retomada do desenvolvimento socioeconmico do Brasil.

    Luiz Gonzaga de Mello BelluzzoProfessor titular do Instituto de Economia da Universidade Estadual

    de Campinas (IE/Unicamp) e das Faculdades de Campinas (Facamp)

    Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo

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    CHINA EM TRANSFORMAODIMENSES ECONMICAS

    E GEOPOLTICAS DO DESENVOLVIMENTO

    CHINA EM TRANSFORMAODIMENSES ECONMICAS

    E GEOPOLTICAS DO DESENVOLVIMENTOMarcos Antonio Macedo CintraEdison Benedito da Silva Filho

    Eduardo Costa Pinto(Organizadores)

    Os autores discutem neste livro as principais polticas que possibilitaram, nas ltimas trs dcadas, a transformao da economia chinesa na segunda maior do mundo. No setor externo, o pas ascendeu primeira posio mundial emexportaes e ao segundo lugar em importaes,gerando elevados superavit na conta-corrente ena conta de capital do balano de pagamentos.Isso permitiu China acumular um volumeexpressivo de reservas internacionais e seconsolidar como o maior pas credor emtodo o mundo.

    Os diferentes captulos mostram que as polticas de industrializao, de insero nas cadeias produtivas regionais e globais, de suprimento de energia, de gesto da moeda e do crdito, de distribuio de renda e de reduo das desigualdades regionais, de cincia, tecnologia e inovao, de modernizao do aparato militar e dos sistemas de defesa, de apoio internacionalizao das empresas e de financiamento da infraestrutura no entorno asitico, e de atuao nas instituies multilaterais esto articuladas em uma ampla estratgia de desenvolvimento de curto, mdio e longo prazo.

    Destaca-se, em particular, o panorama realizado sobre o complexo sistema financeiro chins, focalizando especialmente o papel crucial desempenhado pelos bancos pblicos comerciais e de desenvolvimento, suas interfaces com o sistema bancrio paralelo, as limitaes do mercado de capitais e a interao destas instituies com as principais agncias de regulao, superviso e coordenao o Banco Central da China, a Comisso de Regulao Bancria da China e o Conselho de Estado.

    Os autores descrevem como as autoridades econmicas daquele pas colocaram em marcha uma estratgia cautelosa de internacionalizao do renminbi e do sistema financeiro nacional, mas com liberalizao controlada da conta de capitais. A internacionalizao da moeda chinesa constitui um passo defensivo em resposta crise financeira global ocorrida entre 2007 e 2008.

    Seu objetivo substituir, em curto espao de tempo, o dlar pelo renminbi como moeda dominante nas trocas internacionais entre a China e os outros pases com que comercializa, estabilizando monetariamente sua rede internacional de fornecedores e de consumidores.

    O caminho em direo maior abertura da conta de capitais carrega, no entanto, um risco elevado, na medida em que pode abrir aos mercados internacionais o processo de formao da taxa de cmbio e da taxa de juros hoje sob controle do Estado chins e, com isso, colocar em xeque todo o funcionamento do, at agora, bem-sucedido sistema de crescimento do emprego e da renda, com elevado dinamismo do setor industrial, a exemplo do que ocorreu no Japo na dcada de 1980. Os riscos provenientes de uma internacionalizao da moeda e do sistema financeiro nacional se sobressaem no contexto atual de uma economia com elevada taxa de investimento ancorada no crdito bancrio, mas em desacelerao.

    Este livro, disponibilizado pelo Ipea e elaborado com a colaborao de vrios professores de diversas universidades brasileiras, sob a coordenao de Marcos Antonio Macedo Cintra, Edison Benedito da Silva Filho e Eduardo Costa Pinto, estimula o debate sobre as principais caractersticas do modelo de desenvolvimento chins e as cleres transformaes ocorridas no socialismo de mercado, ou uma das formas existentes de organizao do capitalismo na China contempornea. Este debate entre funcionrios pblicos, formuladores de polticas, empresrios, sindicatos, partidos polticos, acadmicos, jornalistas e estudantes pode ser frutfero para alimentar a discusso sobre um novo desenho de desenvolvimento para o Brasil, projeto que dever implicar mudanas na insero internacional do nosso pas, nas dimenses comercial, produtiva e financeira.

    Ernani Teixeira Torres FilhoProfessor associado do Instituto de Economia da Universidade Federal

    do Rio de Janeiro (IE/UFRJ)

  • Os autores discutem neste livro as principais polticas que possibilitaram, nas ltimas trs dcadas, a transformao da economia chinesa na segunda maior do mundo. No setor externo, o pas ascendeu primeira posio mundial em exportaes e ao segundo lugar em importaes, gerando elevados superavit na conta-corrente e na conta de capital do balano de pagamentos. Isso permitiu China acumular um volume expressivo de reservas internacionais e se consolidar como o maior pas credor em todo o mundo.

    Os diferentes captulos mostram que as polticas de industrializao, de insero nas cadeias produtivas regionais e globais, de suprimento de energia, de gesto da moeda e do crdito, de distribuio de renda e de reduo das desigualdades regionais, de cincia, tecnologia e inovao, de modernizao do aparato militar e dos sistemas de defesa, de apoio internacionalizao das empresas e de financiamento da infraestrutura no entorno asitico, e de atuao nas instituies multilaterais esto articuladas em uma ampla estratgia de desenvolvimento de curto, mdio e longo prazo.

    Destaca-se, em particular, o panorama realizado sobre o complexo sistema financeiro chins, focalizando especialmente o papel crucial desempenhado pelos bancos pblicos comerciais e de desenvolvimento, suas interfaces com o sistema bancrio paralelo, as limitaes do mercado de capitais e a interao destas instituies com as principais agncias de regulao, superviso e coordenao o Banco Central da China, a Comisso de Regulao Bancria da China e o Conselho de Estado.

    Os autores descrevem como as autoridades econmicas daquele pas colocaram em marcha uma estratgia cautelosa de internacionalizao do renminbi e do sistema financeiro nacional, mas com liberalizao controlada da conta de capitais. A internacionalizao da moeda chinesa constitui um passo defensivo em resposta crise financeira global ocorrida entre 2007 e 2008.

    Seu objetivo substituir, em curto espao de tempo, o dlar pelo renminbi como moeda dominante nas trocas internacionais entre a China e os outros pases com que comercializa, estabilizando monetariamente sua rede internacional de fornecedores e de consumidores.

    O caminho em direo maior abertura da conta de capitais carrega, no entanto, um risco elevado, na medida em que pode abrir aos mercados internacionais o processo de formao da taxa de cmbio e da taxa de juros hoje sob controle do Estado chins e, com isso, colocar em xeque todo o funcionamento do, at agora, bem-sucedido sistema de crescimento do emprego e da renda, com elevado dinamismo do setor industrial, a exemplo do que ocorreu no Japo na dcada de 1980. Os riscos provenientes de uma internacionalizao da moeda e do sistema financeiro nacional se sobressaem no contexto atual de uma economia com elevada taxa de investimento ancorada no crdito bancrio, mas em desacelerao.

    Este livro, disponibilizado pelo Ipea e elaborado com a colaborao de vrios professores de diversas universidades brasileiras, sob a coordenao de Marcos Antonio Macedo Cintra, Edison Benedito da Silva Filho e Eduardo Costa Pinto, estimula o debate sobre as principais caractersticas do modelo de desenvolvimento chins e as cleres transformaes ocorridas no socialismo de mercado, ou uma das formas existentes de organizao do capitalismo na China contempornea. Este debate entre funcionrios pblicos, formuladores de polticas, empresrios, sindicatos, partidos polticos, acadmicos, jornalistas e estudantes pode ser frutfero para alimentar a discusso sobre um novo desenho de desenvolvimento para o Brasil, projeto que dever implicar mudanas na insero internacional do nosso pas, nas dimensescomercial, produtiva e financeira.

    Ernani Teixeira Torres Filho

    Professor associado do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ)

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  • CHINA EM TRANSFORMAODIMENSES ECONMICAS

    E GEOPOLTICAS DO DESENVOLVIMENTO

    CHINA EM TRANSFORMAODIMENSES ECONMICAS

    E GEOPOLTICAS DO DESENVOLVIMENTOMarcos Antonio Macedo CintraEdison Benedito da Silva Filho

    Eduardo Costa Pinto(Organizadores)

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  • Governo Federal

    Secretaria de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica Ministro Roberto Mangabeira Unger

    Fundao pbl ica v inculada Secretar ia de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica, o Ipea fornece suporte tcnico e institucional s aes governamentais possibilitando a formulao de inmeras polticas pblicas e programas de desenvolvimento brasi leiro e disponibi l iza, para a sociedade, pesquisas e estudos realizados por seus tcnicos.

    PresidenteJess Jos Freire de Souza

    Diretor de Desenvolvimento InstitucionalAlexandre dos Santos Cunha

    Diretor de Estudos e Polticas do Estado, das Instituies e da DemocraciaRoberto Dutra Torres Junior

    Diretor de Estudos e Polticas MacroeconmicasCludio Hamilton Matos dos Santos

    Diretor de Estudos e Polticas Regionais, Urbanas e AmbientaisMarco Aurlio Costa

    Diretora de Estudos e Polticas Setoriais de Inovao, Regulao e InfraestruturaFernanda De Negri

    Diretor de Estudos e Polticas SociaisAndr Bojikian Calixtre

    Diretor de Estudos e Relaes Econmicas e Polticas InternacionaisBrand Arenari

    Chefe de GabineteJos Eduardo Elias Romo

    Assessor-chefe de Imprensa e ComunicaoJoo Cludio Garcia Rodrigues Lima

    Ouvidoria: http://www.ipea.gov.br/ouvidoriaURL: http://www.ipea.gov.br

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  • CHINA EM TRANSFORMAODIMENSES ECONMICAS

    E GEOPOLTICAS DO DESENVOLVIMENTO

    CHINA EM TRANSFORMAODIMENSES ECONMICAS

    E GEOPOLTICAS DO DESENVOLVIMENTOMarcos Antonio Macedo CintraEdison Benedito da Silva Filho

    Eduardo Costa Pinto(Organizadores)

    Rio de Janeiro, 2015

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  • Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada ipea 2015

    As opinies emitidas nesta publicao so de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, no exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada ou da Secretaria de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica.

    permitida a reproduo deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte. Reprodues para fins comerciais so proibidas.

    A obra retratada na capa deste livro o desenho Contemplao, de Eduardo Ventura, de 2010. Eduardo Ventura um artista carioca em plena atividade criativa retrata em sua obra o indivduo isolado e, simultaneamente, imerso nas grandes cidades contemporneas. Seus personagens parecem tentar compreender as transformaes da vida cotidiana nas sociedades urbanas. Um vendaval passa e, perplexos, ficamos em contemplao solitria. O clere movimento das mudanas sociais, tecnolgicas, climticas e patrimoniais vai nos engolfando a todos, exigindo reflexo para sair da apatia paralisante.

    Os organizadores do livro agradecem ao autor o direito de uso da imagem de sua obra.

    China em transformao : dimenses econmicas e geopolticas

    do desenvolvimento / Marcos Antonio Macedo Cintra,

    Edison Benedito da Silva Filho, Eduardo Costa Pinto

    (Organizadores) Rio de Janeiro : Ipea, 2015.

    594 p. : il.

    Inclui bibliografia.

    ISBN 978-85-7811-257-8

    1. Desenvolvimento Econmico. 2. Investimentos. 3. Inovaes

    Tecnolgicas. 4. China. I. Cintra, Marcos Antonio Macedo. II.

    Silva Filho, Edison Benedito da. III. Pinto, Eduardo Costa. IV.

    Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada.

    CDD 338.951

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  • SUMRIO

    APRESENTAO ........................................................................................7

    PREFCIO ...................................................................................................9

    INTRODUO ..........................................................................................15Marcos Antonio Macedo Cintra Edison Benedito da Silva Filho Eduardo Costa Pinto

    PARTE I INSERO PRODUTIVA

    CAPTULO 1POLTICAS DE FOMENTO ASCENSO DA CHINA NAS CADEIAS DE VALOR GLOBAIS ................................................................45Isabela Nogueira de Morais

    CAPTULO 2A INTEGRAO ECONMICA ENTRE A CHINA E O VIETN: ESTRATGIA CHINA PLUS ONE, INVESTIMENTOS E CADEIAS GLOBAIS ...............................................................................81Eduardo Costa Pinto

    CAPTULO 3RELAES ECONMICAS ENTRE CHINA E MALSIA: COMRCIO, CADEIAS GLOBAIS DE PRODUO E A INDSTRIA DE SEMICONDUTORES .....................................................127Esther Majerowicz Gouveia

    PARTE II INVESTIMENTO, ENERGIA E CONCENTRAO DE RIQUEZA

    CAPTULO 4INDUSTRIALIZAO, DEMANDA ENERGTICA E INDSTRIA DE PETRLEO E GS NA CHINA ..........................................................189Alexandre Palhano Corra

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  • CAPTULO 5DESIGUALDADES E POLTICAS PBLICAS NA CHINA: INVESTIMENTOS, SALRIOS E RIQUEZA NA ERA DA SOCIEDADE HARMONIOSA .........237Isabela Nogueira de Morais

    PARTE III FINANAS

    CAPTULO 6AS FINANAS GLOBAIS E O DESENVOLVIMENTO FINANCEIRO CHINS: UM MODELO DE GOVERNANA FINANCEIRA GLOBAL CONDUZIDO PELO ESTADO .................................................................277Leonardo Burlamaqui

    CAPTULO 7SISTEMA FINANCEIRO CHINS: CONFORMAO, TRANSFORMAES E CONTROLE ..........................................................................................335Ana Rosa Ribeiro de Mendona

    CAPTULO 8SISTEMA BANCRIO CHINS: EVOLUO E INTERNACIONALIZAO RECENTE ..................................................391Simone Silva de Deos

    CAPTULO 9O SISTEMA FINANCEIRO CHINS: A GRANDE MURALHA.................425Marcos Antonio Macedo Cintra e Edison Benedito da Silva Filho

    PARTE IV INOVAO TECNOLGICA E PODER MILITAR

    CAPTULO 10AS POLTICAS DE CINCIA, TECNOLOGIA E INOVAO NA CHINA .......................................................................493Jos Eduardo Cassiolato e Maria Gabriela von Bochkor Podcameni

    CAPTULO 11MODERNIZAO MILITAR NO PROGRESSO TCNICO E NA INOVAO INDUSTRIAL CHINESA ................................................521Nicholas M. Trebat e Carlos Aguiar de Medeiros

    CAPTULO 12A ASCENSO NAVAL CHINESA E AS DISPUTAS TERRITORIAIS MARTIMAS NO LESTE ASITICO ........................................................551Rodrigo Fracalossi de Moraes

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  • APRESENTAO

    A partir do programa das Quatro Modernizaes agricultura, indstria, tecnologia e exrcito , a China articulou uma estratgia de crescimento e de desenvolvimento socioeconmico, que visava gerar emprego e renda para sua populao e, simultaneamente, recuperar seu papel na economia e no cenrio geopoltico internacional. Para isso, o pas promoveu polticas nacionais de industrializao associadas ao movimento de expanso da economia global, liderada pelos Estados Unidos, e se transformou na segunda maior economia do mundo. Detentora da maior corrente de comrcio global (exportaes mais importaes) e das maiores reservas internacionais, bem como do segundo maior oramento militar do mundo, a China retirou mais de 600 milhes de pessoas da situao de pobreza, contribuindo para 70% das conquistas mundiais na rea de eliminao da pobreza.

    Este livro, elaborado pela equipe do Ipea em parceria com pesquisadores de diversas universidades e instituies brasileiras, procura identicar as polticas e as estratgias que possibilitaram esse desenvolvimento extraordinrio em um perodo de tempo to estreito. Busca ainda explicitar a dinmica deste novo centro nacional de acumulao de capital e de poder militar a China e seu entorno asitico. Visa tambm avanar na compreenso dos movimentos mais recentes criados exatamente pela dimenso adquirida por sua economia fbrica do mundo , pela introduo crescente do progresso tcnico e pela modernizao do aparelho militar, que permitem ao pas estender sua liderana na produo, no comrcio e nas nanas internacionais, desencadeando uma mudana estrutural no funcionamento da economia mundial, mas tambm na geopoltica regional e global.

    A discusso sobre esse deslocamento do centro de gravidade da economia e da poltica mundial para a regio sino-asitica pode ser bastante til para o debate e os desaos postos retomada do crescimento e do processo de desenvolvimento socioeconmico brasileiro. Sobre as cadeias produtivas, por exemplo, a experincia chinesa demonstra que possvel se integrar a elas por meio de polticas de atrao de investimento estrangeiro direto e reconstru-las a partir de sua prpria capacidade de expanso e de inovao tecnolgica endgena. Esta posio est explcita no discurso do primeiro-ministro Li Keqiang, no Frum Econmico Mundial de Davos, em 21 de janeiro de 2015: Precisamos construir cadeias globais de valor e aproveitar a oportunidade de uma nova revoluo tecnolgica.

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  • A denio de objetivos estratgicos geoeconmicos e geopolticos de curto, mdio e longo prazo mostrou-se crucial para se alcanar essa trajetria bem-sucedida de desenvolvimento interno e de projeo externa de seu poder econmico, nanceiro, poltico, diplomtico e militar.

    Jess SouzaPresidente do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada

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  • PREFCIOValdemar Carneiro Leo1

    O vertiginoso crescimento da economia chinesa nos ltimos trinta anos redesenhou o mapa do comrcio internacional e est redesenhando o de uxos de investimentos. Ainda no so comparveis, nem em escala nem em velocidade, os efeitos dessa dinmica econmica na distribuio do poder mundial, mas j se tornaram lugar-comum referncias mudana do principal eixo geopoltico do Atlntico para o Pacco. Outras economias emergentes tambm atuam nessas reconguraes, mas inegvel que o gigantismo da China sobressaia como o fenmeno de maioralcance.

    Os nmeros chineses so superlativos. A participao do produto interno bruto (PIB) da China quintuplicou de 2,5% do PIB mundial em 1983 para 13,5% em 2014. A participao chinesa nas exportaes mundiais decuplicou de 1,2% para 12,1% no mesmo perodo. O pas transformou-se na fbrica do mundo. Alou-se posio de segunda maior economia, de maior exportador, de segundo maior importador e de detentor das maiores reservas internacionais, atualmente na faixa de US$ 3,8 trilhes.

    A taxa de poupana da China parcialmente resultante de decincias do sistema previdencirio situa-se em torno de extraordinrios 50% do PIB, dos quais 13% revertem em obras de infraestrutura. Algumas destas, popularizadas pela mdia, no deixam de causar admirao: a maior ponte de travessia martima, o mais longo gasoduto, a transposio de gua do sul para o norte em um percurso de 2.400 quilmetros e a maior rede de trens de alta velocidade (14 mil quilmetros em 2024, mais que todo o sistema europeu), entre outras proezas da engenharia. Recentemente, a Comisso Nacional de Desenvolvimento e Reforma da China aprovou US$ 115 bilhes (R$ 299 bilhes) para 21 novos projetos, inclusive aeroportos, ferrovias e expanso da malha de alta velocidade.

    Nos ltimos cinco anos, a China tem sistematicamente recebido um volume de investimento direto estrangeiro superior a US$ 100 bilhes anuais (US$ 120 bilhes em 2014), reexo de seu poder de atrao como mercado e como base de produo para o mundo. O pas est, no entanto, na iminncia de tornar-se exportador lquido de capital, caso se concretizem, neste ano, os prognsticos de

    1. Embaixador do Brasil na Repblica Popular da China.

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  • 10 China em Transformao: dimenses econmicas e geopolticas do desenvolvimento

    que os investimentos chineses no exterior podem transpor a marca de US$ 130 bilhes. Concentrados primeiramente em indstrias extrativas, esses investimentos no tardaram a expandir-se para fuses e aquisies na Europa e nos Estados Unidos, em busca de marcas e de tecnologia. um processo que se soma a outros, alimentados internamente, e contribui para a ascenso do pas nas cadeias globais de valor.

    visvel a participao crescente de produtos de maior valor agregado nas vendas externas chinesas. A exportao de produtos e servios de alta tecnologia, como o so os equipamentos de telecomunicaes e a construo de ferrovias que operam trens de alta velocidade, um dos principais vetores que tm entre seus alvos a modernizao da infraestrutura de pases em desenvolvimento, na sia, na frica e na Amrica Latina. O Banco Asitico de Investimento em Infraestrutura, recm-lanado, inclusive com a participao do Brasil como um dos membros fundadores, no deixar de ser um elemento a mais nessa dinmica, no por conferir privilgios China, mas porque agilizar o lanamento de novos projetos em uma regio em que a competitividade chinesa desfruta de vantagem natural.

    Em 2014, a partir das decises tomadas pela Terceira Plenria do Comit Central do Partido Comunista, a China deu incio a um profundo processo de reforma. O partido reconheceu que seu modelo de crescimento, calcado em investimentos macios (infraestrutura, capital xo e incorporao imobiliria), era insustentvel. A desacelerao da economia global e o encolhimento dos mercados externos colocaram em evidncia vulnerabilidades que h muito vinham sendo apontadas: decises de investimento sem adequada anlise custo-benefcio, ameaa de uma bolha imobiliria de propores gigantescas, endividamento generalizado dos governos locais por meio de ttulos de dvida pblica de lastro duvidoso e um passivo ambiental preocupante.

    As reformas que passaram a ser implementadas visam a uma mudana radical: a transio de uma economia articulada em torno do binmio investimento-exportaes para um modelo que ter de encontrar sua fora motriz no crescimento da renda, no consumo privado, nos servios e na recuperao do meio ambiente. As metas de crescimento anual de dois dgitos cedero lugar a taxas em torno de 7%. o que vem sendo chamado de o novo normal chins. O governo almeja, para o nal desta dcada, uma sociedade moderadamente prspera (nas palavras do presidente Xi Jinping) e uma economia mais sintonizada com as foras de mercado. Qualitativamente, a China ter, no novo gurino, uma produo menos movida pelo uso extensivo dos fatores de produo e mais pelo uso intensivo da inovao.

    Essa metamorfose, que no seria trivial em nenhuma economia, encontrar obstculos de escala comparvel s dimenses do pas. Entre tantos outros,

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  • 11Prefcio

    destaca-se a difcil calibragem que o governo ter de fazer para conciliar, de um lado, ajustes na produo, saneamento nanceiro e queda na taxa de crescimento e, de outro, a imperiosa necessidade de criar 10 milhes de postos de trabalho por ano nas cidades. este o nmero de migrantes chineses que anualmente deixa a zona rural para somar-se populao urbana. A China se lana em um projeto de autorreinveno semelhante ao que foi deagrado por Deng Xiaoping em 1978, que gerou o gigante que a est.

    O Brasil sentiu, de forma benigna, os efeitos do avassalador crescimento chins. Desde 1974, quando estabelecidas as relaes diplomticas entre os dois pases, foi sendo construdo um vasto conjunto de arranjos e acordos de cooperao em diversas reas, inclusive em cincia e tecnologia, em que o exemplo mais eloquente o programa espacial sino-brasileiro, responsvel pelo lanamento de trs satlites de observao de recursos terrestres (China-Brazil Earth Resources Satellite CBERS). A relao comercial mostrou-se, de longe, a mais dinmica. As exportaes brasileiras para a China saltaram de US$ 1 bilho em 2000 para US$40,6 bilhes em 2014, ao mesmo tempo que as importaes de produtos chineses pelo Brasil passaram de US$ 1,2 bilho para US$ 37,3 bilhes. Em 2009, a China tornou-se nosso principal parceiro comercial. Em 2014, quando se celebrou o quadragsimo aniversrio do estabelecimento de relaes diplomticas, o presidente Xi Jinping realizou uma visita de Estado ao Brasil, e os dois governos rearmaram a vontade de seguir expandindo, quantitativa e qualitativamente, esse relacionamento.

    Embora inegveis os benefcios que ambas as economias tm auferido do intercmbio comercial, o Brasil tem reiterado seu objetivo de desenvolver com a China uma relao comercial menos assimtrica. Os nmeros revelam com clareza a assimetria. As exportaes brasileiras de produtos bsicos, especialmente soja, minrio de ferro e petrleo, compem, dependendo do ano, algo entre 75% e 80% da pauta, ao passo que as importaes brasileiras consistem, aproximadamente, em 95% de produtos industrializados chineses, que vo desde os mais variados bens de consumo at mquinas e equipamentos de alto valor. A venda de avies da Embraer China, com cifras expressivas tanto no segmento de jatos regionais como no de jatos executivos, uma das pouqussimas excees regra. Corrigir esse padro de comrcio no depende apenas da vontade dos governos. Ser preciso que outros atores do setor produtivo brasileiro encontrem o caminho que lhes permita alcanar o mercado chins com a competitividade necessria.

    Na vertente dos investimentos diretos, mesmo sem exibir o dinamismo do comrcio bilateral, chama ateno o ritmo de crescimento da presena da China no mercado brasileiro. Neste caso, os nmeros no so precisos porque muitas das operaes de investimento direto realizam-se de forma triangular, ou seja, capitais chineses ingressam no Brasil mas se originam de praas nanceiras fora da

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  • 12 China em Transformao: dimenses econmicas e geopolticas do desenvolvimento

    China e acabam sendo registrados como investimentos de outros pases. As cifras referentes a capitais diretamente originrios da China representam apenas parte de um conjunto maior.

    O Censo de Capitais Estrangeiros, levado a cabo pelo Banco Central do Brasil (BCB) para o perodo 2010-2012, tem procurado minimizar a distoro causada por parasos scais e centros nanceiros no registro desses investimentos, estabelecendo distino entre investidor imediato e investidor nal. O critrio de investidor nal considera o pas de origem do investimento a partir da cadeia de controle do grupo econmico. Por essa metodologia, os investidores chineses acumulavam, em 2012, estoque de US$ 10,2 bilhes sob a forma de participao no capital de empresas (dos quais US$ 8,4 bilhes em indstrias extrativas e US$ 137 milhes na indstria de transformao) e US$ 1,5 bilho em emprstimos intercompanhias.

    O Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC) tambm realizou esforo de coleta e sistematizao das informaes e chegou a nmeros bastante superiores. Entre janeiro de 2007 e junho de 2012, as empresas chinesas anunciaram sessenta projetos de investimento no pas, somando US$ 68,5 bilhes. Cotejando essas cifras com informaes colhidas com as prprias empresas, o CEBC estimou que US$ 24,4 bilhes foram efetivamente investidos. O volume aplicado em 2013, ltimo dado disponvel, teria sido de US$ 3,6 bilhes, totalizando, portanto, US$28 bilhes nos ltimos sete anos. O nmero inferior ao que publica o American Enterprise Institute (China Global Investment Tracker), que calcula o total em US$ 33,2 bilhes. O que importa notar, de todo modo, que embora o estoque de investimento chins ainda se situe abaixo daqueles de investidores tradicionais, acumulados ao longo de dcadas, o uxo anual de capitais da China vem se acelerando e atualmente j coloca o pas entre os dez principais investidores no Brasil. Mantido esse ritmo, a posio chinesa no ranking deve continuar a subir, sobretudo se houver investimentos em infraestrutura.

    Na outra ponta, so ainda modestos os investimentos brasileiros na China, no chegando a alcanar US$ 400 milhes, de acordo com o Censo do BCB (Capitais Brasileiros no Exterior) para o perodo 2007-2013. O caso mais emblemtico , mais uma vez, o da Embraer, que produz jatos executivos em joint venture com empresa chinesa. preciso, contudo, lembrar que o investimento estrangeiro enfrenta restries impostas pela legislao local, sendo-lhe proibido ou limitado o acesso em nmero signicativo de setores. Em certos casos, a autorizao para investir impe que o investidor estabelea parcerias com empresas chinesas. No se trata, claro, de uma discriminao contra o capital brasileiro, visto que o arcabouo regulatrio aplica-se a capital de qualquer origem. No entanto, a regulamentao brasileira bem mais aberta que a chinesa, com reduzidssimo nmero de setores sujeitos a restries, como seria de se esperar em um pas que deseja manter-se como

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  • 13Prefcio

    um dos mais importantes centros de atrao de capital. Maior isonomia entre as duas regulamentaes chinesa e brasileira somente seria possvel no mbito de um acordo bilateral de investimentos, nos moldes do que a China celebrou com a Austrlia ou daquele que vem negociando com os Estados Unidos. No quadro das reformas em curso, o governo chins est empenhado em ampliar a gama de setores de acesso desimpedido ao investidor estrangeiro, inclusive aqueles em que o capital externo incentivado.

    As reformas que a China comea a empreender suscitam indagaes sobre seus desdobramentos na interao econmica com o Brasil. O que valeu para o passado pode assumir contornos diferentes no futuro. Mas os efeitos de uma China movida por novo padro de crescimento so um ponto de interrogao no apenas para a economia brasileira, mas tambm para a economia global. A acentuada queda dos preos das commodities na segunda metade de 2014, que persiste nos primeiros meses de 2015, pode ser um sinal das reacomodaes que esto por vir.

    Este livro, concebido pela equipe do Ipea, somente foi possvel devido contribuio de acadmicos de diversas universidades brasileiras. Ao discutir caractersticas do modelo de desenvolvimento chins e as rpidas transformaes ocorridas no socialismo de mercado, a obra se prope a estimular o debate entre todos os que se interessam pelo projeto de desenvolvimento do Brasil, naquilo que decorre de nossa incontornvel interao com o mundo alm-fronteiras, em particular com pases da dimenso e peso especco da China.

    Pequim, abril de 2015.

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  • INTRODUOMarcos Antonio Macedo Cintra1

    Edison Benedito da Silva Filho2

    Eduardo Costa Pinto3

    Uma economia nacional um espao poltico transformado pelo Estado; em virtude das necessidades e inovaes da vida material, num espao econmico coerente, unicado, cujas atividades podem encaminhar-se em conjunto numa mesma direo.

    Fernand Braudel (1985, p. 65).

    Aps dcadas de rpido crescimento e desenvolvimento econmico, o produto interno bruto (PIB) da China, em termos de paridade do poder de compra, alcanou US$ 18,9 trilhes (US$ 11,2 trilhes a preos correntes) em 2014. Com isso, superou o dos Estados Unidos, de US$ 18,1 trilhes (em termos de paridade do poder de compra e a preos correntes), segundo o Fundo Monetrio Internacional (FMI, 2015). Naturalmente, como a populao chinesa mais de quatro vezes maior, seu PIB per capita atingiu US$ 11,9 mil, em termos de paridade do poder de compra (US$ 6,9 mil a preos correntes), menos de um quarto do registrado pelos Estados Unidos (US$ 53 mil). De todo modo, a clere trajetria de desenvolvimento entendido como um processo contnuo de mudana estrutural promovida pela interconexo entre acumulao de capital, progresso tcnico e evoluo institucional da China no tem paralelo histrico (Medeiros, 2013). Compreender e dimensionar as transformaes desta sociedade de mais de 1,4 bilho de habitantes, que se percebe a si mesma como uma civilizao superior, homognea e com pelo menos 2.300 anos de existncia, no constitui uma tarefatrivial.

    A estratgia militar, de aproximao com os Estados Unidos e de afastamento da Unio das Repblicas Socialistas Soviticas (URSS), e a estratgia econmica, consolidada no programa das quatro modernizaes agricultura, indstria, tecnologia e exrcito , implementadas por Deng Xiaoping, a partir de 1978, fortaleceram o Estado unitrio e centralizado chins. Este recuperou sua

    1. Tcnico de planejamento e pesquisa da Diretoria de Estudos e Polticas Macroeconmicas (Dimac) do Ipea. E-mail: [email protected]. Tcnico de planejamento e pesquisa da Diretoria de Estudos e Relaes Econmicas e Polticas Internacionais (Dinte) do Ipea. E-mail: [email protected]. Professor de economia poltica do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); e pesquisador do Programa de Pesquisa para o Desenvolvimento Nacional (PNPD) na Dinte do Ipea. E-mail: [email protected].

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  • 16 China em Transformao: dimenses econmicas e geopolticas do desenvolvimento

    condio milenar e imperial (Imprio do Meio) de guardio da unidade e do interesse universal do territrio e da civilizao chinesa. Para Deng Xiaoping, o desenvolvimento do pas deveria estar sempre a servio da sua poltica de defesa.

    Nesse movimento, o Partido Comunista Chins (PCC), composto por 84 milhes de membros, com o controle absoluto sobre o sistema poltico, restaurou a legitimidade anteriormente personicada no imperador. O PCC prolongou e radicalizou uma tradio milenar, ao criar uma espcie de dinastia mandarim, que segue governando a China segundo os mesmos preceitos morais confucianos do perodo imperial (Fiori, 2013a).4 Isto requer um alinhamento dos interesses das burocracias sobre o bem pblico comum, ou seja, a estabilidade poltica e a garantia de uma renda real crescente e de melhores condies de vida para a populao. O Estado deve dispor de uma estratgia e ter por objetivo o desenvolvimento. A autoridade poltica deve gerir a economia de forma a produzir mais riqueza, de maneira cada vez mais ecaz, para construir um pas moderno, rico e poderoso. As polticas macroeconmica, industrial, comercial, de cincia e tecnologia, e de defesa devem estar a servio da grande estratgia social e nacional, e da luta pela conquista ou reconquista de uma posio internacional autnoma e preeminente. A planicao estratgica visa harmonia, vale dizer, ao equilbrio de foras. Nesse sentido, os interesses privados (ou capitalistas) no devem ser poderosos o suciente para ameaar a supremacia incontestvel do Estado, que mantm um amplo conjunto de empresas pblicas e regula rigorosamente diversas esferas econmicas e as relaes com o exterior. Por conseguinte, os mecanismos de mercado a taxa de juros, a taxa de cmbio, a tributao, os preos so um instrumento e no um m em si mesmo; e a abertura econmica assume a condio de eccia que conduz a uma diretriz operacional, qual seja, alcanar e ultrapassar os concorrentes estrangeiros (Li, 2015a; Aglietta e Bai, 2012, p. 17; Kroeber, 2011, p. 2).

    As reformas promoveram e continuam a promover a transformao conjunta das estruturas socioeconmicas e das instituies. Em um processo recorrente, elas se retroalimentam de seus prprios xitos e contradies, transmutando-se ao longo do percurso. Nesse sentido, o signicado das reformas no teleolgico, deve ser compreendido como imanente prtica histrica (Aglietta e Bai, 2012, p. 18). Graas permanncia da autoridade poltica personicada no PCC , as reformas so graduais, orientadas por uma viso de longo prazo, avaliadas de forma pragmtica e implementadas de modo experimental, o que pressupe um processo de aprendizado com avanos e recuos contnuo. E, exatamente, porque se retroalimentam de seus prprios xitos e contradies, as crises representam

    4. Kissinger (2011) mostra que o imprio chins foi gerido, durante sculos, por um mandarinato meritocrtico e homogneo, que se consolidou durante a dinastia Ming (1368-1644), e que sempre se pautou pela filosofia moral de Confcio (551 a.C.-479 a.C.), com sua concepo da virtude e do compromisso tico dos governantes com o interesse universal do povo e da civilizao chinesa. Ver tambm Aglietta e Bai (2012), Sinedino (2012) e Britto e Silva Filho (2014).

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  • 17Introduo

    momentos de transies de uma fase para outra, contribuindo para o surgimento de novas formas ou novos modelos de organizao e de gesto. Em um perodo de crescimento mais lento, estas contradies se explicitam em desequilbrios e tensespolticas e sociais que ameaam a harmonia. At que um novo compromisso poltico-social seja conformado, o poder eventualmente passa de um grupo de interesse para outro. Os grupos, no entanto, permanecem unidos aos objetivos gerais: a legitimidade poltica, a integridade do Estado unitrio e o crescimento da renda da populao. Em suma, o Estado chins e, por conseguinte, o PCC tem se mostrado altamente exvel e inovador, com uma extraordinria capacidade de se autocorrigir e de se reinventar (Fiori, 2013a).

    No momento atual, apreende-se que as contradies do regime de crescimento desencadeiam um novo perodo de transio interna. A despeito da desacelerao, a economia chinesa permanece uma das mais dinmicas do mundo taxa de crescimento de 7,4% em 2014 e continua a criar de 12 milhes a 13 milhes de postos de trabalho urbanos ao ano. Porm, com o avano da taxa de investimento de 40% do PIB para 47% do PIB, o crescimento ca desequilibrado gera capacidade ociosa em inmeros setores produtivos e dependente da construo de gigantescas obras de infraestrutura, da expanso do mercado imobilirio, do endividamento das provncias e dos governos locais, bem como da elevada alavancagem de alguns segmentos do setor bancrio e no bancrio. Busca-se, ento, um novo regime de crescimento sustentvel, ancorado em um crescimento menos intensivo em capital e em energia, bem como um novo contrato social para a reduo das desigualdades sociais e regionais, e a implementao de uma maior cobertura nos sistemas de sade pblica e de previdncia. A proviso de bens pblicos universais, o desenvolvimento de uma urbanizao e de uma industrializao com menor impacto sobre o meio ambiente, e a ampliao da renda e do consumo da populao so os pilares do planejamento estratgico que visam transformar ou seja, reformar o regime de crescimento nos prximos anos.5 Evidentemente, em um processo de transio emergem conitos de interesses e geram-se repercusses polticas para a estrutura do governo. Nas palavras do presidente Xi Jinping, em entrevista (Safatle e Rittner, 2014, grifo nosso):

    provado pelos fatos que, sem reforma e abertura, no teramos a China de hoje, para j no dizer do seu futuro. Por meio de reformas, temos resolvido uma srie de problemas importantes. Daqui para frente, insistiremos em usar o mesmo instrumento para superar as diculdades e desaos no nosso caminho. Temos denido a meta de dois centenrios. Isto , duplicar at 2020 [quando o Congresso Nacional do Povo celebra seu centenrio] o PIB e a renda per capita na base de 2010 e consumar a construo integral de uma sociedade modestamente prspera, e culminar em meados do presente sculo [2049, quando a Repblica Popular da China comemora

    5. Ver, entre outros, WB, DRC e PRC (2012).

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  • 18 China em Transformao: dimenses econmicas e geopolticas do desenvolvimento

    seu centenrio] a transformao do nosso pas num pas socialista moderno, prspero, poderoso, democrtico, civilizado e harmonioso, concretizando o sonho chins de grande rejuvenescimento da nao chinesa.6 Estamos no processo de aprofundar de maneira integral as reformas, aprimorar e desenvolver o sistema socialista com peculiaridades chinesas e promover a modernizao do sistema e capacidade da governana do pas. Vamos implementar de modo coordenado as reformas dos sistemas econmico, poltico, cultural, social, de civilizao ecolgica e construo do partido.

    Simultaneamente a este vertiginoso dinamismo interno, a China expande sua capacidade de projetar poder econmico, nanceiro, poltico, diplomtico e militar. Assim, ocupa posies cada vez mais relevantes no tabuleiro geoeconmico e geopoltico asitico e global. As relaes da China com o resto do mundo so redenidas, o que desencadeia um processo de transio internacional ou uma recongurao da ordem mundial.7 Pequim permanece um ator relevante e busca ampliar sua inuncia nas instituies internacionais existentes, mas tambm promove e nancia estruturas paralelas its own trade deal, its own development bank and its own regional-security grouping, conforme a revista The Economist (Bridge..., 2014). O objetivo deste esforo ampliar sua autonomia para sustentar a capacidade de defesa interna perante as ameaas estrangeiras e expandir sua esfera de inuncia para alm da sia. Assim, participa das organizaes internacionais e regimes multilaterais existentes e constri estruturas suplementares em parte complementares, em parte competitivas , procurando reorganizar a ordem internacional, a partir de suas perspectivas e de seus interesses estratgicos (Heilmann et al., 2014, p. 1). Simultaneamente, consolida mudanas estruturais de longo prazo. Primeiro, amplia o comrcio com os pases em desenvolvimento da sia e do resto do mundo, e inversamente, reduz relativamente o comrcio com o Japo e com o Ocidente. Segundo, neste movimento de aprofundamento dos vnculos comerciais e de investimento com os pases em desenvolvimento, moderniza o contedo tecnolgico das suas exportaes e de suas empresas.

    6. No contexto da poltica externa, o Chinese dream the great rejuvenation of the Chinese people codifica a restaurao de uma posio histrica dominante da China na sia (Miller, 2014, p. 3). Fiori (2013b) argumenta que o Imprio Han (...) estendeu sua influncia a Coreia, Monglia, Vietn e sia Central, chegou ao Mar Cspio e inaugurou a famosa rota da seda. Foi neste perodo que o imprio chins concebeu o seu sistema hierrquico-tributrio de relacionamento com os povos vizinhos que aceitassem manter sua autonomia em troca do reconhecimento da superioridade da civilizao chinesa. Um modelo de relacionamento que se transformou em uma rotina milenar, dentro do mundo sinocntrico, at meados do sculo XIX. Argumenta ainda que, atualmente, a China estaria reconstruindo o seu antigo sistema hierrquico-tributrio, dentro e fora do antigo mundo sinocntrico. Segundo a revista The Economist (Bridge, 2014, grifo nosso): In China even a handshake is an expression of power. When Xi Jinping met Barack Obama in Beijing this week at the Asia-Pacific Economic Co-operation (APEC) summit, Mr Xi stood on the right, his body open towards the cameras in an attitude of confident strength. The visitor was required to approach him, as if paying tribute, from the left, shoulder defensively towards the photographers. Ver tambm Kissinger (2011).7. Para um panorama da participao brasileira no reordenamento global, ver Hirst (2014). Evidentemente, as crises na Ucrnia e no Oriente Mdio requerem uma concentrao de esforos dos Estados Unidos e favorecem os movimentos geopolticos da China. No se deve esquecer que a crise na Ucrnia reaproximou Moscou de Pequim. Em maio de 2014, as estatais Gazprom e China National Petroleum Corporation assinaram um acordo de US$ 400 bilhes para o fornecimento de energia (38 bilhes de metros cbicos de gs para a China por ano) por trinta anos. A parceria estratgica China-Rssia estende-se para alm do campo da energia, envolvendo as finanas (corporaes de energia e bancos estatais russos operando em Hong Kong) e a tecnologia militar.

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    As nanas so, claramente, um instrumento do poder poltico que a China utiliza para impulsionar e proteger sua economia, garantir o suprimento de commodities agrcolas, minerais e energticas e adquirir tecnologias cruciais para seu desenvolvimento econmico e militar. A moeda e o sistema nanceiro chins permanecem relativamente imunes instabilidade do mercado monetrio e nanceiro internacional. Todavia, delineia-se um movimento de ampliao do uso de sua moeda o renminbi (RMB)8 em operaes de comrcio e de investimento externo. Segundo a plataforma de pagamento global, Sociedade para Telecomunicaes Financeiras Interbancrias Mundiais (Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication Swift), o renminbi se tornou a quinta moeda mais utilizada em dezembro de 2014. A moeda chinesa respondeu por 2,17% das operaes de pagamento internacionais; antecedida pelo iene japons, que foi usado em 2,69% das transaes; pela libra esterlina, em 7,92%; pelo euro, em 28,30%; e pelo dlar, em 44,64% (Noble, 2015).9 Entre outras aes de cooperao nanceira em favor da internacionalizao do renminbi, destaca-se o que segue.

    1) Acordos de troca direta de renminbi por dez outras moedas.

    2) Tratados de compensao de operaes internacionais de renminbi com onze centros nanceiros Londres, Frankfurt, Paris, Luxemburgo, Toronto, Doha, Sydney, Seul, Macau, Taiwan e Cingapura.

    3) Autorizao de sete cotas especcas de Investidor Institucional Estrangeiro Qualicado em Renminbi (RMB Qualied Foreign Institutional Investor RQFII), que permite investidores institucionais estrangeiros utilizar os fundos offshore de renminbi para investir no mercado de capitais chins e no mercado interbancrio de ttulos.

    4) Acordos de troca (swap) de moedas com 26 bancos centrais.

    5) Um sistema de pagamento independente para as operaes em renminbi China International Payment System (Cips) , uma alternativa plataforma Swift. Por este sistema, bancos fora da China podero realizar compensao em renminbi diretamente com o Banco Central da China (Peoples Bank of China PBC).10

    8. RMB a abreviao da moeda chinesa renminbi moeda do povo , cuja unidade bsica o iuane. CNY o cdigo monetrio oficial da moeda chinesa negociada no mercado nacional, oficialmente lanada em 1949 pela Repblica Popular da China. Em 2009, comeou a funcionar um mercado de renminbi em Hong Kong, com o cdigo monetrio CNH.9. Enfatiza-se que as empresas chinesas esto fortemente expostas ao dlar: mais de 80% da dvida externa registrada esto denominados em dlares ou dlares de Hong Kong; apenas 10%, em euros ou ienes. Ao mesmo tempo, 75% das operaes de pagamentos relacionadas ao comrcio exterior ocorrem em dlares ou dlares de Hong Kong; 22% em renminbi; e apenas 3% em euros ou ienes (Long, 2015b, p. 2). Para mais detalhes sobre as polticas de internacionalizao do renminbi ver BIS (2013), Cintra e Martins (2013), Valle (2012), Cohen (2012), Eichengreen (2011), Subacchi (2010).10. Para outras informaes sobre o tema, ver Hooley (2013, p. 309).

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    Alm disso, procura-se transformar a praa nanceira de Xangai em um centro nanceiro global. Alm do mercado de aes, j esto em operao mercados futuros de petrleo, gs natural e produtos petroqumicos, e uma plataforma de negociao de ouro. Desde novembro de 2014, comeou a funcionar a conexo entre a Bolsa de Valores de Xangai e a de Hong Kong (cross-border share trading scheme). Com isso, os investidores estrangeiros podem transacionar aes de 560 companhias chinesas aquelas que compem os ndices SSE 180 e SSE 380, da Bolsa de Valores de Xangai por meio de corretoras de Hong Kong. Por seu turno, os investidores chineses podem transacionar aes em Hong Kong de empresas componentes dos ndices Hang Seng Composite Large Cap (78) e Small Cap (163) por meio de corretoras domsticas. O volume agregado das operaes foi denido em RMB 300 bilhes ou US$ 48 bilhes, calculado no nal do dia. Trata-se de mais uma etapa da abertura da conta de capital e da internacionalizao do sistema nanceiro chins. Como sugere Howie (2014, p.3): the biggest change is for foreign investors in domestic Chinese stocks, who will face a radically simpler and more open regime than they do now. Consolida-se tambm um sistema de pagamento nacional e internacional o carto de crdito e dbito bancrio UnionPay ou China UnionPay , j aceito em 141 pases (inclusive no Brasil, dada a associao com o Banco Ita) e emitido em trinta pases. Desde 2002, a empresa j emitiu mais de 4,5 bilhes de cartes (Ninio, 2015).

    A partir de junho de 2013, comeou a funcionar uma agncia de classicao de risco de crdito Universal Credit Rating Group , projeto desenvolvido por trs agncias (Dagong Global Credit, RusRating e Egan-Jones Rating). Sediada em Hong Kong, a nova agncia tem o objetivo de solidificar um sistema de classicao de risco asitico. Os pases-membros do BRICS Brasil, Rssia, ndia, China e frica do Sul negociaram tambm um Arranjo Contingente de Reserva, no valor de US$ 100 bilhes, para o qual a China contribui com US$ 41 bilhes; Brasil, Rssia e ndia, com US$ 18 bilhes cada um; e frica do Sul, com US$ 5 bilhes.11 O acordo similar Iniciativa Chiang Mai de troca de moedas entre os pases asiticos (Asean+3),12 no montante de US$ 240 bilhes. Para esta iniciativa, a contribuio da China equivale a 32% do total, fatia idntica do Japo. A Coreia do Sul responde por 16% das contribuies, e os pases da Asean, pelos 20% restantes. O acordo do BRICS, assim como a iniciativa asitica, possui

    11. O acesso aos recursos est sujeito a limites mximos iguais a um mltiplo do compromisso individual de cada pas, estipulado da seguinte forma: i) a China ter um multiplicador de 0,5; ii) o Brasil, a Rssia e a ndia tero um multiplicador de 1; e iii) a frica do Sul ter um multiplicador de 2. O acesso a 30% do mximo para cada pas est sujeito apenas concordncia dos pases-membros. O acesso aos 70% restantes do mximo est sujeito a evidncias da existncia de um acordo em curso entre o FMI e o pas demandante, que envolva um compromisso do FMI em prover financiamento para a Parte Requerente com base em condicionalidades, bem como o cumprimento pela parte requerente dos termos e condies do acordo (Brasil, 2014a). Para outras informaes, ver Griffith-Jones, Fritz e Cintra (2014a).12. A Associao das Naes do Sudeste Asitico (Association of Southeast Asian Nations Asean) formada por Tailndia, Filipinas, Malsia, Cingapura, Indonsia, Brunei, Vietn, Mianmar, Laos e Camboja.

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  • 21Introduo

    dispositivos que regulam o acesso aos recursos pelos demandantes: at determinada quantia, o acesso livre, bastando haver a solicitao; acima deste valor, torna-se necessrio fornecer algum tipo de garantia vale dizer, um acordo com o FMI.

    A China promove tambm a transformao de um histrico centro nanceiro internacional, Hong Kong, para projetar o seu poder monetrio e nanceiro ao restante do mundo. Como a moeda chinesa no plenamente conversvel, o governo utiliza Hong Kong com a criao de um mercado offshore de renminbi para no residentes a m de permitir que bancos, corporaes e investidores institucionais estrangeiros detenham depsitos, tomem emprstimos (comerciais e emisso de bnus) e liquidem transaes comerciais em renminbi, sobretudo entre os pases do entorno asiticos. O mercado de renminbi em Hong Kong (CNH) ainda bastante incipiente e sujeito a uma variao considervel da liquidez; portanto, apresenta alta volatilidade.13 De todo modo, o governo chins est determinado a expandir o uso do renminbi no exterior, enquanto exibiliza o mercado de cmbio domstico. A mudana no regime de gesto da taxa de cmbio crucial. A partir de abril de 2014, o PBC passa a orquestrar uma banda diria de utuao de 2% para cima e para baixo, com a preocupao de evitar novas desvalorizaes acentuadas do renminbi, pois Chinas regional and global geostrategic goals require it to maintain a strong currency (Long, 2015b, p. 1), estvel e que opere como ncora para as moedas regionais. Finalmente, o governo chins pleiteia a introduo do renminbi na cesta de moedas que compem os Direitos Especiais de Saque (Special Drawing Rights SDRs), um ativo de reserva cambial complementar mantido pelo FMI. A incluso representaria um reconhecimento simblico de que o renminbi seria verdadeiramente uma moeda-reserva internacional (Zhang e Shi, 2015, p. 2).14

    A conversibilidade do renminbi pressupe o aprofundamento do mercado domstico de ttulos de dvida; a capacidade de grandes investidores institucionais nacionais gerirem a poupana das famlias em carteiras diversicadas de ativos; e a acomodao de investidores estrangeiros nos mercados de ativos nanceiros domsticos em condies de riscos gerenciveis. Poder pressupor tambm a vontade poltica dos pases do Leste Asitico de lanar uma iniciativa mais ambiciosa que a Chiang Mai e criar uma rea de cooperao monetria que apoie a internacionalizao das moedas nacionais da regio. Uma internacionalizao das moedas e uma cooperao regional a m de preservar a paridade das taxas de

    13. Alm do centro offshore de renminbi em Hong Kong que concentrava 55% dos depsitos em dezembro de 2014, prosperaram outros, tais como Macau, Taiwan, Cingapura e Coreia do Sul. Todos estes centros acumulavam RMB 1,8 trilho em depsitos, o equivalente a 1,5% dos depsitos na China. Provinham de uma sada lquida de renminbi dados os pagamentos das importaes realizadas pelas companhias chinesas (Long, 2015a). Ver tambm Funke et al. (2015).14. Na hiptese de entrada do renminbi na composio dos SDRs, provavelmente, a moeda chinesa deixar de estar indexada (pegged exchange rate) ao dlar, ficando mais voltil, dada a maior determinao da taxa de cmbio pelo mercado e a menor interveno do banco central. Uma reviso sobre moedas componentes dos SDRs pode ocorrer aps 30 de setembro de 2016. Na reviso de 2010, a participao das moedas era: dlar (41,9%), euro (37,4%), libra esterlina (11,3%) e iene (9,4%).

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    cmbio cruzadas (cross-exchange rates) reduziriam substancialmente a possibilidade de desvalorizaes competitivas. Alm disso, facilitariam a integrao dos pases vizinhos em sua economia domstica e promoveriam a disseminao do renminbi pela regio mais dinmica do mundo (Aglietta e Bai, 2012, p. 211).

    Fiel ao mtodo gradualista, o governo vem aprofundando as conexes do sistema nanceiro domstico com o internacional passo a passo, com mudanas incrementais graduais e cumulativas. Hong Kong e Xangai se transformam em reas de experimentao sobre os impactos da progressiva liberalizao do renminbi e da abertura da conta de capital. Simultaneamente, fortalece-se a posio do PBC, que busca acelerar a reforma do sistema nanceiro domstico, sobretudo a precicao dos instrumentos nanceiros e a gesto de riscos, uma vez que as instituies chinesas, ao serem confrontadas por prticas internacionais, podem mudar seu comportamento e tornarem-se mais competitivas. Isto permitiria tambm aos investidores institucionais chineses gerir portflios diversicados, sendo capazes de exportar capitais e conter as presses por acumulao de reservas em dlar. Assim, as reformas dos mercados nanceiros nacionais e a abertura da conta de capital so mudanas estruturais das nanas chinesas, que procuram adapt-las para a nova fase econmica do pas e do mundo. Salienta-se, no entanto, que o aprofundamento da internacionalizao de um sistema nanceiro em uma economia com elevada taxa de investimento baseada em crdito bancrio e em processo de desacelerao dever requerer um monitoramento ainda mais no das variveis macroeconmicas juros, cmbio e sco , e dos instrumentos macroprudenciais requerimentos de capital das instituies nanceiras, grau de alavancagem dos agentes nanceiros e no nanceiros, grau de liquidez dos mercados etc. , levando a reavaliaes e revises renitentes na forma e na velocidade da liberalizao da conta de capital pelas autoridades econmicas.

    No se pode deixar de mencionar ainda a criao do Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS, com sede em Xangai e capital total de US$ 100 bilhes, em julho de 2014. Inicialmente, sero subscritos US$ 50 bilhes, de forma paritria entre os cinco scios. O banco ter foco no nanciamento da infraestrutura (estradas, eletricidade, ferrovias etc.) dos pases em desenvolvimento (nos dois primeiros anos, os nanciamentos sero limitados aos cinco pases-membros).15 Em outubro de 2014, ocorreu o lanamento do Banco Asitico de Investimento em Infraestrutura (Asian Infrastructure Investment Bank). Sediado em Pequim, o banco intergovernamental tambm ter capital de US$ 100 bilhes, dos quais US$ 29,8 bilhes sero subscritos pela China, US$ 8,4 bilhes pela ndia e US$ 6,5 bilhes

    15. O primeiro escritrio regional ser estabelecido na frica do Sul. A ordem de rotatividade na presidncia da nova instituio ser: ndia, Brasil, Rssia, frica do Sul e China, com permanncia de cinco anos para cada pas no cargo (Brasil, 2014b). Para outras informaes, ver Griffith-Jones (2014) e Griffith-Jones, Fritz e Cintra (2014b).

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    pela Rssia.16 Com 57 pases-membros, ter como objetivo nanciar projetos de infraestrutura na regio.17 O banco intergovernamental procura dissipar os temores dos pases fronteirios de uma excessiva dependncia nanceira da China. Os projetos nanciados pelas instituies de desenvolvimento plurilaterais ampliam a conana nos contratos celebrados pelas empresas chinesas mais que as operaes de emprstimos bilaterais.18 O nanciamento de projetos de infraestrutura por meio do novo banco dotar a integrao asitica de novo impulso, e a China gozar de acesso privilegiado a recursos naturais estratgicos, alm de potenciais mercados consumidores. Estas novas instituies multilaterais de crdito as primeiras no campo nanceiro internacional que escapam inteiramente aos desgnios das nanas pblica e privada anglo-americanas, mesmo sem confront-las ampliam o poder nanceiro chins.19 Elas permitem, por exemplo, o estabelecimento de novas prioridades, princpios e procedimentos para a assistncia ao desenvolvimento nacional, regional e multilateral. Enm, Pequim vai tecendo uma rede multilateral de nanciamento e de pagamento em renminbi, uma estrutura internacional paralela, formada por uma srie de organizaes e de mecanismos nanceiros.

    Na esfera de comrcio e investimentos, a China assinou onze acordos bilaterais de livre comrcio (com Paquisto, Chile, Nova Zelndia, Cingapura, Peru, Hong Kong, Macau, Costa Rica, Islndia, Sua e os pases da Asean). Com Sri Lanka, Austrlia e Coreia do Sul, as negociaes esto em fases nais. Tambm negocia a Parceria Econmica Regional Abrangente (Regional Comprehensive Economic Partnership RCEP) um acordo de livre comrcio trilateral entre China, Japo e Coreia do Sul, que envolve tambm os dez pases da Asean, alm de Austrlia, ndia e Nova Zelndia. Planejado para ser concludo at o nal de 2015, englobar

    16. Os 37 pases-membros regionais Arbia Saudita, Austrlia, Azerbaijo, Bangladesh, Brunei, Camboja, Catar, Cazaquisto, China, Coreia do Sul, Emirados rabes, Filipinas, Gergia, ndia, Indonsia, Ir, Israel, Jordnia, Kuwait, Laos, Malsia, Maldivas, Mianmar, Monglia, Nepal, Nova Zelndia, Om, Paquisto, Quirguisto, Rssia, Cingapura, Sri Lanka, Tailndia, Tajiquisto, Turquia, Uzbequisto e Vietn subscrevero US$ 75 bilhes. Os US$ 25 bilhes restantes sero subscritos por vinte pases de fora da regio: frica do Sul, Alemanha (US$ 4,5 bilhes), ustria, Brasil (US$ 3,2 bilhes), Dinamarca, Espanha, Egito, Finlndia, Frana (US$ 3,4 bilhes), Holanda, Islndia, Itlia, Luxemburgo, Malta, Noruega, Polnia, Portugal, Sucia, Sua e Reino Unido (US$ 3,1 bilhes). O Japo cedeu s presses dos Estados Unidos e permaneceu fora do projeto.17. O Banco de Desenvolvimento da sia estimou que a escassez de financiamento para infraestrutura na regio monta a US$ 8 trilhes.18. Algumas experincias bilaterais de implantao de projetos transfronteirios de infraestrutura financiados por bancos de desenvolvimento chineses, com taxa de juros relativamente baixas, e construdos com equipamento e por empresas chinesas desencadearam reaes, diante dos pequenos impactos dinmicos internos, problemas ambientais etc. Mianmar constitui um exemplo desta tendncia, o que tornou os pases mais cautelosos (Batson, 2015; Alves, 2013). In many cases, the money goes straight to Chinese contractors and does not enter the host government (Sanderson e Forsythe, 2013, p. xiii). A reao dos pases sinaliza para a necessidade de maior cooperao das empresas e dos bancos chineses com os parceiros locais, bem como a definio de uma nova estratgia, qual seja, operar por meio de instituies multilaterais.19. Segundo Jos Lus Fiori, em entrevista (Fiori, 2015): Esta deciso no muda de forma imediata e radical a velha ordem monetrio-financeira do planeta, que foi liderada em um primeiro momento pela moeda inglesa e que hoje segue sendo liderada pela moeda americana. Mas, o mais importante a forma em que foi dado este passo, assumido como um gesto simblico e poltico, e como parte de uma estratgia de construo de circuitos monetrios e financeiros paralelos e de conteno, mas no necessariamente contraditrios com a ordem monetria e financeira anglo-saxnica.

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    3 bilhes de pessoas e 40% do comrcio mundial.20 Negocia ainda um tratado bilateral de investimento China-Estados Unidos, desde maio de 2013, bem como um acordo China-Unio Europeia, desde janeiro de 2014, destinados a cobrir todos os setores e acesso ao mercado (Heilmann et al., 2014, p. 6-7).

    Outra dimenso em que a poltica chinesa se sobressai expanso externa do seu poder e de sua inuncia civilizatria no mbito dos megaprojetos de infraestrutura transnacional. Estima-se que as empresas chinesas incluindo Hong Kong investiro no exterior US$ 1,25 trilho durante a prxima dcada. Em dezembro de 2014, uma empreiteira privada de Hong Kong, em colaborao com as companhias estatais chinesas, desencadeou a construo do Canal Interocenico da Nicargua, estimado em US$ 50 bilhes, com 278 km de extenso, maior e mais complexo que o Canal do Panam. Em novembro de 2013, foi anunciado pelo presidente Xi Jinping o Cinturo Econmico da Rota da Seda (Silk Road Economic Belt), que objetiva estabelecer uma infraestrutura de grande escala, mediante uma malha ampliada de trens de alta velocidade, estradas, redes eltricas, cabos de bra ptica e sistemas de telecomunicaes, oleodutos, gasodutos etc. Tais estruturas abriro novos corredores comerciais por terra e por mar formando a Rota da Seda Martima (Maritime Silk Road) por toda a Eursia (gura 1). Trata-se de articular, sobretudo, trs cintures (rodovirio, ferrovirio e martimo) que ligaro a China Europa, passando por 21 pases e ampliando as conexes com as economias do Leste da sia, do Sul da sia, da sia Central e do Golfo Prsico.21 Os portos construdos no Leste da sia e no Oceano ndico (Bangladesh, Sri Lanka, Mianmar e Paquisto) serviriam para impulsionar o comrcio por mar, bem como desenvolver rotas alternativas ao estreito de Malaca e ao conitivo Mardo Sul da China.22 As articulaes entre os diferentes pontos da rota terrestre e martima tambm seriam planejadas. A China institui, portanto, iniciativas que alavancam o papel do pas no comrcio e nas nanas mundiais.

    20. Claramente, trata-se de um movimento contrrio tentativa de reconfigurao do comrcio internacional promovida pelos Estados Unidos por meio do Acordo de Parceria Econmica Estratgica Trans-Pacfico (Trans-Pacific Strategic Economic Partnership Agreement TPSEP) e do Acordo de Parceria Transatlntica de Comrcio e Investimento (Transatlantic Trade and Investment Partnership TTIP).21. Em 15 de dezembro de 2014 foi dado, em Istambul, na Turquia, o primeiro passo da obra do sculo 21. A ferrovia incluir as seguintes naes: China, Bangladesh, Malsia, Camboja, Laos, Monglia, Mianmar, Cazaquisto, Paquisto, Azerbaijo, ndia, Ir, Iraque, Nairbi, Egito, Grcia, Turquia, Rssia, Alemanha, ustria e Itlia (figura 1). A construo da infraestrutura ser apoiada por um Fundo da Rota da Seda de US$ 40 bilhes patrocinados pela China; o restante dos investimentos ser financiado pelo Banco Asitico de Investimento em Infraestrutura e pelos bancos de desenvolvimento chineses, sobretudo o Banco de Desenvolvimento da China (China Development Bank CDB) e o Banco de Exportao e Importao da China (China Export-Import Bank). Ver Minghao (2014).22. Evidentemente, a ndia busca se expandir nas mesmas reas, ampliando a competio geopoltica.

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    Outros megaprojetos tambm esto em andamento ou concludos. Primeiro, uma nova autoestrada, estimada em US$ 4 bilhes, ligar Kunming, capital da provncia de Yunnan, capital da Tailndia, Bangkok, passando pelo Laos. Aprovncia de Yunnan percebida como a ponta de lana para reforar a inuncia do pas na bacia do Grande Mekong, onde as empresas chinesas constroem estradas, barragens e redes de energia eltrica; e investem em minas, imveis e agricultura. Segundo, o corredor econmico China-Mianmar-Bangladesh-ndia, composto por uma autoestrada e outras infraestruturas, ligar Kunming a Calcut, na ndia. Terceiro, um oleoduto e um gasoduto j ligam Kunming a Kyaukphyu, no litoral de Mianmar (baa de Bengala), permitindo China alargar sua esfera de inuncia para o Oceano ndico.

    Pequim delineia claramente uma racionalidade por trs desses megaprojetos de infraestrutura. Primeiro, o aprofundamento da integrao fsica com os pases fronteirios, relativamente subdesenvolvidos, pode viabilizar novas redes de comrcio, abrir novas rotas de trnsito para suas exportaes de bens e servios, sobretudo, para as empresas estatais de cimento, ao, navios, guindastes e equipamento pesado de construo, as quais enfrentam elevada capacidade produtiva ociosa.23 Segundo, auxiliam na conteno dos conitos tnicos na regio instvel de Xinjiang e, simultaneamente, fomentam o desenvolvimento dos pases vizinhos, possibilitando que se beneciem de sua ascenso e reforando a diplomacia ganha-ganha. Isto marca uma mudana com o passado recente, quando Pequim cultivava estreitas relaes diplomticas apenas com Coreia do Norte e Mianmar. Terceiro, o nanciamento e a construo de infraestrutura em regies fronteirias relativamente subdesenvolvidas da sia cortejam e envolvem os pases vizinhos, procurando ganhar sua conana, no projeto de prosperidade recproca e de destino comum, tornando sua ascenso mais aceitvel.24 Caso contrrio, corre-se o risco de criar uma coalizo liderada pelos Estados Unidos que buscar restringir suas ambies. Quarto, o foco da Rota da Seda Martima comercial, mas o pas est construindo uma forte Marinha para proteger suas rotas de abastecimento independentemente da Marinha americana. O objetivo de longo prazo exercer controle sobre os mares da China e empurrar a Marinha americana para o Pacco Ocidental. Quinto, o nanciamento de megaprojetos de infraestrutura, mesmo com taxas de retorno relativamente baixas, constitui uma forma mais atraente de aplicar as reservas internacionais que

    23. No se deve esquecer que estes megaprojetos de infraestrutura transfronteiras podem no impulsionar as exportaes chinesas de bens de capital. Como argumenta Batson (2015, p. 6): for China to successfully continue its shift into capital goods exports, there needs to be a pickup in global demand for those goods. And that ultimately depends not on Chinese foreign policy, but on stronger growth in the rich countries that are still at the core of the world economy.24. Os emprstimos realizados com taxas de juros relativamente baixas para governos com limitados acessos a recursos financeiros devero ser pagos com o fluxo de caixa gerado aps a finalizao dos projetos (Miller e Gatley, 2015).

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    mant-las em ttulos do governo americano com baixssimas taxas de juros.25 Sexto, a construo de infraestrutura ao longo das fronteiras e a modernizao dos portos na sia representam a tentativa de restaurao da posio da civilizao chinesa na sia, projetando as bases de um imprio econmico (Miller, 2014).

    Na esfera das telecomunicaes, por sua vez, a poltica industrial chinesa procura estabelecer os padres de tecnologia ao restante do mundo em importantes setores de alta tecnologia. Inicialmente, os principais setores e empresas (incluindo a Huawei e a Alibaba)26 so protegidos da competio dos gigantes estrangeiros. Em seguida, a denio de padres nacionais de codicao para comunicao digital e mvel serve para tornar as empresas locais menos dependentes de patentes e licenciamento estrangeiros. Posteriormente, a nova tecnologia e a escala produtiva das corporaes possibilitam que enfrentem e ganhem a concorrncia externa, promovendo a internacionalizao das atividades e a ampliao das exportaes. Na frica, por exemplo, as empresas chinesas Huawei e ZTE construram a infraestrutura de telecomunicaes nacionais de diversos pases. Alm disso, a denio de padres tecnolgicos endgenos visa tornar o pas menos dependente da infraestrutura ciberntica americana, proteger indstrias locais, e conter sabotagem e espionagem; para isso, desenvolve o sistema de navegao por satlite (BeiDou). Da mesma forma, operando com a Rssia, a China conseguiu a expanso do mandato da International Telecommunications Union entidade especial da Organizao das Naes Unidas (ONU) responsvel por telecomunicaes internacionais , a m de incluir a governana da internet, em 2012 (Heilmann et al., 2014, p. 8). Em suma, na busca de um crescimento sustentvel, o pas planeja tornar-se um dos lderes mundiais nas indstrias estratgicas emergentes, tais como tecnologia de informao, telefonia mvel, circuitos integrados, novas energias, novos materiais e biomedicina.27 Conforme o primeiro-ministro Li Keqiang, em discurso no Frum Econmico Mundial de Davos, em 21 de janeiro de 2015 (Li, 2015b, parte 5, traduo e grifo nosso):

    trens de alta velocidade, energia nuclear, aviao, telecomunicaes e outras capacidades produtivas sosticadas esto gradualmente sendo introduzidos em outros pases. Eles atendem demanda do pas benecirio e passam pelo teste da concorrncia no mercado internacional. As exportaes tambm auxiliam na abertura de mercados para as empresas em terceiros pases, uma vez que muitos destes investimentos so realizados por meio de joint-ventures entre a China e um pas estrangeiro.

    25. Segundo Maria da Conceio Tavares, em entrevista (Duro, 2009): os ttulos americanos que ela [China] detm servem de lastro s reservas. Ela no tem como vend-los no mercado. Est com um mico na mo. um patrimnio morto. Ver tambm Helleiner (2014) e Wray e Liu (2014).26. No final de 2014, as aes da Alibaba gigante companhia de comrcio eletrnico foram lanadas na Bolsa de Valores de Nova York (New York Stock Exchange Nyse), consolidando-a como a 17a maior empresa de capital aberto do mundo, com capitalizao de US$ 230 bilhes, superior da Amazon, da eBay e do Facebook.27. Para atingir a meta de lder mundial na produo de semicondutores at 2030, o Conselho de Estado assegura US$ 22,6 bilhes em subsdios para empresas de propriedade chinesa e contratos exclusivos, excluindo os concorrentes estrangeiros (Atkinson e Hofheinz, 2015).

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    Na dimenso da segurana, o pas se empenha em expandir mecanismos de cooperao para enfrentar os desaos que se colocam segurana regional, em especial, terrorismo, separatismo e extremismo. Durante a Cpula de Xangai, que se realizou em 20 e 21 de maio de 2014, da Conference on Interaction and Condence-Building Measures in Asia (Cica) um frum de segurana originalmente iniciado pelo Cazaquisto (1999) o presidente russo Vladimir Putin e o chins Xi Jinping exortaram o estabelecimento de uma nova arquitetura de segurana regional. Por sua vez, na Cpula da Organizao para Cooperao de Xangai (Shanghai Cooperation Organisation SCO) uma organizao internacional (estabelecida em 2001), da qual participam China, Rssia, Cazaquisto, Quirguisto, Tadjiquisto e Uzbequisto com foco em segurana em 11 e 12 de setembro de 2014, o presidente Xi Jinping anunciou sua inteno de reforar a entidade e expandir a coordenao com a Cica. Aps esta cpula, ndia, Ir e Paquisto solicitaram adeso organizao. A despeito das trocas de informaes e de manobras militares, a coordenao e a integrao dos pases-membros da SCO se mantm relativamente lassas. No mdio prazo, o desenvolvimento da SCO pode ser afetado por tenses entre China e Rssia, uma vez que a expanso das atividades e dos investimentos chineses na sia Central pode ser apreendida como uma ameaa ao histrico papel hegemnico russo.

    No curto prazo, os desaos maiores se apresentam no enfrentamento de questes territoriais no Mar do Sul da China. O aumento da insegurana provocada por aes chinesas desde 2009 proporciona a oportunidade para os Estados Unidos rearmarem sua presena militar e ampliar suas aes no tabuleiro geopoltico asitico: fortalecimento contnuo do Comando Pacco, seu comando regional mais poderoso, e da Doutrina Obama de conteno da China (a sia e a disputa pela hegemonia do Pacco Sul seriam as prioridades da poltica externa americana).28 Todavia, pelo menos por ora, os pases vizinhos Vietn, Filipinas, Malsia, Taiwan e Brunei no parecem sinalizar que desejam escolher entre os laos econmicos com a China uma vez que lhes proporcionam prosperidade e a necessidade de segurana, que se inclina no sentido de manter uma presena militar dos Estados Unidos na regio. Como a integrao econmica se aprofunda mediante

    28. A secretria de Estado americana, Hillary Clinton, declarou no Vietn, em 2010, que o Mar do Sul da China faz parte do interesse nacional dos Estados Unidos, e que os Estados Unidos se sentem no direito e no dever de participar de qualquer conflito e negociao regional (Fiori, 2011). Ver tambm Oliveira (2013). Segundo a Estratgia Nacional de Segurana divulgada pela Casa Branca (United States, 2015, p. 24, traduo nossa): Os Estados Unidos tm sido e continuaro a ser uma potncia do Pacfico. Ao longo dos prximos cinco anos, quase metade do crescimento fora dos Estados Unidos dever se originar na sia. (...) Os Estados Unidos congratulam-se com a ascenso estvel, pacfica e prspera da China. Procuramos desenvolver uma relao construtiva com a China que oferea benefcios para os nossos povos e promova a segurana e a prosperidade na sia e em todo o mundo. (...) insistindo que a China respeite as regras internacionais e as normas sobre segurana martima, comrcio e direitos humanos. Vamos monitorar de perto a modernizao militar da China e sua presena crescente na sia (...). Sobre segurana ciberntica, vamos tomar as aes necessrias para proteger nossos negcios e defender nossas redes contra roubo ciberntico de segredos comerciais que possam ser comercializados por agentes privados ou pelo governo chins.

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    cadeias produtivas regionais e globais e se torna mais emaranhada, o dilema se metamorfoseia em algo ainda mais complexo, dado o crescimento da dependncia econmica da regio, com relao ao dinamismo chins. A forma antevista de obter ambos os objetivos seria alcanar um acordo que possibilite relaes paccas e duradouras entre os Estados Unidos e a China (Aglietta e Bai, 2012). H fortes laos de complementaridade entre as duas economias, intimamente interligadas em diversos segmentos produtivos e nanceiros (US$ 3,8 trilhes de reservas recicladas pelo sistema nanceiro americano). Por isso, este acordo no pode ser descartado, a despeito de um acirramento crescente da concorrncia entre ambos, seja no mbito da inuncia econmica regional, tecnolgica e diplomtica, seja no mbito do arsenal militar.

    No mbito da diplomacia, a China est cada vez mais usando fruns multilaterais para expandir sua inuncia, especialmente nas relaes com pases emergentes e em desenvolvimento. Sobressaem-se, em primeiro lugar, os arranjos bilaterais e multilaterais asiticos (Asean+3, Asean Regional Forum e East Asian Summit). Em segundo lugar, cite-se a coalizo entre os pases-membros do BRICS (desde 2008), que governam cerca de 3 bilhes de habitantes, quase metade da populao mundial, e cujo PIB supera US$ 29 trilhes, ou seja, 25% do PIB mundial, pela paridade do poder de compra. Em terceiro lugar, h a articulao de diversos fruns regionais com foco em comrcio internacional e infraestrutura, tais como o Frum de Cooperao China-Estados rabes, o Frum de Cooperao China-frica, o Frum China-Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac)29 e o Asia Cooperation Dialogue. Mencione-se ainda o Boao Forum for Asia (BFA), um frum anual fundado em 2001, para os formuladores de polticas, empresrios e acadmicos, com um enfoque regional asitico, semelhante ao Frum Econmico Mundial de Davos. Usando o arcabouo do Grupo dos Vinte (G20), a China busca ampliar a representao das economias emergentes, principalmente nas instituies nanceiras internacionais (FMI, Banco Mundial, Banco de Desenvolvimento da sia).30

    De forma contraditria, a diplomacia chinesa soft power possui como objetivo precpuo o estabelecimento de relaes estveis entre os pases asiticos, as economias emergentes e os pases em desenvolvimento. Procura implementar medidas que possibilitem a criao de conana, seja buscando equacionar conitos

    29. Durante a abertura do I Frum China-Celac, realizado em 8 e 9 de janeiro de 2015, em Pequim, o presidente Xi Jinping anunciou investimentos de US$ 250 bilhes nos prximos dez anos na regio. Afirmou tambm que o pas pretende ampliar o comrcio bilateral com a regio, atingindo em uma dcada o volume de US$ 500 bilhes anuais, quase o dobro do montante atual (US$ 260 bilhes). No encontro, foi assinada a Declarao de Pequim, que delineia as linhas da cooperao China-Celac em diversos setores, tais como segurana pblica, comrcio, investimento, finanas, infraestruturas, energia, recursos estratgicos, energia, agricultura, cincia e tecnologia, indstria e agricultura. Ademais, foi definido o plano de cooperao para o perodo 2015-2019, no qual a China se comprometeu a realizar aporte de US$ 35 bilhes, por meio de vrios fundos para o financiamento de projetos de infraestrutura na regio.30. Em 2016, a reunio do G20 ser liderada pela China e l realizada.

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    de fronteiras, seja intensicando os laos comerciais, seja realizando investimentos que explicitem um envolvimento pacco. Uma diplomacia mais ofensiva se ancora na cooperao para o desenvolvimento, sem condicionalidades; na expanso da infraestrutura nacional ou regional; em facilidades de comrcio; e na realizao de elevados montantes de investimentos nos pases vizinhos, sobretudo, Vietn, Laos, Camboja, Mianmar, Tailndia e Filipinas.

    Nas palavras do presidente Xi Jinping (Safatle e Rittner, 2014, grifo nosso):

    O propsito da diplomacia chinesa salvaguardar a paz mundial, promover o desenvolvimento comum e criar um bom ambiente externo para o aprofundamento das reformas e a realizao da meta de dois centenrios. Sendo um povo que ama a paz, os chineses no tm gene de invaso nem de hegemonismo no seu sangue. A China no concorda com a lgica antiquada de pas forte sempre hegemnico. Vamos persistir inabalavelmente no caminho do desenvolvimento pacfico, tanto para criar ativamente um ambiente internacional pacco em prol do nossodesenvolvimento, quanto para contribuir para a paz mundial com o nosso prprio desenvolvimento;tanto para aproveitar melhor as oportunidades do mundo, quanto para compartilhar nossas oportunidades com o mundo, promovendo assim a interao virtuosa, o benefcio mtuo e ganhos compartilhados entre a China e outros pases do mundo. Com o nosso desenvolvimento, vamos desempenhar melhor o papel de um grande pas responsvel. Iremos salvaguardar a paz mundial de modo mais proativo, preconizar a viso de segurana comum, integral, cooperativa e sustentvel e nos dedicar soluo pacca dos conitos por meio de negociaes.31 Vamos defender com toda a firmeza a ordem internacional ps-Guerra, que tem a ONU como o seu centro, e participar ativamente das aes de manuteno da paz da ONU e dos dilogos e cooperaes regionais de segurana. Vamos participar de modo mais proativo dos assuntos internacionais, dedicarmo-nos em promover o aprimoramento do sistema de governana global, sobretudo o aumento da representatividade e o direito voz dos pases em desenvolvimento. (...) Vamos promover o dilogo Norte-Sul e a cooperao Sul-Sul, com especial ateno em ajudar os pases em desenvolvimento a concretizar seu desenvolvimento autnomo e sustentvel. Vamos trabalhar juntos para construir um mundo harmonioso, onde todos alcanam seus prprios valores e se ajudam mutuamente para a consecuo dos outros.

    Em suma, aps uma dcada em que a China se expandiu vertiginosamente e ocupou posies cada vez mais importantes no tabuleiro geoeconmico e geopoltico asitico e global, o sistema interestatal capitalista atravessa uma transformao tectnica. Neste movimento, parece cada vez mais claro que a China planeja forjar uma nova fase da globalizao, em que suas empresas tornam-se atores (players)

    31. O carter proativo da diplomacia chinesa, liderada pelo presidente Xi Jinping, assume a forma de porretes e incentivos (sticks and carrots) para salvaguardar a paz e a estabilidade, sobretudo, no seu entorno. Pequim calcula que pode executar uma poltica externa regional, simultaneamente, coercitiva e amigvel, dado o poder gravitacional exercido por sua economia. Por um lado, no deixa margem a dvida, est preparada para transformar em inimigos aqueles que no cooperarem com seus objetivos (Miller, 2014); por outro lado, Australia, India and others in the region [are dancing] a ballet of hedging and balancing against China (A strenuous..., 2014).

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    globais, capazes de denir os padres e as marcas internacionais de propriedade Owned by China propriedade das corporaes chinesas (Diegues, 2015) e condicionar a dinmica da economia internacional. Enquanto se torna o parceiro comercial predominante de muitos pases, a China amplia seus investimentos no exterior e expande seu poder econmico, que ancora a formatao das regras e das instituies internacionais. Como sugere Braudel (1985, p. 45, grifo nosso):

    os nrdicos nada inventaram, nem na tcnica, nem na conduo dos negcios. Amsterdam copiou Veneza, tal como Londres copiar Amsterdam, tal como Nova Iorque copiar Londres. O que est em jogo, de cada vez, o deslocamento do centro de gravidade da economia mundial por razes econmicas, e que no envolvem a natureza prpria ou secreta do capitalismo.

    Da mesma forma, h sinais de transbordamento do seu capital monetrio e bancrio para alm de suas fronteiras. A moeda e as nanas vo ocupando novas posies no cenrio mundial, dada a poltica de internacionalizao do renminbi, da praa nanceira de Xangai, de um mercado offshore em Hong Kong e a poltica de expanso das operaes de emprstimos dos grandes bancos estatais. O Banco de Desenvolvimento da China e o Banco de Exportao e Importao da China, sobretudo, nanciam projetos de infraestrutura e investimentos das corporaes chinesas nos pases em desenvolvimento, impulsionando suas taxas de crescimento e o aumento do comrcio bilateral, que aprofundam os laos com o Imprio do Meio. O Banco de Desenvolvimento da China que possui agncias em 141 pases, incluindo vrios da Amrica do Sul participa do nanciamento de gasodutos da Rssia, do Cazaquisto e de Mianmar. O Banco de Exportao e Importao da China, usando minerais inexplorados como cauo, nancia por US$ 7,2 bilhes a construo de uma linha frrea de alta velocidade de Jinhong, na provncia de Yunnan, atravessando o Laos, at Vientiane, na fronteira com a Tailndia. Suas polticas de emprstimos auxiliam tambm a estratgia de internacionalizao na moeda chinesa at 2020. Todavia, o sistema nanceiro domstico, operando em condies muito especiais, deve passar ainda por grandes transformaes para enfrentar a concorrncia internacional, em p de igualdade.

    Reitera-se que o objetivo estratgico de longo prazo est claro: restaurar a posio histrica da China na sia. Como armou o presidente Xi Jinping: isto para o povo da sia (...) para defender a segurana da sia (Bridge..., 2014).32 O historiador Fernand Braudel inicia seu livro sobre O modelo italiano com o seguinte pargrafo.

    De 1450 a 1650, durante dois sculos particularmente movimentados, a Itlia de cores variadas, todas deslumbrantes, irradiou-se para alm de seus prprios limites, sua luz derramando-se atravs do mundo. Essa luz, essa difuso de bens culturais

    32. It is for the people of Asia to () uphold the security of Asia.

    Livro_ChinaemTransformacao.indb 31 16/09/2015 11:06:09

  • 32 China em Transformao: dimenses econmicas e geopolticas do desenvolvimento

    oriundos de casa, apresenta-se como a marca de um destino excepcional, como um testemunho que, por sua amplitude, d verdadeiro peso a uma histria mltipla, cujo detalhe, visto no prprio lugar, na Itlia mesmo, no se percebe facilmente, to diverso ele foi. Ver a Itlia, as Itlias, de longe, reunir num nico feixe uma histria fragmentada entre muitos relatos, entre muitos Estados e cidades-estados. Finalmente, fazer um balano inslito, que uma espcie de operao de verdade, em todo caso um modo particular de compreender a grandeza italiana e assim fazer-lhe mais justia (Braudel, 1986, p. 1).

    Guardadas as devidas propores do tempo histrico, a China emite sinais de irradiar sua grandeza. Este livro, seguindo as orientaes de Braudel, busca reunir num nico feixe uma histria fragmentada. Este feixe que procura condensar uma histria multifacetada e ainda em construo claramente a articulao de um projeto de desenvolvimento nacional, inserido regional e globalmente. Todos os temas abordados, pelos diferentes autores, convergem para a consolidao dos interesses nacionais poltica de industrializao, de insero nas cadeias produtivas regionais e globais, de suprimento de energia, de gesto da moeda e do crdito, de cincia e tecnologia, de defesa da soberania, de modernizao do aparato militar