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CHICO ALENCAR CAMINHOS DE UM APRENDIZ

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CHICO ALENCARCAMINHOS DE UM APRENDIZ

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CHICO ALENCARCAMINHOS DE UM APRENDIZ

PEDRO DE LUNA

MARCELO MOVSCHOWITZ

EDIÇÃO

PEDRO DE LUNA

REVISÃO

GISELE ANDRADE

PROJETO GRÁFICO

ESTUDIO \O/ MALABARES –

ANA DIAS E JULIETA SOBRAL

EDIÇÃO DE IMAGENS

ANA DIAS, VERA SIQUEIRA,

CLAUDIA ZUR E CHICO ALENCAR

TRATAMENTO DE IMAGENS

ESTUDIO \O/ MALABARES

FOTO DA CAPA

PEDRO DE LUNA

PRODUÇÃO GRÁFICA

ARMANDO MADEIRA

DE LUNA, Pedro; MOVSCHOWITZ, Marcelo.

Chico Alencar – Caminhos de um aprendiz.

1ª edição. São Paulo: Ilustre Editora, 2017.

304 pp., xx ils.

ISBN xxxxxxxxxxxxxxx

1. Biografia 2. Chico Alencar – História

3. Políticos brasileiros – História 4. Ditadura militar – História

5. Rio de Janeiro – História política

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À minha mãe, Raquel Movschowitz, e à minha avó, Maria Thereza (in memoriam),

pela inspiração, pelo incentivo, pela força e pela luz.

MARCELO MOVSCHOWITZ

Dedico este livro às minhas meninas, Lívia, Julia e Tatiana; à minha mãe e a toda minha família; ao Chico

e aos seus filhos pelo carinho com que me acolheram (já me sinto parte da família); e a todos que deram os seus depoimentos, que trabalharam no projeto e que

participaram da campanha de financiamento coletivo para viabilizar a produção desta tão importante obra.

PEDRO DE LUNA

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Caro leitor,

Foi o meu filho mais velho, o Emanuel, quem me deu a notícia: “pai, tem um amigo querendo fazer a sua biografia...” Reagi negativamente, brincando: “mas eu nem morri ainda!”.

Dias depois, o amigo do Manu eram dois: Pedro de Luna e Marcelo Movschowitz estavam na casa dele e da sua companheira, Maíra, pra gente se conhecer. Vi que a proposta era pra valer, e que eles, convictos do que desejavam, iam insistir.

Um tanto incomodado com a ideia, por não considerar minha existência digna de ser relatada e transformada em livro, antes de me decidir consultei familiares e colegas de trabalho: quase todo(a)s respon-deram e, desses, todo(a)s, sem exceção, consideraram bacana a proposta.

Surpreso e ainda na resistência, lembrei-me de Drummond, que não era simpático a isso de ser biografado. Recuperei um texto do poeta, dos anos 1940, quando teve que lidar com questão similar, convidado pela Revista Acadêmica para escrever sua autobiografia. Drummond conta: “(...) relutei a princípio, por me parecer que esse tra-balho seria antes de tudo manifestação de impudor. Refleti logo, porém, que, sendo inevitável a biografia, era preferível que eu próprio a fizes-se, e não outro. Primeiro, pela autoridade moral que me advém de ter

SOBRE SER BIOGRAFADO

PRÓLOGO

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vivido a minha vida. Segundo, porque, praticando aparentemente um ato de vaidade, no fundo castigo o meu orgulho, contando sem ênfase os pobres e miúdos acontecimentos que assinalam a minha passagem pelo mundo, e evitando assim qualquer adjetivo ou palavra generosa com que o redator da revista quisesse, sincero ou não, gratificar-me”1. Segue-se daí a microautobiografia de Drummond, mineirissimamente com... 55 linhas!

Não satisfeito, continuei nas Gerais, em cujas veredas sempre vislumbrei muita sabedoria. João Guimarães Rosa, em entrevista conce-dida ao alemão Günter Lorenz, em 1965, dois anos antes da sua precoce morte, só menciona o ano do seu nascimento, 1908, e corta o assunto, delicadamente: “Minha biografia, sobretudo minha biografia literária, não deveria ser crucificada em anos. As aventuras não têm tempo, não têm princípio nem fim (...) Escrevendo descubro sempre um novo pe-daço de infinito. Vivo no infinito, o momento não conta”. Depois, tal-vez para desespero ou deslumbramento de Günter, Guimarães diz que

“gostaria de ser um crocodilo vivendo no Rio São Francisco”, e discorre sobre o seu amor pelos grandes rios, “profundos como a alma de um homem”. Completa: “Amo ainda uma coisa dos nossos grandes rios: sua eternidade. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar eterni-dade”. Rosa debocha de si, como faz toda pessoa que tem grandeza de caráter: “A estas alturas, você já deve estar me considerando um louco ou um charlatão!”.

Por não ter competência para argumentar como os grandiosos Carlos e João, ainda ponderei junto a Pedro e Marcelo que meus livros, 33 até aqui, escritos em diferentes épocas e para pessoas das mais diver-sas idades, já compunham uma espécie de autobiografia. Inspirava-me no poeta russo Eugene Evtuchenko, cuja Autobiografia precoce muito me marcara quando saía da adolescência. Lá, ele dizia que “a biografia de um poeta são os seus poemas”. Não fui muito convincente, tanto que eis aqui o livro.

1 Fonte: DRUMMOND DE ANDRADE, C. Drummond, Frente e Verso: Fotobiografia de Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Edições Alumbramento/Livroarte Editora, 1989.

Mas o que faz este objeto concreto chamado livro, do gênero biografia, na sua mão?

A resposta é sua, mas só poderá ser dada se você começar a ler. Se essa experiência de vida – em síntese, é disso que se trata – lhe despertar interesse, o livro se justifica: é o relato de uma larga vivência, com bênçãos (a começar pelo dom da vida) e tropeços, derrotas e con-quistas, que só têm relevância quando coletivas, dentro de um processo histórico e social.

Topei que se desse mais duração – quase escrevi perenizasse, cedendo a certa soberba – à minha história de vida porque os cami-nhos da existência me tiraram do anonimato total em que é colocada a grande maioria em uma sociedade de massas. Acabei me tornando um professor, autor de livros razoavelmente conhecido (em certos cír-culos) e uma figura pública, pessoa politicamente exposta em função dos mandatos que exerci, seja no movimento social das associações de moradores, seja na política institucional. E aí você vira uma certa refe-rência, positiva ou negativa, para alguns segmentos.

O Chico Alencar foi objetivado de tal maneira na percepção dos outros mais informados (nada comparável a craque dos esportes ou ator/atriz de TV, claro!) que gosto de brincar quando alguém me pergunta se sou mesmo o Chico Alencar: “quase sempre”, respondo. E é verdade: nem sempre o que as pessoas pensam, imaginam ou fanta-siam a respeito de um nome mais conhecido está próximo do que ele próprio é. Alguns, com vocação de celebridade, acabam se tornando personagens de si mesmos, nutrindo desmedida vaidade. Há, porém, os que ficam um tanto inquietos com essa notoriedade e as ideali-zações que os outros fazem sobre o famoso. Pois esta biografia tem também este objetivo: mostrar a pessoa de carne e osso, de luz e som-bras, absolutamente normal dentro da anormalidade nossa de cada dia, que é o político Chico Alencar. Ele – isto é, eu – e suas/minhas relações, que me edificam.

Outra razão para encarar esta exposição veio mais recentemen-te: de uns dois ou três anos para cá, tenho ouvido de jovens que me abordam na rua ou após palestras e debates, com razoável frequência,

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que sou referência, símbolo de que pode se fazer política com grande-za, grande pensador, que o meu livro tal ou qual fez sua cabeça e ou-tros elogios (que me orgulham e encabulam). Eles vêm acompanhados, muitas vezes, do “minha mãe – ou meu pai – gosta muito do senhor”, o que é atestado de velhice... Para confirmar a terceira idade, já veioaté um “queria que o meu avô fosse como o senhor”! Confesso que nãofiquei lá muito contente...

Mas essa novidade de ser bom exemplo me levou a pensar se sou mesmo. E a começar a prestar atenção na minha trajetória de vida, que me colocou nesse lugar inimaginável para o menininho aí logo no início.

Isso implica em responsabilidade também. Por fim, decidi con-cordar que outros concretizem em escrita e livro essa caminhada exis-tencial – ainda que defenda que biografia faz quem quer, e de quem quer. Sem autorização ou censura. Mas já que Pedro e Marcelo me consultaram...

Sou um cara rigorosamente datado, fruto do meu tempo. Amante da História, gosto de me imaginar vivendo em outra época, em séculos passados, em outras civilizações. Nos passeios da ima-ginação, não moro em palácios e templos; prefiro ser um servo, um escravo mesmo – para estimular revoltas contra a opressão. Assim, na fantasia, é fácil... De qualquer maneira, imaginar-se em outra quadra histórica é um bom exercício – humaníssimo – de relativização do nosso tempo e dos valores dominantes nele.

Mas gosto mesmo, e dou graças a Deus por este acaso, de viver no tempo em que vivo: esse quando do hoje, esse aqui e agora é o me-lhor, porque é o que me foi dado viver, com a consciência que tenho dele. Por mais que me esforce, não me lembro de absolutamente nada de uma outra encarnação, se é que ela aconteceu.

O que relatei ao Pedro e ao Marcelo, portanto, é fruto de um esforço de memória da vida vivida a partir da chegada ao mundo dessa pessoa que recebeu o nome de Francisco Rodrigues de Alencar Filho. E que viveu no Brasil, a partir da segunda metade do século XIX – “na barriga da miséria eu nasci brasileiro, eu sou do Rio de Janeiro!”.

Foi gostoso conversar por horas a fio com Pedro e Marcelo fa-zendo a viagem de regresso à minha infância, à juventude, a momentos belos e outros, duros, dessa caminhada. Pude renovar a gratidão por tanta gente linda que conheci na estrada da vida e que me ajudou e ajuda a ser menos tacanho. Re-cordar é lembrar de novo, misturando razão e emoção, passando pela ponte que liga a cabeça ao coração.

Espero que você passeie por estas páginas como quem colhe frutas no quintal: recolhendo algum benefício – até para não cometer os mesmos erros. Afinal, conhecer um pouco a vida dos outros serve para isso. E para saber que cada existência é única, singular e preciosa, e deve ser sempre possibilitada.

CHICO ALENCAR

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PARTE 1 É CURIOSO, POIS

ME FORMEI EM HISTÓRIA

E, COM A LICENCIATURA,

ACABEI VIRANDO

PROFESSOR DE HISTÓRIA –

QUE É A MINHA PROFISSÃO:

RECONHEÇO-ME COMO

PRODUTO DO PROCESSO

DE TRANSIÇÃO DA

SOCIEDADE BRASILEIRA

RURAL PARA A URBANA.

CHICO ALENCAR

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m dezembro de 2015, durante uma conversa com o meu primo e parceiro Pedro de Luna sobre projetos pessoais e profissionais para o ano seguinte, ele veio com uma ideia que me seduziu ime-

diatamente: escrever um livro sobre o Chico Alencar. Por que o Chico Alencar? Primeiro porque o Chico é uma figura

que faz parte da nossa história, alguém que sempre nos representou na política e que depois de quase três décadas de vida pública continua fiel aos seus ideais e com uma trajetória imaculada. Depois, porque o Pedro é amigo do Emanuel, filho do Chico, os dois já tinham falado sobre o as-sunto há alguns anos e, portanto, havia a possibilidade de conversar com o próprio Chico sobre o projeto.

Após uma conversa com Emanuel, marcamos um encontro ao vivo com o Chico. Ele nos recebeu na casa do filho mais velho, despojado, de bermuda e camiseta. Talvez fosse uma camisa do Flamengo, não me lem-bro. Naquele dia estava passando um jogo do time do coração do pai e do filho, mas os dois nos receberam mesmo assim. Foi uma honra.

Chico nos ouviu atentamente. Duvidou do interesse das pessoas por sua biografia. Acho que ele mesmo poderia escrevê-la depois que com-pletasse 70 anos. Resistiu a princípio. Ficou de consultar as pessoas pró-ximas, como faz sempre que precisa tomar uma decisão. Teve o apoio de todos, foi uma unanimidade. Chico aceitou a empreitada e iniciamos os trabalhos em janeiro de 2016.

Eu e Pedro combinamos que o livro teria duas partes. A primeira, feita por mim, iria contemplar a vida pessoal do Chico, sua infância, seus es-tudos, sua religião, seus amores... A segunda, capitaneada pelo Pedro, seria sobre sua vida política, e apenas as falas dele viriam em itálico.

Meu trabalho começou com três encontros na casa do próprio Chico, que geraram nove horas de entrevistas gravadas. Posso adiantar que foi uma experiência de vida imensa, um aprendizado, uma troca de ideias sensacional. Isso me motivou ainda mais a executar as entrevistas, trans-crever e transformar em um texto leve, arejado e gostoso de ler.

Boa leitura e aproveite a viagem!

MARCELO MOVSCHOWITZ

E

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RAÍZES

LEMBRANÇAS DE

UMA INFÂNCIA FELIZ

O PECADO DO CORPO

PEDAÇOS

AMPUTADOS DE MIM

ESCOLAS E ESCOLHAS

FOI BONITA A FESTA

EXPEDIÇÕES AFETIVAS

O ENSINO COMO OFÍCIO

A RUA E O BAIRRO,

LUGARES DE CIDADANIA

ANGELA, NINHAL SERENO

UMA REVOLUÇÃO

CHAMADA CLAUDINHA

RAZÕES E PAIXÕES

DO BEM VIVER

A FÉ COMO LIBERTAÇÃO

DO PAI, DO(S) FILHO(S) E

DO ESPÍRITO SANTO...

A SOMBRA DA MORTE

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ÍNDICE

"Há um menino, há um moleque, morando

dentro do meu coração" BOLA DE MEIA, BOLA

DE GUDE, de Milton Nascimento e

Fernando Brant.

Com Jorge, do morro do Trapicheiro, amigo mais

velho e ídolo.

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RAÍZES

Rio de Janeiro, 19 de outubro de 1949: da improvável união entre um ho-mem vindo de Alto Longá, no Piauí, e de uma mulher de Santa Rosa de Viterbo, no interior de São Paulo, nasceu Francisco Rodrigues de Alencar Filho.

Era o final da primeira metade do século passado, quando o Brasil avançava no seu processo de urbanização. Chico nasceu no governo Dutra. Em outubro do ano seguinte, Vargas voltou nos braços do povo, como pre-vira, e permaneceu no poder até suicidar−se, em 1954. Chico, visitando a história, situa a época:

A marchinha do carnaval de 1951 era: “bota o retrato do velho outra vez, bota no mesmo lugar, o sorriso do velhinho faz a gen-te trabalhar”. O Vargas que ficou de 1930 a 1945 expressou uma burguesia urbana nascente, um esboço de opinião pública no país. Antes era o Brasil apenas dos coronéis, das oligarquias, dos grotões. E dos bacharéis, que os representavam na política institucional.Eu sou filho desse processo sócio-histórico-econômico: descendo de um piauiense, nordestino, que migrou para o Sul Maravilha − como dizia o saudoso Henfil − para ter condições melhores de vida, e de uma paulista do interior também. Alto Longá1, no Piauí, e Santa Rosa de Viterbo2, em São Paulo.

1 Fundada em 1740, tem esse nome por causa da proximidade com as nascentes do rio Longá. Em 2007, sua população era de 13.612 habitantes, segundo o Censo.

2 Fundada em 1910 na região metropolitana de Ribeirão Preto, homenageia a santa católica nascida em Viterbo, na Itália, considerada a padroeira da Juventude Franciscana e da Juventude Feminina, visto que morreu jovem, entre 17 e 18 anos de idade. Em 2016, o IBGE estimou sua população em 25.869 habitantes.

“Se lembra do futuro que a gente combinou? Eu era

criança e ainda sou” MANINHA, de Chico Buarque.

Com a irmã querida, Maria Amélia.

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onde se aposentou. Continuou com suas atividades de jornalista, como fre-elancer, até sua morte, em 1963. Não teve formação universitária. Sempre se interessou pela política e discutia longamente os temas por telefone com os amigos”. Disso, o Chico também se recorda muito bem:

Ele gostava muito de escrever, se relacionava com a elite política nordestina radicada na então capital federal. Eu me lembro dele falando ao telefone com Armando Falcão3. Mais tarde, elogiando o “ jovem promissor” Petrônio Portela4, que foi uma figura impor-tante, apoiador mais liberal da ditadura militar. Meu pai tinhaessas relações políticas. Abgail, secretária de Tancredo Neves5, eramuito amiga dele.Eu nasci em um mundo letrado. Não eram intelectuais, nada disso,mas eram do mundo das letras. Meu pai lia três jornais por dia: ATribuna da Imprensa, do Hélio Fernandes, O Globo, dos Marinho,e o Correio da Manhã, de Edmundo e Paulo Bittencourt. E, depois,também o Jornal do Brasil, da Condessa Pereira Carneiro.

MUITO CONVINCENTE

Diabético, Seu Alencar era adepto das estações de águas minerais, que, à época, era uma maneira de se tratar a doença. E foi em uma dessas esta-ções, em Araxá, Minas Gerais, que o imigrante piauiense conheceu dona Jacintha Garcia Duarte, conhecida como Nina, uma das muitas jovens fi-lhas de um fazendeiro paulista, também diabético. Alencar em busca de

3 Advogado, Falcão começou na política como deputado federal pelo Ceará. No governo JK, foi minis-tro da Justiça e dos Negócios Interiores do Brasil. Na sequência, assumiu o Ministério da Saúde. Foi nomeado novamente ministro da Justiça no governo Geisel, cargo exercido entre 1974 e 1979.

4 Também advogado, Portella era tido como a estrela civil da Ditadura. Com uma trajetória de sucesso no Piauí, começou como deputado estadual, elegeu-se prefeito de Teresina e depois foi governador do estado até chegar a senador − por dois mandatos consecutivos −, chegando a presidir o Senado por duas vezes. Também foi ministro da Justiça entre 1979 e 1980, sucedendo Armando Falcão.

5 Muito antes de sonhar em ser Presidente do Brasil (em 1985), o advogado mineiro fora por várias vezes deputado federal, além de ministro e senador. Em 1982, Tancredo ingressou no PMDB e foi eleito governador de Minas Gerais, tornando−se um símbolo do movimento por eleições diretas no país.

O pai, seu Alencar, vivia na Fazenda Redoma, produtora de car-naúba, de propriedade da família. O avô, Cesário Vieira de Alencar, che-gou a ser prefeito do pequeno município de Alto Longá, distante 80 qui-lômetros da capital, Teresina. Seu Cesário morreu quando o pai de Chico tinha 18 anos. Deixou 13 filhos, frutos dos seus três casamentos.

O jovem Alencar assumiu a administração de um pequeno comér-cio na cidade, que herdou do pai, mas logo percebeu que não era do ramo. Decidiu abrir mão da herança em nome dos irmãos menores e partir para o Rio de Janeiro com o objetivo de começar a vida do zero.

É a única irmã de Chico, Maria Amélia, quem nos conta sobre a saga do pai à então Capital da República: “Lá chegando, ele trabalhou com pá e enxada no desmonte do Morro do Castelo para que se abris-se a Esplanada, cenário da feira de comemoração do centenário da Independência do Brasil. Esforçado, foi estudando (chegou a ter um certi-ficado de estatístico) e acabou se tornando funcionário público e jornalista. No Ministério da Agricultura, foi responsável pela revista Agricultura & Pecuária e chegou a tornar-se Diretor do Departamento de Comunicações,

“Os zoínho do menino marejou,

quando seu pai viajou...”

OS OLHINHOS DO

MENINO, Luis Vieira

Com o pai, a seiva nordestina: puro e

breve carinho.

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permitiram e ela se casou com um tailleur marrom. Depois desse começo atribulado, não creio que meus pais tenham sido muito felizes no casa-mento, mas se realizavam nos filhos, que adoravam! Meu pai nos achava lindos e não se cansava de proclamar que a mistura de nordestino com paulista era muito boa... Minha mãe sempre afirmava que tinha muito res-peito e muita admiração pelo meu pai”. Sobre o casamento tardio da mãe, Chico desfila uma teoria:

Ela era uma mulher muito bonita. E sempre dizia: o Alencar não era nenhum galã, mas era muito convincente, falava muito bem... Como diz o samba, “o neguinho gostou da filha da madame”6, pas-sou a lábia nela.

INTERSEÇÃO

Por exigência do marido, apesar da resistência da mulher, o casal se esta-beleceu no Rio de Janeiro. Após residirem em pensões no bairro do Catete, Seu Alencar comprou um terreno e começou a construir a casa da família no fim da ladeira da Rua Henrique Fleiuss, na Tijuca, próxima à nascente do Rio Trapicheiros7.

Meu pai construiu essa casa, que era a última antes de um conjun-to habitacional de trabalhadores pobres da Prefeitura, sobretudo calceteiros, que trabalhavam assentando com marreta os parale-lepípedos das ruas.Isso foi uma bênção porque eu era de classe média, mas parte ex-pressiva dos meus vizinhos e amigos de infância eram pobres, tra-balhadores, e isso me deu uma dimensão social muito bacana. Eu percebia isso, vivia isso, de haver diferença de classes. E morava na interseção.

6 O Neguinho e a Senhorita, de Noite Ilustrada, gravada por Elza Soares. Logo no início diz a letra: “O Neguinho gostou da filha da Madame, que nós tratamos de Sinhá / Senhorita também gostou do Neguinho, mas o Neguinho não tem dinheiro pra gastar”.

7 Com 6.190 metros de extensão, nasce no Maciço da Tijuca e desemboca no Rio Maracanã.

saúde para si, Nina acompanhando a busca de saúde do pai, o casal conhe-ceria de perto o amor. Relata Maria Amélia: “O nordestino se encantou com a linda moça paulista. Já eram considerados maduros para estarem solteiros na época: minha mãe contava 31 anos; meu pai, 45. O noivado foi rápido e o casamento marcado para setembro de 1945, quando nossos avós maternos comemorariam também bodas de ouro. No entanto, poucos dias antes da festa, meu avô faleceu e tudo foi suspenso.

Minha mãe não queria mais se casar, mas meu pai concordou em adiar por uns dias a cerimônia, que foi muito simples, em casa. Minha mãe se recusou a usar o vestido de noiva e queria se casar de luto. As irmãs não

“Sou triste, quase um bicho triste, e brilhas mesmo assim” MÃE, Caetano Veloso.

Com a mãe, ouro de mina paulista.

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Tinha o Julinho, por exemplo, que era filho da família dona das Mudanças Andorinha. Morava em uma mansão, pouco abaixo da nossa, do lado oposto, e os meus amigos pobres não costumavam ir lá brincar. Havia essas contradições. Meus pais sempre aceitaram a minha relação com os meninos po-bres. Eles iam lá pra casa, a gente subia nas árvores para catar fru-tas, e eles eram bem mais habilidosos que eu... Muito mais espertos e eu os admirava por isso. Iam comprar jornal para o meu pai, a gente jogava bola na rua. Também ia até o conjunto habitacional deles para brincar, jogar futebol com bola de meia... E mergulhar ou pegar barrigudinhos no rio, pela trilha na mata.

Prossegue Maria Amélia: “Com o casamento e a mudança para o Rio, mi-nha mãe abandonou a profissão de professora em São Paulo e dedicou-se ao lar e aos filhos. Mas fez uma exigência ao se casar: que passaria todas as férias na casa da minha avó, que já havia deixado a fazenda e morava na ci-dade. Assim, meu irmão e eu passamos todas as férias da nossa infância na casa da vovó, em Santa Rosa de Viterbo, cercados de tios, primos e muita brincadeira no imenso quintal”.

Chico relembra com gosto aquelas viagens que começavam em meados de dezembro e terminavam no início de março:

Nas férias de julho, era a mesma coisa. Então, dos 12 meses do ano, quase quatro eu passava na pequena cidade ou na fazenda. Aí a manga virava vaquinha: as pernas eram uns palitinhos de dente ou fósforos. Os palitos de sorvete amarrados com barbante ou li-nha eram as cercas do curral. Brincávamos de caminhãozinho de lata na terra... Na casa dos meus avós na cidade, com rua de terra, a gente tam-bém jogava bola. Meu tio Iracy Leme tinha uma farmácia na es-quina da praça e ficava a postos para passar mercúrio no joelho da garotada (risos). Na fazenda Santa Maria, era acordar às cinco da manhã e tomar leite no curral. Essas coisas até hoje me inebriam, me fazem muito bem.Romeu Antunes, compadre de Santa Rita de Viterbo, lembra

como se deu a amizade com Chico – na época, um menino que para ele

representava certa extravagância, pois era da cidade: “Conheci o Chico nas férias de julho, em meados dos 60, na praça da matriz de Santa Rosa. Ele vinha à cidadezinha pelo menos duas vezes por ano.

Começamos a falar de tudo que interessa a garotada de 13 e 14 anos. Eu o testava, procurando conhecer o forasteiro de fala estranha. Cantávamos muito. De repente, ele me disse: o negócio é bossa! Pombas, Bossa Nova era o que me encantava na época, e isso nos uniu pra sempre.

O Chico, sempre afável, ia se revelando aos caipiras, todos no maior entusiasmo. O fato de ser da cidade (e nós do mato) o tornava mui-to interessante aos nossos olhos. Lembro-me de que, no sábado, ele usava uma calça que chamávamos de rancheira8, e, na segunda, outra de tergal.

8 Esse era o nome dado à calça de brim azul escuro, bastante resistente, usada por trabalhadores dos campos nos EUA na década de 1950, e que foi popularizada por estilistas como Calvin Klein. O termo jeans vem de uma roupa de algodão utilizada por marinheiros e trabalhadores braçais italianos, cha-mada de genes pelos franceses.

Os moleques na rua, espaço de brincar.

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Eu e o Tadeu – que, junto ao Chico, compomos uma trinca com laços indestrutíveis − criticávamos secretamente tal atitude: calça ran-cheira era coisa de caipira, que bem conhecíamos. Não era correto ir ao cinema vestido com ela.

Tivemos a má ideia de narrar isso a um primo do Tadeu, mais ve-lho que nós. O cara era de Cajuru, cidade vizinha, e bem mais antenado que eu e Tadeu. Levamos o maior carão: Ocêis são caipira mesmo, hein?! Ainda não conhecem calça Lee, não? (risos).

O Chico manteve a tal calça em voga por muitas férias (bem como uma camisa sem gola, vermelha com um risco no peito). É uma característica sua manter objetos em uso pelo maior tempo possível. Um conservador! (risos)”.

LILIAN, A MUSA

Entre tantos episódios que povoam as lembranças daqueles meninos na época, Romeu tem muitas recordações. Entre elas, uma que até hoje pro-voca risadas.

Uma menina morena, chamada Lilian, era a musa unânime na Praça Guido Maestrello, a principal da cidade. Chico chegou e logo se apaixonou também. Ela morava na esquina da praça e ele ficava hospe-dado na tal casa da qual fazia parte a farmácia do tio.

Da porta da frente dessa casa em que dormia, almoçava e jantava, Chico podia ver a veneziana do quarto da bela garota. Se alguma vez ele a flagrou debruçada na janela, nunca nos contou. Nem lhe foi pergunta-do. Éramos tímidos. Ele também, apesar de garoto da capital.

Lilian ficava no alpendre, com pose de dama, olhando para a praça aonde íamos todas as noites. A gente lá, agitando para ver se ela no-tava. A igreja matriz mantinha um serviço de alto-falante da Congregação Mariana, o Príncipe do Ar, que tocava músicas oferecidas pelos frequenta-dores. Tadeu, que sempre foi o mais atirado da turma, discretamente pa-gou para que a música I can t stop love you, com Ray Charles, fosse tocada,

alinhavando o seguinte texto para ser falado pelo locutor: “Música que Chicória, um playboy carioca, oferece à Lilian como prova de muito amor e carinho”.

A pudicícia que pautava o serviço impediu a leitura integral da oferta: o complemento playboy carioca não foi liberado, por estranho aos bons costumes locais (risos). A garotada ficou atônita, Chico mais ainda. O medo da reação do pai dela o empurrou pra fora da praça. Fugi junto, solidário. Perambulamos por outras ruas esperando o passar das horas.

A casa da avó do Chico, onde ele se hospedava, era separada da casa de Lilian somente por uma rua. Já tarde da noite, conseguimos chegar à esquina e, depois de avaliar que não haveria ninguém mais acordado, Chico atravessou a rua a toda velocidade, abriu o portão e mergulhou para a segurança da mãe e da avó (risos).

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A caráter:

viva São João! LEMBRANÇAS DE UMA INFÂNCIA FELIZ

Menino do RioCalor que provoca arrepioToma esta canção como um beijo

Menino do Rio, de Caetano Veloso

Com amigos e aventuras assim, as recordações do menino Chico são as melhores possíveis:

Eu fico impressionado quando ouço tanta gente falar que a infân-cia foi ruim, meio traumática, que foi um problema, que não gosta de relembrar, que apagou tudo da memória. Eu tive uma infância abençoada e ótima. Claro que com os meus problemas e as minhas dificuldades, mas dou graças a Deus e aos meus pais, mesmo eles não sendo nenhum modelo de pedagogia.A minha infância tinha bola de meia, bola de gude, amizades va-riadas, interseção de classes, alegria, campeonato de botão, cujos

‘ jogadores’ a gente mesmo fazia, com fichas de ônibus, coco, tampa de relógio, goleiro de caixa de fósforo... Na mesa de botões, me saía bem, mas nunca fui bom de bola nos pés, embora esforçado. Sabe aquele jogador medíocre, que sua a camisa? Nunca passei disso.Mesmo sendo carioca, nunca fui garotão de praia, “Menino do Rio”9, porque o acesso era um pouco difícil. Meu pai gostava de

9 Referência ao filme de Antônio Calmon lançado em 1981, no qual André de Biase interpretava um surfista que se apaixonava por uma modelo rica e sofisticada. Menino do Rio tornou-se uma expressão para designar jovem queimado de praia com boa vida. Em 1984, foi lançada uma continuação – o filme Garota Dourada, do mesmo diretor e com o mesmo protagonista.

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ir, vez ou outra, ao Saco de São Francisco, em Niterói, que naque-la época tinha as águas límpidas. Lembro-me de um balneário onde você trocava de roupa e tomava banho. Tinha o trampolim de Icaraí... A gente também costumava ir a Paquetá. Barra da Tijuca e Copacabana, só na adolescência, com amigos, de ônibus. Nunca ti-vemos carro. Subíamos e descíamos a íngreme ladeira da Henrique Fleiuss a pé. Pegávamos o bonde até a Praça XV e depois a barca.Enquanto os filhos pensavam em diversão, o pai dedicava a maior

parte dos seus pensamentos ao presente e ao futuro do país. Seu Alencar era culto, inteligente e conservador.

Meu pai me deu uma dimensão de Brasil. Ele era udenista, nem um pouco revolucionário. Tinha muitas reservas em relação ao governo Jango. No escritório lá de casa, com vista para o quintal, havia muitos livros. Ele lia e escrevia o tempo todo. Passava horas na máquina de escrever e falando ao telefone enquanto eu ficava deitado no tapete inventando histórias e fazendo bichinhos com os papéis que ele descartava.Por sua vez, Maria Amélia nunca se esqueceu da imagem do pai

colado no rádio na noite do suicídio de Getulio Vargas. “Penso que, naque-la noite, ele não dormiu. Com frequência, meu pai escrevia discursos para os seus amigos que tinham cargos eletivos. Criou frases como O Brasil está na rua da amargura!, O Brasil está à beira do abismo!

Era disciplinado, ético, rigoroso. Por exemplo, durante os anos em que teve direito a carro oficial do Ministério da Agricultura, nunca permi-tiu seu uso fora do expediente, embora não tivéssemos carro particular. Só ele podia se deslocar no carro oficial, e a serviço.

Também sempre disse que muito dinheiro passava por suas mãos, mas o importante era botar a cabeça no travesseiro e dormir em paz. Às vezes, perdia a paciência com funcionário relapso e chegava a ser grosseiro, atitude de que muito se arrependia mais tarde”.

A HIPER MADRINHA

Além da influência do pai e da mãe em sua formação, Chico teve uma estreita relação com a madrinha, Magdala Ribeiro da Costa, a Dadá, que morava na mesma rua. Ela tinha uma formação mais progressista e era irmã do arquiteto Lúcio Costa.

Ela me trouxe, desde a infância, um lado de elaboração, de formula-ção, de pensamento de vida. Morava na casa ao lado da nossa, com a filha doente. Mas tinha lá um alemão, o Seu Kurt, que era hós-pede, para quem ela alugava um quarto. Uma relação, para mim, meio misteriosa. Dadá era separada de um americano, que ela di-zia ser alcoólatra. Tiveram uma filha que nasceu deficiente – não andava, não falava –, a Anna, carinhosamente chamada de “Baby”.A Dadá tinha uma dedicação impressionante à filha. Das poucas coisas que davam prazer a Baby era quando eu enchia balão de aniversário e esvaziava no rosto dela, fazendo ventinho. Ela ria à beça. Às vezes, ficava extremamente nervosa, chorava alto. Minha mãe passou a nossa infância toda mandando falar baixo para não incomodá-la. Eu fui uma espécie de filho que a Dadá não teve. Ela estudou na Suíça, morou na França, e trazia o mundo mais infor-mado para a minha mãe, que era uma jovem senhora do interior, pouco conhecedora do mundo − ainda que carinhosa e muito cui-dadosa com os filhos.Foi Dadá quem me deu o primeiro livro de política, de um francês chamado Jules Moch: ‘Socialismo Vivo’. Tinha meus 14 ou 15 anos e estudava na Aliança Francesa. Naquela época, já se dizia ser importante aprender outra língua. Eu tinha certo preconceito com os EUA, então decidi estudar francês. Além de rejeitar a ‘língua imperialista’, achava o francês mais fácil e mais bonito que o inglês.Por vezes, Dadá me levava nas quermesses do Colégio Cruzeiro, de origem alemã, ou em um asilo que ela ajudava. Ela era muito culta e não tinha religião, mas se preocupava com os desprovidos de condições materiais.

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de futebol campeã do mundo em 1958, e tinha a cara dos jogado-res. Até hoje sei escalar os times inteiros, o titular e o reserva!A filha dela acabou falecendo quando eu já era rapazinho. No se-pultamento, ela estava arrasada. Dadá ficou tão angustiada que começou a andar sozinha pelo cemitério. A gente ficou preocupado, mas ela contou depois que estava meditando...Uns anos depois ela teve um câncer. Serena, dizia que o único medo era morrer antes da Baby e não ter ninguém para cuidar da filha. Acompanhei toda a doença dela, que morreu na minha frente. Assim, literalmente, eu lhe dava a mão quando ela deu o último suspiro. Morreu como um passarinho. Ela dizia assim, brincando, em meio à agonia: ‘você me fez muito mal porque eu era ateia convicta e agora vem você aí, com essa sua fé (eu já era da Juventude Estudantil Católica), falando de Dom Hélder Câmara e de outros. E esse Concílio Vaticano, que abriu as janelas da igreja, tirou esse bolor. Agora tô com medo de morrer, porque não sei o que me aguarda. Eu acho que vou para o inferno, sem fé a maior parte da minha vida... O médico dela, doutor Canelas, era espírita, dava uns passes quando a atendia. Ela dizia: “e ainda tem o doutor Canelas do outro lado, que é excelente médico, mas é espírita. Tenho você, que é cristão, católico. Poxa, me botaram minhoca na cabeça, antes eu era mais tranquila com a ideia da morte. Agora estou em dúvida sobre o que vem depois.”Dadá teve, de fato, uma enorme influência na minha vida. Até hoje me emociono quando me lembro dela, a pessoa mais generosa que conheci.

UMA VEZ FLAMENGO...

Seja na Tijuca, seja nas férias na roça, o garoto Chico Alencar estava sem-pre jogando bola. Mesmo não sendo um exímio atleta, o futebol seria uma paixão eterna, bem como o seu time do coração.

Também íamos ao Jardim de Alah, na minha incursão à Zona Sul, para andar a cavalo e almoçar na casa do irmão dela, o arquiteto Lúcio Costa10. Ele morava em um prediozinho velho, todo carco-mido, no Leblon, em frente à praia. Sempre usava paletó e também vinha visitá-la na Tijuca. Eu me lembro de que ele me pegava pelo braço e me girava, como o Seu Kurt também fazia...Depois da construção de Brasília, a minha madrinha me deu a se-gunda carteira de dinheiro que ganhei na vida. De plástico, tinha a figura das colunas do Palácio da Alvorada e a foto do Juscelino, com a inscrição “Brasília, símbolo mais expressivo do Brasil mo-derno”. A primeira carteira era com a estampa da seleção brasileira

10 Nascido em 1902, na França, e falecido aos 96 anos, no Rio de Janeiro, passou a infância na Inglaterra e na Suíça, pois seu pai era Almirante da Marinha Brasileira. Costa ficou mundialmente conhecido pelo projeto do Plano Piloto de Brasília.

Com a madrinha Dadá, amadíssima reveladora do mundo.

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O leiteiro chegava lá em casa e gritava: “Mengo, tu é o maior!”. O Flamengo foi campeão carioca em 1953, 1954 e 1955, mas tam-bém teve a influência da rua: os amigos mais pobres eram 90% flamenguistas. Ainda menino, passei a ir ao Maracanã a pé com meus amigos do morro. A gente ficava na geral, que era baratinho, e em alguns jogos mais importantes a gente se esforçava para ir de arquibancada. Ainda na adolescência, comprava a “Revista do Esporte” semanal. Lembro-me de uma capa em que havia uma declaração bombás-tica de um beque do Fluminense, que veio do Cruzeiro, chamado Procópio: “Pelé é desleal e cospe na gente”.Em 1966, aos 16 anos, rezei para o Flamengo ganhar do Bangu na final do campeonato carioca. Pedi muito, mas Deus castigou essa crença infantilizada. Fui de manhã à missa e à tarde ao Maracanã. Resultado: Bangu 3, Flamengo 0. Ainda saiu pancadaria no cam-po, jogador do Flamengo expulso, foi um desastre11.Mas hoje em dia não sou um flamenguista doente, sou um fla-menguista saudável, ainda que me emocione com gols, vitórias e, sobretudo, a beleza da torcida! Sou sócio-torcedor para ajudar. Acompanho até o time de juniores. O meu filho Emanuel é real-mente um rubro-negro aficcionado, desses que vai a estádios dis-tantes para ver jogos pouco importantes. Às vezes brinco: “caram-ba, criei um monstro!” (risos). Mas ele não é de briga, só fica muito mal humorado quando o Flamengo perde (risos).

11 Com gols de Ocimar, Aladim e Paulo Borges, o Bangu sagrou−se campeão estadual pela segunda vez diante de 140 mil torcedores. A briga foi causada pelo atacante rubro−negro Almir “Pernambuquinho”, o “Pelé branco”, que inconformado com a goleada, começou a agredir os jogadores do Bangu, pro-vocando a expulsão de cinco atletas flamenguistas e quatro banguenses. A partida de 18/12/1966 foi encerrada aos 25 minutos do segundo tempo. Sete anos depois da partida, Almir foi assassinado a tiros na porta de um bar em Copacabana. Para conhecer a sua história, leia “Eu e o futebol” (Biblioteca Esportiva Placar), de Fausto Neto e Maurício Azêdo, publicado em 1973, dois meses após o assassinato.