Chiara, uma mulher que ousou adotar Deus como Ideal · 1939 – Participa de um encontro de...

1
8 SOROCABA, SEXTA-FEIRA, 17 DE JANEIRO DE 2020 diariodesorocaba.com.br ESPECIAL RÁPIDA LINHA DO TEMPO De Trento para o mundo 22 de janeiro de 1920 – Nasce em Trento, a segunda de quatro filhos da família Lubich, tão unida, quanto diversificada: o pai, tipógrafo, é socialista; a mãe, católica fervorosa; o irmão mais velho, médico, jornalista e comunista. 1938 – Conclui o curso de Magistério. Passa a trabalhar como professora. 1939 – Participa de um encontro de estudantes católicas em Loreto, onde fica o Santuário que abriga a casa onde teria vivido a Sagrada Família de Nazaré. Contemplando o local, tem a primeira intuição de que percorreria uma ‘quarta estrada’ na Igreja (nem religiosa, nem casada, nem solteira). 1943 –Participa da Ordem Terceira Franciscana e, seguindo o hábito dessa obra, adota o nome de Chiara (em português, ‘Clara’), em homenagem à santa de Assis. 7 de dezembro de 1943 – Consagra-se totalmente a Deus com um voto de castidade. Sobre esse momento, ela dirá: “Desposei Deus”. Chiara nem de longe pensa em fundar algum movimento, mas logo algumas de suas amigas (Natalia, Dori, Giosi e depois outras) desejam compartilhar com ela suas descobertas e seu modo de vida. 13 de maio de 1944 – Um violento bombardeio atinge Trento, inclusive a casa da família, que se vê obrigada a sair da cidade. Chiara, porém, permanece, para sustentar o grupo que estava nascendo ao seu redor. Mais tarde, vai morar, com suas primeiras companheiras em um apartamento na Piazza dei Cappuccini (Praça dos Capuchinhos). Assim nasce o focolare. 1947 – Primeira aprovação diocesana do nascente movimento, por dom Carlo De Ferrari, arcebispo de Trento. “Aqui tem o dedo de Deus”, reconhece ele. 1948 – Encontra em Roma, no Parlamento italiano, o deputado, escritor, bibliotecário e jornalista Igino Giordani, pai de quatro filhos. Ele se tornará o primeiro focolarino casado. Chiara lhe dará o nome de Foco e o considerará cofundador do Movimento pela sua contribuição decisiva para a encarnação da espiritualidade da unidade na sociedade e para o desenvolvimento do diálogo ecumênico. 1991 –Na Mariápolis Araceli (hoje Mariápolis Ginetta), em Vargem Grande Paulista, lança a proposta da ‘Economia de Comunhão’. 1996 – Em Nápoles (Itália), com um grupo de políticos de diferentes partidos, lança o Movimento Político pela Unidade. 1998 – Faz sua última visita ao Brasil. Recebe a Ordem do Cruzeiro do Sul, pelo empenho em favor das classes mais carentes e pela promoção da Economia de Comunhão. 14 de março de 2008 –Depois de três anos de debilidade progressiva, morre em sua casa, em Rocca di Papa, nas cercanias de Roma. 2015 – O bispo de Frascati (Itália), dom Raffaelo Martinelli, abre a causa de beatificação e canonização de Chiara Lubich. Desde dezembro de 2019, o processo está no Vaticano. ESPIRITUALIDADE PARA O MUNDO MODERNO Chiara, uma mulher que ousou adotar Deus como Ideal 1920-2020 - Um século atrás, nascia uma mulher que, ao adotar Deus como Ideal, fundou um movimento eclesial que ultrapassou as fronteiras da Igreja, alcançou até os não crentes e trouxe contribuições para a Cultura e a Economia, entre outras áreas do pensamento humano Se viva fosse, Chiara Lubich completaria cem anos na próxima quarta-feira, 22 de janeiro. Mas o le- gado da fundadora do Movimento dos Focolares é tão vasto que se pode dizer que Chiara está viva em seus seguido- res e em sua Obra de espiritualidade nascida no norte da Itália, em Trento, em meio aos terríveis combates da 2ª Guerra Mundial, e que vai muito além da Igreja Católica, de onde partiu. A italiana Chiara Lubich (Sílvia era seu nome de batismo) sempre foi profundamente católica. Sua primei- ra intuição sobre a vasta Obra a que daria impulso veio em uma visita a um santuário mariano em Loreto. Mas sua primeira descoberta da nova espi- ritualidade deu-se mesmo em Trento, sua cidade natal, em 1943. A cidade era destruída pelos bombardeios. Diante de tantas vidas e sonhos desapare- cidos em um instante, Chiara e suas amigas se perguntaram: existe um Ideal que não morre, que nenhuma bomba pode destruir? “Sim, Deus”, foi a resposta. “Decidimos fazer dele o ideal da nossa vida”, relataria ela anos mais tarde. Trinta e cinco anos depois, com o Movimento já consolidado, Chiara abriu um escritório para o ‘diálogo com pessoas de convicções não religio- sas’. E não houve surpresa nesse anún- cio. Desde os anos 70, já havia contatos com ateus, agnósticos ou indiferentes que compartilhavam os objetivos do Movimento. Assim, Chiara contava com pessoas que negavam ou não reconheciam a existência daquele que era seu Ideal de vida. E isso sem falar nos contatos que os Focolares já manti- nham com membros de outras igrejas cristãs, como luteranos e anglicanos, e de outras religiões, como judeus, muçulmanos e budistas. A UNIDADE COMO VOCA- ÇÃO -- A explicação para esse para- doxo vem de outra descoberta que viria a fundamentar a espiritualidade focolarina, ainda em Trento, em 1943, debaixo de bombardeios. Como sem- pre acontecia nesses momentos, Chia- ra e suas companheiras corriam para o abrigo antiaéreo levando somente o Evangelho. Abriram o livro e encon- traram a passagem do Evangelho de João em que Jesus pede a Deus: “Pai, que todos sejam um”. O desejo de Jesus virou para aquelas moças uma ordem. “Aquelas palavras nos punham no coração a certeza de ter nascido para aquela página do Evangelho”, resumiria Chiara em 1997. Num texto de 1985, ela seria ainda mais explícita: “A unidade é a nossa vocação específica”. Assim, o Movimento dos Focolares se caracteriza também por adotar uma espiritualidade comunitária, em que as pessoas caminham juntas, nunca isoladamente. Não muito tempo depois, ou- tra descoberta revelaria a ‘chave’ para chegar à unidade. Certo dia, um sacerdote revelou a Chiara que o momento de maior sofrimento de Jesus foi quando ele gritou na Cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?”. Impressionada por essas palavras, Chiara concluiu: “Se a maior dor de Jesus foi o abandono por parte do seu Pai, nós seguiremos Jesus abandonado”. A partir desse momento, Ele, o Abandonado, passou a ser o único esposo de Chiara. Deus como Ideal, a Unidade, Jesus Abandonado... Essas foram apenas três de uma série de ‘descobertas espi- rituais’ que Chiara fez junto com suas companheiras. Em Trento, todos os sábados à tarde, a comunidade era con- vidada para ouvir Chiara falar de suas descobertas e experiências. Assim, em 1945, já havia cerca de 500 pessoas que aderiam a essa espiritualidade, algumas delas propondo-se também a seguir a estrada de consagração total a Deus escolhida por Chiara e suas primeiras companheiras. No verão de 1949, essas moças vivem um outro período de forte expe- riência mística de compreensão do seu percurso espiritual, que chamaram de ‘Paraíso de 49’. Os textos produzidos durante esse período iriam tornar-se, com o tempo, material de formação es- piritual e objeto de estudo de teólogos e outros cientistas. ‘A VIDA É PRODUZIDA COM A MORTE’ - O ‘Paraíso de 49’ serviu também como preparação para uma década de grandes contrastes. Por um lado, todos os anos Chiara e suas companheiras passavam o verão nas montanhas trentinas e cada vez mais simpatizantes as acompanhavam. Chiara percebeu que aí surgia então, temporariamente, uma pequena ci- dade fundamentada nos preceitos do Evangelho. E chamou-a Mariápolis ou ‘Cidade de Maria’. Em 1959, último ano de encontro naquela região, passaram pela Mariápolis mais de 10 mil pessoas, entre as quais alguns brasileiros. Em paralelo, o crescimento do Movimento despertava a atenção da Igreja. Assim, os bispos italianos iniciaram investigação rigorosa sobre aquelas moças, pois o Movimento não se encaixava nos padrões das associa- ções leigas da época, a começar pela liderança feminina. Recordando o contexto histórico, à época ainda não acontecera o Concílio Vaticano II e, para muitos católicos, ‘unidade’ era só o nome do jornal do Partido Comunista... Chiara foi convocada pelo Santo Ofício (hoje a Congregação Pontifícia para a Doutrina da Fé) para vários interrogatórios. Com cada um deles, vinha o temor de que fosse decretada a dissolução da Obra nascente. E, de fato, em 1960 uma comissão da Confe- rência Episcopal Italiana recomendou o fechamento dos Focolares. Essa foi uma das maiores experiências de Jesus abandonado que ela viveu. “Nós o sabemos: a vida se paga; a vida que, por meio de nós, chega a muitas almas, é produzida com a morte”, escreveu. Mesmo assim, em nenhum momento Chiara deixou de confiar na Igreja. ‘UMA ESPIRITUALIDADE UNIVERSAL’ - Finalmente, em 1962, o Movimento foi aprovado pelo papa João XXIII, com o nome de Obra de Maria. E, desde então, todos os papas e muitos bispos apoiaram o trabalho de Chiara. Além de comparecer a vários eventos, São João Paulo II visitou o Centro Internacional do Movimento em 1984. E mais recentemente, em 2018, Francisco esteve na cidadela permanente de Loppiano (Itália), na região de Florença. Em outro paradoxo desta his- tória, enquanto o Movimento sofria restrições na Itália, começava a se expandir para outros países. Em 1958, os primeiros focolarinos chegaram ao Brasil; a segunda Mariápolis do Sul foi realizada aqui em Sorocaba, em julho de 1965, no então Seminário Diocesano ‘São Carlos Borromeu’, na avenida Dr. Eugênio Salerno, por ini- ciativa do então recém-chegado bispo coadjutor dom José Melhado Campos, que havia conhecido a espiritualidade de Chiara durante os intervalos do Concílio Vaticano II em Roma; em 1967, o Movimento chegou ao último continente que faltava, a Oceania. E assim, em todo o mundo, foram se re- produzindo as Mariápolis. Primeiro, como encontros-laboratórios de cida- dezinhas evangélicas; depois, a partir de 1964, como cidadelas permanentes, ‘faróis sobre o monte’, diria Chiara, de sociedades movidas pela lei do Amor. No Brasil, nasceram três, em São Paulo, em Vargem Grande Paulista, pouco adiante da cidade de São Roque, em direção a Ibiúna; Recife e Belém. À medida que os anos passavam, percebeu-se que a espiritualidade da Unidade pode ser benéfica não somen- te para a Igreja, mas para toda a Huma- nidade. Essa constatação veio também da sociedade. Chiara recebeu, em menos de dez anos, dezesseis títulos de doutora ‘honoris causa’ e dezessete de cidadã honorária em vários países do mundo. Em Sorocaba, também é nome de rua, proposta logo depois de seu falecimento em 2008 pelo ex-prefeito e ex-vereador Paulo Francisco Mendes à Câmara Municipal. “Esta espiritualidade comunitá- ria não está ligada necessariamente ao Movimento dos Focolares: ela é universal e, portanto, pode ser vivida por todos”, resumiu Chiara em 1996. “De fato, através dela foram abertos diálogos fecundos com todos os ho- mens, inclusive com fiéis de outras religiões e com pessoas das mais diversas culturas, que encontram os valores em que creem postos em rele- vo, e juntos nos encaminhamos para a plenitude de unidade à qual todos tendemos”. – ADAPTADO de texto do jornalista Airam Lima Júnior, para a edição de janeiro da revista Cidade Nova, edição brasileira, em homenagem ao centenário de nasci- mento de Chiara Lubich Chiara Lubich marcou com sua presença carismática a Igreja e a sociedade no século XX. Seu processo de beatificação e canonização está no Vaticano Quando de sua última visita ao Brasil em 1998, Chiara recebeu a imprensa para falar do carisma da Unidade em São Paulo. O jornalista Vitor Cioffi de Luca, com a esposa Thereza Conceição Grosso de Luca, fundadores do DIÁRIO, estavam presentes Arquivo/DS Arquivo/DS

Transcript of Chiara, uma mulher que ousou adotar Deus como Ideal · 1939 – Participa de um encontro de...

Page 1: Chiara, uma mulher que ousou adotar Deus como Ideal · 1939 – Participa de um encontro de estudantes católicas em Loreto, onde fica o Santuário que abriga a casa onde teria vivido

8 SOROCABA, SEXTA-FEIRA, 17 DE JANEIRO DE 2020diariodesorocaba.com.brESPECIAL

RÁPIDA LINHA DO TEMPO

De Trento para o mundo22 de janeiro de 1920 – Nasce em Trento, a segunda de quatro filhos da

família Lubich, tão unida, quanto diversificada: o pai, tipógrafo, é socialista; a mãe, católica fervorosa; o irmão mais velho, médico, jornalista e comunista.

1938 – Conclui o curso de Magistério. Passa a trabalhar como professora.1939 – Participa de um encontro de estudantes católicas em Loreto, onde

fica o Santuário que abriga a casa onde teria vivido a Sagrada Família de Nazaré. Contemplando o local, tem a primeira intuição de que percorreria uma ‘quarta estrada’ na Igreja (nem religiosa, nem casada, nem solteira).

1943 – Participa da Ordem Terceira Franciscana e, seguindo o hábito dessa obra, adota o nome de Chiara (em português, ‘Clara’), em homenagem à santa de Assis.

7 de dezembro de 1943 – Consagra-se totalmente a Deus com um voto de castidade. Sobre esse momento, ela dirá: “Desposei Deus”. Chiara nem de longe pensa em fundar algum movimento, mas logo algumas de suas amigas (Natalia, Dori, Giosi e depois outras) desejam compartilhar com ela suas descobertas e seu modo de vida.

13 de maio de 1944 – Um violento bombardeio atinge Trento, inclusive a casa da família, que se vê obrigada a sair da cidade. Chiara, porém, permanece, para sustentar o grupo que estava nascendo ao seu redor. Mais tarde, vai morar, com suas primeiras companheiras em um apartamento na Piazza dei Cappuccini (Praça dos Capuchinhos). Assim nasce o focolare.

1947 – Primeira aprovação diocesana do nascente movimento, por dom Carlo De Ferrari, arcebispo de Trento. “Aqui tem o dedo de Deus”, reconhece ele.

1948 – Encontra em Roma, no Parlamento italiano, o deputado, escritor, bibliotecário e jornalista Igino Giordani, pai de quatro filhos. Ele se tornará o primeiro focolarino casado. Chiara lhe dará o nome de Foco e o considerará cofundador do Movimento pela sua contribuição decisiva para a encarnação da espiritualidade da unidade na sociedade e para o desenvolvimento do diálogo ecumênico.

1991 – Na Mariápolis Araceli (hoje Mariápolis Ginetta), em Vargem Grande Paulista, lança a proposta da ‘Economia de Comunhão’.

1996 – Em Nápoles (Itália), com um grupo de políticos de diferentes partidos, lança o Movimento Político pela Unidade.

1998 – Faz sua última visita ao Brasil. Recebe a Ordem do Cruzeiro do Sul, pelo empenho em favor das classes mais carentes e pela promoção da Economia de Comunhão.

14 de março de 2008 – Depois de três anos de debilidade progressiva, morre em sua casa, em Rocca di Papa, nas cercanias de Roma.

2015 – O bispo de Frascati (Itália), dom Raffaelo Martinelli, abre a causa de beatificação e canonização de Chiara Lubich. Desde dezembro de 2019, o processo está no Vaticano.

ESPIRITUALIDADE PARA O MUNDO MODERNO

Chiara, uma mulher que ousou adotar Deus como Ideal1920-2020 - Um século atrás, nascia uma mulher que, ao adotar Deus como Ideal, fundou um movimento eclesial que ultrapassou as fronteiras

da Igreja, alcançou até os não crentes e trouxe contribuições para a Cultura e a Economia, entre outras áreas do pensamento humano

Se viva fosse, Chiara Lubich completaria cem anos na próxima quarta-feira, 22 de janeiro. Mas o le-gado da fundadora do Movimento dos Focolares é tão vasto que se pode dizer que Chiara está viva em seus seguido-res e em sua Obra de espiritualidade nascida no norte da Itália, em Trento, em meio aos terríveis combates da 2ª Guerra Mundial, e que vai muito além da Igreja Católica, de onde partiu.

A italiana Chiara Lubich (Sílvia era seu nome de batismo) sempre foi profundamente católica. Sua primei-ra intuição sobre a vasta Obra a que daria impulso veio em uma visita a um santuário mariano em Loreto. Mas sua primeira descoberta da nova espi-ritualidade deu-se mesmo em Trento, sua cidade natal, em 1943. A cidade era destruída pelos bombardeios. Diante de tantas vidas e sonhos desapare-cidos em um instante, Chiara e suas amigas se perguntaram: existe um Ideal que não morre, que nenhuma bomba pode destruir? “Sim, Deus”, foi a resposta. “Decidimos fazer dele o ideal da nossa vida”, relataria ela anos mais tarde.

Trinta e cinco anos depois, com o Movimento já consolidado, Chiara abriu um escritório para o ‘diálogo com pessoas de convicções não religio-sas’. E não houve surpresa nesse anún-cio. Desde os anos 70, já havia contatos com ateus, agnósticos ou indiferentes que compartilhavam os objetivos do Movimento. Assim, Chiara contava com pessoas que negavam ou não reconheciam a existência daquele que era seu Ideal de vida. E isso sem falar nos contatos que os Focolares já manti-nham com membros de outras igrejas cristãs, como luteranos e anglicanos, e de outras religiões, como judeus, muçulmanos e budistas.

A UNIDADE COMO VOCA-ÇÃO -- A explicação para esse para-doxo vem de outra descoberta que viria a fundamentar a espiritualidade focolarina, ainda em Trento, em 1943, debaixo de bombardeios. Como sem-pre acontecia nesses momentos, Chia-ra e suas companheiras corriam para o abrigo antiaéreo levando somente o Evangelho. Abriram o livro e encon-traram a passagem do Evangelho de João em que Jesus pede a Deus: “Pai,

que todos sejam um”. O desejo de Jesus virou para

aquelas moças uma ordem. “Aquelas palavras nos punham no coração a certeza de ter nascido para aquela página do Evangelho”, resumiria Chiara em 1997. Num texto de 1985, ela seria ainda mais explícita: “A unidade é a nossa vocação específica”. Assim, o Movimento dos Focolares se caracteriza também por adotar uma espiritualidade comunitária, em que as pessoas caminham juntas, nunca isoladamente.

Não muito tempo depois, ou-tra descoberta revelaria a ‘chave’ para chegar à unidade. Certo dia, um sacerdote revelou a Chiara que o momento de maior sofrimento de Jesus foi quando ele gritou na Cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?”. Impressionada por essas palavras, Chiara concluiu: “Se a maior dor de Jesus foi o abandono por parte do seu Pai, nós seguiremos Jesus abandonado”. A partir desse momento, Ele, o Abandonado, passou a ser o único esposo de Chiara.

Deus como Ideal, a Unidade, Jesus Abandonado... Essas foram apenas três de uma série de ‘descobertas espi-rituais’ que Chiara fez junto com suas companheiras. Em Trento, todos os sábados à tarde, a comunidade era con-vidada para ouvir Chiara falar de suas descobertas e experiências. Assim, em 1945, já havia cerca de 500 pessoas que aderiam a essa espiritualidade, algumas delas propondo-se também a seguir a estrada de consagração total a Deus escolhida por Chiara e suas primeiras companheiras.

No verão de 1949, essas moças vivem um outro período de forte expe-riência mística de compreensão do seu percurso espiritual, que chamaram de ‘Paraíso de 49’. Os textos produzidos durante esse período iriam tornar-se, com o tempo, material de formação es-piritual e objeto de estudo de teólogos e outros cientistas.

‘A VIDA É PRODUZIDA COM A MORTE’ - O ‘Paraíso de 49’ serviu também como preparação para uma década de grandes contrastes. Por um lado, todos os anos Chiara e suas companheiras passavam o verão nas montanhas trentinas e cada vez mais

simpatizantes as acompanhavam. Chiara percebeu que aí surgia então, temporariamente, uma pequena ci-dade fundamentada nos preceitos do Evangelho. E chamou-a Mariápolis ou ‘Cidade de Maria’. Em 1959, último ano de encontro naquela região, passaram pela Mariápolis mais de 10 mil pessoas, entre as quais alguns brasileiros.

Em paralelo, o crescimento do Movimento despertava a atenção da Igreja. Assim, os bispos italianos iniciaram investigação rigorosa sobre aquelas moças, pois o Movimento não se encaixava nos padrões das associa-ções leigas da época, a começar pela liderança feminina. Recordando o contexto histórico, à época ainda não acontecera o Concílio Vaticano II e, para muitos católicos, ‘unidade’ era só o nome do jornal do Partido Comunista...

Chiara foi convocada pelo Santo Ofício (hoje a Congregação Pontifícia para a Doutrina da Fé) para vários interrogatórios. Com cada um deles, vinha o temor de que fosse decretada a dissolução da Obra nascente. E, de fato, em 1960 uma comissão da Confe-rência Episcopal Italiana recomendou o fechamento dos Focolares. Essa foi uma das maiores experiências de Jesus abandonado que ela viveu. “Nós o sabemos: a vida se paga; a vida que, por meio de nós, chega a muitas almas, é produzida com a morte”, escreveu. Mesmo assim, em nenhum momento Chiara deixou de confiar na Igreja.

‘UMA ESPIRITUALIDADE UNIVERSAL’ - Finalmente, em 1962, o Movimento foi aprovado pelo papa João XXIII, com o nome de Obra de Maria. E, desde então, todos os papas e muitos bispos apoiaram o trabalho de Chiara. Além de comparecer a vários eventos, São João Paulo II visitou o Centro Internacional do Movimento em 1984. E mais recentemente, em 2018, Francisco esteve na cidadela permanente de Loppiano (Itália), na região de Florença.

Em outro paradoxo desta his-tória, enquanto o Movimento sofria restrições na Itália, começava a se expandir para outros países. Em 1958, os primeiros focolarinos chegaram ao Brasil; a segunda Mariápolis do Sul foi realizada aqui em Sorocaba, em julho de 1965, no então Seminário Diocesano ‘São Carlos Borromeu’, na avenida Dr. Eugênio Salerno, por ini-ciativa do então recém-chegado bispo coadjutor dom José Melhado Campos, que havia conhecido a espiritualidade de Chiara durante os intervalos do Concílio Vaticano II em Roma; em 1967, o Movimento chegou ao último continente que faltava, a Oceania. E assim, em todo o mundo, foram se re-produzindo as Mariápolis. Primeiro, como encontros-laboratórios de cida-dezinhas evangélicas; depois, a partir de 1964, como cidadelas permanentes, ‘faróis sobre o monte’, diria Chiara, de sociedades movidas pela lei do Amor. No Brasil, nasceram três, em São Paulo, em Vargem Grande Paulista, pouco adiante da cidade de São Roque, em direção a Ibiúna; Recife e Belém.

À medida que os anos passavam, percebeu-se que a espiritualidade da Unidade pode ser benéfica não somen-te para a Igreja, mas para toda a Huma-nidade. Essa constatação veio também

da sociedade. Chiara recebeu, em menos de dez anos, dezesseis títulos de doutora ‘honoris causa’ e dezessete de cidadã honorária em vários países do mundo. Em Sorocaba, também é nome de rua, proposta logo depois de seu falecimento em 2008 pelo ex-prefeito e ex-vereador Paulo Francisco Mendes à Câmara Municipal.

“Esta espiritualidade comunitá-ria não está ligada necessariamente ao Movimento dos Focolares: ela é universal e, portanto, pode ser vivida por todos”, resumiu Chiara em 1996.

“De fato, através dela foram abertos diálogos fecundos com todos os ho-mens, inclusive com fiéis de outras religiões e com pessoas das mais diversas culturas, que encontram os valores em que creem postos em rele-vo, e juntos nos encaminhamos para a plenitude de unidade à qual todos tendemos”. – ADAPTADO de texto do jornalista Airam Lima Júnior, para a edição de janeiro da revista Cidade Nova, edição brasileira, em homenagem ao centenário de nasci-mento de Chiara Lubich

Chiara Lubich marcou com sua presença carismática a Igreja e a sociedade no século XX. Seu processo de beatificação e canonização está no Vaticano

Quando de sua última visita ao Brasil em 1998, Chiara recebeu a imprensa para falar do carisma da Unidade em São Paulo. O jornalista Vitor Cioffi de Luca, com a esposa Thereza Conceição Grosso de Luca, fundadores do DIÁRIO, estavam presentes

Arqu

ivo/D

S

Arqu

ivo/D

S