Chega de rosa!

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- GUIA DE LEITURA - PARA O PROFESSOR Chega de rosa! Nathalie Hense Ilustrações Ilya Green Tradução Rafaela Moreira dos Santos Faixa etária a partir de 8 anos 36 páginas TEMAS Identidade de gênero / Estereótipos e estigmas / Direito à diversidade A AUTORA Nathalie Hense mora em Raincy, perto de Paris, na França, e traba- lha como redatora publicitária. Sonhava em ser poeta desde pequena, mas só depois de adulta passou a se dedicar à literatura. É autora de Existir! (Edições SM, 2014), em que parodia ideias do filósofo René Descartes de uma perspec- tiva infantil. A ILUSTRADORA Ilya Green nasceu em Provença, no sul da França. Formou-se primeiro em Letras Modernas, depois em Belas-Artes. Publicou seu primeiro livro em 2004, e em 2006 entrou para o ateliê Venture, em Marselha, que reúne ilustra- dores e designers. O LIVRO A protagonista e narradora de Chega de rosa! é uma menina: tem “uma xoxota, cabelos compridos, com presilhas e pedras que brilham” (p. 16). Sua mãe, porém, lhe diz que ela é um “arremedo de menino” (p. 8), porque gosta de coisas “de menino”, como dinossauros, guindastes e insetos, e odeia coisas “de menina”, como bonecas, princesas e cor-de-rosa. Contra- riando as expectativas familiares e reagindo à incompreensão alheia, a protagonista tenta construir a própria identidade como uma garota independente e anticonvencional. Assim, o livro trata, de modo divertido, dos papéis de gênero, esti- mulando o leitor a pensar criticamente sobre os preconceitos e estereótipos sexuais. As coloridas e expressivas ilustrações de Ilya Green completam a obra, traduzindo vivamente os sentimentos e a atmosfera da história.

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- GUIA DE LEITUR A - PA R A O P R O F E S S O R

Chega de rosa!

Nathalie HenseIlustrações Ilya GreenTradução Rafaela Moreira dos SantosFaixa etária a partir de 8 anos36 páginas

TEMAS Identidade de gênero / Estereótipos e estigmas / Direito à diversidade

a autora Nathalie Hense mora em Raincy, perto de Paris, na França, e traba-lha como redatora publicitária. Sonhava em ser poeta desde pequena, mas só depois de adulta passou a se dedicar à literatura. É autora de Existir! (Edições SM, 2014), em que parodia ideias do filósofo René Descartes de uma perspec-tiva infantil.

a ilustradora Ilya Green nasceu em Provença, no sul da França. Formou-se primeiro em Letras Modernas, depois em Belas-Artes. Publicou seu primeiro livro em 2004, e em 2006 entrou para o ateliê Venture, em Marselha, que reúne ilustra-dores e designers.

o livro A protagonista e narradora de Chega de rosa! é uma

menina: tem “uma xoxota, cabelos compridos, com presilhas

e pedras que brilham” (p. 16). Sua mãe, porém, lhe diz que ela

é um “arremedo de menino” (p. 8), porque gosta de coisas “de

menino”, como dinossauros, guindastes e insetos, e odeia coisas

“de menina”, como bonecas, princesas e cor-de-rosa. Contra-

riando as expectativas familiares e reagindo à incompreensão

alheia, a protagonista tenta construir a própria identidade

como uma garota independente e anticonvencional. Assim,

o livro trata, de modo divertido, dos papéis de gênero, esti-

mulando o leitor a pensar criticamente sobre os preconceitos

e estereótipos sexuais. As coloridas e expressivas ilustrações

de Ilya Green completam a obra, traduzindo vivamente os

sentimentos e a atmosfera da história.

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C h e g a d e r o s a ! • N a t h a l i e h e N s e

OBRA EM CONTEXTO

r o s a e a z u l

O título do livro resume o inconformismo da protagonista

com o papel social que esperam que ela represente: o de alguém

que gosta de “coisas de menina” e age como tal. Mas ela não se

ajusta a esse estereótipo de gênero, como mostra sua recusa

ao rosa, um dos maiores símbolos do feminino.

Quando a própria narradora afirma, logo no início do livro:

“Meninas normalmente gostam de rosa” (p. 6), ao explicar sua

preferência pelo preto, ela assume o pensamento hegemônico

sobre masculino e feminino, que tende a naturalizar aspectos

construídos socialmente. Mas, na verdade, o fato de muitas

meninas preferirem o rosa deve-se ao uso estereotipado da

cor. Quando uma mulher engravida, o sexo do bebê costuma

determinar a cor do enxoval: rosa para meninas, azul para

meninos. Outras marcas são usadas, sobretudo nas meninas,

para reafirmar o sexo do bebê: brincos, lacinhos e faixas na

cabeça, pulseirinhas. Há uma expectativa social de que o gê-

nero da criança seja determinado com urgência e esteja em

estereótipo

Muitas vezes, em vez de analisar as particularidades de uma situação concre-ta, real, recorremos a opiniões ou ideias preconcebidas, os chamados estereótipos. Essas ideias simplificadas e generalizan-tes são empregadas em grande parte por um princípio de economia: é mais fácil recorrer a esquemas e modelos já esta-belecidos, que traduzem uma espécie de consenso, do que avaliar e interpretar continuamente a realidade.

O estereótipo tem um caráter não ape-nas descritivo (nomeando e classificando indivíduos, grupos e fenômenos), como prescritivo e proscritivo. Prescritivo porque contém recomendações de como se deve ser ou agir (a exemplo do incentivo ao uso do rosa entre meninas); proscritivo porque estabelece proibições (como o tabu em relação a vestir meninos de rosa).

Vê-se então que os estereótipos não são neutros. Ao contrário, são veículo para a manifestação de preconceitos, orientando o tratamento que se dá a determinados gru-pos e pessoas. Quando o tomamos como verdade imutável, sem refletir criticamente sobre ele, fechamos os olhos à diversidade de situações, grupos e indivíduos, com suas múltiplas singularidades, experiências e maneiras de ser. As pessoas são então classificadas e julgadas de acordo com sua idade, aparência física, etnia, sexo, meio social, orientação sexual, religião etc.

A adesão aos estereótipos pode dar mar-gem a discursos e práticas discriminatórios; daí a importância de desconstruí-los. É o que a narradora de Chega de rosa! faz, evocando a voz do pensamento hegemô-nico — “meu pai diz”, “minha mãe diz”, “todos dizem” — para em seguida negá-la, estabelecendo a própria identidade e seu direito de transgredir os estereótipos.

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correspondência direta com o sexo biológico. A sociedade, em

geral, reluta em reconhecer um lugar para o andrógino ou o

indefinido, que geram desconcerto e desconforto.

Hoje, alguns pais tentam fugir do estereótipo, evitando essas

marcas convencionais do feminino e vestindo as meninas de

azul, por exemplo. Mas é mais difícil encontrar pais que vistam

meninos de rosa, mostrando como o estereótipo sexual tem

também um caráter proibitivo, criando tabus. Essas regras e

proibições certamente influenciam as crianças desde peque-

nas, induzindo, quando não pressionando, sua conformação

às identidades sexuais mais aceitas e celebradas socialmente.

Assim, vê-se como a suposta preferência ou inclinação das

meninas pelo rosa não é de modo algum natural, inata, e sim

uma construção sociocultural.

r o u pa s d e m e n i n o s e m e n i na s

A própria história do uso do rosa e do azul prova que os

estereótipos sexuais e os papéis de gênero configuram-se social-

mente. Só há pouco tempo essa distinção passou a ser adotada

e difundida. Durante o século XIX, no mundo ocidental, as

crianças de ambos os sexos em geral eram vestidas de branco.

Mesmo quando outras cores começam a ser usadas em roupas

infantis, em meados daquele século, não havia distinção baseada

em gênero. Além disso, tanto meninos como meninas usavam

vestidos e saias curtas até os cinco ou seis anos de idade, marcando

a diferença entre a infância e a vida adulta, e não entre os sexos.

A partir do final do século XIX, as roupas de menino come-

çam a se distanciar das de menina, com o uso de calças e outras

peças consideradas masculinas cada vez mais cedo. Ainda assim,

levou-se muito tempo até haver um consenso sobre quais seriam

as cores “femininas” e “masculinas”. Muitos defendiam o uso de

rosa para garotos e azul para garotas, baseados em argumentos

como o parentesco do rosa com o vermelho (que seria uma

cor forte e, portanto, masculina), e a associação do azul com

a Virgem Maria, usualmente representada na tradição católica

usando essa cor. Não houve um acordo sobre o gênero das duas

cores até meados do século XX, quando o rosa começou a se

cristalizar como feminino.

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s e x o e g ê n e r o

Construção social

Em Chega de rosa!, vemos o esforço de uma menina tentando

desconstruir o discurso dos pais e da escola. A situação é difícil

porque essas são as principais fontes de autoridade para a crian-

ça: o que pai e mãe dizem costuma ser tomado como verdade

absoluta, lei; o que se ensina na escola, também, embora em

menor grau. A casa ainda é o ambiente em que a criança deveria

sentir-se mais segura e acolhida, confortável para expressar-se

livremente. Assim, não é de espantar que a criança sinta-se

confusa e desamparada ao constatar o descompasso entre seus

gostos e vontades, seu modo de ser, e o que dela esperam a

família e a escola.

A protagonista mostra ter coragem e força para enfrentar

essas expectativas, procurando argumentos para fortalecer sua

posição. Ela recorre a outras crianças que tampouco agem de

acordo com os padrões; a cada exemplo, lembra a voz dos pais

e da sociedade, mostrando como sua situação é conflituosa:

Augusto faz roupinhas para seus bonecos, “mas minha mãe

diz que costurar é coisa de menina” (p. 12); Carlos gosta de

pintar flores e joaninhas, “como as meninas” (p. 22), e prefe-

riria ter um colar de pérolas ou um bastão de baliza em vez

de carrinhos, “Mas todos dizem que isso é coisa de menina”

(p. 26), e também sofre com a incompreensão alheia: é con-

siderado “sensível demais” (p. 22), e brigam com ele quando

pinta flores nos carrinhos.

Quando a protagonista diz: “Então perguntei em casa por

que as meninas não podem gostar de coisas de meninos e vice-

-versa. E me responderam porque não... Isso lá é resposta?!”

(p. 28), fica claro como os adultos estão despreparados para

lidar com a diferença, colocando em pauta a necessidade de

esclarecimento sobre noções como sexo, gênero e sexualidade.

Os termos “sexo” e “gênero” possuem sentidos distintos,

embora frequentemente sejam tomados como sinônimos. Em

linhas gerais, o sexo pode ser definido a partir das diferenças

biológicas nos genitais, cromossomos e características sexuais

secundárias, ao passo que o gênero diz respeito às noções de

masculinidade e feminilidade construídas do ponto de vista

sociocultural. Assim, uma pessoa do sexo feminino pode assu-

mir um papel de gênero com características tradicionalmente

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masculinas, por exemplo, escapando aos estereótipos cultu-

rais. Isso pode, ou não, corresponder à orientação sexual do

indivíduo, que aparece como um terceiro conceito, indicando

se ele é homossexual, heterossexual, bissexual, assexual ou se

assume algum outro tipo de sexualidade que não se encaixa

nas definições mais comuns, distante da distinção binária entre

masculino e feminino.

No seu processo de autoafirmação, a protagonista de Chega de

rosa! reflete justamente sobre a distinção entre sexo e gênero, ao

observar a si mesma e a seus amigos. Ela sabe que é uma menina,

por sua anatomia e alguns traços físicos e também culturais, mas

gosta de uma porção de coisas que seu pai classifica como “coisa

de menino” (p. 20): pedras, fósseis, dinossauros, “histórias dos

primeiros homens”, insetos, aranhas, minhocas, guindastes. Ela

também sabe que Augusto e Carlos são meninos “de verdade”

(p. 14), embora gostem de atividades consideradas femininas.

Sabe que ela e seus amigos podem escolher seu modo de ser de

acordo com suas preferências e se rebela contra a classificação

que a mãe tenta lhe impor, chamando a filha de “arremedo de

menino” (p. 8) e negando-lhe identidade própria. A definição

materna ocorre por negação, não por afirmação; ocorre, por-

tanto, pelo erro, pela falta: ela não é nem menina nem menino

“de verdade”: “parece, mas não é” (pp. 8-10).

A menina reverte, bravamente, a suposta falta a seu favor,

rebelando-se contra os pais: “Eu não quero mais ser vista

como um remendo de menino. ‘Arremedo’, minha mãe me

corrige. Tanto faz, não quero mais! Não quero por me achar

uma menina perfeita, mesmo que eu não goste de rosa. Nem

ligo, não sou obrigada a gostar” (pp. 30-2). Assim, ela assume

seu direito de ser menina e exercer uma identidade de gênero

própria, baseada em seus gostos e não em uma suposta de-

terminação biológica.

Histórico

A distinção entre sexo como termo biológico e gênero como

termo social, cultural e psicológico começou a ser difundida

nos anos 1970, graças à atuação de correntes políticas e teóricas

do feminismo. Essa distinção permitia o reconhecimento das

diferenças sexuais ao mesmo tempo que se fazia a crítica da

desigualdade de gêneros, liberando a mulher de um destino

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determinado biologicamente. A obra da socióloga britâni-

ca Ann Oakley (1944-) contribuiu em grande parte para a

popularização dessa diferença, investigando os processos de

socialização como responsáveis pela conformação das pessoas

a noções tradicionais de masculino e feminino. O debate so-

bre sexo e gênero tem, contudo, diversos antecedentes, como

a obra da filósofa francesa Simone de Beauvoir (1908-1986)

e as pesquisas do psicólogo John Money (1921-2006) e do

psiquiatra Robert Stoller (1924-1991).

Hoje, a distinção entre sexo e gênero é largamente utilizada,

sendo adotada por entidades como a Organização Mundial

da Saúde e a Aliança Gay e Lésbica contra a Difamação, or-

ganização não governamental dos Estados Unidos. Contudo,

não existe consenso sobre a distinção entre sexo e gênero, nem

sobre a definição desses termos. No livro Problemas de gênero:

feminismo e subversão da identidade (Civilização Brasileira,

2003), a influente teórica norte-americana Judith Butler

(1956-) faz uma revisão da teoria feminista, dissolvendo a

dicotomia entre sexo e gênero. De acordo com ela, a própria

noção de sexo é fruto de construção sociocultural. O sexo não

seria, portanto, pura determinação biológica. Para a autora

haveria, sobretudo no Ocidente, uma exigência opressora

de coerência entre sexo, gênero e uma prática ou exercício

da sexualidade compulsoriamente heterossexual. Assim, os

transexuais e transgêneros surgiriam como a subversão total

dessa ordem social.

Enquanto as ciências sociais desenvolvem os estudos

de gênero da perspectiva sociocultural, as ciências naturais

investigam a possibilidade de diferenças biológicas e gené-

ticas influenciarem a formação da identidade de gênero nos

indivíduos. Alguns teóricos e pesquisadores criticam a dico-

tomia sexo/gênero argumentando ser enganosa e, no limite,

impossível, a separação entre fatores biológicos e sociais, entre

natureza e cultura.

Independente das divergências teóricas, o fundamental é

o reconhecimento e a crítica do uso social das diferenças, e a

necessidade de exercer a tolerância e a aceitação em relação

aos diferentes modos de configuração e existência do sexo, do

gênero e da sexualidade. Combater os estereótipos sexuais é um

passo importante na eliminação do preconceito, da exclusão,

da desigualdade e da violência baseada no sexo e no gênero.

Nesse sentido, a ação pedagógica da família e da escola na luta

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contra a intimidação ou assédio escolar (bullying, em inglês)

é de extrema importância, bem como o uso dos veículos de

comunicação e publicidade, que tendem a criar, reproduzir e

reafirmar estereótipos.

A protagonista de Chega de rosa! propõe que vejamos a rea-

lidade a contrapelo, refletindo sobre o mundo de modo crítico,

propondo novos discursos e atitudes em face da diversidade,

enunciando o direito à diferença com o trocadilho “Chega

de rosa, pronto! E para sempre eu quero ter uma aranha ‘na

telha’...” (p. 34).

b r i n ca n d o c o m o s pa p é i s d e g ê n e r o

Em países de língua inglesa, criou-se um termo para

pessoas que fogem aos estereótipos sexuais, identificando e

expressando seu gênero de modo não convencional: “gender

creative”, que às vezes é traduzido como “gênero-criativas”.

Outros termos utilizados em português são “gênero-fluidas”,

“gênero-independentes” ou “gênero-não-conformistas”.

Esses termos são interessantes porque fogem da classificação

médica. O fato de uma criança manifestar gostos geralmente

relacionados ao sexo oposto ou preferir ser tratada de acordo com

seu sexo de “escolha” não significa necessariamente que ela tenha

transtorno de identidade sexual na infância. O comportamento

também não determina a sexualidade futura, embora crianças

não conformistas em relação ao gênero possam, futuramente,

vir a fazer parte da comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bisse-

xuais e Transgêneros). Membros dessa comunidade advogam,

em geral, que a sexualidade não é uma escolha, mas algo inato,

daí a substituição do termo opção sexual por orientação sexual.

Em todo caso, costuma haver concordância quanto ao fato de

que os costumes relativos a brinquedos, brincadeiras, roupas e

outros são adquiridos socioculturalmente.

Atribuir características psicológicas ao sexo é também uma

escolha: independência, agressividade e dominância são, para

o senso comum, traços masculinos valorizados nos meninos,

ao passo que sensibilidade, gentileza e emotividade são traços

femininos valorizados nas meninas. Esses mesmos traços são

indesejáveis e desestimulados no sexo oposto – o personagem

de Carlos é julgado “sensível demais” simplesmente por fugir a

esse padrão de comportamento.

trocadilho

Chamado formalmente de paronomásia, é uma figura de linguagem que consiste na aproximação de palavras diferentes que possuem semelhança fônica, etimológica ou formal. No livro de Nathalie Hense, o trocadilho aparece em torno da principal crítica contra a personagem central, cha-mada pelos próprios pais de “arremedo de menino”. O insuportável, para ela, é a pa-lavra “arremedo”, que ela logo transforma em “remendo”. De fato, arremedo é o que não está completo, o que não é perfeito, o que foi malfeito; assim como um defeito na roupa, que precisa ser remendado.

Outro trocadilho — agora entre as palavras “telha” e “teia” — surge quando ela tenta entender a acusação de sua mãe fazendo uma comparação: “É como dizer ‘aranha na telha’ em vez de ‘aranha na teia’: parece, mas não é. Eu tenho uma aranha ‘na telha’, na cabeça: pareço, mas não sou...” (p. 10). A garota escolhe um de seus assuntos preferidos (as aranhas), considerado de interesse tipicamente masculino, para apropriar-se do discurso materno, usando-o a seu favor e criando uma excelente metáfora para seu modo de ser. Se gostar de coisas “de menino” é considerado uma maluquice, então ela prefere ter uma “aranha ‘na telha’” a conformar-se às expectativas alheias. Ter uma “aranha ‘na telha’” significa, para ela, ser uma menina bem-sucedida, completa, e não um “arremedo de menino” — além do fato de ela amar as aranhas... A protagonista, esperta, engraçada e cheia de recursos, faz uma operação comum nos movimentos de luta contra a discriminação: retoma para si o uso de palavras antes usadas como xingamentos; positiva termos antes usados pejorativamente, destituindo assim os ofensores de um poderoso instrumento de agressão, a linguagem.

transtorno de identidade sexual na infância

De acordo com a terminologia da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, conhecida como CID e publicada pela Organização Mundial da Saúde, essa condição é caracterizada

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Em todo caso, empregar a designação “crianças gênero-

-criativas” tem o mérito de afastá-las dos estereótipos,

dando-lhes espaço e liberdade para se expressar. Muitos

indivíduos e entidades têm se esforçado no sentido de de-

sestigmatizar as experimentações infantis com os papéis de

gênero, mostrando-as como naturais, saudáveis, merecedo-

ras de respeito e crédito por parte dos pais, da escola e da

sociedade em geral. O site gendercreativekids.ca, mantido

por grupos e organizações canadenses, procura fornecer

recursos para o apoio de crianças gênero-criativas e suas

famílias, escolas e comunidades. Nos Estados Unidos, a

escritora Lori Duron criou um blog pioneiro, narrando sua

experiência em criar um filho gênero-criativo: raisingmy-

rainbow.com. O blog foi transformado no livro Raising My

Rainbow: Adventures in Raising a Fabulous, Gender Creative

Son [Criando meu arco-íris: aventuras na criação de um

fabuloso filho gênero-criativo] em 2013. Nele, a autora res-

salta a importância de nomear e afirmar o comportamento

do filho para lutar contra o preconceito e o abuso de poder:

ao dar ao comportamento do menino uma explicação e um

nome “legítimos”, Duron descobriu que conseguia desarmar

os possíveis intimidadores e agressores dele. Assumir o modo

por “um persistente e intenso sofrimento com relação a pertencer a um dado sexo, junto com o desejo de ser (ou a insistên-cia de que se é) do outro sexo. Há uma preocupação persistente com a roupa e as atividades do sexo oposto e repúdio do próprio sexo. O diagnóstico requer uma profunda perturbação de identidade sexual normal; não é suficiente que uma menina seja levada ou traquinas ou que o menino tenha uma atitude afeminada”. (Fonte: Classificação Estatística Interna-cional de Doenças e Problemas Relacio-nados à Saúde. 10. ed. v. 1. São Paulo: OMS/Edusp, 2007, p. 358.)

Já na mais recente versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, conhecido como DSM-V, publi-cado em maio de 2013 pela Associação Americana de Psiquiatria, o termo “trans-torno” foi revisto e substituído por “dis-foria”. O novo termo teria a vantagem de remover o estigma que a palavra “trans-torno” possui, e sua adoção foi come-morada por membros da comunidade de transexuais e transgêneros. Além disso, a disforia de gênero passou a constituir uma seção independente, separada do capítulo sobre disfunções e transtornos sexuais, e o DSM-V procurou ser mais específico e cuidadoso no diagnóstico em crianças. Seus autores afirmam ainda que o “não conformismo de gênero” não é em si mes-mo um distúrbio mental, e que a disforia de gênero só pode ser diagnosticada se existir sofrimento e angústia significan-tes do ponto de vista clínico, e se a não identificação com o sexo de nascimento provocar impedimentos na vida social e nas ocupações normais do indivíduo.

Mesmo assim, o DSM-V tem sofrido diversas críticas desde sua publicação. Uma das principais diz respeito à própria natureza do Manual, que tenderia a pato-logizar estados e situações que fazem parte da vida (o luto, por exemplo), abrindo portas para a abordagem medicamentosa de qualquer tipo de condição mental.

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de ser do filho, abertamente, sem disfarces ou vergonha,

tirou sua família da condição de vítima, colocando-a numa

posição de poder. Daí a importância das ações afirmativas,

como as diversas Paradas do Orgulho LGBT que acontecem

ao redor do mundo, no sentido de educar a sociedade para

a tolerância e o respeito às diferenças.

As crianças gênero-criativas precisam acima de tudo ser

aceitas e tratadas com respeito pelos pais, pois é fundamental

para elas que o ambiente familiar seja o lugar mais seguro

possível, onde se sintam confortáveis e amadas. Os meninos

Augusto e Carlos, assim como a protagonista de Chega de

rosa!, podem ser considerados gênero-criativos, já que não

atendem as expectativas da sociedade sobre sua expressão

ou identificação de gênero. Os pais da menina julgam seu

comportamento errado, como se por isso não fosse inteira,

perfeita: é o que se percebe quando a menina é chamada de

“arremedo de menino”. Vê-se que a pressão sobre as crianças

não faz com que abandonem o comportamento considerado

errado, mas gera angústia, raiva, tristeza e frustração, porque

as pessoas que mais lhes deveriam dar amor e proteção negam

e combatem seu modo de ser.

As pesquisas mais recentes em pediatria e psicologia infantil

sugerem ainda que a criança que cresce num lar extremamente

repressivo tem mais possibilidade de desenvolver um quadro

de depressão grave no futuro, expondo-se a situações de risco

e autodestrutivas, como o uso de drogas pesadas e a prática

de sexo sem proteção.

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NA SALA DE AULA

1. Um dos principais temas do livro é a separação entre

“coisas de menino” e “coisas de menina”. Como exercício

inicial, o professor pode pedir que cada aluno faça indivi-

dualmente uma lista com coisas que considera masculinas

e femininas, incluindo brinquedos, brincadeiras, cores,

roupas, desenhos animados, programas de televisão,

filmes, livros, bichos e profissões, além de sentimentos,

atitudes e comportamentos. As listas e opiniões devem

ser compartilhadas em sala de aula; a partir do que os

alunos oferecerem, o professor pode organizar um debate,

procurando sempre abordar o assunto de modo crítico.

Por que determinado aspecto da cultura foi colocado no

campo do feminino ou do masculino? Pode-se afirmar

que uma cor ou um brinquedo pertence a um sexo es-

pecífico, ou cores e brinquedos são para todos? E quanto

aos sentimentos? Somos livres para sentir e agir como

queremos, sem julgamentos?

2. Após essa primeira discussão, o professor pode propor

que façam uma pesquisa em grupos sobre as diferenças

culturais e comportamentais entre o Brasil e outros

lugares do mundo, entre nossa época e épocas ante-

riores, mostrando como os papéis de gênero variam.

Na Antiguidade e na Idade Média, homens e mulheres

usavam o mesmo tipo de túnica. Em países do norte

da África os homens ainda usam túnicas, assim como

na cultura tradicional escocesa existe o kilt, um saiote

masculino. Em alguns países do Oriente Médio, os

homens costumam passear de mãos ou braços dados e

cumprimentar-se com beijos. O próprio hábito brasi-

leiro de furar as orelhas das meninas ainda bebês não

é comum nos Estados Unidos e em países europeus. A

pesquisa resultaria em um novo debate em sala de aula,

no qual o professor poderia introduzir os conceitos de

sexo, gênero e sexualidade. Pode-se aproveitar também

para discutir as noções de empatia, tolerância e aceitação

em relação a formas diferentes ou não convencionais de

comportamento e gosto.

Para saber maisPara o aluno

FILMES

• Billy Elliot. Direção: Stephen Daldry. Reino Unido, 2000, 110 min.

Tendo como pano de fundo uma greve de mineradores, o filme mostra a trajetória de um garoto de onze anos que aspira tornar--se bailarino profissional, lutando contra o preconceito familiar e social.

• Frozen: Uma aventura congelante. Direção: Chris Buck e Jennifer Lee. Estados Unidos, 2013, 102 min.

Quando, sem saber, a jovem rainha Elsa condena seu reino a um inverno eterno e foge, cabe à sua irmã Anna deixar para trás a boa vida de princesa para salvar ambos. Esta história com protagonistas fortes e cora-josas que tomam as rédeas de seu destino é a animação de maior bilheteria da história.

• Valente. Direção: Mark Andrews, Brenda Chapman e Steve Purcell. Estados Unidos, 2012, 93 min.

Todos querem que Merida seja uma prin-cesa comportada e se case em breve, mas a garota não tem o menor interesse nisso. Caberá a ela salvar sua família e impedir que o reino entre em guerra.

LIVROS

• Bruel, Christian; GALLAND, Anne; BOZELLEC, Anne. A história de Júlia e sua sombra de menino. São Paulo: Sci-pione, 2010.

Os pais de Júlia sempre dizem que ela pa-rece um menino, no jeito, nas roupas etc. Uma manhã, ela percebe que sua sombra assumiu o formato de um garoto e acaba questionando sua própria identidade.

• Martins, Georgina. O menino que brincava de ser. São Paulo: DCL, 2013.

Garoto quer fazer o papel de bruxa em peça da escola e vira alvo do preconceito dos colegas e até dos adultos.

• riBeiro, Marcos. Menino brinca de boneca? São Paulo: Moderna, 2011.

Meninos podem chorar e usar cor-de-rosa? Meninas podem jogar futebol e subir em árvores? Levantando perguntas assim, o li-vro trata de questões de gênero de maneira simples e clara para as crianças, citando

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3. O professor também pode orientar uma pesquisa em

grupo sobre o papel que a internet, a televisão, a publi-

cidade, o cinema, a literatura e os video games possuem

na manutenção dos estereótipos sexuais e nos modelos

de masculinidade e feminilidade, e buscar exceções. Os

resultados da pesquisa seriam apresentados e discutidos

em sala de aula.

4. Outra possibilidade de abordagem do tema é propor aos

alunos que escolham algo de que gostem muito, como

uma peça de roupa, um brinquedo, uma atividade. Então,

cada um deverá imaginar que teve de se mudar com sua

família para um país imaginário, totalmente diferente, cuja

cultura condena, por alguma razão, aquilo que escolheu,

seja em função do sexo, da idade ou de algum outro fator.

Como seria lidar com o preconceito na vida cotidiana, na

escola, na rua, nos compromissos sociais? Como seria so-

frer o assédio e a intimidação de colegas preconceituosos?

Como o aluno se sentiria? Como agiria? Como esperaria

que sua família e seus amigos se comportassem? A ideia

é escrever uma história em primeira pessoa sobre tudo

isso, e aqueles que quiserem poderão compartilhá-la com

a turma, lendo a redação em voz alta ao final.

5. Os alunos podem utilizar os resultados de suas pesquisas

sobre diferenças culturais e comportamentais para criar

uma galeria de personagens, com a ajuda do professor de

artes. A criação pode valer-se de técnicas mistas, como

pintura, desenho, colagem, fotografia etc. A principal ins-

trução para a realização do trabalho é que haja um ponto

de vista empático entre o artista e o personagem retratado,

que pode ser baseado em uma pessoa real ou totalmente

inventada. É importante que não haja caricaturização

ou ridicularização, por isso a importância de fazer esta

atividade após as diversas rodadas de pesquisa e debates

entre os alunos. A conclusão pode ser uma exposição na

escola, tendo como tema a diversidade.

elaBoração do guia Chantal Castelli (poeta e doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo – USP); edição Fabio Weintraub e Lígia Azevedo; revisão Carla Mello Moreira.

exemplos de situações que acontecem na escola e em casa.

• WoJtoWicZ, Jen. O menino que flores-cia. Trad. de Maria Luiza X. de A. Borges. São Paulo: Edições SM, 2006.

Após cada noite de lua cheia, a mãe de Vicente precisa podar as flores que brotam no corpo do menino, para que ele não seja malvisto na escola.

Para o professor

INTERNET

• “Laerte faz resenha em quadrinhos sobre questões de gênero.” Ilustrada, Folha de S.Paulo, 5 jan. 2013. Resenha em quadrinhos sobre o livro Judith Butler e a teoria queer, de Sara Salih (São Paulo: Autêntica, 2012).

Laerte apresenta, de forma crítica e diver-tida, algumas reflexões sobre sexo, gênero e sociedade, incluindo sua experiência como transgênero.Disponível em: <www1.folha.uol.com.br/ilustrada/121055-laerte--faz-resenha-em-quadrinhos-de-livro--sobre-questoes-de-genero-veja.shtml>. Acesso em: jan. 2015.

• Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, da Universidade de Campinas (Unicamp).

Traz bom material de pesquisa sobre as questões de gênero, em diferentes áreas do conhecimento, e dá acesso ao perió-dico Cadernos Pagu, que contém artigos, documentos e resenhas sobre o assunto. Disponível em: <www.pagu.unicamp.br>. Acesso em: jan. 2015.

LIVROS

• AUAD, Daniela. Educar meninas e me-ninos: relações de gênero na escola. São Paulo: Contexto, 2006.

Pesquisa de doutorado que analisa a esco-la mista e propõe a coeducação, trazendo à tona as relações de gênero na escola e o desenrolar das diferenças hierarquizadas entre os sexos.

• TEIXEIRA, Cíntia Maria; MAGNABOSCO, Maria Madalena. Gênero e diversidade: formação de educadoras/es. Belo Horizon-te: Autêntica, 2010.

De modo claro e objetivo, apresenta os principais temas relacionados à problemáti-ca de gênero, fornecendo subsídios para os professores de ensino fundamental e médio.