Chefes de Grupo e Grupos de Chefes - Guilherme Falleiros - Versão Revista

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Chefes de grupo e grupos de chefes 1 Guilherme Lavinas Jardim Falleiros Doutor em Antropologia Social Centro de Estudos Ameríndios (USP) Discorro sobre as classes de idade a’uwe-xavante (povo Jê habitante do Mato Grosso, Brasil), chamadas de da’utsu (grupo), evidenciando sua relação com o que se convencionou chamar de “chefia ameríndia”, com a assimetria (e sua inversão) bem como com noções de pessoa e magnificação. Essas classes são dotadas, cada qual, de diversos cargos cosmopolíticos e encargos de liderança – os chefes de grupo (transmitidos pelo parentesco, fazendo o elo entre a política linhageira e a contra-política coletiva). Todavia, todos os membros de uma classe são considerados, perante um grupo subalterno, como chefes: ‘roti’wa (conselheiros) e idzu (termo que Maybury-Lewis entendeu como distinção política e que os A’uwe-Xavante relacionam à extensão e intensidade corporal). Sempre os mesmos grupos se sucedem num ciclo de oito, revertendo a hierarquia numa “troca generalizada”. Em sua relação com as mulheres e com a periferia da aldeia, lugar do pleno parentesco, manifestam no pátio um panóptico invertido, sob vigilância. Tornar-se e engrandecer-se como humano, sobretudo para o sexo masculino, passa pelo trabalho ritual nesses grupos e cargos, engrandecendo também o próprio grupo. Em certo sentido, o grupo faz as vezes de um “chefe”: guerreiro, serve ludicamente à pacificação, deve ser generoso e entrega-se festivamente ao coletivo. O sistema de classes de idade opera como uma máquina orgânica (de corporações corporais) de guerra e paz, fazendo do jogo uma guerra atenuada. 1 Trabalho apresentado ao Grupo de trabalho “Chefia, Política e Hierarquia na América indígena”, X Reunião de Antropologia do Mercosul (RAM), Córdoba (Argentina), 2013. Organizadores: Antonio Guerreiro Jr. (Unifal/Brasil), Helena Schiel (EHESS/Paris e Unesp-Marília/Brasil) e Diego Villar (CONICET/Argentina). Os itálicos serão utilizados para termos em língua a'uw -xavante ou no português  falado pelos A'uw -Xavante.

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Chefes de grupo e grupos de chefes1

Guilherme Lavinas Jardim Falleiros 

Doutor em Antropologia Social 

Centro de Estudos Ameríndios (USP)

Discorro sobre as classes de idade a’uwe­xavante (povo Jê habitante do Mato 

Grosso, Brasil), chamadas de da’utsu  (grupo), evidenciando sua relação com o que se 

convencionou chamar de “chefia ameríndia”,  com a assimetria (e sua inversão) bem 

como com noções de pessoa e magnificação. 

Essas   classes   são   dotadas,   cada   qual,   de   diversos   cargos   cosmopolíticos   e 

encargos de liderança – os chefes de grupo (transmitidos pelo parentesco, fazendo o elo 

entre a  política  linhageira e a contra­política  coletiva). Todavia, todos os membros de 

uma   classe   são   considerados,   perante   um  grupo  subalterno,   como   chefes:  ‘roti’wa 

(conselheiros) e idzu (termo que Maybury­Lewis entendeu como distinção política e que 

os A’uwe­Xavante relacionam à extensão e intensidade corporal). Sempre os mesmos 

grupos  se   sucedem   num   ciclo   de   oito,   revertendo   a   hierarquia   numa   “troca 

generalizada”. Em sua relação com as mulheres e com a periferia da aldeia, lugar do 

pleno parentesco, manifestam no pátio um panóptico invertido, sob vigilância. Tornar­se 

e engrandecer­se como humano, sobretudo para o sexo masculino, passa pelo trabalho 

ritual   nesses  grupos  e   cargos,   engrandecendo   também   o   próprio  grupo.   Em   certo 

sentido, o grupo faz as vezes de um “chefe”: guerreiro, serve ludicamente à pacificação, 

deve ser generoso e entrega­se festivamente ao coletivo. O sistema de classes de idade 

opera como uma máquina orgânica (de corporações corporais) de guerra e paz, fazendo 

do jogo uma guerra atenuada. 

1  Trabalho apresentado ao Grupo de trabalho “Chefia, Política e Hierarquia na América indígena”, X Reunião   de   Antropologia   do   Mercosul   (RAM),   Córdoba   (Argentina),   2013.   Organizadores:   Antonio Guerreiro   Jr.   (Unifal/Brasil),   Helena   Schiel   (EHESS/Paris   e   Unesp­Marília/Brasil)   e   Diego   Villar (CONICET/Argentina). Os itálicos serão utilizados para termos em língua a'uw ­xavante ou no portuguêsẽ  falado pelos A'uw ­Xavante.ẽ

Com base em etnografia própria, tomo criticamente referências em reflexões de 

Maybury­Lewis sobre a relação entre linhagens e classes de idade; Marcel Mauss sobre 

dádiva, pessoa moral e a importância de classes de idade para organizações “entre a 

anarquia e o Estado”; de Lévi­Strauss sobre reciprocidade,  hierarquia,  jogo, chefia e 

desequilíbrio   instável;  enfim,  de  política  ameríndia  em autores  que  vão  de  Michael 

Lowie a Renato Sztutman.

Classes de idade como corporações corporais

Os A'uw ­Xavante dividem­se num sistema agâmico de oito classes de idade emẽ  

que a participação feminina é mínima (como será considerado adiante), e essas classes 

separam­se em duas metades agâmicas, formando duas engrenagens de quatro dentes. 

As classes de cada metade são solidárias entre  si,  sobretudo nas corridas de tora,  e 

antagônicas às da outra metade. A diacronia aparece na relação entre as classes mais 

atuantes: a dos patronos dos adolescentes (danhohui'wa), que durante minha estadia em 

campo era a dos  t paẼ ẽ ; a dos jovens recém iniciados ('ritéi'wa), no caso os Abare'u; e a 

dos   adolescentes   (wapté),    Nodzö'u,  afilhados  dos   t paẼ ẽ .   A   classe   mais   velha   é 

solidária à mais nova (que é apadrinhada por aquela) e a “classe” intermediária lhes é 

adversária.  Cada classe atualiza­se (conforme a ordem circular pré  definida)  quando 

suas   insígnias   ( t paẼ ẽ ,  Abare'u,  Nodzö'u  etc.)   encorporam­se   num   novo   grupo   de 

adolescentes no Hö, a casa dos solteiros. O Hö  circula entre as oito classes como num 

sistema   de   “troca   generalizada”   projetado   diacronicamente,   alternando­se   entre   as 

metades agâmicas opostas. A essas classes os A'uw ­Xavante dão o nome de  ẽ grupos, 

traduzindo o termo em sua língua da'utsu (radical: 'utsu).

Cada  grupo  teria   uma   existência   prévia   à   iniciação   dos   jovens:   os  grupos 

costumam ser sempre os mesmos, isto é, com as mesmas insígnias e na mesma ordem 

em   cadeia  (ainda   que   esta   cadeia   apresente   diferenças   ao   se   comparar   “Xavante 

Ocidentais” e “Xavante Orientais” de  Maybury­Lewis 1984 [1967]  –  sem, entretanto, 

alterar a composição das metades agâmicas), constituindo um sistema cíclico, dotado de 

temporalidade circular, de modo que, ao passar das gerações, as mesmas classes seriam 

iniciadoras,   antagônicas   e   iniciadas   umas   das   outras.   Em   cada   metade   agâmica,   a 

mesma classe inicia uma outra e é iniciada por uma terceira, iniciada por uma quarta, 

fechando o ciclo – sem interrompê­lo – quando esta retorna à posição de inicianda.

Cada classe de idade recruta seus membros ou é reconstituída – “reencarnada” é 

o termo usado por Maybury–Lewis (1984 [1967]: 207) a partir da passagem dos wapté, 

pelo  Hö.   O   período   de   sua   formação,   ou   transformação   em   homens,   durante   sua 

permanência no Hö, costuma ir de três a cinco anos, depois do que seus membros são 

iniciados pela furação de orelha, saindo de lá com o status de 'ritéi’wa. Tal processo é 

patrocinado   pela   classe   de   idade   na   categoria   dos   jovens   adultos,  ipredupté, 

alternadamente  mais  velha  que   aquela.  Ou   seja,   entre   os  wapté  que  habitam o  Hö 

(chamados de hö’wa) e a classe de idade patrocinadora, existe outra classe de idade já 

formada e adversária  à  deles,  na categoria  de  ritéi’wa.  Essa categoria  de  idade não 

suportaria mais de uma classe de idade durante o mesmo período, a não ser por um 

curto tempo de transição ritual. As noções de categoria de idade não devem ser tomadas 

como um quadro de classificação rígido, já que os A'uw ­Xavante possuiriam formasẽ  

de se referir a subdivisões dele (Giaccaria e Heide 1972: 121), ou com sufixos do tipo 

“mais novo”(­(a)pté) e “mais velho” (­'rada).

Este esquema lista as categorias de idade mais ativas no sistema de classes de 

idade, com as respectivas posições das classes:

Categorias de idade // Posição das classes // Classes que a ocuparam no momento 

etnográfico

dapredupté    (  dapredu   )   //      classe patrocinadora (   dañohui’wa   ) dos    hö’wa    //     t paẼ ẽ   

'ritéi’wa    //    classe adversária aos    hö’wa    //    Abare'u   

wapté    // classe dos    hö’wa    //    Nodzö'u   

As classes de idade se relacionam ciclicamente conforme o esquema a seguir, 

uma “engrenagem” composta de duas “rodas dentadas” (que figuro na forma de estrelas 

de  quatro  pontas),   como   sugere  Maybury­Lewis   (1984:   215–216),   cuja   posição  dos 

“dentes” é baseada no meu momento etnográfico:

Note­se que cada uma das duas metades – que não são nominadas pelos A'uw ­ẽ

Xavante, pinto­as nas cores branca e preta para fins didáticos – é composta por quatro 

classes de  idade – que simbolizei  a partir  das duas primeiras   letras de seus nomes, 

Nodzö'u,  Abare'u,  t pa, Tirówa, Hötörã,  Ai'rere, Tsada'ro  Ẽ ẽ e  Anarowa  (o  leitor não 

deve   confundir   as   iniciais   HÖ   da   classe  Hötörã  com   a   palavra  Hö,   Casa   dos 

Adolescentes). O eixo de encontro entre elas coloca em relação as três classes de idade 

mais atuantes ritualmente, sendo que a seta indica, no gráfico, o sentido do movimento 

geracional. Com base no período em que estive em campo, essas classes são, da mais 

nova   (encorporada   ou   “reencarnada”   pelos   habitantes   do  Hö)  para   a   mais   velha: 

Nodzö'u, Abare'u,  t pa, Tirówa, Hötörã, Ai'rere, Tsada'ro Ẽ ẽ e Anarowa.

Maybury­Lewis nota uma discrepância entre a relação destas metades agâmicas 

no tocante aos “Xavante Ocidentais” e “Xavante Orientais”, havendo um descompasso 

se se comparar a “roda dentada” preta dos “Ocidentais” com a “roda dentada” preta dos 

“Orientais”,  como se a metade  preta “oriental” estivesse atrasada em uma geração em 

relação à sua idêntica “ocidental”. Em minha experiência em Sangradouro e na aldeia 

Belém,   as   classes   organizavam­se   da   maneira   “ocidental”,   ainda   que   em   zonas 

geográficas distintas. Isso   se   explica.   Para   Maybury­Lewis,   os   “Xavante   Ocientais” 

incluiriam   aqueles   das   terras   hoje   conhecidas   como   Sangradouro,   São   Marcos, 

Parabubure   e   Marechal   Rondon,   e   os   “Xavante   Orientais”   seriam   os   de   Pimentel 

Barbosa,   Areões   e   Marãiwatséde.   No   entanto,   como   pude   notar,   os  a'uwẽ  

marãiwatséde,  fundadores (dentre outros) da aldeia Belém, além de repovoadores da 

terra   de   Marãiwatséde,   organizam­se   hoje   como   os   “ocidentais”,   talvez   devido   às 

décadas de convivência em Sangradouro e São Marcos. 

Como já notara Maybury­Lewis a respeito do contato entre as diversas aldeias 

a'uw ­xavantes, o descompasso é resolvido, na prática, equiparando­se as classes queẽ  

estão na mesma fase da vida. Ou seja, um membro dos Anarowa “oriental” que viajasse 

para o “ocidente” descobriria que os Ai’rere “lá” eram o mesmo que os Anarowa “cá”, 

segundo a explicação “nativa” (Maybury­Lewis 1984 [1967]: 191–209). 

A equivalência   aproximada  do   sistema de  classes  de   idade  entre  as  diversas 

aldeias é muito importante para a capacidade de magnificação recíproca entre classes de 

idade e aldeias: porque, para os grandes rituais, moradores das mais diversas aldeias 

com quem tem contato são convidados para participar, sobretudo para as corridas de 

tora que sucedem as cerimônias.  A metade agâmica que for capaz de angariar  mais 

colaboradores terá mais condições de vencer a corrida de toras, já que esta – bastante 

cansativa – envolve revezamentos e a quantidade de corredores por time é teoricamente 

ilimitada.  Estas pessoas parecem atraídas tanto pela obrigação de participar e ajudar 

membros da mesma metade agâmica e pela possibilidade de engrandecer sua classe e a 

si  mesmas,  quanto  pela   afluência  da  posterior  distribuição de  presentes   alimentares 

(bolos, carne, refrigerante). 

Outro ponto também bastante comentado a respeito do prestígio adquirido pelos 

homens são as relações destes com as mulheres. Dizem que, na medida que se participa 

de rituais e jogos de futebol entre aldeias, vai­se ficando mais famoso entre as mulheres. 

Muitas vezes rapazes e jovens adultos mudam­se de aldeia por causa da quantidade de 

mulheres e namoradas que tenham lá.  Aldeias grandes, com muitas mulheres (como 

Marãiwatséde  ou  Sangradouro),   costumam atrair   ainda  mais  pessoas,  mais  homens, 

inflacionando­se.

Os  grupos  também acomodam outros   sujeitos  de  maior  prestígio,  os  velhos, 

através do qualificativo  'rada. Por exemplo, os  Nodzö'u  tem como correlato entre os 

velhos que sobreviveram ao ciclo, os Nodzö'umb'rada. E assim por diante. São grupos 

que já  fizeram a roda das classes de idade dar toda sua volta e, agora, observam­na 

recomeçando.

E o  que  circularia  entre  esses  grupos?  O grupo   iniciado  receberia  dos  mais 

velhos,  principalmente  do  grupo  iniciador,  ensinamentos   rituais,   técnicos  e  práticos, 

cantos e a maturidade. Já os patrocinadores, além de adquirirem novos membros para 

seu   time,  para   sua metade  agâmica (não para  sua  classe  de   idade),   também seriam 

presenteados com itens como bolos, carnes, enfeites etc. Uma das formas de transmissão 

de conhecimentos é a dos cantos sonhados, que é geralmente intransitiva – apesar dos 

cantos entrarem para uma memória atualizada em performances no pátio da aldeia, eles 

não são retransmitidos pela classe que os recebeu de uma mais velha – e liga as classes 

de uma mesma metade agâmica.

Várias   atividades   contribuem   para   a   constituição   de   uma   solidariedade 

disciplinada entre as classes. O trabalho coletivo é uma delas (que inclui também a caça, 

considerada como romhuri, “trabalho”). Em época de festas, é em classes de idade que 

os A'uw ­Xavante fazem os preparativos, limpam os caminhos e o pátio da aldeia, numẽ  

clima   de   competição   entre   classes   adjacentes   e   metades   opostas.   É   a   troca   de 

provocações   e   os   chamados   por   cooperação   que   disciplinam   o   trabalho,   no   qual 

lideranças de cada classe tanto podem falar para fazer quanto fazer e dar exemplo, num 

jogo que mistura exposição pública de trabalho a momentos de preguiça e indisciplina 

em que não se dá ouvidos à ordem e à provocação.

Cada classe costuma comer junta, principalmente na casa dos adolescentes, onde 

estes devem dividir entre si a comida que recebem de suas famílias e também alimentar 

a seus padrinhos danhohui'wa. Outro momento de comensalidade são os fins de rituais 

importantes,   quando   uma   classe   mais   nova   dá   à   mais   velha   (principalmente   os 

adolescentes para os danhohui'wa) bolos de milho, de feijão, de arroz etc., estes comem 

um pouco e dão quase tudo, por sua vez, a uma classe ainda mais velha, que come junta 

ou que divide o butim para ser comido em casa.

O sentar­se junto também é um fator de manutenção dessa corporação. Membros 

da mesma classe, mesmo as mais velhas, tendem a sentar­se juntos no warã – pátio ou 

assembléia   aldeã   –,  em   transportes   coletivos   como   ônibus   escolar   e   caçamba   de 

caminhão   (onde   é   comum   que   mantenham   seus   corpos   encostados)   e   na   igreja: 

presenciei  uma missa católica na qual principalmente os homens das três classes de 

idade mais ativas, mas também outros, sentavam­se em locais previamente demarcados 

para  sua  classe.  Outro  momento  fundamental  de  constituição do corpo coletivo das 

classes, principalmente devido à sua unidade rítmica e técnica, são os cantos e danças. 

Além disso,  banhos  coletivos   e   expressões  de   luto   (como a   raspagem dos  cabelos) 

também grupais efetivam uma mistura dos corpos e expressões de sentimento.

Gostaria  de  deter  a  atenção  no  banho coletivo,  que  chega a  congregar  mais 

membros de uma mesma classe de idade do que a própria dança. É comum que todos os 

membros de uma classe de idade ativa nos rituais se junte para tomar banho de rio. Em 

vários horários, já que os A'uw ­Xavante tomam banhos ao menos três vezes por dia, éẽ  

comum que os  companheiros  de  classe  de   idade  chamem­se  uns  aos  outros  para  o 

banho. Observei o mesmo ocorrendo inclusive entre os anciãos de uma mesma classe. 

Por   outro   lado,   classes   adversárias,   sobretudo   as   adjacentes   e   em   época   de   rituais 

importantes, evitam­se no rio, uma classe espera a outra deixar a água para entrar.

*

A noção de grupos corporais foi formulada por Seeger (1980) com base em sua 

etnografia e a fim de superar dificuldades existentes em noções como “linhagem” e 

“descendência” para casos Jê que não correspondiam a linhas e heranças agnáticas (com 

semelhanças e diferenças frente ao caso a'uw ­xavante, exposto abaixo). Seriam gruposẽ  

unidos   pela   substância   comum,   fluidos   corporais   (sêmen,   sangue),   alimentação   e 

restrições alimentares. Proponho alargar o uso do adjetivo “corporais” para as classes de 

idade a'uw ­xavante,  tomando­as como  ẽ corporações corporais,  a partir dos aspectos 

acima apresentados: na sua constituição é importante certa substancialização comum via 

comensalidade; a técnica do corpo (das danças e cantos); a proximidade do corpo, a 

aproximação do corpo,  seja ao sentar­se, seja ao combinarem­se e misturarem­se os 

corpos no banho; e a expressão corporal do luto através do corte de cabelo. 

“Esfera político­doméstica”

Os A'uw ­Xavante se dividem em duas metades exogâmicas agnáticas, que sãoẽ  

chamadas pelo nome dos dois “clãs” principais, Öwawẽ e Poredza'ono. “Clã” é palavra 

introduzida por Maybury­Lewis como referência a um parentesco comum de origem 

mítica e apropriada pelo vocabulário nativo em língua portuguesa. Öwawẽ traduz­se por 

“rio grande” ou “água grande”, referência também ao Rio das Mortes, que corta o atual 

território a'uw ­xavante, e ẽ Poredza'ono quer dizer “girino” – o que coloca os dois “clãs” 

numa relação complementar de “continente” e “conteúdo” (Vianna 2001).  Haveria um 

terceiro   “clã”,   segundo   Maybury­Lewis,   o  Topdató  ou  Tob'ratató.   Seu   nome   faz 

referência ao círculo pintado nas faces de seus membros durante o  Oi'ó, um ritual de 

luta   infantil   entre   os   membros  dos   “clãs”   opostos,   que   sinaliza   a   disputa   e   a   rixa 

presente entre as metades exogâmicas bem como entre suas frações menores (chamadas 

por Maybury­Lewis de “linhagens”). Nesse ritual, além dos círculos em cada face dos 

Topdató, as faces dos Poredza'ono seriam pintadas com desenhos semelhantes a girinos 

e a dos Öwawẽ com uma forma abstrata que talvez tenha alguma relação com a de um 

rio e suas margens:

         Alguns   a'uw ­xavante   afirmam   que  ẽ Topdató  é   apenas   o   símbolo,   que 

“combinaria” com certas pessoas, famílias e linhagens minoritárias dentre os Öwawẽ. O 

próprio Maybury­Lewis enfraquece um pouco o caráter de “corporação” das metades 

exogâmicas   ao  mostrar   que   imigrantes   de  outras   aldeias   podem  ser  ocasionalmente 

adotados por uma ou outra metade, indiferentemente de sua pertença clânica original. 

Cita  como exemplo  uma  família  Topdató  adotada  pela  metade  Poredza'ono  de  uma 

aldeia (1971 [1967]: 163). Enfim, quanto à misteriosa condição humana dos Toptadó e 

seu   poder   de   exceção   em   relação   ao   parentesco,   ligado   ao   trikster   a'uw ­Xavanteẽ  

Ai'utémanhari'wa,  dono  do antigo ritual de nominação feminina – cargo transmissível 

através da nebulosa cadeia de aparentamento a'uw ­xavante –, tentei dar conta dela emẽ  

trabalho anterior (Falleiros 2011: 239­259).

Enfim, evitando o problema dos “clãs”, Maybury­Lewis prefere a distinção feita 

pelos A'uw ­Xavante entre ẽ waniwimhã (“os do nosso lado”) e watsi're'wa (os do outro 

lado), que não anula a existência da distinção de ao menos duas classes genealógicas, já 

que cada metade é tida como oriunda de uma mesma raiz (Maybury­Lewis 1971 [1967]: 

165­171]: datsina'rada, “a própria raiz”.

Compreende­se   que   o   autor   tenha   levado   em   conta   os   símbolos   “clânicos” 

porque aparecem numa situação ritual que exprime o que os A'uw ­Xavante apresentamẽ  

a respeito das relações entre “clãs” e “linhagens” opostos: relações conflituosas, de luta 

corporal ritualizada e até agressão direta. No  Oi'ó  são usadas bordunas feitas de uma 

raiz irregular, mas outros rituais também envolvem lutas corpo­a­corpo entre membros 

das metades exogâmicas opostas, como o Wa'i, na qual visa­se projetar o adversário ao 

chão. Assisti o vídeo de um ritual de Oi'ó em que os pais de uma dupla de adversários 

mirins entrava na briga, causando tumulto, chamado no vídeo de “guerra”, datsi'wapé, e 

editado em câmera lenta, aumentando o peso dramático da cena. De modo que o Oi'ó 

tanto encena quanto aciona o conflito que os A'uw ­Xavante vêem potencialmente naẽ  

relação entre “clãs”, tanto coloca tal conflito sob controle, numa forma organizada de 

luta, quanto pode produzir seu descontrole.

*

Aquilo que Mauss chamara de “esfera político­doméstica”(Mauss 1981) pode ser 

situada no campo delimitado por  Maybury­Lewis  como o dos  “clãs”,  “linhagens” e 

“facções” formadas por uma “linhagem” e seus aliados políticos (o que inclui aliados 

por casamento).

O termo “linhagem” foi mantido por etnografias mais recentes (como Lopes da 

Silva 1986 e Vianna 2001) sendo utilizado para se referir a pessoas encadeadas por linha 

paterna de mais ou menos quatro gerações, com ênfase nos homens adultos, sobretudo 

em grupos  de   irmãos.   Isso  os   a'uw ­xavante   chamam,   em português,   de  ẽ família  e 

linhagem.   Levando   em   conta   que   o   pertencimento   não   se   dá   somente   em   termos 

genealógicos mas também dependendo da proximidade, do convívio, da comensalidade, 

há uma “assimilação da distância genealógica à distância geográfico­social” (Viveiros 

de Castro 2002:  121),  que gradua e  difere  os  parentes  “de verdade” –  uptabi  – dos 

parentes   distantes   (chamados   também   de  watsiwadi)   da   mesma   metade   exogâmica. 

Assim,   a   “linhagem”   a'uw ­xavante   está   proxima   de   um  ẽ fuzzy   set  ou   “conjunto 

nebuloso”, no qual ser membro não é um estado absoluto, mas uma questão de grau 

(Seeger in Maybury­Lewis e Almagor 1989: 191­208). 

Além   de   seu   caráter   “nebuloso”,   a   “linhagem”   a'uw ­xavante   parece   sofrerẽ  

também   um   forte   efeito   do   princípio   radcliff­browniano   da   “unidade   do   grupo   de 

germanos” (como já notara Seeger para os Jê (1980: 131)). E se para Radcliff­Brawn 

(1952) a transmissão de “propriedade” é algo fundamental na definição da linhagem, 

pode­se dizer que para os A'uw ­Xavante existe um certo tipo de transmissão de possesẽ  

através dos laços agnáticos que, inclusive, levou Maybury­Lewis a traduzir como sufixo 

de “linhagem” o sufixo a'uw ­xavante para “dono”:   ­ẽ tede'wa. Essas posses envolvem 

no geral cargos e encargos rituais, transmitidas de pais para filhos mas também através 

de  outros  meios,   talvez  mais  caóticos.  Aracy  Lopes  da  Silva   (1986)  e  Regina  Polo 

Müller (1976) notaram que tais posses não ficavam presas à linha agnática, podiam ser 

transmitidas   entre   aliados.  E   tais   transmissões  podiam gerar   dúvidas   sobre   a   posse 

legítima,  gerando disputas  e  cisões.  De modo que,  nesse  aspecto,  a   transmissão de 

posses  não delimita  muito  bem uma “linhagem”,  mantendo  seu  caráter   “nebuloso”. 

Desse   modo,   os   “donos”   a'uw ­xavante,   através   da   posse   compartilhada   entreẽ  

“linhagens”  de  “clãs”  opostos,   apontam para   algumas  características  desordeiras  no 

aparentamento a'uw ­xavante.ẽ

Entrei   em  detalhes   com  os   A'uw ­Xavante   acerca   da   transmissão   de   certosẽ  

cargos e encargos rituais específicos, dos quais trata­se a seguir.

Pahöri'wa,   cargo   cerimonial   do   “adorador   do   sol”,   é   posse   de   “linhagens” 

Poredza'ono  e só  pode ser transmitida dentro deste “clã”.  Tébe, cargo cerimonial do 

“adorador da lua”, é posse de “linhagens” Öwawẽ e só pode ser transmitida dentro deste 

“clã”.  Ambos  os   cargos   são  oficializados  em  rituais   após   a   furação  de  orelha  mas 

enquanto a classe de idade ainda permanece no Hö, a casa dos solteiros. Ambos operam 

como nomes próprios. São os cargos dos líderes principais das classes de idade, sendo 

que os Pahöri'wa são levados em mais alta conta que os Tébe. 

Presenciei a “formação” de um rapaz para o cargo de  Tébe.  O garoto veio de 

outra aldeia viver na casa de um avô materno que, por sua vez, vem de uma importante 

família  Pahöri'watede'wa  (o   que   reforça   o   que   dizem   os   A'uw ­Xavante   sobre   aẽ  

preferência de casamentos entre membros de  famílias  de  origem,  que perpetuam em 

suas   posses   personagens   míticos   como  Pahöri'wa  e  Tébe,   mais   importantes   e 

englobadoras   que   as  famílias  comuns,   isto   é,  gente   de   verdade  –  a'uw   uptabiẽ   – 

casarem­se entre si). O rapaz fazia as vezes de um serviçal doméstico para os trabalhos 

mais difíceis.  Seu destaque como trabalhador, rapaz forte e robusto, maior – e mais 

velho – que a maioria de seus companheiros de grupo, também se dava nas atividades 

coletivas. Acabou sendo, enfim, nomeado  Tébe  nos ritos de furação de orelha de sua 

classe de idade. A influência familiar pesou tanto quanto a performance da pessoa.

Atualmente, escolhem­se dois Pahöri'wa e dois Tébe para cada classe de idade. 

A seleção é definida por conselhos, separados, reunindo todos os homens que já foram, 

em cada um dos casos, Pahöri'wa e Tébé, bem como suas linhagens, o que inclui vários 

graus de parentesco. Quem tem a palavra final são os mais velhos e os escolhidos são os 

herdeiros diretos dessas linhagens que estiverem de acordo com o ideal moral e corporal 

dos   cargos:   serem  trabalhadores,   terem boa  oratória,   liderança,  pureza,   respeito   em 

relação às mulheres (todos os adolescentes devem permanecer virgens até  saírem da 

casa dos solteiros) e força corporal, manifesta em corpos fortes e grandes. Assim como 

a   moral,   a   força   e   grandeza   desses   corpos   é   tão   considerada   como   herdada 

substancialmente dos pais quanto depende da performance da pessoa: o longo período 

de bater água no rio que antecede a furação de orelha e que atualmente gira em torno de 

um   mês   (durante   o   qual   os   adolescentes   passam   quase   o   dia   todo   parcialmente 

mergulhados e atirando água para o alto com as mãos juntas, em movimento ritualizado) 

serve para fortalecer os corpos e amadurecê­los mais rápido. Aliás, todo banho tem esse 

fundamento, pois os A'uw ­Xavante dizem que  ẽ öwahödzé  dapredubdzé, “a água fria 

amadurece”, e esse “amadurecer” não tem um sentido unidirecional, mas o de ápice da 

maturidade, porque os banhos também retardam a velhice. No banho, os adolescentes 

passam em si  o  wedenhõrõtõ,   entre­casca  de árvore   responsável  por   fazer  o  cabelo 

crescer mais rápido, mais liso e mais preto, como cabelo de gente (a'uwẽ) deve ser. Os 

futuros  Pahöri'wa  e  Tébé,   sobretudo os  primeiros,  como observei,   costumam  tomar 

liderança no incentivo às atividades aquáticas, clamando a todos para bater água. Nesse 

processo tanto o corpo de cada um quanto o do coletivo é  posto em evidência,  e a 

fraqueza de um, a preguiça, a falta de participação, coloca em jogo a reputação de todo 

o corpo da classe de idade. O todo está em todas as suas partes.

Enfim,  a   escolha  dos  oficiantes  do  cargo  para   cada  classe  de   idade  envolve 

disputas e arranjos entre diferentes linhagens possuidoras do mesmo cargo, o que varia 

conforme a   influência  política  de  cada  uma  na  aldeia,  o  que   fora  bem notado  por 

Maybury­Lewis, percebendo que os chefes de aldeia costumavam conseguir alocar seus 

próprios   filhos  nesses   cargos.  Segundo o  autor,   esses   cargos  ajudam a   treinar   seus 

herdeiros para um dia tomarem a liderança da aldeia ou de parte dela. Isso porque uma 

aldeia pode ter mais de um “chefe”, o que hoje em dia, com as relações com o Estado 

brasileiro e a Fundação Nacional do Índio, se traduz na presença de um “cacique”, um 

“vice­cacique” e de pessoas proeminentes que se comportam como chefes,  como os 

“presidentes”   de   associação   indígena   –   dando   muitos   presentes   à   aldeia,   atraindo 

recursos  de  fora através  de “projetos”,  organizando reuniões  entre  diversas  aldeias.  

Recentemente   em   Sangradouro   um   conflito   a   respeito   de   quem   seriam   os 

Pahöri'wa causou um racha de modo que foram eleitos quatro novos oficiantes, em dois 

rituais   separados,   tendo   também   a   liderança   da   aldeia   rachada   em   duas,   em   dois 

“caciques”! 

Segundo Maybury­Lewis, o chefe faz as vezes de um mediador entre as “facções 

políticas” por ser membro de uma “facção” mais forte. As “facções” não entrariam em 

guerra durante a maior parte do tempo, segundo ele, devido a uma situação semelhante 

à   da   relação   entre   superpotências   modernas:   uma   “facção”   forte,   como   uma 

superpotência internacional, tem o poder de fazer guerra contra o resto da comunidade, 

ameaça  que mantém, de  certa   forma,  a  paz.  O que nos  remete  a  uma noção muito 

corrente   hoje  nos  estudos  de   relações   internacionais,  o  de   “anarquia   internacional” 

(Waltz 1979): nas relações internacionais não há um corpo soberano, ainda que a parte 

mais forte alterne entre uma posição ameaçadora e uma posição de mediadora. Mas a 

ameaça da “nação” mais forte é uma ameaça de hegemonia, de risco da supremacia de 

um único sobre os demais, o que se aproxima da percepção maussiana de que a esfera 

“político­doméstica”, apesar de sua “anarquia”, pode afetar o surgimento de uma elite 

em direção ao Estado através do monopólio dos cargos de chefia.2

Outro dos cargos muito disputados de liderança de uma classe é o de Aihö'ubuni, 

que também serve como título ou nome próprio e se traduz por “veado virgem”. Isso 

conota o fato de que os escolhidos como  Aihö'ubuni  são os primeiros a  furarem as 

orelhas, anos antes da furação dos demais, mas ainda assim devendo continuar virgens3. 

A   escolha   dos  Aihö'ubuni  segue   a   mesma   lógica   dos   cargos   anteriores,   mas   com 

algumas diferenças: podem ser de ambas as metades exogâmicas e são escolhidos vários 

dentro de uma mesma classe de idade. Nesse ponto, há  um nítido contraste com dados 

mais antigos (confira Giaccaria e Heide 1972: 140), segundo os quais haveriam somente 

dois Aihö'ubuni, membros somente do “clã” Poredza'ono. Isso é corroborado pelo que 

dizem os próprios A'uw ­Xavante: teria havido uma mudança histórica. Mudança queẽ  

aponta tanto para a intercambialidade das posses de cargos entre as linhagens e “clãs” 

quanto para uma forma de dirimir as disputas por cargos, distribuindo o acesso ao poder 

para mais pessoas. Ainda assim, tanto o cargo de Aihö'ubuni perde importância quando 

são nomeados os Pahöri'wa e Tébé quanto é feita uma distinção entre o “primeiro” e o 

“segundo”Aihö'ubuni  e   os   demais   oficiantes   do   cargo,   expressa   em   sua   liderança 

cotidiana, seu lugar nas filas e sua maior maturidade e tamanho corporais. Em uma das 

aldeias  onde pesquisei,  o  primeiro  Aihö'ubuni  dos  adolescentes  que acompanhei  era 

2 Uma discussão que cruze as noções de “facção” e Estado não é novidade para a ciência política, e está na raiz de textos clássicos a respeito do Estado moderno, como O Federalista, de diversos autores, no qual se   discute   para   a   constituição   da   “federação”   dos   Estados   Unidos   da   América   um   princípio   de fortalecimento da União que dirima as disputas “faccionárias”, sendo essas facções formadas por grupos de   interesse   locais,   interesses   condicionados   sobretudo   pela   propriedade,   que   podem   levar   tanto   ao domínio não democrático de um grupo sobre os demais quanto ao fracionamento “anárquico”   de uma federação democrática. Conforme Andrade (2012), o debate dos federalistas sobre facção estaria na base das considerações sobre faccionalismo e propriedade que viriam influenciar de alguma forma a história da antropologia, desde o americanismo de Morgan ao de Maybury­Lewis.

3 Esta anterioridade talvez encontre referência no mito a'uw ­xavante do roubo do fogo da onça, no qualẽ  o veado é o animal mais veloz e o primeiro a roubar o fogo, passando a brasa quente para a anta, que passa para a capivara, que quase a derruba n'água, sendo a brasa salva pelo colibri (Sereburã et alii 1998).

filho  (ĩ'ra uptabi) do  vice­cacique  e o segundo, filho do  cacique, de “clãs” opostos, e 

ambos estão entre os mais altos, fortes e maduros de sua classe de idade.

Estes cargos de Pahöri'wa,  Tébé e  Aihö'ubuni são especialmente chamados por 

Maybury­Lewis   de   “líderes   cerimoniais”,   que   o   autor   distingue   dos  ĩdzu,   líderes 

políticos   (Maybury­Lewis   1971   [1967]:   190­204).  Dicotomia   semelhante  à   utilizada 

posteriormente por Seeger, baseada na diferença feita pelos Suyá entre líderes políticos 

(“donos”/“controladores” da “aldeia”,  conforme o  termo em língua nativa)  e   líderes 

cerimoniais   (“donos”/“controladores” das  “cerimônias”)  (Seeger  1981:  180­205).  Em 

ambos   os   casos   –   A'uw ­Xavante   e   Suyá   –   há   uma   presença   da   noção   deẽ  

“dono”/“controlador”   (para   usar   os   termos   de   Seeger):   datede'wa   para   os   A'uw ­ẽ

Xavante e kande para os Suyá. Seeger faz referência à análise de Clastres sobre o poder 

ameríndio, conectando sua própria percepção da noção de poder à da noção suyá de 

kande.

A raiz do termo datede'wa é ­tede, que significa “consistência”, “dureza”, e pode 

ser usada no sentido de “ter” – por exemplo,  waratede é alguém que corre muito, que 

“tem corrida”,  como os A'uw ­Xavante traduzem. A partícula  ẽ te,  somente,  é  ajetivo 

possessivo. De modo que posse e consistência, dureza, parecem conectar­se à concepção 

A'uw ­Xavante de poder.ẽ

Isso   posto,   informações   que   obtive   junto   aos   A'uw ­Xavante   contrariam   aẽ  

dicotomia feita por Maybury­Lewis entre líderes políticos e cerimoniais, conforme a 

qual nem todo “líder cerimonial” seria um ĩdzu, mas somente os membros da “facção” 

dominante (1971[1967]: 190­204). O termo ĩdzu, segundo os A'uw ­Xavante com quemẽ  

conversei, refere­se à corpulência ligada à idéia de liderança. Disseram­me que ĩdzu é 

quem tem “corpo grande”, “como o da anta”. Os “líderes cerimoniais” de Maybury­

Lewis,  como  Pahöri'wa  e  Tébe,   são,   segundo me foi  dito,  ĩdzu,  assim como outras 

pessoas que assumem liderança em situações diversas – por exemplo, os  danhohui'wa 

em relação aos adolescentes. Diz­se dos líderes em geral que eles têm o corpo grande ou 

“são grandes”,  tsa'et  diẽ   – termo que refere­se não só  à  extensão mas à   intensidade 

(uma atividade difícil, pesada ou rápida também tsa'et  diẽ ). Sobre os animais, é dito que 

seu chefe tsa'et  diẽ , como me falaram a respeito da chefe das sucuris, em ocasião em 

que foi morta numa aldeia uma sucuri não muito grande (sinal de que outras maiores 

estariam por perto...). O maior dentre um grupo de animais é tido como chefe, como 

presenciei   no   debate   entre   algumas   crianças   que   escolhiam   quem   seria   o   chefe   – 

danhimihö'a, palavra traduzida por eles como cacique4 – dentre os bichinhos de plástico 

em   miniatura   que   lhes   dei   de   presente:   entre   búfalo,   rinoceronte,   leão   e   girafa, 

escolheram a girafa, por ser a mais alta.

Todos esses líderes cerimoniais e padrinhos – isto é, os membros de uma classe 

de idade que patrocina uma outra –, bem como o  cacique, são chamados de  roti'wa, 

“conselheiros”. Roti é um termo traduzido como “conselho”, “aconselhar”, “ensinar” e 

também   “ordem”,   “ordenar”,   “mandar   fazer”.   Os  ĩdzu  também   são   chamados   de 

'madö'ö'wa, “vigilantes”, “observadores”, “guardas”, “zeladores”.

Usando termos foucaultianos, dir­se­ia que esses líderes são responsáveis não só 

pela vigilância mas, para o caso da relação entre os danhohui'wa e os adolescentes, por 

uma  quase  punição:  podem dar­lhes  pancadas   com pedaços  de  pau  quando  não   se 

comportam direito. Essas pancadas são no geral únicas e fingidamente fortes, no que os 

adolescentes respondem também com uma encenação da dor que deveras sentem e não 

sentem. Elas são até mesmo esperadas e queridas pelos garotos que, apesar de algumas 

fugas, muitas vezes oferecem o braço ou a perna para recebê­las, incentivando algum 

padrinho  a   bater­lhes.   Por   outro   lado,   alguns   adolescentes   chegam   a   revidar   ou   a 

desafiar os  padrinhos  para lutas corporais. Há nisso tudo um misto de brincadeira e 

seriedade que remete à  noção de “jogo” de  Huizinga (1980 [1938]).  Muitas vezes a 

agressão   disciplinar   é   anterior   a   qualquer   ato   indisciplinado.   Como,   por   exemplo, 

quando um homem no estágio  de  guarda  do  Wai'a  (ritual   iniciático  do xamanismo 

coletivo a'uw ­xavante dividido em diversos estágios de passagem – confira Maybury­ẽ

Lewis 1971 [1967]) pisa os pés de um puxador de canto, que deve aceitar a agressão sem 

fugir ou reagir, adulto que é, justamente por ter assumido um lugar de destaque.

Em contraste com donatários desses títulos que procuravam portar­se de maneira 

exemplar – ou em contraste com esses momentos exemplares – notei titulares desses 

cargos agindo com indisciplina. Seja dizendo para os outros fazerem o que eles não 

4  Maybury­Lewis   glosa   a   palavra   a'uw ­xavante   para   “cacique”   como  ẽ hö'a.   Palavra   que   significa, literalmente, “pele branca”.  Danhimihö'a, conforme sua etimologia, significa “o  hö'a  das pessoas”, “o hö'a pertencente às pessoas” ­ wanhimihö'a, por exemplo, significa “nosso hö'a”. Essa transformação do termo tem a ver com o uso corrente, atualmente, da palavra hö'a no sentido de “padre”.

estavam fazendo (trabalhar, bater água), seja portando­se preguiçosamente no trabalho, 

seja  não participando dos cantos etc.  Quanto a   isso,  cabe notar  que muitas  vezes a 

ausência de atuação satisfatória em um requisito era muitas vezes compensada por outro 

(outro tipo de trabalho, atuação como bom corredor de toras etc.) e também que, já que 

esses títulos são vitalícios (ao contrário do cargo de  cacique, que pode ser destituído 

pela comunidade), alguns tendem a se acomodar e a não agir de acordo. Nesse sentido, a 

indisciplina do líder pode torná­lo alguém que não faz o que os outros fazem por ele, 

aproximando­o de uma condição de descolamento do coletivo. Contudo, líderes mal­

comportados   tendem a perder  prestígio e  a serem marginalizados.  Observei  que um 

importante Aihö'ubuni, que comportava­se dessa maneira na água previamente à furação 

de orelha, ocupava o último lugar da fila dos demais líderes, entre eles e os comuns 

(mas ainda assim, antes dos Aihö'ubuni terciários).

Aqueles  que não dançam são chamados de  teirów 'õẽ   –  algo como “que não 

querem o estar bem”, e que me traduziram como “que não gostam de festa”, estraga­

prazeres. Sobre a obrigação de dançar, o cacique de uma das aldeias uma vez disse em 

português: “é como na escola, tem falta, presença, as pessoas têm de cumprir”. Mas não 

há  fichários, planilhas, anotações, só  a cobrança coletiva. E a a corporação corporal 

inteira é  cobrada. A classe dos  Hötorã,  padrinhos  dos   t pá  Ẽ ẽ (atuais   danhohui'wa), 

questionava a ausência destes nos cantos antes das reuniões madrugais  chamando­os de 

padi  –   “tamanduás”,   porque   “tamanduá   dorme   muito”.   Já   a   “corujinha   vermelha” 

(prorotóprére), disseram­me, não dorme e mantém os olhos bem abertos “porque canta 

a noite inteira”. Quem tem o canto vigiado deve cantar para ser também um vigilante.

Máquina orgânica

Qualquer presunção de mecanicismo que poderia advir do vocabulário maquinal 

de Maybury­Lewis sobre a “engrenagem” das classes de idade deve ser evitada,  em 

referência a este modo de vida em que os corpos se afetam e se contagiam de maneira 

tão caótica e ao mesmo tempo tão ordeira. Se o sistema de classes de idade não é uma 

máquina isolada, mas depende de sua relação com outras relações, sobretudo com as 

relações de parentesco, deve­se recuperar aqui algumas dessas relações.

Como sugerido, uma ferramenta teórica interessante para considerar a política 

dessa   maquinaria   corporal   pode   ser   encontrada   nos   textos   de   Mauss   sobre   o   que 

chamava de  “coesão social”:  “A Coesão Social  nas  Sociedades  Polissegmentares”  e 

“Fragmentos  de  um Plano  de  Sociologia    Descritiva”,   publicados   em 1931   e   1934 

respectivamente (Mauss 1981). Neles são apresentadas considerações originais sobre a 

importância das técnicas corporais para a “coesão social” no arranjo de “subgrupos” e 

“esferas” “animadas de movimentos respectivos e solidários entre si, sem a necessidade 

de “atos de autoridade abusiva” de tipo estatal, numa disciplina que mistura “coação” e 

“espontaneidade” no ritmo  da  música  e  do rito  (tomando “ritus”  como  “ordem”), 

repartindo a “autoridade”.

Mauss trata a questão do que chama de “subgrupos” como compondo um tipo de 

solidariedade “orgânica” que não é fruto de contratos entre “indivíduos”, vai além da 

adesão “mecânica” de “indivíduos” à “sociedade” ou a “grupos”. Liga “subgrupos entre 

si e não apenas indivíduos entre si” e “organiza­os por meio de alianças”, “influências” 

e “serviços”, “mais do que  pela presença da autoridade suprema do Estado” (Mauss 

1981: 105).

O primeiro ponto de seu argumento trata da “natureza político­doméstica” da 

coesão, superando a dicotomia público/privado a respeito do lugar de aparição do poder, 

ao apontar para o  estatuto doméstico,   familiar,  clânico,  da transferência de cargos e 

poder,  que pode tender à   formação de uma elite,  um indício de uma ordem estatal, 

“oposta à consciência difusa da opinião pública e da ação coletiva”. Fala a seguir de 

“arranjos” de formações “secundárias” que operam “de outra maneira que não a da 

descendência e da aliança”, que “compensam esta  anarquia  das pequenas comunidades 

político­domésticas e que [...] organizam a sociedade por outros meios”, órgãos “quase 

soberanos” “animad[o]s de movimentos respectivos e solidários entre si” (Mauss 1981: 

05­106).   Alguns   dos   exemplos   dados   por   Mauss   referem­se   às   “sociedades   dos 

homens”, à divisão “por idades” e “gerações” e às classes de idade.

Vê­se a aliança sociopolítica englobando o parentesco, bem como essas alianças 

“organizando­se” (no sentido discretamente sui generis que Mauss dá à “organização”) 

em algum ponto  além da “anarquia das pequenas comunidades político­domésticas” e 

aquém da “autoridade suprema” estatal.

As   classes   de   idade   a'uw ­xavantes   não   devem   ser   consideradas,   contudo,ẽ  

corpos   coletivos   equalizados,   sem   suas   próprias   hierarquias   internas.   Alguns   dos 

elementos mais marcantes do parentesco enquanto política  –  ou da “esfera político­

doméstica”,   para   usar   a   formulação   de   Mauss   (1981)   –   são   adquiridos   através   da 

passagem pela  Casa  dos  Adolescentes:  Pahöri'wa,  Tébe  e  Aihö'ubuni.  Correntes  de 

ligação política entre a máquina orgânica do paraparentesco e o parentesco.

Em se tratando da hierarquia entre as metades agâmicas, ordenadas num circuito 

de   reciprocidade   (incluindo   suas   formas   agonísticas)   entre   oito   classes   de   metades 

alternas,   constituem­se   “assimetrias   recíprocas”   (Lévi­Strauss   1944)   num   circuito 

alongado.  Tais  assimetrias  se  manifestam nas  relações  entre  hierarquias   ternárias  de 

classes   atuantes   ritualmente,   mas   pendulando   entre   duas   metades,   maneira   centro­

brasileira  de  lidar  com a  relação entre  concentrismo e  diametralismo (confira  Lévi­

Strauss 1975 [1958]), alternando e invertendo hierarquias. Ecos dessas inversões foram 

apresentados a respeito das metades exogâmicas –  Po'redza'ono  como “conteúdo” do 

“continente”  Öwawẽ,   porém donos  de  cargos   ligeiramente  mais   importantes,  e  não 

puderam ser tratados extensivamente aqui como alhures (Falleiros 2005, 2011, 2012).

Entre o caos e a ordem

A linhagem a'uw ­xavante como corpo coletivo do enredamento de corpos queẽ  

participam­se entre  si,  e sua relação com a chefia,   também aponta para a noção de 

pessoa magnificada tratada por Renato Sztutman (2005, 2006a). Sztutman percebe os 

líderes como pessoas magnificadas, capazes de “atrair seguidores”, concentrar relações, 

fazer com que outros façam.  Entidades ligadas à “guerra”, o que é tão contra a coesão 

quanto contra­estatal, impedindo a “emergência de um poder separado”, também pode 

fazer   “brotar   esse   poder   separado,   por   exemplo,   [n]a   formação   de   uma   elite   de 

guerreiros” (Sztutman 2006b: 2).

Creio que também as classes de idade, como corporações corporais de atuação 

técnica  e  política,  podem ser   compreendidas   como pessoas   estendidas,   senão como 

pessoas magnificadas. Mas sua magnificação e sua hierarquia são cíclicas e sua relação 

com o parentesco é marcada, de tal maneira que não emergem enquanto poder separado.

  Se   a   guerra   acenaria   para   o   perigo   de   uma   elite,   ela   também   constituiria 

múltiplos  pólos   impedindo  a  criação  de  uma unidade  de  “forma­Estado”   (Sztutman 

2009a: 19).  Neste sentido, Mauss trata não só da guerra como da paz, apontando nos 

“subgrupos” a multiplicação dos pólos e centros, “mais de um regime político, mais de 

uma   organização   do   poder”   (1981:   110).   Condições   da   possibilidade   coletiva   de 

diferenciar­se   internamente   sem  se  cindir,   num “arranjo”  de   forças   em movimento, 

inibindo   poderes   estáveis.   São   vigilantes   que   vigiam   vigilantes.   Vigilância   que   se 

manifesta   num   elemento   de  inversão   hierárquica   presente   nas   relações   de   gênero, 

levando às mulheres e à periferia da aldeia uma potência de controle e predação sobre os 

homens que estão no centro.

Quanto a isto um aparte de gênero: As mulheres não são confinadas na casa dos 

solteiros, não passam por iniciações de classe e participam pouco dos rituais das classes, 

ainda   que   tenham   condição   distinta   em   diversos   deles.   Por   exemplo,   nas   danças 

circulares mais comuns no pátio da aldeia, uma mulher que entra na roda está flertando 

com um dos  homens  que   toma  pela  mão,  o  que  é   ao  mesmo   tempo  um gesto  de 

predação: diz­se que a mulher  atrapalha  o dançarino e este fica lhe devendo alguma 

prenda, comida ou mesmo objetos industrializados. Esse tipo de predação é feito contra 

membros  de  classes  de   idade  adversárias.  Outro  gesto  de  ataque  feminino  acontece 

sobre os vencedores de uma corrida de tora: as mulheres da metade agâmica perdedora 

que forem cunhadas dos vencedores sujam­nos com farinha de surpresa, enquanto eles 

fazem a  dança  da  vitória,  vingando  seus   colegas  de  classe  masculinos.  Todavia,  as 

mulheres também executam, em classes de idade, suas próprias corridas de tora. No 

geral, sobretudo em relação aos ritos das classes de idade, diz­se que “as mulheres estão 

sempre de olho”. Na periferia da aldeia, lugar da inversão do panóptico, vigiam aqueles 

que atuam no centro,  cuidando não só  da dança mas também da conduta pessoal  e 

corporal dos dançarinos. No cotidiano, é freqüente as provocações que mandam para os 

membros   masculinos   de   classes   adversárias,   chamando­os   de   preguiçosos   e 

namoradores, pouco dedicados ao trabalho ritual.

Enfim, as classes de idade são coletivos corporais de uma máquina orgânica que 

visa   a   pacificação   justamente   porque   constituem­se   como   corpos   coletivos   de 

guerreiros, tendo no jogo (o agonismo dos cantos rituais, das corridas e mesmo nos 

jogos de futebol) como figura da guerra – guerra atenuada (Lévi­Strauss 1976 [1962]; 

Vianna 2001, 2008). Pacificar pela guerra é uma recorrência na fala e nos modos a'uw ­ẽ

xavante. Entretanto, a pacificação também se faz através de uma disciplina ordenadora, 

unificadora,   presente   na   constituição   do   corpo   coletivo   do  grupo  –   tendência   que 

esbarra, contudo, no dualismo, tanto das metades agâmicas e até mesmo na discrepância 

entre “Ocidentais” e “Orientais”.  As classes são corpos coletivos que se  relacionam 

entre si através de uma hierarquia móvel, circular. A capacidade desta máquina de aliar, 

concentrar pessoas e de magnificar­se: de “federar” aldeias em torno de corridas de tora, 

é contrabalanceada pelo agonismo constitutivo de sua própria engrenagem.

Além do  que,   como  máquina  de   “disciplina   litúrgica   e   corporal”   (Sztutman 

2006b: 3) sua ordenação coexiste com a indisciplina. Ou, conforme diria Mauss, “com 

tipos  opostos  de disciplina”  (1981:  110),   já  que as  classes  de  idade,  o  parentesco  e 

mesmo   outras   ordens   rituais,   entrecruzam­se   nos   mesmos   corpos   e   nas   pessoas 

singulares, compondo corpos e almas a partir de eixos e solidariedades diversas.

*

“Em vez de conceber a chefia ameríndia apenas como posição política vazia”, 

como o faria Pierre Clastres, Sztutman propõe “pensar como certas pessoas se tornam 

chefes, líderes políticos e o que significa isso” (2009a: 20). Nesse sentido, a constituição 

da pessoa coletiva a'uw ­xavante aponta não só para a guerra e para o parentesco masẽ  

também para a paz e para uma ordem de alianças além do parentesco. Elementos que 

constituem   tanto   a   pessoa   singular   do  chefe  atrelado   à  linhagem,   à   “facção”,   mas 

também à classe de idade, quanto a pessoa coletiva desta corporação corporal agâmica, 

com seu poder parcelado entre seus cargos de liderança.

Há   aí   um   movimento   pendular   entre   a   a   guerra   e   a   paz,   a   disciplina   e   a 

indisciplina,   a   anarquia   e   o   Estado,   nunca   plenamente   estabelecidos,   conforme   a 

reconsideração da política ameríndia como situada entre o “contra Estado” e a “forma­

Estado”, dois “vetores capazes de serem ativados a todo o momento” (Sztutman 2009a: 

15­16).  Apresenta­se aí  um “dualismo em perpétuo desequilíbrio” entre o poder e o 

contra­poder, “jogo entre possibilidades antitéticas”, “[não] do isso ou aquilo, mas [...] 

do isso  e  aquilo”, “no bojo do movimento contínuo de concentração e dispersão que 

caracteriza a sociopolítica indígena” (Perrone­Moisés 2006: 8­9), retomando a tese lévi­

straussiana do dualismo em perpétuo desequilíbrio (Perrone­Moisés e Sztutman 2009). 

Nesse sentido, tanto o parentesco quanto o além­parentesco contém vetores da “forma­

Estado” e do “contra Estado”. 

*

Nesta análise não há uma identificação unívoca entre indisciplina, “anarquia” e 

“caos”,  ou  entre  disciplina  e   “Estado”  e   “ordem”.  Aponta­se  para  o  arranjo  desses 

processos   que   se   misturam   e   se   confundem   em   sua   relação   tanto   positiva   quanto 

negativa com o poder cosmopolítico. Disciplina é, enfim, técnica do corpo. As técnicas 

do  corpo,  os  hábitos   e  os   saberes   sobre  o   fazer  oscilam,   como argumentei   alhures 

(Falleiros 2011), entre a captura do estrangeiro e o aprendizado do antepassado. Oscilam 

entre   a   manutenção   ritual   que   é   sempre   uma   apreensão   do   passado   a   partir   das 

vicissitudes do presente e a inovação ritual a partir do outro que é justamente o que os 

antepassados faziam. Variam entre os momentos de maior intensidade e os de maior 

preguiça, os de maior entrega no pátio da aldeia e os de maior fuga nas expedições da 

mata, ou vice­versa. É um processo constante de busca, apreensão e distribuição, entre o 

retorno e o desvio, dois pólos de um virar sempre instável, em movimento. Se não são 

disciplinas   unitárias,   então,   tampouco   são   disciplinas   solitárias:   elas   demandam   a 

participação de outras disciplinas,  a  participação de diversas  pessoas,  a  participação 

coletiva  e  nos  coletivos,   a   constituição  da  pessoa  a  partir  da  participação,  nela,  de 

outras.

***

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