Chauí-Berlinck, Luciana - Melacolia e contemporaneidade
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nenhuma causa que faa sua imaginao utuar. A esse respeito, veja-se o esclio da
proposio 44 desta parte. Portanto, por mais que se suponha que um homem adere ao
falso, jamais diremos, contudo, estar ele certo. Pois por certeza inteligimos algo positivo
(veja-se a prop.43 desta parte com seu esc.) e no privao de dvida. E por privao de
certeza inteligimos a falsidade. [...]. (Espinosa 4, II, P49).
MELANCOLIA E CONTEMPORANEIDADE
Luciana Chau-Berlinck*
Resumo:Neste artigo temos por objetivo acompanhar dois momentos na formulao do
conceito de melancolia, tomando um texto atribudo a Aristteles e um outro, de Freud.
Discutimos a emergncia da Melancolia/Depresso como uma patologia caracterstica
da sociedade contempornea, ou seja, como sintoma de uma sociedade marcada pelos
ideais narcsicos, tais como Freud os descreveu e interpretou em Luto e melancoliae
em Introduo ao narcisismo. s interpretaes freudianas acrescentamos as anlises
de Christopher Lasch e de David Harvey. Fazemos a articulao entre o processo de
socializao patolgico e a sociedade contempornea por que esta narcisista na sua
forma intrnseca, isto , na maneira como produz e opera apenas com a imagem enquanto
imagem, elaborada e transmitida no s para substituir o real, mas para oferecer uma
iluso de satisfao e assim bloquear os processos psquicos e sociais de simbolizao,
sem os quais o desejo no pode ser transgurado e realizado.
Palavras-chave: melancolia, Aristteles, Freud, narcisismo, ps-modernidade
Neste artigo acompanhamos dois momentos na formulao do conceito de
melancolia, tomando um texto atribudo a Aristteles (Problema XXX,1)e um outro, de
Freud(Luto e melancolia). Dois textos que empregam a mesma palavra, porm designam
com ela fenmenos de sentido diferente. No podemos dizer, contudo, que de um
pensador a outro houve progresso contnuo dos conhecimentos, sendo mais pertinente
observar a mudana do quadro terico e clnico em que ela nomeada e representada.
Essa mudana, alis, pode ser vista muito antes da retomada contempornea do tema.
Assim, por exemplo, o campo de referncia aristotlico (ou grego) , de um lado, uma
certa concepo mdica, na qual a melancolia um tipo natural de temperamento, e,
de outro, uma certa concepo tica da virtude (a idia de aret) ou da excelncia de
carter e de conduta , que coloca o melanclico como algum excepcional; no entanto,
na Idade Mdia, o campo de referncia religioso, uma vez que a formao scio-
cultural medieval tem na religio seu quadro terico e prtico para a interpretao da
* Psicanalista, mestre em losoa pela USP, professora de psicologia da Unimarco.
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realidade e da conduta humana, e a palavra melancolia torna-se sinnimo de uma outra,
acedia1, designando um acontecimento de ordem religiosa a desesperana de salvao,
que torna a alma indolente e desleixada, lanando-a na inrcia uma atitude pervertida e
pecaminosa, um vcio espiritual (pois ausncia de uma das virtudes cardeais, qual seja,
a esperana). Assim tambm, quando a psiquiatria contempornea deixa de empregar
o vocbulo melancolia e passa palavra depresso, seu horizonte terico visa marcar
a ruptura com a tradio mdica (a antiga medicina dos temperamentos, dos humores
e dos vapores), recusar a perspectiva aristotlica (tendendo a conservar a condenao
medieval, ainda que por motivos completamente diferentes e sem a referncia religiosa)
e oferecer uma etiologia em que a depresso denida como desordem mental ou afetiva
de tipo neuroqumico cuja terapia deve ser de tipo psicofarmacolgico. Todavia, o que
instigante no texto de Freud, o fato de que este se distancia da perspectiva psiquitrica
porque busca uma compreenso da melancolia signicativo, alis, que ele empregue a
palavra antiga como acontecimento psicognico sem referncia a fatores anatmicos e
siolgicos e sem localiz-la em alguma parte do crebro ou do sistema nervoso.
As mudanas conceituais parecem indicar rupturas tericas e, no entanto,
impossvel negar certa continuidade na caracterizao geral da melancolia. Basta,
para tanto, observarmos o Aforismo 23dos Aforismos do Corpus Hippocraticus para
percebermos a continuidade. O aforismo hipocrtico diz:
Quando tristeza e medo perduram por longo tempo, tal estado
melanclico.
Esse aforismo dene a melancolia como efeito da tristeza e do medo, portanto,
de emoes, e a determina pelo tempo de durao da perturbao caracterizando-a como
um estado, e reaparecer no texto aristotlico como uma indicao de que a melancolia
uma doena que pode atingir o corpo ou a alma: quando afeta o corpo, manifesta-se com
a epilepsia, as lceras e os vmitos; mas quando afeta a alma, perturba o entendimento
e uma doena da inteligncia. Da mesma maneira a durao prolongada, persistente,
que leva tambm atualmente, ao diagnstico da depresso e esta caracterizada no s
como perturbao afetiva do humor ou pela tristeza que afeta os sentimentos cotidianos,
mas tambm envolvendo o entendimento, isto , o pensamento e o julgamento. Como
observamos, tanto a compreenso aristotlica quanto a atual tm por pressuposto o
aforismo hipocrtico.
Apresentamos um estudo sobre a melancolia centrado em apenas dois textos,
o de Aristteles e o de Freud, porque se trata de dois textos fundadores e porque o texto
freudiano, tendo o mesmo pressuposto que o aristotlico o Aforismo 23 dosAforismos
hipocrticos o primeiro a realizar a principal ruptura terica com a interpretao
aristotlica.
Tanto o Problema XXX,1 como Luto e Melancolia fundam tradies
interpretativas da melancolia, instituem campos de pensamento nos quais e a partir dos
quais ela pode ser conhecida e compreendida., por isso so textos fundadores.
No texto aristotlico a melancolia um fenmeno inteiramente somtico que
determina a vida psquica; mas, no texto freudiano, ela um acontecimento inteiramente
psquico, que determina aspectos da vida corporal e por essa razo so textos em
ruptura.
Aristteles inicia o texto do Problema XXX, 1 com a pergunta que introduz
a questo da excepcionalidade: Porque todos os homens considerados excepcionais
so melanclicos?. a partir desta questo que o lsofo dar uma interpretao da
melancolia. Tomando como exemplo homens geniais em vrias reas como poltica,
artes, etc, constata que estes mesmos homens apresentam doenas causadas pela blis
negra, portanto, melanclicos.
Depois de introduzir a questo da excepcionalidade dos melanclicos e
exemplic-la, Aristteles arma que em todos os casos tudo depende da natureza do
indivduo e que preciso descobrir a causa dessa natureza.Visto que, para Aristteles, conhecer conhecer pela causa, o texto imediatamente
arma que preciso descobrir a causa da natureza melanclica e conhecer seu eidos, sua
essncia.
A descoberta da causa no simples nem direta e por esse motivo que Aristteles
arma que cabe comear com um exemplo. O lsofo utilizar um recurso epistmico,
o conhecimento por analogia, para entender a ao da blis negra. O procedimento por
analogia consiste em tomar alguma coisa visvel e conhecida diretamente para, por
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seu intermdio, conhecer uma outra, invisvel e qual no se tem acesso direto. Esse
procedimento era comum entre os mdicos antigos e ns o iremos reencontrar em Freud,
quando este, para entender a melancolia, recorrer ao luto como analogia.
Aristteles, para esta explicao, utiliza o vinho como via de comparao,
dizendo que, dependendo da quantidade ingerida, essa bebidaprovocavrios caracteres
em um mesmo homem, enquanto que a melancoliaproduzcaracteres distintos para cada
homem que seja dessa natureza. Assim, o vinho transforma a pessoa em excepcional por
algum tempo, enquanto a melancolia mantm esse efeito para sempre.
Indo em busca da causa da natureza melanclica, o autor do ProblemaXXX,1
passa a descrever a mistura da blis negra (melaina chol). Essa mistura, diz Aristteles,
existente na natureza a mistura do quente e do frio. A blis negra de natureza fria,
mas pode apresentar estados distintos (do muito frio ao muito quente) e as modicaes
da mistura so originrias da alimentao diria. Dependendo do estado da mistura
encontramos caracteres diversos (do torpor mania). Aristteles observa que, em algumas
pessoas, a origem dos males encontra-se numa mistura (krsis) da blis negra quepode
acontecer no corpo, enquanto que em outras, a origem dos males uma inclinao
naturalpara as doenas caractersticas da blis negra. Em outras palavras, em alguns
melanclicos, a doena decorre da relao da blis negra com os demais constituintes
do corpo, enquanto que em outros, ela provm da natureza da prpria blis negra. Mas
Aristteles conclui que, tanto em um caso como no outro, a origem dos males est na
natureza do indivduo. A melancolia, denindo um tipo de carter ou de temperamento
natural, constitui a natureza de algum, e, portanto, sendo por natureza no pode ser
consideradapor acidente, isto , algo que acontece apenas pela ao inesperada de causas
externas.Sendo a blis negra inconstante, os melanclicos so inconstantes e pela boa
mistura da inconstncia que os melanclicos so seres de exceo. Devemos entender
excepcional, no sentido de abundante, excessivo, que ultrapassa a medida ou o limite.
Deste sentido primeiro advm um outro, o de extraordinrio, o que se distingue (Thamer
17, p.30) e, uma das caractersticas da blis negra (melaina chol) ser em excesso.
da natureza da blis negra ir de um extremo ao outro, isto , ser excessiva, excepcional.
O autor chegar a importante concluso que: os melanclicos so seres de exceo por
natureza e no por doena, ou seja, os melanclicos so excepcionais por sua natureza
e no por doena.
O autor do Problema XXX,1 se interessa pela constncia dessa mistura
inconstante ou em mostrar a existncia peculiar de uma constncia da inconstncia,pois
exatamente isso que lhe permite armar que h uma sade do melanclicoe, portanto,
que este no necessariamente um doente. Para chegar a essa concluso, o autor comea
colocando uma questo: existe ou no uma norma nessa substncia composta e instvel,
a blis negra? Ou seja: h uma sade da blis negra, uma blis negra saudvel? H um
equilbrio, uma norma nessa mistura instvel?
A resposta armativa. Para o autor do Problema XXX, 1, a norma ou a sade
do melanclico o equilbrio do quente e do frio. Aristteles fala de eukrasa (a boa
krsis, a boa mistura) de um humor que por natureza instvel, daquilo que por essncia
uma mistura inconstante, e, portanto, a-normal ou sem norma. E no se pode explicar esta
boa mistura ou eukrasa a no ser pelo resfriamento do quente ou o aquecimento do frio,
quer dizer, um certo equilbrio frgil entre o quente o frio.
Se h uma sade da blis negra, h tambm doenas causadas por ela. Ao
examin-las, Aristteles no Problema XXX,1 nos encaminha rumo sua tese central:
estar doente da blis negra no forosamente ser melanclico, do mesmo modo que um
melanclico no melanclico porque estaria necessariamente doente da blis negra.
O que o texto aristotlico enfatiza continuamente que a melancolia no
sinnimo de doenas da blis negra, ou seja, que apesar de existirem doenas causadas
pela blis negra, o melanclico no o por doena e sim por natureza, ainda que seja certo
que sua natureza melanclica o predisponha a contrair com mais facilidade as doenas
da blis negra. O importante compreender que as doenas da blis negra so devidas aum excesso ocasional e, portanto, enquanto doenas, pertencem ordem do acidente ou
do fortuito.
Se o melanclico o por natureza e se a melancolia no se refere somente
s doenas da blis negra, podemos dizer com segurana que o melanclico no
necessariamente um doente. Existe uma sade da melancolia, um equilbrio, uma boa
mistura da inconstncia.
No entanto, h um aspecto interessante do Problema XXX,1no tocante idia
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de loucura inspirada ou de inspirao, sobretudo se a articularmos de imitao. De
fato, ao tomar a mistura da blis negra comophsisdo melanclico, o autor nos leva a
compreender que, pela natureza e operao prprias da blis negra, o outro est no interior
do prprio melanclico. O outro que o melanclico busca imitar (simulando, emulando
ou identicando-se) encontra-se nele mesmo por fora do humor que o constitui, ou
seja, a inconstncia e variao da blis negra, seu sbito aquecimento ou resfriamento,
multiplicam os caracteres do e no melanclico, que sempre est a se tornar um outro
(como veremos emLuto e melancolia,para Freud esse outro que se encontra no interior
no melanclico ele mesmo como objeto perdido).
Dessa maneira, o autor doProblema XXX,1pode responder pergunta com que
abria o texto: por que todos os homens de exceo so melanclicos? Todos os homens
excepcionais so melanclicos porque da natureza da blis negra ir de um extremo a
outro, isto , ser excessiva, excepcional.
Podemos, assim, sublinhar a tese central do Problema XXX,1: a melancolia,
ainda que possa tornar-se doentia, no , em si mesma, doena, pois por natureza e no
por acidente.
A tradio deixa, portanto, duas posies antagnicas acerca da melancolia: a
doProblema XXX, 1(retomada por Ficino e Agrippa), segundo a qual a melancolia no
uma doena, ainda que existam doenas prprias blis negra e s quais os naturalmente
melanclicos esto mais predispostos do que os outros; e a de Galeno (mantida at o
sculo XIX pela medicina, mesmo quando esta abandonou a perspectiva humoral),
segundo a qual a melancolia exclusivamente uma patologia.
O texto aristotlico nos diz da excepcionalidade, o de Freud, de uma patologia.
Em ambos os textos, encontramos a referncia ao outro. Enquanto o outro emAristteles a inconstncia da blis negra, em Freud uma sombra que se instala no ego
por identicao. Em Freud o outro o prprio ego, o que nos leva direto ao conceito
de narcisismo, forjado por este mesmo autor.
a partir dessa idia que, tomando como referncia a compreenso da melancolia
(ou depresso2) na perspectiva psicanaltica, discutiremos a emergncia desse fenmeno
como patologia caracterstica da sociedade contempornea.
Partimos do pressuposto de que a congurao da subjetividade e da patologia
de uma poca est articulada intrinsecamente pelos modos de relao historicamente
determinados. Seria impossvel pensar a excepcionalidade do melanclico, como faz
Aristteles, a partir da nossa sociedade, pois como veremos o melanclico hoje o
comum. Tomamos a melancolia (depresso) como sintoma de uma contemporaneidade
marcada pelos ideais narcsicos, tais como Freud os descreveu e interpretou emLuto e
melancoliae emIntroduo ao narcisismo.
s interpretaes freudianas acrescentamos as anlises da sociedade
contempornea feitas por Christopher Lasch em A cultura do narcisismo e por David
Harvey em A condio ps-moderna3. Fazemos a articulao entre o processo de
socializao patolgico e a sociedade contempornea por que esta narcisista na sua
forma intrnseca, isto , na maneira como produz e opera apenas com a imagem enquanto
imagem, elaborada e transmitida no s para substituir o real, mas para oferecer um suposto
gozo imediato e com isso bloquear os processos psquicos e sociais de simbolizao, sem
os quais o desejo no pode ser transgurado e realizado. Paralisia do desejo no narcisismo,
impossibilidade de simbolizao e ausncia de pensamento, a sociedade contempornea
nos faz permanecer na imediao persuasiva e exclusiva da imagem e s capaz de
propor e provocar atossem mediao e que, por serem atos que no conseguem efetivar-
se, sua impossibilidade se exprime sob a forma da Melancolia/Depresso.
A depresso se tornou um fenmeno to freqente no mundo
moderno a ponto de ser considerada por alguns autores como
reao normal dos tempos atuais, desde que no interra
nas nossas atividades cotidianas. (...). Alguns terapeutas j a
identicaram como o mal do sculo, devido a sua alta incidncia
no atendimento psiquitrico.(Joo 14, p.1)
Desde sua introduo, em 1987, Prozac foi usado por mais de
seis milhes de norte-americanos e por mais de dez milhes de
pessoas no restante do mundo.(Girgis 9)
Essas duas citaes indicam que a depresso, isto , aquilo que a tradio
mdica e a psicanlise chamam de melancolia, pode ser considerada a doena mental
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contempornea. Do ponto de vista estatstico, alguns estudos recentes indicam que, na
maioria dos pases, uma a cada vinte pessoas diagnosticada como signicativamente
depressiva, nmero que no inclui aqueles que experimentam uma leve depresso
crnica ou passam por uma crise aguda de depresso, pois, neste caso, uma a cada seis
pessoas diagnosticada, pelo menos uma vez na vida, como depressiva. Alm disso, as
estatsticas indicam que a depresso signicativa comea, agora, a aparecer de maneira
mais intensa entre os adolescentes, os adultos jovens e as mulheres.
Assim, ao concordarmos com Freud em considerar a melancolia uma neurose
narcsica4e se considerarmos os dados estatsticos, fomos levados a supor que a sociedade
contempornea possui caractersticas que estimulam o aparecimento de patologias
narcsicas5, particularmente a melancolia, suposio reforada se, com Christopher Lasch
(Larsch 16), considerarmos que a cultura ocidental contempornea narcisista.
Vivemos numa sociedade voltada para a vida privada, para as relaes pessoais
tanto sob a forma da competio entre os indivduos quanto sob a forma da valorizao
da intimidade, dos interesses e demandas ntimos, ainda que essa intimidade seja
produzida pela sociedade de consumo, que inventa imagens com as quais os indivduos
passam a identicar-se. Como conseqncia, a libido volta-se para o prprio ego, ou seja,
os investimentos erticos do indivduo esto voltados para ele mesmo. O nome desse
fenmeno narcisismo.
Ora, como diz Freud, no narcisismo, o ego se comporta como objeto de seu prprio
amor e esse amor se caracteriza pela idealizao de si ou a superestima de si, a vivncia
prazerosa de sentir-se especial, perfeito, sem defeitos. A procura da vida feliz reduzida
idia de bem-estar, de satisfao prazerosa e de plenitude, supostamente asseguradas
pela identicao, por meio do consumo, com imagens de perfeio, beleza, sucesso,juventude, sade, etc., caracteriza a sociedade contempornea e pode ser comparada
procura narcisista de retorno vida intra-uterina, ou relao simbitica com a me, num
perodo em que o outro e o mundo no existiam para o indivduo como separados dele;
poca da onipotncia, na qual o outro e o mundo faziam parte indiferenciada do eu, ou
seja, a volta situao na qual era superestimado e na qual todas as suas necessidades
eram prontamente atendidas (quando no havia o sentimento de falta).
Assim, falamos de uma sociedade narcisista por comparao com o
desenvolvimento libidinal do indivduo. Acreditamos que essa estrutura social facilita o
aparecimento das patologias narcsicas, em especial a melancolia.
A melancolia uma neurose narcsica, portanto, na qual h prejuzo no
estabelecimento de vnculos libidinais com os objetos. Embora a escolha libidinal de objetos
s ocorra na puberdade, sofrer inuncia de todo o desenvolvimento libidinal infantil
at o Complexo de dipo e envolve o processo de constituio do ego. Esta constituio
ocorre pela identicao com a imagem do outro e a construo da representao que o
sujeito faz de si integra elementos valorativos, de maneira que a constituio do ego
inseparvel de valoraes que constituem o chamado ego ideal. Em outras palavras, para
compreendermos uma neurose narcsica (como a melancolia), precisamos considerar,
primeiro, o aspecto no neurtico do narcisismo enquanto momento do processo de
constituio normal dos indivduos para, em seguida, captarmos como algo normal se
torna patolgico.
No caso da melancolia, a escolha de objeto se d com uma base narcisista.
Essa eleio com base narcisista aquela na qual ocorre a identicao narcisista com
o objeto, ou seja, eleje-se o objeto a partir da imagem e semelhana do prprio ego ou
transforma-o num ideal e este se converte em um substitutivo do investimento ertico,
havendo uma forte xao no objeto, assim, pela identicao narcisista com o objeto ao
narcisismo que o investimento libidinal retorna, no direcionando-se ao objeto externo.
Desta forma o narcisismo infantil (quando o sujeito era seu prprio ideal),
substitudo pela identicao com o ideal projetado no objeto, denindo o que o ego ideal
e levando busca de um personagem possuidor dos atributos de mxima valorizao.
O indivduo, na melancolia, est preso imagem do objeto. Ora, em Luto e
MelancoliaFreud nos diz que essa imagem a de um objeto perdido e que esse objetoperdido o prprio ego. Portanto, a perda melanclica narcsica.
O vnculo da libido ao objeto se efetua por meio de lembranas e expectativas.
Na melancolia, devido a uma falha em elaborar uma perda afetiva signicativa no incio
da estruturao do aparelho psquico ocorre um buraco na esfera psquica e esse lugar
vazio mostra a impossibilidade do indivduo de se orientar a partir dos traos mnmicos
de seus prprios desejos. No devemos esquecer que Freud escreveu nos Trs ensaios
sobre a teoria da sexualidade que encontrar o objeto no fundo reencontr-lo, assim
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h um objeto que j fora investido e que, uma vez perdido, ca guardado em nossa
lembrana e passamos a procurar reencontr-lo com a expectativa de voltarmos ao
sentimento de completude. Freud nos explica em Os instintos e suas vicissitudes que
nossa vida subjetiva transcorre sob a forma de oposies (como prazer-desprazer, sujeito-
objeto) e que essas so determinadas pelo desejo, ou seja, suas operaes so simblicas
e imaginrias. O desejo, desta forma, permite a reconstituio do objeto desejado por
meio de representaes e, assim, o sofrimento causado pela falta fundamental para a
constituio do sujeito que, submetido falta, recria psiquicamente o objeto perdido ou
ausente para poder orientar-se no real. Isso nos remete questo do tempo humano, ou a
percepo da existncia como algo que escoa e perdura na durao. Memria e projeto,
passado e futuro.
Nossos estudos nos levaram a pensar na maneira pela qual esses processos
ocorrem na sociedade contempornea.
Partindo da idia de que o narcisismo encontra-se desde sua origem no campo
da signicao, das valorizaes, h que pressupor uma ordem simblica exterior ao
indivduo, a ordem da cultura, na qual ele est inserido, o que, portanto, signica que
a representao valorativa de si constituda na intersubjetividade, cabendo, portanto,
averiguar quais os valores da sociedade contempornea que fazem parte desse jogo
simblico.
Para que a simbolizao ocorra, ou seja, para que possamos lidar com o ausente
e presentic-lo na linguagem, no trabalho e na histria, como diz Merleau-Ponty,
necessrio que a relao com a ausncia seja dada pela relao com o outro sob a forma
do tempo. O tempo articulado origem e ao porvir, ao passado e ao futuro.
Hoje, a mudana que ocorre quanto a experincia do espao e do tempo singular. Por um lado observamos a fragmentao e disperso espacial e temporal e
por outro a compresso do tempo e do espao (efeitos das tecnologias eletrnicas e de
informao). Isto quer dizer que pela compresso do espao no h mais distncia, todos
os acontecimentos ocorrem aqui e tambm, pela compresso do tempo, no h mais
passado ou futuro, uma vez que tudo acontece agora. Pela fragmentao e disperso
reduzimos o espao e o tempo a imagens planas, sem profundidade temporal, que se
movimentam de forma veloz e fugaz; o espao indiferenciado e o tempo o instante.
Estas imagens planas e superciais nos so incessantemente apresentadas pelas telas de
televiso, computador ou cinema como evidncias e, desta maneira, no somos mais
capazes de distinguir entre a aparncia e o sentido, ou seja, entre o virtual e o real. Uma
vez que tudo voltil e efmero, descartvel e durando o tempo passageiro da moda, o
sentido de continuidade no faz mais parte de nossa experincia, pois tudo consome-se no
presente do instante fugaz que desaparece no deixando marcas.
De fato, a sociedade ps-moderna desvaloriza culturalmente o passado e o
futuro, por uma busca da satisfao imediata dos desejos. Essa sociedade, que alimenta o
gosto pelo efmero, abandonou a temporalidade humana. marcada pelo descartvel.
E justamente o trabalho sobre a ausncia (a perda) que o melanclico no
consegue realizar, no conseguindo remeter-se s situaes prazerosas por ter sofrido
sucessivos desapontamentos amorosos, que feriram gravemente o narcisismo infantil,
marcam o indivduo com o sentimento de haver sido totalmente abandonado. Para
que o vnculo da libido com o objeto seja abandonado gradualmente preciso que as
lembranas e expectativas em relao ao objeto sejam evocadas e investidas fortemente.
O melanclico, no entanto, mimetiza o outro e o mantm sempre dentro de si, negando a
ausncia e, portanto, o tempo em sua durao. Nesse aspecto, a relao do melanclico
com o tempo exatamente a mesma que a da sociedade contempornea, desvalorizadora
do passado.
A questo do melanclico no conseguir lidar com uma perda, a perda
inconsciente de si mesmo, a perda da auto-estima. Com a mudana rpida dos valores
na sociedade do efmero, mal o sujeito identicou-se com certo objeto, este j tornou-se
ultrapassado e, assim, a perda do objeto torna-se perda do prprio ego. Ora, na sociedade
do efmero o prprio sujeito efmero. O que nos leva questo da impossibilidade decorresponder ao ego ideal, pois, pela fugacidade, o sujeito cai na desvalorizao, isto
, torna-se impossvel para ele corresponder representao de si com seus elementos
valorativos.
Como vimos, o ego se constitui pela identicao com a imagem do outro que
ir, ento, denir que o ego ideal, tendo como modelos personagens possuidores dos
atributos de mxima valorizao como heris, santos, atores de teatro, cinema, televiso,
etc.
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Contudo, preso como est imagem do objeto, sem poder elaborar suas perdas,
v-se com um buraco na esfera psquica.
Sem laos temporais e afetivos que o orientem, torna-se inseguro e por
isso inclinado a acatar o discurso da autoridade, que preenche o vazio, o discurso dos
especialistas, que determinam o que o sujeito deve pensar, querer, sentir, oferecendo valor
e sentido para a vida. Tendo suas necessidades denidas por especialistas no admira que
estas no possam ser jamais satisfeitas.
Ora, os especialistas simplesmente reproduzem, sob a forma de cincia e de
saber, aquilo que o mercado de consumo prope como denio do desejo e dos meios
de sua satisfao. Desta forma, as imagens criadas pela publicidade e pela propaganda
so ecazes, pois inventam os desejos, sendo signos do que a sociedade deve valorizar
nos indivduos (no caso contemporneo, o sucesso, denido por critrios de competio,
juventude, sade e cuidados extremos com a beleza corporal).
A sociedade ps-moderna uma sociedade de imagens e assim, as imagens
do outro nos so oferecidas em profuso, massivamente, ininterruptamente. As imagens
parecem preencher todo o tempo e todo o espao real e imaginrio, elas parecem ser tudo
e todo o real, no h falta, no h lacuna, no h ausncia, no h distncia isto , no
h tudo aquilo que preciso para haver simbolizao, e por isso a necessidade de recorrer
s imagens criadas pela tecnologia, imagens do mundo externo que criem uma iluso de
realidade, uma ultra realidade que se nos impe. O sujeito, portanto, no simboliza,
aceita como sua essa realidade mais que real, acreditando ver nela seu prprio reexo
(tem a iluso de onipotncia).
E assim, a distncia entre o indivduo e a imagem desejada e desejvel que
parece reeti-lo como um espelho, por sua irrealidade totalmente inalcanvel. Por
isso, identicando-se com a imagem, sente-se distante de si e experimenta uma perda
contnua.
A busca da satisfao imediata dos desejos, num universo de compresso espacial
e temporal, de perda dos referenciais histricos e scio-econmicos que ofereciam aos
indivduos identidade de origem, de classe ou de grupo, a insegurana quanto ao presente
e ao futuro, a competio, a inveno de simulacros hiper-reais ou virtuais para desejos
de sucesso e celebridade, juventude e beleza, corpo perfeito (segundo os padres ditados
pela moda) e sade perene, caracterizam tanto o narcisista quanto a sociedade narcisista.
E o sentimento de no corresponder a essa imagem engrandecida e perfeita de si,
o sentimento da distncia entre a onipotncia e a falta, o sentimento inconsciente de uma
perda irremedivel e o impulso canibalista contra o outro que parece concretizar essas
imagens, tudo isso no seno o efeito necessrio do narcisismo, isto , a melancolia (ou
a depresso).
Melancholy and Contemporaneity
Abstract:Our aim in this paper is to follow two moments of the formulation of the concept
of melancholy, considering one text imputed to Aristotle and another one from Freud. We
discuss the emergence of melancholy/ depression as a pathology that is characteristic of
the comporary society, i.e., a sympton of a society that is characterized by narcissistic
ideals, as Freud described and interpreted them in theMourning and Melancholyand in
the On Narcissism: an introduction. We also add the analyses from Christopher Lasch
and David Harvey to the Freuds interpretation. To the patologic process of socialization
we link the contemporary society, because it is intrinsically narcissistic, namely in themanner of producing and operating the image as image, elaborated and transmited not
only to replace the reality, but also to offer an ilusion of satisfaction and in this way block
the psychic and social process of symbolization, without which the desire can not be
transgurated and fulled.
Keywords:melancholy, Aristotle, Freud, narcissism, post-modernity
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS:
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7/21/2019 Chau-Berlinck, Luciana - Melacolia e contemporaneidade
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NOTAS:
1 - Em portugus, acedia traduzida por: tristeza, indolncia, preguia, negligncia,
desleixo,langor, abatimento.
2 - No faremos distino entre melancolia e depresso, uma vez que no h discrimina-
o destes termos na obra de Freud.
3 - Para este tema ver tambm Chau-Berlinck, L.Melancolia:rastros de dor e perda.So
Paulo, Editora Humanitas/ AAT, 2008.
4 - Segundo o dicionrio de Psicanlise de Laplanche e Pontalis, neurose narcsica uma expresso que encontramos nos escritos de Freud para designar uma doena mental
caracterizada pela retirada da libido sobre o ego. Ope-se assim s neuroses de transfe-
rncia (Laplanche 15, p. 312).
5 - Para maior esclarecimento ver: Chau-Berlinck, L.Melancolia:rastros de dor e perda.
So Paulo, Editora Humanitas/ AAT, 2008.
Espinosa e a tradio melanclica
Marcos F. de Paula*
Resumo: Desde oProblema XXX, atribudo a Aristteles, uma longa tradio de lsofos,
artistas e escritores v a melancolia como afeto positivo ligado ao homem de gnio e
criao intelectual em geral. Do ponto de vista da teoria dos afetos de Espinosa, o
problema da melancolia coloca um outro: como possvel que de uma tristeza profunda
possa nascer a atividade intectual, artstica, literria? Toda atividade uma produo, uma
alegria, aumento da potncia de agir e pensar: como ela poderia nascer da melancolia?
Nossa hiptese que o problema se explica pela alegria eufrica, a outra face da
melancolia, que nasce como reao do desejo contra a prpria tristeza. Por ser alegria,
afasta a tristeza profunda; mas por ser eufrica, mantm o melanclico preso sua
prpria doena. Assim, a reao no cura o doente de seu mal, o mantm num crculo
interminvel de euforia e estado melanclico.
Palavras-chave: melancolia, criao, alegria, euforia, desejo.
La mlancolie nest que de la ferveur retombe
Andr Gide1
I. O problema da melancolia
H uma antiga e longa tradio de lsofos, artistas, escritores, poetas e msicos,
que v na melancolia, enquanto afeto de tristeza, um fator positivo capaz de impulsionar
as produes artsticas, loscas, cientcas, literrias e at mesmo as grandes aes
polticas. Ns conhecemos a pergunta de Aristteles (ou do Pseudo-Aristteles2
) noProblema XXX: por que anal todos os que foram homens de exceo, guras excepcionais,
seja em losoa, artes, poesia ou poltica, foram tambm menifestamente melanclicos? O
Filsofo cita vrios exemplos, como Herclito, Lisandro, Ajax, Belerofonte, Empdocles,
Plato e Scrates e muitos outros entre as pessoas ilustres (Aristteles 1, 953a10-27,
p.84-85), como de resto o prprio Aristteles ser citado na posteridade como um exemplo
de grande gnio melanclico.
* Doutorando em Filosoa na USP e bolsista da Fapesp.