Chagas_Limites e Dissonâncias Da Razão Comunicativa_a Partir Do Estético

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  • Arthur Eduardo Grupillo Chagas

    Limites e dissonncias da razo comunicativa

    Uma crtica a partir do Problema da Esttica

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    Arthur Eduardo Grupillo Chagas

    Limites e dissonncias da razo comunicativa

    Uma crtica a partir do Problema da Esttica

    Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial obteno do ttulo de Doutor em Filosofia.

    Orientadora: Profa. Dra. Virginia de Arajo Figueiredo

    BELO HORIZONTE

    Universidade Federal de Minas Gerais 2012

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    100 Chagas, Arthur Eduardo Grupillo C433l Limites e dissonncias da razo comunicativa [manuscrito] : uma crtica 2012 a partir do problema da esttica/ Arthur Eduardo Grupillo Chagas. -2012.

    333 f. Orientadora : Virginia de Arajo Figueiredo. Tese (doutorado) Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas.

    .

    1. Habermas, Jurgen, 1929- 2. Heidegger, Martin, 1889-1976. 3. Filosofia - Teses. 4. Esttica- Teses. I. Figueiredo, Virginia de Arajo. III Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas. IV. Ttulo

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    Para minha famlia

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    Grenzsituationen erfahren und Existieren ist dasselbe. (Karl Jaspers)

    H contos de fadas, parbolas e lendas nos quais so descritas coisas maravilhosas que no aconteceram

    realmente, e jamais poderiam ter acontecido; mas esses contos so verdadeiros, em parte

    porque revelam que a vontade de Deus sempre existiu, existe e existir eternamente.

    Em resumo, revelam a verdade do reino de Deus. (Tolsti)

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    Resumo

    A crtica da razo to antiga quanto ela mesma, pois a razo no passa disso: a

    capacidade de pr as coisas em suspenso, subtrair-lhes a obviedade, exigir-lhes fundamento,

    como se exige de um proprietrio o seu ttulo de propriedade. Em torno da metade do sculo

    XX, esta crtica parece ter esgotado as possibilidades de se renovar, o que estimulou

    pensadores como Jrgen Habermas formulao de um conceito ampliado ou enriquecido de

    razo, que teria essencialmente duas vantagens sobre o modelo ultrapassado. A primeira diz

    respeito aptido desta figura renovada da razo para incluir o outro excludo da razo

    centrada na subjetividade, a saber, a experincia esttica. A segunda incide sobre o modo

    como esta incluso realizada a partir de uma incorporao da razo linguagem,

    conseqentemente atravs de uma lingistificao da experincia esttica. A presente tese

    prope-se a investigar como esta estratgia conceitual, embora justificada, esbarra em limites

    que, a rigor, no deveriam ser imputados prpria racionalidade. A razo comunicativa,

    portanto, no deveria ser passvel de uma crtica autofgica, algo assim como uma dialtica

    negativa. Porm, na medida em que ela precisa levar em considerao o potencial cognitivo

    destes limites impostos pela linguagem que abre o mundo, ela interioriza pressupostos

    normativos dissonantes consigo mesma. Uma vez que a experincia com a arte oferece o

    exemplo mais claro deste potencial, sem deixar de levantar uma pretenso racional especfica,

    ela tem a prerrogativa metodolgica de permitir uma crtica razo comunicativa que no se

    torna auto-referente, mas que se coloca a partir de um problema: o problema da esttica.

    Palavras-chave: Razo comunicativa, Habermas, esttica, Heidegger, abertura de mundo

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    Abstract

    The critique of reason is as old as herself, because reason is just that: the ability to put

    things on hold, to snatch away from them the obviousness, and to require them to plea, as

    required of an owner your title. Around the middle of the twentieth century, this criticism

    seems to have exhausted the possbilities of renewal, what stimulated thinkers such as Jrgen

    Habermas to formulate a broadened or enriched concept of reason, which would essentially

    have two advantages over the outdated model. The first one concerns the aptitude of this

    renewed figure of reason to include the other of the subject-centered reason, namely the

    aesthetic experience. The second one focuses on how this inclusion is accomplished by an

    incorporation of reason into language, therefore through a linguistification of aesthetic

    experience. The present thesis proposes to investigate how this conceptual strategy, although

    justified, comes up against limits, which, striclty speaking, should not be imputed to

    rationality itself. Communicative reason should therefore not be susceptible to an autophagic

    critique, something like a negative dialectics. However, insofar as it must take into account the

    cognitive potential of these limits imposed by a world-disclosing language, it internalizes

    dissonant normative assumptions. Since the experience with art offers the clearest example of

    this potencial, while raising a specific rational claim, it has the methodological prerogative to

    allow a critique of communicative reason which does not become self-referential, but which

    has been put from a problem: the problem of aesthetics.

    Key-words: Communicative reason, Habermas, aesthetics, Heidegger, world-disclosure

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    Sumrio

    Introduo 13

    I. O problema da esttica 26

    A diferenciao entre esttica e conhecimento 34 A arte entre a verdade e a razo 43 A esttica do neokantismo 49 Crtica da fragmentao e os paradoxos do modernismo 55

    II. Necessidades remanescentes de uma razo comunicativa 59

    A reconstruo teraputica da modernidade 61 1 perfil filosfico-poltico: Adorno 77 2 perfil filosfico-poltico: Marcuse 85 3 perfil filosfico-poltico: Benjamin 91 O projeto inicial e as necessidades remanescentes 110

    III. Do projeto definitivo esperada reviso 116

    Para a reconstruo idealista do materialismo 118 Cognitivismo e expressivismo na Teoria da Ao Comunicativa 152 Habermas e o problema da esttica 179 A esttica da TAC: perguntas e respostas 199 Entre Hegel e Heidegger 217

    IV. Sobre o conceito de abertura (semntica) do mundo 225

    A arte como acontecimento da verdade em Heidegger 228 Interseces entre mundo e ente intramundano 237 O desafio ps-moderno 247 Validade e verdade: o deflacionamento da diferena entre ao e discurso 263 Verdade e validade: dissonncias e limites 278

    Consideraes finais 316

    Bibliografia 320

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    Agradecimentos

    J me cobri de folhas cadas, no inverno, e declarei amor a uma rvore. Tive

    oportunidade de ver a Piet, de Michelangelo, e entendi perfeitamente o poeta alexandrino

    Giuseppe Ungaretti quando disse uma vez, dessa escultura, em particular: a primeira

    manifestao decisiva de um retorno meu f crist. Da natureza, atravs da arte, at f,

    percorri o caminho de uma questo que sempre me incomodou como a mais digna de ser

    pensada: qual fenmeno suplanta a beleza? Com este trabalho, marco meu prprio retorno, e

    agradeo a Deus, o criador, e a seu filho Jesus, o Cristo, por tudo que me permitiu ser e fazer.

    Logo em seguida, marco tambm o meu retorno casa paterna, aos valores da justia e do

    amor que l aprendi, e agradeo de todo corao a minha me, Maria do Rosrio Grupillo

    Chagas, a meu pai, Astenneildo de Castro Chagas, e a minha irm, Aline Grupillo, por serem a

    minha famlia, o meu grande presente. Ainda recebo com muita alegria a chegada de Sophia

    Grupillo, e de Benjamin Reis, que compem, junto com eles, o ncleo imprescindvel de

    minha convivncia. Este trabalho no seria sequer pensvel sem eles.

    Agradeo a minha orientadora, Profa. Dra. Virginia Figueiredo, pela disponibilidade e

    ateno sempre dedicadas, por suas reflexes iluminadoras e seu entusiasmo no pensar. Sou

    grato tambm ao CNPq, pela concesso da bolsa de estudos, e ao DAAD que, em conjunto,

    permitiram-me passar belos meses entre Gttingen, Kassel e Frankfurt. Ao Prof. Dr. Stephan

    Majetschak, pela recepo amistosa e pela orientao. Ao Prof. Dr. Martin Seel, pelas

    importantes discusses, e pelas consideraes de uma verso preliminar desta tese. Aos Profs.

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    Drs. Rodrigo Duarte e Dacier de Barros, e ao Prof. Dr. Ricardo Barbosa, que muito

    contriburam para a realizao desta pesquisa. Profa. Dra. Giorgia Cecchinato que,

    juntamente com o Prof. Ricardo, teve a gentileza de tecer os comentrios necessrios para sua

    qualificao.

    Este trabalho tambm no teria sido possvel sem grandes amigos. Em particular, tenho

    uma dvida de gratido impagvel com Flvia Sfadi e com Julian Culp, pela generosidade e

    pelas lies de vida e amor, que fazem a gente acreditar que existem anjos por a, querubins e

    serafins, cuidando da gente. Sou imensamente grato a Fbio Tenrio, meu grande amigo, pela

    parceria na vida e na filosofia, e pela constante presena, ainda que na distncia. A Filipe

    Campello agradeo muitas coisas: a amizade, a acolhida em Frankfurt, as proveitosas

    discusses musicais, a disponibilidade em remeter material bibliogrfico e o estmulo

    recproco para vos filosficos altos. Ao Evaldo Sampaio, tambm pela presena na distncia,

    e pelos desafios de uma mente verdadeiramente filosfica.

    Expresso minha gratido a Ktia Arajo (in memoriam), pelo abrigo e pelo convvio no

    primeiro ano do doutorado, em Belo Horizonte. A Joaquim Mrcio de Castro Almeida, meu

    outro grande amigo, devo no s mais um perodo de estadia viva e produtiva nessa cidade,

    mas tambm muito o que sei da vida. Ele certamente subestima a importncia que teve e tem

    na minha formao. A Domingos Svio, por sempre abrir incondicionalmente as portas da sua

    casa a minhas caprichosas visitas. A Soraya Ventura e Artmis Pereira, pelo apoio. Aos

    amigos com quem convivi no Rio de Janeiro, Romero Rocha, Helena Pontes, Daniel Kucera.

    Ao estimado amigo que, pela distncia, lamento no poder sempre desfrutar do

    companheirismo e do bom humor, Ratul Saha.

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    Durante estes cinco anos, muitas pessoas passaram pela minha vida e contriburam

    diretamente, de algum modo, para a realizao deste trabalho, e talvez no me lembre de todas

    que mereceriam constar nestes agradecimentos. Mas gostaria de citar os nomes de Rainer

    Patriota, Marco Deidda, Pablo Holmes, Xing Yue, Mnica Herrera, Mara Nassif, Romero

    Freitas, Alice Lino, Djali Andrade, Hermano Velten, Eduardo Diniz, Roger Lisardo e

    Franciele Petry. Sou grato tambm aos que contriburam indiretamente para a mesma

    realizao, s comunidades brasileiras em Gttingen e em Frankfurt, aos membros da PIBVA,

    a meus tios e tias, em particular minha querida tia Marlia, e s muitas mes por quem, mesmo

    sem saber, tive o prazer de ser adotado.

    Por fim, tambm gostaria de agradecer Profa. Susi, da Cultura Alem de Belo

    Horizonte, a Andra Baumgratz, secretria da Ps-graduao em Filosofia da UFMG, a Vilma

    Carvalho, bibliotecria da Fafich, pela ateno e dedicao, e tambm aos funcionrios da

    biblioteca do Instituto Goethe do Rio de Janeiro.

    A todos estes, e a muitos outros, muito obrigado.

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    Introduo

    Principalmente quando numa obra se trata de criticar fatos e gentes, disse uma vez

    Manuel Bonfim, h mais de uma advertncia oportuna ao leitor, se tomarmos os motivos

    exteriores de sua concepo. Vou seguir o exemplo e fazer mais de uma, mas no mais que

    duas, cada qual relacionada a uma das palavras contidas no ttulo: limites e dissonncias. O

    fato de ser uma crtica e, alm disso, direcionada a um certo conceito de razo, e na verdade a

    partir de determinado problema, espero, estar prontamente aclarado, se for possvel justificar

    a presena e explicar o significado destes dois vocbulos. Na verdade, advirto o leitor de que

    no h mais de uma advertncia.

    Ao escrever o prefcio de sua Dialtica Negativa, certamente destinado confisso dos

    paradoxos consistentes da empresa, Adorno acrescentou afinal o desconhecimento mtuo

    entre seu trabalho e o de Ulrich Sonnemann, simultaneamente elaborado sob o ttulo

    Antropologia Negativa. Isto no servia tanto como um argumento ad hominem, mas como a

    evidncia de uma solidariedade, a que se poderia recorrer para vencer uma resistncia; mais

    que isso, um sintoma de uma necessidade objetiva, que sempre pode valer como justificativa

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    para uma obra, ainda que nela se encontrem inconsistncias tericas, pois este era o cerne do

    argumento dificilmente uma poca consistente consigo mesma. Parece-me que a nossa

    ainda menos que a de Adorno.

    H pouco mais de cinco anos, o presente trabalho germinava desde um projeto que

    ousei intitular Veracidade ou abertura semntica ao mundo: sobre os limites da razo

    comunicativa e sua contribuio ao problema da esttica. Alguns meses depois, descobri o

    interessante livro de Pieter Duvenage, que trazia um ttulo ainda mais objetivo e explcito.1 Eu

    seguia apenas intuitivamente os rastros de minhas reflexes, mas, na verdade, encontrava-me

    era no centro de uma discusso que teve incio h pelo menos uma dcada e meia ou mais2 e

    ainda no d a mnima impresso de ter amainado. Pelo contrrio, o XIX Deutschen Kongress

    fr Philosophie, ocorrido na cidade de Bonn em setembro de 2002, teve por tema Limites e

    infringncia de limites, pois, a julgar pelas discusses da ltima dcada em congressos

    mundiais de filosofia, de Paris a Istambul, diziam as palavras de saudao: limites, restries

    e a problemtica da infringncia de limites cumprem, em nossa poca cada vez mais complexa

    e diante de peculiares desafios internacionais, um papel decisivo.3

    De modo paradigmtico, h cerca de trs anos, Axel Honneth pronunciou em Porto

    Alegre uma conferncia chamada The fabric of justice: Limits of proceduralism, cedido,

    ainda indito, para publicao em traduo brasileira. 4 Se a teoria crtica parecia ter se

    transformado com a passagem de uma gerao outra, de Adorno a Habermas, to

    1 Duvenage, Pieter. Habermas and Aesthetics: The Limits of Communicative Reason. Cambridge: Polity, 2003.

    2 Brubaker, Rogers. The Limits of Rationality: an essay on the social and moral thought of Max Weber. London:

    George Allen & Unwin, 1984; Willams, Bernard. Ethics and the Limits of Philosophy. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1985; Dews, Peter. The Limits of Disenchantment: Essays on Contemporary European Philosophy. London: Verso, 1995. 3

    Lenk, Hans. Gruwort zum XIX. Deutschen Kongre fr Philosophie. In: Grenzen und Grenzberschreitungen. XIX. Deutschen Kongre fr Philosophie. Berlin: Akademie Verlag, 2004, p.20 4 Honneth, A. A textura da justia: sobre os limites do procedimentalismo contemporneo. Civitas, Porto Alegre,

    v.9, n.3, set-dez. 2009, p.345-368

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    rapidamente ela poderia transfigurar-se pela segunda vez. O texto tornava explcito o

    pensamento que gostaramos todos de dar forma: O motivo pelo qual sou ctico a tal tipo de

    procedimentalismo como uma destas formas de procedimentalismo eu compreenderia a

    teoria da justia esboada por Habermas em Facticidade e Validade resulta do fato de que

    considero mais e diferentes formas de reconhecimento social como necessrias para a

    autonomia individual do que aquelas que podem ser garantidas pela participao em processos

    pblicos de formao da vontade.5 No pretendemos entrar aqui na abrangente proposta

    alternativa de uma teoria do reconhecimento; entrementes, tambm a crtica do

    procedimentalismo tornou-se relativamente bastante difundida 6 ; mais do que isso, o que

    gostaramos de reter da discusso o tom dado pelo problema do limite, isto , a convico

    mais ou menos compartilhada, seja na teoria sociolgica da modernidade, na teoria da

    racionalidade, da ao ou do direito, de que os argumentos no justificam o repdio puro e

    simples do que se poderia chamar de ponto de vista formal. Em primeiro lugar, porque ali

    onde inexistem necessidades sociais de interpretao que vo alm dos processos pblicos

    de formao da vontade, surge um papel incomparvel para este ponto de vista, em paralelo

    idia reconhecida por Hegel de que interioridade da conscincia moral cabe uma tarefa

    especfica legtima sempre quando a realidade social se tornou desprovida de esprito e

    postura.7 O formalismo moral-jurdico no garantia de uma forma de vida bem-sucedida,

    5 Honneth, op cit., p.363-4 (itlico nosso)

    6 Pode-se encontrar um amplo resumo dessas crticas, incluindo as perspectivas substancialistas, contextualistas,

    feministas, etc., em: Rosenfeld, Michel. Overcoming Interpretation through Dialogue: A Critique of Habermass Proceduralist Conception of Justice. In: Just Interpretations: law between ethics and politics. California: University of California Press, 1998. Em especial a parte V trata dos limits of Habermass proceduralism and the relationship among law, morals, and politics. Estes limites so particularmente importantes para Rosenfeld, pois ele acredita que Habermas parece ter levado o procedimentalismo to longe quanto possvel. (p.116, itlicos nossos) Ele pode querer dizer, com isso, que Habermas conduz tantos motivos de pensamento contra si mesmo, que difcil conceber uma crtica a seu projeto filosfico que no passe dos limites. 7 Hegel apud Honneth, op.cit., p.363

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    porm, a sua ausncia garantia de uma forma de vida mal-sucedida. Em segundo lugar,

    porque nem toda concepo de formao pblica da vontade implica o fim da interpretao de

    necessidades sociais que transcendem a mera autonomia jurdica do indivduo, e esta parece

    ser justamente a vantagem da teoria de Habermas, historicamente situada, em relao, por

    exemplo, ao procedimentalismo funcionalista de Niklas Luhmann. Poderia tambm ser o caso

    que uma pesquisa histrica revelasse o aparecimento ftico de estruturas sociais normativas

    deste tipo. Por fim, para alm destes desdobramentos especficos, o problema do limite possui

    importantes conseqncias metodolgicas.

    Como o mostra o debate especulativo sobre a razo, de Kant a Hegel, limites no

    podem simplesmente ser postos de antemo pelo ponto de vista que se autolimita, pois isso

    seria ao mesmo tempo ultrapass-los, e no encar-los como limites. O problema exige o

    enfrentamento caso a caso. A atual tendncia de pensar limites tem, portanto, mais do que

    aquela de h trs sculos, implicaes para a prpria filosofia; indica ao mesmo tempo limites

    da prpria maneira de pensar livre dos desafios do caso particular. Visa, sobretudo, diminuir a

    distncia entre teoria e prxis.

    Em Kant, foi a crtica esttica que apontou pela primeira vez os limites de um mtodo

    obcecado em se impor limites a priori, e tambm observou a importncia do caso particular.8

    Acreditamos ser possvel mostrar algo semelhante em relao a Habermas. Neste filsofo, o

    problema da esttica encontra-se de tal maneira ligado s necessidades interpretativas que vo

    alm do que pode ser deliberado publicamente numa formao discursiva da vontade, que no

    8 Assim compreende H-G Gadamer: A Crtica do juzo surgiu dessa intuio. J no mais mera crtica do

    gosto, no sentido de o gosto ser objeto de julgamento crtico por parte dos outros. crtica da crtica, isto , indaga a respeito dos direitos de um tal comportamento crtico sobre questes de gosto. A no se trata mais de meros princpios empricos que deveriam legitimar um gosto abrangente e dominante, como a pergunta favorita sobre as causas da diversidade do gosto, por exemplo; trata-se, antes, de um genuno a priori, que dever justificar como tal e sempre a possibilidade da crtica. Gadamer, H-G. Verdade e Mtodo. Petrpolis: Vozes, 2004, p.83

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    haveria melhor modo de pensar os seus limites.9 E, juntamente com eles, tambm o modo

    como possvel elucidar, nesta configurao, porque o problema do limite to importante

    precisamente na crtica de um paradigma filosfico que visa ampliar a razo para

    desvencilh-la dos limites auto-impostos, a partir dos quais, por sua vez, uma reduo

    cognitivo-instrumental da razo d simultaneamente ocasio para uma crtica imvel e

    estagnada. O problema do limite d o tom da discusso em torno de uma concepo de razo

    que, a priori, no se impe limites, nem se livra absolutamente de limites, mas, quando o

    caso, os reconhece. Um pensamento, como veremos, jamais auto-suficiente, mas que depende

    tanto de interpretaes histricas quanto de pesquisas empricas, a fim de identificar os seus

    casos-limite, as notas que fogem ao seu tom.

    O problema da esttica em Habermas, presente desde seus primeiros trabalhos, vem

    tona mais claramente numa crtica levada a cabo por seu antigo colaborador Albrecht Wellmer,

    cujos detalhes no seria o caso de antecipar nestas consideraes apenas introdutrias.

    Novamente, vou apenas indicar porque esta crtica emerge como uma nota dissonante na

    concepo geral de uma razo ampliada. Como a complementar a problemtica do limite,

    tomo a expresso dissonncia tambm a Axel Honneth, que aparece no contexto distinto de

    uma homenagem a Wellmer intitulada Dissonncias da razo comunicativa: Albrecht

    Wellmer e a teoria crtica.10 Minha suspeita de que a escolha desta expresso por parte do

    homenageador, quase a seu despeito, contm mais significado filosfico do que se faz parecer.

    Com efeito, como convm a uma Laudatio, reporta-se sobretudo trajetria intelectual do

    9 Limites, portanto, como veremos ao longo deste trabalho, no apenas do projeto filosfico elaborado por

    Habermas, mas tambm do prprio ponto de vista esttico, que aponta para alm de si mesmo, na direo da interpretao de nossas necessidades mais ntimas. 10

    Honneth, A. Dissonanzen der kommunikativen Vernunft: Albrecht Wellmer und die Kritische Theorie. In: Pathologien der Vernunft. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2007.

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    homenageado, que mais se aproximaria de grandes compositores, como Beethoven, que de

    grandes filsofos, como Hegel. O intuito explcito era mostrar que o caminho percorrido pelo

    homenageado o desviara cada vez mais de uma sntese acabada e sistemtica de seu

    pensamento, e o teria conduzido, por fim, a uma filosofia ensastica, de estilo constelar, da

    qual Adorno teria sido um eminente, talvez o maior, representante.

    A suspeita dificilmente se confirmar, enquanto tal, com relao quela homenagem,

    mas dever se confirmar, no decorrer deste trabalho, enquanto interpretao e

    desenvolvimento das crticas (que vo alm) de Wellmer ao conceito de uma razo

    comunicativa. Mais do que isso, este trabalho deve mesmo lanar luz sobre o seu homnimo

    parcial, pois afirmamos que a expresso musical dissonncia aqui explicitamente escolhida

    e usada em substituio a dialtica negativa. Isso com o objetivo de, em primeiro lugar,

    levar em conta a crtica ao fragmento de sistema em Adorno e, principalmente, mostrar que a

    razo comunicativa, por tentar superar algumas premissas da dita concepo de razo centrada

    no sujeito, no deveria ser passvel de uma crtica autofgica, algo assim como uma dialtica

    negativa, mas apenas se deixa criticar na forma de exposio de limites, impotncias,

    deficincias, incongruncias, incompletudes, incompatibilidades, etc.

    Com isso, justificamos a presena dos termos limites e dissonncias, mas ainda no

    explicamos inteiramente seu significado, isto , o que poderia funcionar como limites ou como

    notas dissonantes da concepo de uma razo comunicativa que, a rigor, no deveria se

    autolimitar. Apenas sugerimos que o problema da esttica poderia oferecer um caminho

    promissor, o que d ocasio de resumir o contedo deste trabalho, a comear pelo pano de

    fundo que constitui o ponto de partida da argumentao, para, em seguida, elaborar o fio

    condutor que leva de seu primeiro ao ltimo captulo.

  • 19

    Habermas prope sua concepo de uma razo ampliada, a razo comunicativa, como

    superao de uma concepo de razo centrada no sujeito, que, por sua vez, teria sido passvel

    de uma reduo cognitivo-instrumental. Mais tarde, ele articula esta idia geral, na obra O

    Discurso Filosfico da Modernidade, insistindo sobre os aspectos lgicos da crtica da razo.11

    Esta crtica possui duas faces: 1) a razo que critica a si mesma incorre numa petio de

    princpio ou numa contradio performativa12; 2) a razo se critica porque acredita que exclui

    do seu mbito um Outro, que ela no pode acessar enquanto estiver reduzida a uma

    autocompreenso cognitivo-instrumental, mas somente quando se abre a uma determinada

    experincia, da qual a experincia esttica seria o paradigma.13 A razo comunicativa se

    apresentaria, simultaneamente, como uma razo capaz de escapar a este dilema, na medida em

    que no se restringe a questes cognitivo-instrumentais, mas se amplia at incluir o Outro da

    razo centrada no sujeito, a saber, a experincia esttica convertida em linguagem. Do nosso

    lado, partimos da seguinte hiptese: se fosse possvel, portanto, identificar problemas tpicos,

    talvez um problema geral, quanto possibilidade de uma conceituao adequada da

    experincia esttica, ento este funcionaria, assim, como um indicador-teste, semelhante aos

    usados em qumica, para detectar a presena de uma concepo restrita de razo. isso que

    intentamos no primeiro captulo, que chamamos, no sem ousadia, O Problema da

    11 Cf. Habermas, J. Der philosophische Diskurs der Moderne. Frankfurt am Main: Surkamp, 1985. (Trad. Luiz

    Repa e Rodnei Nascimento. O Discurso Filosfico da Modernidade. So Paulo: Martins Fontes, 2000). Daqui por diante, DFM, seguido das respectivas paginaes, do original e da traduo, entre parnteses. 12

    Nisso, Habermas no faz mais do que repetir aquilo que Adorno e Horkheimer dizem de si mesmos: A aporia com que defrontamos em nosso trabalho revela-se assim como o primeiro objeto a investigar: a autodestruio do esclarecimento. No alimentamos dvida nenhuma e nisso reside nossa petitio principii. Adorno/Horkheimer. Dialtica do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, p.13 13

    So constitudos, assim, dois discursos tpicos da modernidade, o modelo da ciso e o modelo da excluso, atribudos respectivamente a Hegel e a Schelling. No primeiro, uma outra figura da razo e, no segundo, a poesia pblica, se candidatam a poder unificador. Cf. DFM (110/128)

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    Esttica.14 Seu objetivo no exaurir nem condensar a problemtica esttica, sem dvida

    inesgotvel, numa nica pergunta, como se poderia pensar, mas projetar um crculo ao redor

    do ncleo opaco da experincia esttica, sempre que esta se torna objeto e tarefa da filosofia.

    De posse desta problemtica elaborada, passamos, no segundo captulo, construo

    sucessiva do que caracterizamos como o projeto inicial de uma razo comunicativa,

    conforme comea a se desenhar nos primeiros trabalhos significativos de Habermas, a partir

    da dcada de 70. Com isso, apontamos o que acreditamos serem as necessidades

    remanescentes de um projeto deixado parcialmente para trs. Nesta construo, privilegiamos

    pari passu dois traos considerados os mais importantes: 1) o desenvolvimento de uma

    configurao conceitual alternativa dialtica hegeliana, na qual a crtica da razo havia se

    recolhido, a partir das relaes, no exatamente dialticas, entre sistema e mundo da vida,

    sugerindo uma teraputica da razo que, diante dos desafios de legitimao, esbarra em limites

    ou, melhor, precisa se mover dentro de certos limites; 2) o dilogo de Habermas com os

    representantes mais eminentes da teoria crtica, para quem a arte e a experincia esttica

    constituem a contrapartida fundamental de uma crtica da razo.

    No terceiro captulo, dedicamo-nos aos aspectos conceituais centrais do projeto de

    Habermas, tal como veio a adquirir uma fisionomia madura, na Teoria da Ao comunicativa.

    Este amadurecimento, compreendido como uma culminncia, tem o objetivo de prosseguir

    reconstruo da teoria qual dirigimos uma crtica, sem descurar do que seria, antes, uma

    reformulao natural na evoluo de um pensador, e no uma contradio sistemtica na

    configurao de um pensamento. Com efeito, ele comea por um esclarecimento da noo

    habermasiana de materialismo, entendido como complexidade hermenutica, em oposio

    14 Certamente fazendo aluso, como veremos, estratgia semelhante de Cassirer na formulao de um elementar

    Problema do Conhecimento, constitutivo da filosofia moderna.

  • 21

    manifesta apropriao materialista da lgica hegeliana. Uma vez esclarecido este ponto,

    desenvolvemos nossa interpretao do projeto filosfico que constitui o objeto da crtica, o

    que designamos como sendo o cognitivismo e o expressivismo parcialmente explcitos na obra

    Teoria da Ao Comunicativa. possvel que esta parte do trabalho desperte mais interesse no

    leitor habituado s discusses em filosofia da linguagem, tais como a semntica veritativa ou a

    pragmtica formal, e menos ao leitor estimulado pela idia de uma crtica que se desenrola a

    partir do problema da esttica. De fato, o captulo denominado Do projeto definitivo

    esperada reviso possui, como o ttulo j indica, uma parte concernente ao projeto

    definitivo, que teria o inconveniente de deixar precisamente para trs necessidades

    remanescentes de cunho esttico-semntico. Mas esta ausncia, fortemente sentida, tambm

    nas discusses que roubam a cena do presente trabalho, logo reconhecida e suprida, pois,

    exatamente neste ponto, entram em jogo as objees levantadas por Albrecht Wellmer a

    Habermas, que, por sua vez, aquiesce crtica e d ocasio para uma atualizao do problema

    da esttica com outros meios. Sobre isso vale a pena ainda algumas consideraes, a fim de

    introduzir o leitor ao quarto e ltimo captulo.

    Inicialmente, este trabalho diz respeito a uma crtica aparentemente pontual a

    Habermas, ou pelo menos assim por ele tratada.15 Minha tese que esta crtica implicava uma

    dinamizao dos pressupostos da pragmtica formal a ponto de encontrar premissas do

    pensamento de Heidegger e do conceito de abertura de mundo, que influencia o pensamento

    de Habermas a partir da interpretao que lhe imprimiu Apel, em conexo com uma

    15 Entretanto, no seguimento dos trabalhos de A. Wellmer e M. Seel, corrigi a crtica, repetida por Tracy,

    queles encurtamentos de uma esttica expressiva que sugere no mnimo a teoria do agir comunicativo. Habermas, J. Exkurs: Transzendenz von innen, Transzendenz ins Diesseits. In: Texte und Kontexte. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2.Auf., 1992, p.146 (Trad. Sandra Lippert Vieira. Excurso: Transcendncia do interior, transcendncia para este mundo. In: Textos e Contextos. Lisboa: Instituto Piaget, 2001, p.136)

  • 22

    lingstica voltada para o contedo desenvolvida com o auxlio de Wittgenstein.16 Do lado

    daquela dinamizao, h o reconhecido motivo adorniano que servia de invlucro crtica. A

    pontualidade ganhava assim contornos gigantescos. Num trabalho sobre esttica em Habermas,

    vi-me diante de trs dos mais importantes pensadores, e no apenas do sculo XX: Adorno,

    Heidegger e Wittgenstein, sem mencionar o pano de fundo que a tradio desempenha na

    compreenso destes autores, com a exceo controversa do ltimo. Isso exigiu do pesquisador

    um esforo considervel de delimitao, que no poderia ser temtica, mas apenas

    bibliogrfica e de enfoque. Diante da impossibilidade de perpassar a completude ou quase

    completude da obra desses autores, o trabalho optou por no desprezar pelo menos a

    fisionomia em que o problema da abertura de mundo neles retratado. Embora o par

    Heidegger/Wittgenstein constitua uma relativa unidade a partir da qual se desenrola grande

    parte do debate com outros crticos de Habermas, como Richard Rorty e Charles Taylor, em

    virtude de sua argcia reflexiva e conseqente desprezo pelos problemas filosficos que lhe

    sobrevm, Wittgenstein foi perdendo, no decorrer da pesquisa, a devida importncia, lacuna

    que no ousaria justificar seno do ponto de vista hermenutico. Wittgenstein ocupa um lugar

    de destaque no s na formao intelectual de Albrecht Wellmer como tambm em sua crtica

    a Habermas, mas apenas como um personagem que realiza uma ao fundamental na trama,

    mas logo sai de cena. A soluo teraputica de Wittgenstein para a filosofia lhe permite ocupar

    este lugar, central e embrionrio, no problema, mas no deixa ver suas conseqncias mais

    extremas e interessantes. Por outro lado, Heidegger constitui, segundo minha intuio mais

    ntima, um motivo inconfessado da crtica de Wellmer a Habermas. Seu uso indiscernvel

    16 Apel, K-O. Transformao da Filosofia. So Paulo: Loyola, 2000, v.1

  • 23

    entre capacidade mimtica e funo abridora de mundo da linguagem justifica a

    concentrao em volta de Adorno e Heidegger.17

    A experincia esttica, nesta constelao, aproxima-se tanto de uma fora inovadora,

    que desvenda o mundo, 18 que o trabalho no estaria completo sem um esforo de

    compreenso do pensamento de Heidegger sobre a arte. No s por isso, mas tambm porque

    este oferece o suporte com o qual Habermas elabora as premissas ontolgicas de uma

    configurao conceitual realmente alternativa de Hegel, a que Adorno teria se recusado,

    embora tivesse todos os motivos que o justificasse. Por isso, o quarto captulo dedica-se ao

    conceito de abertura (semntica) do mundo, sobretudo em Heidegger, e posteriormente em

    autores que perceberam e desenvolveram esta aproximao de Habermas. Sendo assim,

    exatamente a partir dos limites nos quais a problemtica esttica pode se desenvolver e

    ampliar at converter-se num problema semntico-ontolgico, gostaramos de levar a cabo

    uma crtica ao conceito, igualmente ampliado, de razo comunicativa.

    A problemtica do limite parece conduzir hoje o pensamento crtico em tempos de

    desconfiana dialtica. Recentemente, como vimos, aparecem obras que se inserem

    conscientemente nesta perspectiva, e isso, ao mesmo tempo, nos vrios mbitos do debate

    contemporneo nos quais a discusso aqui intentada encontra repercusso, tanto na teoria

    17 Sobre estas afinidades, Habermas adverte: Imenso aquilo que separa Wittgenstein de Heidegger e Adorno.

    No obstante isso, estes trs fazem parte de uma constelao que permite, igualmente, descobrir afinidades na perspectiva distanciada de quem vem depois. (...) Na anlise teraputica da linguagem, na recordao do Ser ou na dialtica negativa, o pensamento discursivo volta-se, de cada vez, contra a estrutura da enunciao propriamente dita, para permanecer no rasto daquilo que se furta ao discurso articulado em proposies. Wittgenstein, Heidegger e Adorno querem obter efeitos que se parecem, o mais possvel, com experincias estticas. Habermas, J. Ludwig Wittgenstein als Zeitgenosse. In: Texte und Kontexte, op.cit., p.85-88 (Trad. Ludwig Wittgenstein enquanto contemporneo. In: Textos e Contextos, op.cit., p.80-82). 18

    Quase se confundindo, assim, com a problemtica religiosa, como o mostra a seqncia da citao: crtica queles encurtamentos de uma esttica expressiva que sugere no mnimo a teoria do agir comunicativo. Mesmo quando uma fora inovadora, que desvenda o mundo, vem ao encontro de ambos, isto , do discurso proftico e da arte que se tornou autnoma, eu hesitaria em enumerar, de um s flego, smbolos religiosos e estticos. Ibid., p.146 (Trad. modificada. p.136-7)

  • 24

    sociolgica da modernidade e da ao, na teoria do direito e na esttica. Limites e dissonncias

    dizem respeito a uma mesma intuio fundamental, que manifesta a procura por um conceito

    de razo, ou de atitude racional, compatvel com a flexibilidade e a complexidade do mundo

    da vida, e ao mesmo tempo evite inverses, tpicas do pensamento dialtico idealista.19

    Por manter a devida cautela diante dos mltiplos aspectos de uma obra dedicada a

    interesses to vastos, como a de Habermas, este trabalho tambm no estabelece nenhuma

    resposta simples em termos de pr ou contra, mas apenas na medida em que o interesse

    filosfico, que norteia todo ir de encontro coisa de modo crtico, contm de qualquer modo

    uma pretenso de completude.20 Nosso escopo filosfico fundamental consiste em, pelo menos,

    colocar corretamente a seguinte questo: como possvel a crtica a uma concepo de razo

    que se amplia o suficiente para possibilitar a crtica e assim escapar a uma crtica autofgica de

    si mesma?

    O objetivo desenvolver a tese de que o projeto filosfico de Habermas, em parte

    sua revelia, assume a complexidade como princpio interno, no apenas na extenso, mas no

    grau de interdependncia e heterogeneidade dos conceitos, gerando problemas tpicos que, se

    submetidos a um enquadramento global, podem resultar insolveis. Ele atinge um nvel de

    organizao problemtica, que gostaramos de elucidar luz de um fundamento incomum, a

    saber, o problema da validade esttica. Alm disso, visa destacar a suma importncia que a

    necessidade de um afastamento da tradio do pensamento ontolgico, sobretudo de Hegel (e

    por extenso, de Marx), deveria cumprir numa interpretao da teoria de Habermas e dos

    19 Cf. Id., Nachmetaphysisches Denken. Philosophische Aufstze. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1988, p.181

    (Trad. Flvio Beno Siebeneichler. Pensamento Ps-metafsico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990, p.178) Daqui em diante, PPM, com as respectivas paginaes. 20

    Cf. Schndelbach, H. Transformation der kritischen Theorie. In: Kommunikatives Handeln: Beitrge zu Jrgen Habermas Theorie des kommunikatives Handelns. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986, p.15

  • 25

    limites em cujo interior deve se mover tal teoria, se no quiser inflar-se a ponto de converter-

    se numa filosofia da histria.21 Assim, a teoria da racionalidade aparece como o ponto de

    convergncia para o qual so conduzidos os esforos da filosofia em suas correntes ps-

    metafsicas, noutras palavras, ps-hegelianas.22 Procuraremos elucidar como esta estratgia

    incorrer necessariamente em motivos do pensamento ontolgico, mas de uma outra tradio,

    da qual Heidegger a figura emblemtica, e nisto consistem suas dissonncias.

    21 Habermas, J. Zur Rekonstruktion des historischen Materialismus. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1976, p.44

    Doravante, RMH. Indicamos tambm a paginao da traduo brasileira de Carlos Nelson Coutinho: Para a Reconstruo do Materialismo Histrico. So Paulo: Brasiliense, 1983. Neste caso, como em outros, em que h uma edio disponvel em portugus, utilizamos, na maioria das vezes, o texto traduzido, salvo alguma indicao expressa. Sendo assim, RMH (44/43). Deste modo, sempre que possvel, as tradues foram cotejadas com o original. 22

    Habermas, J. Theorie des kommunikativen Handelns. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1981, B.I, p.16 Doravante simplesmente TAC, seguido do volume e da indicao, entre parnteses, de duas paginaes, respectivamente, do original e da traduo espanhola, amplamente difundida no Brasil, em virtude da carncia de uma edio em lngua portuguesa. Cf. Teora de la accin comunicativa. Trad. Manuel Jimnez Redondo. Madrid: Taurus, 2003. Apesar de esta traduo, entre outras, nos ter sido de grande utilidade na verso para o portugus, as tradues dos trechos da obra Teoria da Ao Comunicativa so todas de minha responsabilidade. Indico, no entanto, a paginao espanhola para possvel auxlio do leitor desprovido do original. Sendo assim, a passagem que acabamos de referir encontra-se em TAC I (16/16).

  • 26

    I. O problema da esttica

    a problemtica da teoria do conhecimento ressurge imediatamente na esttica.

    (Die Problematik der Erkenntnistheorie kehrt unmittelbar in der sthetik wieder.)23

    O que surpreende e seduz na arte no apenas a sua resistncia em reduzir-se a um

    contedo conceitual, mas sim que, nesta resistncia, ela procura realizar a tarefa do conceito

    melhor do que ele mesmo. Esta pretenso de validade, aliada, portanto, a uma pretenso de

    ambigidade, conduz a uma circunstncia terica dificilmente estvel, pois embora o esttico

    parea colocar-se, enquanto domnio de validade prprio, ao lado de outros mbitos da

    realidade e do comportamento humano, ele muitas vezes julgou-se, na histria da filosofia,

    capaz de negar-se enquanto mero mbito e, em sua pretenso de ambigidade, de reunir os

    demais mbitos da realidade e do homem cindidos. Que metfora lhe seria adequada? Tratar-

    se-ia de uma parte que ao mesmo tempo catalisa outras partes num todo. Para usar a imagem

    desgastada de uma ponte, diramos que esta no pertence a nenhuma das cidades que liga e, no

    entanto, pertence a este lado a parte da ponte que sobre ele se apia, enquanto a outra parte

    pertence outra margem, a que conduz.

    23 Adorno, Th.W. sthetische Theorie: Frhe Einleitung. In: Digitale Bibliothek Band 97: Gesammelte

    Schriften, S. 4543 (cp. GS 7, p. 493)

  • 27

    De incio, o que parece relativamente claro, desde Baumgarten, Kant at Nietzsche, e

    que Adorno sentenciou no motto acima destacado, o antagonismo de princpio entre esttica

    e epistemologia, de que passaremos discusso logo a seguir. Mas, preciso repeti-lo, isso

    no o mais surpreendente. Difcil compreender e tornar transparente ao esprito o que o

    motto esconde e revela, a saber, a problemtica comum como, e por qu, esta averso

    qumica apenas o efeito eletivo de uma afinidade maior da arte com a prpria vida,

    conseqentemente com aquilo que o conhecimento almeja: a verdade. precariedade de uma

    prxis racionalizada pelo conhecimento terico contrape-se uma plenitude vital, celebrada na

    arte. E a isso se deve, como uma dupla pretenso, seu carter, por assim dizer, irnico,

    simultaneamente no-cognitivo e cognitivo, diante do qual a esttica filosfica, por sua

    fidelidade ao conceito, sente-se repugnar, mas tambm atrair, como se a figura da tentao, ou

    das afinidades eletivas de um tringulo amoroso, pudesse socorrer as insuficincias da

    metfora espacial.

    Essa ambigidade incomoda at o mago o leitor atento, e dela so vtimas conscientes

    muitos filsofos de primeira classe, quase como se no fosse possvel super-la. Tomemos um

    exemplo. No fim de sua vida, o experiente Merleau-Ponty deu forma a um de seus mais

    brilhantes escritos, publicado com o ttulo O olho e o esprito. Claramente orientado nos

    trilhos da tradio filosfica francesa, o texto comea por um repdio do dualismo cartesiano e,

    conseqentemente, da cincia experimental, para quem o mundo outra coisa no , se no um

    objeto x, que Kant denominaria objeto transcendental. Contra isso, exorta o autor,

    preciso que o pensamento da cincia torne a se colocar num h prvio, isto , retorne ao

    corpo que o situa no mundo, no esse corpo possvel que lcito afirmar ser uma mquina de

  • 28

    informao, mas esse corpo atual que chamo meu.24 Somente assim o pensamento alegre e

    improvisador da cincia aprender a ponderar sobre as coisas e sobre si mesmo, voltar a ser

    filosofia...25 Ora, para Merleau-Ponty, somente a arte, especialmente a pintura, manteve-se de

    olhos, atentos e inocentes, nesse sentido bruto do mundo. Ele a distingue das artes do homem

    que fala, isto , a do escritor e a do filsofo, em virtude da responsabilidade e do compromisso

    com a ao destas ltimas; distingue-a tambm da msica, por razes menos claras, e conclui

    que o pintor o nico a ter direito de olhar as coisas sem nenhum dever de apreciao. Dir-

    se-ia que diante dele as palavras de ordem do conhecimento e da ao perdem a virtude.26 A

    ambigidade encontra-se sempre velada. Ao contrrio do pintor, que se retira para as

    montanhas a fim de retratar batalhas, enquanto a plancie se destri, o filsofo s pode

    envergonhar-se e partir para a ao. Curiosamente, embora a palavra de ordem do

    conhecimento e da ao perca a virtude para o artista, se a cincia aprendesse a olhar como o

    pintor, com o esprito dos olhos, seria uma cincia melhor, alegre e improvisadora, capaz de

    ponderar sobre as coisas e tornar-se filosofia, quem sabe at capaz, tambm, de agir melhor.

    Que grande enigma parece nos ter legado Merleau-Ponty! Que enorme desafio compreender

    como a arte pode distinguir-se da cincia e da filosofia e, por outro lado, auxiliar a cincia a

    tornar-se filosofia, como se depois deste contato nenhuma delas permanecesse a mesma, nem

    filosofia, nem cincia, nem arte. Como se a filosofia, sem as outras duas, ainda no tivesse

    atingido sua meta imanente. E como se, fora da totalidade restaurada, tambm arte e cincia

    ficassem incompletas, embora cumpra arte ensinar a cincia a tornar-se filosofia, e a filosofia

    a tornar-se ela mesma. Durante muito tempo, o presente trabalho no pde prosseguir,

    24 Merleau-Ponty, M. O olho e o esprito. So Paulo: Cosac &Naify, 2004, p.14

    25 Ibid., p.15

    26 Ibid., p.15

  • 29

    enquanto no tomou conscincia deste paradoxo restaurador, para o qual Merleau-Ponty

    arriscou a complicada metfora, tambm qumica, mas menos conflituosa que a do tringulo

    amoroso, da persistncia da gua-me no cristal.27

    J Thomas Mann havia retirado ao romantismo o privilgio da ironia, atribuindo-o arte

    como um todo, ao mesmo tempo mediada e mediadora: certo que a posio central e

    mediadora da arte, entre o intelecto e a vida, torna-a inteiramente oriunda da esfera irnica...

    ironia sempre ironia a ambos os lados; ela se dirige tanto contra a vida quanto contra o

    intelecto.28 Por outro lado, Hegel tentou, num gesto de ironia dupla, elevar essa ironia ao

    nvel do conceito, e com isso eliminou grande parte de sua ambigidade, bem como do seu

    carter mediador. Como veremos, em Kant, ainda mais que na esttica do neokantismo, que

    a arte reitera obstinadamente seu direito a esse lugar ambguo, ou duplo lugar, e mantm-se,

    como uma ponte que ao mesmo tempo margem, no cerne do que gostaramos de trabalhar

    sob o auspcio dessa rubrica to vaga quanto complexa o problema da esttica de que o

    momento da diferenciao, sobretudo em relao epistemologia, apenas a porta de entrada.

    Se verdade que a filosofia, ao contrrio das cincias ditas exatas, no colheu ainda o

    fruto nico de muitos sculos de cultivo da reflexo, tambm verdade que poucas disciplinas

    tm tanta clareza e consenso a respeito do seu problema. A diversidade retesada dos resultados

    alcanados pelos filsofos, to escarnecida, no seria possvel sem as recprocas convices de

    que so todas respostas a um mesmssimo problema. Alguns eminentes pesquisadores se

    dedicaram, no sem riscos, exposio dessa tendncia filosfica ao problema elementar ou

    27 De alguma forma, tambm por compreender as insuficincias da espacialidade enquanto figura de pensamento:

    Os animais pintados sobre a parede de Lascaux no esto ali como a fenda ou a dilatao do calcrio. Tampouco esto alhures. (...) Eu teria muita dificuldade de dizer onde est o quadro que olho. Ibid., p.17-8 28

    Mann, Thomas. Reflections of a Nonpolitical Man. New York: Ungar, 1983, p.422 apud Fetzer, J.F. Romantic Irony. In: European Romanticism: literary cross-currents, modes, and models. Michigan: Wayne State University Press, 1990, p.33

  • 30

    fundamental, de que O Problema do Conhecimento, de Ernst Cassirer, um exemplo insigne.

    O subttulo na filosofia e na cincia modernas no esconde sua redundncia, quando ele

    cedo reconhece que so precisamente todos os afs do pensamento moderno que tendem,

    em ltimo resultado, a dar soluo a um problema supremo e comum.29

    Tal problema no deixa de ter relao com o pensamento antigo, claro, pois este

    igualmente no escapou de fascinar-se por certa iluso do conceito. Tambm a velha

    filosofia no pretendia com os termos matria ou tomo, por exemplo, outra coisa seno

    significar os meios com ajuda dos quais o pensamento adquire e assegura seu senhorio sobre

    os fenmenos, e que so constantemente oprimidos pela tentao de reverter-se em poderes

    prprios e independentes. Estes conceitos, quando ingenuamente no se tomavam por fiis

    porta-vozes do real, no raro costumavam, hipostasiados, converter-se na prpria realidade

    (Plato), sem que os antigos tomassem primeiro conscincia do problema que reside em sua

    realidade prpria (Kant).

    Na verdade, questionamentos de natureza epistemolgica vieram tona inclusive muito

    antes do excitante sculo IV a.C., desde que Xenfanes se perguntou se as musas de Homero e

    Hesodo no poderiam estar enganando os poetas, e assim minava a base do conhecer com

    certeza (sapha eidenai). 30 Porm, no geral, incertezas desse tipo levaram menos

    investigao da certeza ou autocertificao subjetiva do que aos acidentes da persuaso ou,

    como um antpoda, hipstase da realidade matemtica ou mesmo ao ceticismo. Temos vrios

    indcios para acreditar que os primeiros pensadores se debatiam entre o relativismo e a verdade

    bem redonda, e que a realidade do provvel, ou do semelhante verdade, tardou em ganhar

    29 Cassirer, E. El Problema del Conocimiento: en la filosofa y en la ciencia modernas. Mxico: Fondo de Cultura

    Econmica, 1953, v.I, p.7 30

    Cf. Lesher, J.H. Xenophanes Scepticism. In: Phronesis 23, 1978, p.1-21

  • 31

    estatuto prprio. Naturalmente, uma declarao como esta pode destoar do reconhecimento da

    tradio retrica grega e sua doutrina do eikos, que teve em Tsias e Grgias seus primeiros

    representantes. 31 No entanto, alm de eikos significar tanto verossimilhana quanto

    simplesmente credibilidade em relao aos ouvintes,32 so famosos os fragmentos de um

    escrito, e no discurso, em que Grgias defende sua concepo filosfica, e que se chama

    explicitamente (Sobre o no-ser), provavelmente em oposio a Parmnides,

    onde se l que: primeiro, nada existe. Segundo, ainda que algo existisse, no seria concebvel.

    Terceiro, mesmo que fosse concebvel, no poderia ser comunicado a outro.33 A fora da

    argumentao verossmil no est em sua plausibilidade objetiva, mas antes em sua

    instrumentabilidade, j que o pensamento do ser e do no-ser leva, afinal, a um beco sem

    sada.34 Assim, embora divergentes quanto constituio do real, e muitos, incluindo os

    primeiros retricos sofistas, no tenham recusado utilidade prtica s opinies plausveis dos

    mortais, no admitem, por isso, a possibilidade de realidades rivais.35 O subjetivismo, noo

    filosfica geral segundo a qual a realidade relativa ao sujeito, somente comea a deixar de

    implicar relativismo com a dvida metdica de Descartes e, com Kant, suplanta, pela

    autocertificao crtica, a incerteza e o dogmatismo.36

    31 Plato. Fedro. Lisboa: Verbo, 1973, p. 267a.

    32 Cf. Andersen, ivind. Im Garten der Rhetorik: Die Kunst der Rede in der Antike. Darmstadt: WBG, 2001,

    p.140 33

    Diels, H. Die Fragmente der Vorsokratiker. Berlin: Weidmannsche Verlagsbuchhandlung, 1952, b.2, p.279ss. Gomperz chega a falar do reputado niilismo filosfico de Grgias, que o distingue da retrica tal como concebida a partir de Aristteles. Cf. Gomperz, H. Sophistik und Rhetorik. Stuttgart: B.G. Teubner Verlagsgesellschaft, 1965. 34

    Fey, Gudrun. Das ethische Dilemma der Rhetorik in der Antike und der Neuzeit. Stuttgart: Rhetor Verlag, 1990, p.22-23 35

    Cf. Hussey E. The beginnings of epistemology: from Homer to Philolaus; Burnyeat, M.F. Protagoras and self-refutation in Platos Theaetetus; Woodruff, P. Platos early theory of knowledge. In: Everson, S. (Ed.), Companions to ancient thought 1: Epstemology. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. 36

    Isso no significa apenas um pensamento autoconsciente de seu carter tcnico, isto , que se certifica de uma realidade relativa a si mediante um interesse prvio prprio o que se deve tambm atribuir retrica , mas tambm um primado ontolgico da subjetividade, sem o qual a idia de autocertificao no poderia superar a

  • 32

    Deve-se poca essencialmente moderna esse manejar dos contedos empricos

    mediante o ato prvio de assegurar-se dos critrios e leis a que ho de modelar-se, isto ,

    mediante um projeto ou imagem do mundo.37 Tal asseguramento no deixa de comportar

    tambm uma perda, talvez irreparvel. Esta perda habita o mago do problema do

    conhecimento, assim resumido por Cassirer:

    Se o conhecimento no j pura e simplesmente a cpia da realidade sensvel concreta, se uma forma originria prpria, que se trata de ir cunhando e impondo pouco a pouco contradio e resistncia dos fatos soltos, cai por terra com isso o que at agora vinha servindo de base certeza de nossas representaes. J no podemos compar-las diretamente com seus originais, quer dizer, com as coisas do mundo exterior, mas temos que descobrir nelas mesmas a caracterstica e a regra imanente que lhes d firmeza e necessidade.38

    Tal estrutura anloga que desejamos colocar sob a rubrica de o problema da

    esttica, pois h que se saber se a forma esttica uma forma originria. Se revela a prpria

    realidade ou se constitui uma realidade prpria; ou ainda: se veculo da verdade (ou produz

    verdades) ou se tem em si mesma seus critrios e leis, seu mundo prprio, e nenhum princpio

    exterior lhe deva ser imposto. Obviamente, s h esttica, enquanto disciplina da filosofia,

    porque existe seu problema e, uma vez resolvido, no existiria mais esttica. Por isso, o

    pensamento que v na forma esttica, enquanto experincia, o veculo da verdade, ou uma

    incerteza posta pelo relativismo ou pelo ceticismo. Na verdade, justamente desse primado que falamos quando nos referimos modernidade, pois certamente Aristteles, quando diz que o ser se diz de muitas maneiras, quando enumera quatro acepes do ente: 1) por essncia e por acidente; 2) segundo as categorias; 3) sob o aspecto do verdadeiro e do falso; 4) segundo a potncia e o ato; quando diz que a proposio (apphansis) difere de outros gneros do lgos aos quais no se aplica o ser veritativo, quando separa a teoria (saber de certeza) da potica [saber produzir (poien)] e da prtica [saber agir (prttein)] etc., abre j um fulcro na redondez da realidade, sem contudo render-se ao primado da subjetividade, quase que inevitvel depois do golpe, mas remendando-a pelo estatuto primordial da categoria de substncia, isto , no do ente na medida em que considerado por si ou como efeito, no como verdadeiro ou falso, etc., mas do ente enquanto ente. Cf. Nunes, B. Passagem para o potico: filosofia e poesia em Heidegger. So Paulo: tica, 1992. 37

    Cf. Heidegger, M. Die Zeit des Weltbildes (1938). In: Gesamtausgabe. Bd. 5. Holzwege. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1977. 38

    Cassirer, op.cit., p.12

  • 33

    produo de verdades, procura ou despedir a esttica (filosfica), pr um ponto final a seu

    problema, super-lo, para dizer em vocabulrio filosfico especfico, ou assume, no mnimo,

    uma relao ambgua com ele.

    No interior do problema, algumas teses apiam-se em argumentos, outras, no. E isso

    nem tanto por no se poder dar as ltimas razes de uma tese quanto pelo fato bvio de que,

    no domnio da esttica, mais que em qualquer outra disciplina da filosofia, lanamos mo de

    intuies, evidncias e experincias particulares, ao mesmo tempo em que descartamos o que

    se mostra contra-intuitivo, pois se trata, acima de tudo, de uma reflexo sobre nosso modo de

    perceber, sentir e julgar experincias sensveis. Isso no significa que o esttico esteja perdido

    para a filosofia, pois intuies esto presentes em toda parte na argumentao filosfica. Quer

    dizer apenas que, aqui, elas so mais abundantes e reivindicam mais enfaticamente os seus

    direitos.

    Nisso j enunciamos um possvel ponto de partida para esclarecimento do problema, a

    saber, que se trata de uma reflexo filosfica, com distintas respostas, sobre nosso modo de

    perceber, sentir e julgar experincias sensveis. Se essa formulao parece por demais

    subjetivista, se primeira vista parecer que perceber, sentir e julgar so termos que associam

    este ncleo a uma filosofia da subjetividade, ento a coisa caminha, sintomaticamente, na

    direo errada. Para Hegel, por exemplo, embora a arte no deva ser reduzida ao seu ser-

    sensvel imediato, ela fundamentalmente aparecer. Heidegger, de outro lado, que insistiu

    sobre a arte como acontecimento da verdade, no deixou de enfatizar que o ser da obra

    permanece ligado ao jogo do seu aparecer. O ncleo consensual reside, por mais dspares que

    sejam os filsofos entre si, no carter sensvel daquilo que interessa reflexo esttica, e com

    o que aquelas trs relaes se tornam filosoficamente relevantes.

  • 34

    A primeira ineludvel: a relao fundamental com o que sensvel perceber, e isso

    no carece de fundamentao. Talvez a segunda, o sentir, no o fosse, no caso da percepo

    indiferente. Porm, logo que adjetivamos a percepo enquanto percepo esttica, to logo se

    v que o segundo elemento tambm constitutivo. Uma experincia esttica jamais se d na

    indiferena e no tdio. Por fim, a terceira relao com o que sensvel, julgar, traz tona o

    problema, o problema da esttica que procurvamos. Retomando nosso motto, preciso

    lembrar que apenas imediatamente o problema da esttica acessvel em si mesmo. A fim

    de torn-lo explcito devemos, primeiro, expor sua problemtica comum com o conhecimento

    e, a seguir, com a prpria razo.

    A diferenciao entre esttica e conhecimento

    A questo do juzo introduz, pela primeira vez, um elemento conceitual na reflexo

    sobre uma relao sensvel e esttica ao mundo. A introduo desse elemento como a

    inoculao de um vrus, pois contamina todo aquele prvio pano de fundo aproblemtico

    quanto ao perceber e, talvez, ao sentir. O problema comea a ganhar dimenses insuspeitadas.

    Vm tona, com a questo do juzo, todos os elementos que o compem: linguagem, sintaxe,

    operadores lgicos, referncia a entidades, valor (de verdade, gramaticalidade, etc...),

    conscincia de si; e passa ento a primeiro plano o problema da constituio proposicional da

    percepo.39 Surge a seguinte pergunta: pode haver percepo sem juzo? E todo o problema

    ganha estatuto conceitual. No se trata mais das evidncias da percepo, mas de saber, de um

    ponto de vista principalmente conceitual, se so possveis percepes sem conceitos e

    39 Seel, M. Aesthetics of Appearing. Stanford: Stanford University Press, 2005, p.24

  • 35

    desligadas de juzos. Ocorre um salto quntico do problema; a questo passa a incidir sobre se

    a idia, no as evidncias, de uma percepo no-proposicional contradiz o pensamento. Dito

    de outro modo, o transcendental descobre a esttica e ir submet-la a seu rigoroso tribunal,

    onde a razo a instncia suprema.

    Com o ponto de vista transcendental, entra em jogo um matiz psicolgico (uma filosofia

    da mente, se se quiser) e uma modulao antropolgica, reunidos para a distino entre

    percepo esttica (humana) e outras formas de percepo. Quando perguntamos pelas

    condies de possibilidade da percepo, o elemento auto-referente do sentir, isto , do

    perceber o perceber, que estava latente, ganha estatuto conceitual. O perceber referido

    conscincia. Apenas uma mente capaz (matiz psicolgico) de autoconscincia (modulao

    antropolgica) pode perceber esteticamente, na medida em que a percepo esttica no

    somente percepo de algo, como o co percebe o gato, como a fome percebe a ma, mas

    percepo de algo como algo.

    Todo ser vivente que pode perceber possui a capacidade para perceber algo. Mas apenas seres que podem conhecer conceitualmente tm a capacidade para perceber que, o que apenas est presente em conexo com a capacidade para perceber como. O co que persegue o gato rvore acima v e fareja o gato sem perceber que o gato est na rvore.40

    De fato, para que o co percebesse que o gato est na rvore, era preciso que fosse

    dotado de uma linguagem de proposies. Mas a coisa no to simples como parece.

    estranho duvidar de que o co perceba que o que ele percebe um gato, pois seria

    surpreendente que os ces sempre perseguissem gatos, e no cobras. A idia, de sabor kantiano,

    de que na ausncia de conceitos intelectuais resta apenas um caos de sensao leva a

    40 Ibid., p.25

  • 36

    concluses contra-intuitivas deste tipo. por isso que a fenomenologia procura discernir um

    tipo de sntese passiva vital, um campo j organizado da percepo, pois, do contrrio, no

    poderia haver psiquismo animal de qualquer espcie. O que acontece que os ces policiais,

    por exemplo, quando simulam uma operao, no sabem que esto simulando, atacam

    normalmente. Diante dum espelho, o co cheira o focinho de sua imagem, com uma

    desconfiada reao. H argumentos em defesa de que uma linguagem proposicional

    necessria percepo esttica. 41 Diramos que preciso poder distinguir original de

    representao, preciso, entre outras coisas, no ser um estpido nem um recm-nascido, e

    tambm no querer abocanhar, como os pssaros, as uvas do pintor, para perceber

    esteticamente.42 Tal distino anloga que introduzida pelo conceito de fenmeno na

    epistemologia, responsvel pelo problema do conhecimento.

    Como se sabe, a distino entre essncia e aparncia muito antiga, e desde Plato j

    estava configurada em linhas gerais e amparada por argumentos bastante slidos, erigida sobre

    aporias a que uma indistino entre essas duas coisas poderia levar. S que Plato, ao repudiar

    as aparncias como falsas, transformou as suas Idias na prpria realidade, ao contrrio da

    epistemologia moderna, que chama a ateno para a realidade prpria do que pode ser

    conhecido, independentemente do que seja a prpria realidade para alm das aparncias. A

    problemtica comum entre esttica e epistemologia deixa-se entrever assim. Ambas tm que

    ver com a autocertificao do homem, da cincia e da arte moderna, que pela primeira vez

    foram capazes de apontar o real para mim (ou para ns) sem deixar o que disso resulta na

    41 Neste caso, o problema da esttica torna-se simplesmente outra variante do problema do realismo em relao

    a afirmaes: Numa variedade de reas diferentes emerge sempre uma disputa filosfica do mesmo carter geral: a disputa a favor ou contra o realismo concernente a afirmaes [statements] no interior de um dado assunto-matria ou, melhor, afirmaes de um certo tipo geral. Dummett, M. Truth and Other Enigmas. Cambridge: Harvard University Press, 1978, p.358 42

    Da tambm a dificuldade de falar em percepo esttica partindo da convico fundamental de certa verso do empirismo de que o sujeito enfrenta o mundo sem outras mediaes que no a percepo dos sentidos.

  • 37

    sombra da opinio, como o fez Protgoras, mas, pelo contrrio, fundando nesse para mim (ou

    para ns) a realidade prpria do homem, da cincia e da arte.

    No por acaso, no mundo moderno, o prprio problema da esttica se torna tema para as

    obras de arte, a ponto de, para alguns, colocar em risco seu carter eminentemente sensvel.

    Num quadro de Picasso, pinta-se um objeto ou um evento e ao mesmo tempo o modo como a

    pintura pinta esse objeto ou esse evento. Na pena de um Baudelaire, Pessoa ou Joo Cabral,

    poemas so verdadeiras reflexes estticas. Mas, ao contrrio do filsofo, o poeta no parte de

    sua prpria reflexo, mas de um objeto ou de um evento, de um aparecer. Seja uma ma, uma

    usina de acar ou a trajetria que o rio percorre at o mar, enquanto fala do objeto de sua

    percepo, Cabral tematiza, nos poemas, o modo como a poesia percebe, e isso d densidade

    sua poesia, ao mesmo tempo em que traduz a sua viso do real: a realidade densa, a vida

    espessa. Espessido se refere coisa e ao modo de ver a coisa, entrelaados. Nisso, a filosofia

    e a prpria arte se correspondem pelas teses em jogo no problema da esttica, que parecem

    reduzir-se a trs. Numa explicao particularmente feliz, o crtico literrio Antonio Cndido

    disse, a respeito das artes literrias, que:

    (...) poderamos dizer que h em literatura trs atitudes estticas possveis. Ou a palavra considerada algo maior que a natureza, capaz de sobrepor-lhe as suas formas prprias; ou considerada menor que a natureza, incapaz de exprimi-la, abordando-a por tentativas fragmentrias; ou, finalmente, considerada equivalente natureza, capaz de criar um mundo de formas ideais que exprimam objetivamente o mundo das formas naturais. O primeiro caso o do Barroco, o segundo, do Romantismo; o terceiro, do Classicismo.43

    De acordo com as definies de Cndido, todos trs seriam casos da viso de mundo

    moderna, na medida em que enfrentam o problema da relao entre palavra potica e realidade

    43 Cndido, A. Formao da Literatura Brasileira. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 1975, p.57

  • 38

    pelas possibilidades e limites da expresso. Tomando esse dualismo como pedra angular, ele

    parece ter razo em que estas seriam as trs posturas bsicas de relacionar seus dois

    componentes: superioridade, inferioridade e equivalncia. Mas no verdade que, dentre as

    respostas ao problema da esttica, todas se encontrem no dualismo. Pelo contrrio, algumas

    filosofias despedem a esttica, como despedem a epistemologia. Isso no significa, a rigor, que

    abandonam a reflexo sobre a arte ou sobre o conhecimento, mas somente que se recusam a

    ver neles uma realidade prpria. Embora toda sua argcia filosfica, escapa ao crtico literrio

    que, por exemplo, mesmo que os poemas romnticos paream cantar uma natureza para alm

    dos limites da palavra, isso no implica que enunciem apenas uma realidade prpria, pois a

    prpria realidade pode ser esse fracasso, a cada vez. Da que aquelas trs posturas, quando no

    referidas ao estilo dos escritores, mas s metafsicas que lhe subjazem, possam ser mais bem

    descritas. o caso da trplice classificao de Badiou, muito semelhante de Cndido.

    Segundo ele, haveria trs esquemas bsicos de entrelaamento entre arte e filosofia, e como tal

    enlace pensado nos termos da relao da arte com a verdade, ele toca o mago do problema

    da esttica.

    Em primeiro lugar, h o esquema didtico. Sua tese que a arte incapaz de verdade

    ou que toda verdade lhe exterior.44 Plato e o marxismo cairiam nesse esquema, pois nele a

    arte encontra-se sob o controle dos efeitos pblicos da aparncia, regulamentados de fora por

    uma verdade em si no-artstica: no caso de Plato, a Idia, totalmente destituda de aparncia;

    no caso do marxismo, o materialismo dialtico, cuja verdade a arte deve refletir, sob o preo

    de se tornar fico ou mero subjetivismo burgus. Para alm do que nos esclarece Badiou,

    preciso dizer que, no caso especfico de Plato, tal perspectiva leva a uma verdadeira aporia, e

    44 Badiou, A. Pequeno Manual de Inesttica. So Paulo: Estao Liberdade, 2002, p.12

  • 39

    mina at mesmo a possibilidade de uma utilizao didtica da arte, pois se esta encontra-se

    fora da verdade, ento ela de fato no pode falar verdadeiramente. Assim colocada, a oposio

    simplesmente inverte os plos da relao.45

    Em segundo lugar, h o esquema romntico. Sua tese de que unicamente a arte est

    apta verdade. Ela tornaria efetivo o que o pensamento filosfico s pode apontar de modo

    indireto: o fracasso dos conceitos, a objetividade ontolgica de um aparecer deixado prpria

    sorte, sem violncia por parte dos programas cognitivos do juzo. Pode-se encontrar tal

    esquema na hermenutica alem, sobretudo em Heidegger. No primeiro esquema, a arte no

    possui qualquer realidade; no segundo, a prpria realidade. No primeiro caso, no se coloca

    o problema da esttica; no segundo, ele superado [berwunden]. Em ambos, a esttica

    despedida. 46

    O terceiro esquema o clssico, que, ao tentar escapar quela aporia deixada pelo

    didatismo platnico, sustenta que a arte nem produz a Verdade, com v maisculo, nem

    produz simplesmente aparncias enganosas, mas tem sua realidade prpria, sua legalidade

    prpria, e nenhum princpio externo lhe limita. Badiou atribui este esquema a Aristteles,

    devido a seu conceito de verossimilhana, o qual se refere a uma verdade intrnseca arte,

    com v minsculo. Assumindo o esquema muito resumido de Badiou, podemos dizer que o

    conceito de katharsis que primeiro retira arte seu potencial cognitivo e revelador, atribuindo-

    lhe somente uma funo teraputica, de purgao das paixes. O critrio artstico seria ento

    agradar, mediante uma lgica do verossmil; uma lgica que, mais tarde, ser amolecida e

    45 Cf. Bernstein, J.M. The Fate of Art: Aesthetic Alienation from Kant to Derrida and Adorno. Pennsylvania: The

    Pennsylvania State University Press, 1992, p.2 46

    Sobre a diferena entre berwindung e Aufhebung, cf. DFM (66/74)

  • 40

    imputada liberdade da imaginao, quando a moderna filosofia da mente discernir as suas

    faculdades.

    Verificamos, a partir da problemtica levantada por Cassirer, que a crtica do

    aristotelismo foi o impulso fundamental a mover o pensamento cientfico e filosfico moderno,

    o impulso que une Galileu, Kepler e Newton a Descartes e Leibniz, e que o ncleo da crtica

    incide sobre os limites epistemolgicos de sua lgica formal e sobre sua ontologia qualitativa

    baseada na categoria de substncia (ousia), incapazes de demonstrar, sozinhas, a objetividade

    do conhecimento das relaes entre os objetos fsicos. 47 Tambm na arte, uma certa

    flexibilizao da prescrio potica viria a mover artistas e filsofos na descoberta das regras

    do agrado. Porm, na famosa querelle des anciens et des modernes, o que se verifica no

    pura e simplesmente uma oposio a Aristteles, mas o aprimoramento de uma concepo

    fundamentalmente clssica da arte e da relao esttica ao mundo, a saber, aquela que lhe

    atribui uma realidade prpria, a qual, embora gradativamente destituda das amarras da

    verossimilhana, visa sobretudo agradar, e no a Verdade.48

    precisamente o problema das regras do agrado que inaugura a esttica como

    disciplina filosfica e delimita com clareza os pressupostos prprios de seu problema,

    distinguindo-o do problema do conhecimento e da filosofia em geral. O n a ser desatado aqui

    que a nova disciplina, batizada por Baumgarten, herda as premissas gerais da filosofia

    moderna quanto diferena de natureza, e no apenas de grau, entre o ser dos objetos e o

    modo como se reflete no sujeito. Assim como acontece ao conhecimento, os critrios de uma

    47 Cassirer, op.cit., p.20

    48 Classicismo responsvel pela conexo disciplinar hierrquica entre filosofia e poesia. digna de nota, por

    outro lado, a curiosa afirmao de Aristteles de que a msica seria a mais viva de todas as artes porque imitaria seu original, o estado dalma, sugerindo, exatamente pelo uso chocante da idia hoje descabida de que a msica imita algo, a problemtica do conceito de expresso. Cf. Greenberg, C. Vanguarda e Kitsch. In: Clement Greenberg e o Debate Crtico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p.41

  • 41

    relao esttica ao mundo no podem mais assegurar sua realidade fora de si, no prprio ser

    das coisas. Resta ento, como resposta disponvel, que tais critrios se consolidem unicamente

    por oposio aos critrios do conhecimento tcnico-cientfico, pois, se algo est de acordo com

    as regras do conhecimento terico, no necessariamente apraz.

    Ainda que Aristteles conceda mais liberdade arte do que Plato, sua teoria da

    verossimilhana, em conexo com a idia de imitao da natureza, ainda limita o nexo da arte

    com o prazer. Sobretudo o prazer sublime, entendido como um misto de prazer e dor, o

    entusiasmo excessivo, a estranha atrao pelo feio, grotesco, disforme, a condio de estar

    condenado a danar at a morte, reclamam um je ne sais quoi, que s se explicou pela idia

    de gnio, de um talento inexplicvel para comunicar. Representantes do classicismo esttico

    francs e ingls (de Boileau a Hume) tentam aos sfregos manter a regulao da arte pela

    verdade e conseguir, mesmo assim, uma teoria adequada do efeito esttico. Isso faz que a

    distino entre necessrio e verossmil desaparea quase que completamente e que o

    verossmil se amplie at a inverso. 49 Passo a passo, a esttica vai se desenvolvendo

    paralelamente epistemologia, definindo-se por negao. Assim, desde que a atitude

    epistmica necessite ignorar o que os objetos tm de especfico e singular, por exemplo, a

    esttica ir aproveitar, no por acaso, tais conceitos em suas definies.

    Tal movimento de diferenciao ir proporcionar esttica meios para discernir as

    especificidades do agrado, em primeiro lugar, por oposio a conceitos epistemolgicos como

    os de clareza e distino (Descartes), razo suficiente (Leibniz), causa determinante,

    49 Kapp, Silke. Non Satis Est: excessos e teorias estticas no esclarecimento. Porto Alegre: Escritos, 2004, p.121

    Nesta obra, pode-se encontrar uma vasta pesquisa sobre a contradio inerente ao pensamento esttico classicista.

  • 42

    generalidade e finalidade prtica (Kant). 50 Assim, Baumgarten, ao caracterizar a nova

    disciplina, d relao esttica ao mundo o ttulo de cognitio confusa, destinada a perceber a

    complexidade indistinta dos fenmenos e a tornar presente sua densidade intuitiva. Num passo

    seguinte, Kant nega ao comprazimento esttico uma causa determinante, um conceito geral e

    uma finalidade prtica. No h nada no objeto que explique causalmente o prazer esttico,

    assim como no h, exatamente por isso, um conceito geral das coisas que causam prazer e,

    por fim, no se pode, com a garantia do conhecimento terico, pretender intencionalmente

    causar um prazer esttico.

    Antes de Kant, porm, Baumgarten advogou uma complementaridade entre

    conhecimento terico e conhecimento esttico, a fim de reunir um conhecimento completo da

    realidade, congregando classicismo e um romantismo anacrnico.51 Kant, por outro lado, v

    nos fenmenos estticos no mximo um desafio ao conhecimento terico, na medida em que,

    como qualquer fenmeno, devem ter uma causa, embora no saibamos determinar qual; e

    devem conduzir a um conceito, embora sempre ainda desconhecido. Deste modo, junta-se a

    Aristteles numa concepo clssica da relao esttica ao mundo, que no lhe adjudica

    falsidade e irrealidade, mas tambm no lhe d outro mister seno agradar. Nesse movimento,

    porm, Kant vai mais fundo, ao defender que uma obra de arte agrada segundo um jogo livre

    entre as faculdades de conhecimento, e no porque teria sido realizada de acordo com regras

    poticas especficas. Consolida-se, assim, a especificidade do esttico.52

    50 Ainda que Descartes e Leibniz, preciso dizer, no procurem praticar, explicitamente, teoria do conhecimento,

    mas metafsica. 51

    Isso permite, por exemplo, a Wolfgang Welsch resgatar o conceito de Baumgarten de um belo pensamento para denunciar a estreiteza da noo contempornea de esttica, ao mesmo tempo em que retoma a definio aristotlica de aisthestai (perceber, vivenciar) para ampliar a reflexo sobre todos os tipos de percepo. Cf. Welsch, W. sthetisches Denken. Stuttgart: Reclam, 1993, p.9 52

    verdade que Kant reservou um papel de destaque para a esttica na superao da distino entre os domnios terico e prtico da razo, mas poucos concordam que ele teria sido completamente bem sucedido nesse mrito.

  • 43

    A arte entre a verdade e a razo

    No obstante, ao caminhar na direo contrria da epistemologia, a esttica no

    meramente se conforma aos labirintos do incognoscvel, do enigma, do mistrio, mas tambm

    se aproxima do antpoda esquecido do conhecimento, a coisa em si mesma, a prpria realidade.

    Precisamente por afastar-se do conhecimento que a relao esttica ao mundo promete poder

    encontrar, estranhamente, a verdade; nestes termos, a verdade incognoscvel.

    Se Cassirer pode se recusar a ver no problema do conhecimento apenas uma parte da

    histria da filosofia e, ao chamar a ateno para a interdependncia interior e mtua

    condicionalidade entre os membros do sistema filosfico, apont-lo como a luz sob cuja

    iluminao se desdobra o campo total e o prprio contedo da filosofia moderna,53 o mesmo

    pode ser dito do problema da esttica, e ainda com mais razo.54 Maior exemplo no pode ser

    invocado se no a liberao da questo da verdade a partir da experincia da arte, horizonte

    no qual explicitamente a hermenutica alem trata (e vai alm) da metodologia especfica das

    cincias do esprito em contraste das cincias da natureza.55 Aqui, num movimento reflexivo

    contrrio, o problema da esttica d acesso ao problema do conhecimento.56

    53 Cassirer, op.cit., p.23

    54 ...devemos parar de ver a arte simplesmente como uma esttica. Devemos assumi-la como setor privilegiado

    da histria da racionalidade e dos modos de racionalizao. Safatle, V. A Paixo do Negativo: Lacan e a dialtica. So Paulo: Unesp, 2006, p.37 55

    Gadamer, H-G. Verdade e Mtodo, op.cit., pp.35-237. Gadamer se aproxima da perspectiva clssica, pois no concebe a verdade do esprito de modo independente do mtodo das cincias humanas, ao contrrio de Heidegger, como veremos, que vai alm da liberao metodolgica da verdade a partir da arte na direo de uma verdade aberta pelas prprias obras. 56

    Metodologicamente, porm, preciso antes determinar para ento localizar o indeterminado, embora ambos sejam termos ontologicamente co-originrios. Kant, por exemplo, adiou suas reflexes estticas do perodo pr-crtico por no dispor de uma acabada teoria do conhecimento e das faculdades da mente. Cf. Grupillo, A. O Homem de Gosto e o Egosta Lgico: o princpio de Kant da comunicabilidade esttica luz de sua teoria do

  • 44

    A experincia da arte libera a questo da verdade para alm da realidade prpria do

    conhecimento a partir daquele movimento de diferenciao em relao s categorias da

    epistemologia. Liberada da distino perceptiva, da determinao conceitual e da utilidade

    prtica, a arte se torna pela primeira vez arte autnoma, livre das presses cognitivas, mas

    tambm morais (Kant) e, acima de tudo, livre da causalidade mecnica, ou melhor, da

    necessidade exterior e da imediatez da natureza sensvel. Por isso, ser, num passo seguinte,

    identificada com o trabalho livre e talhada para reflexo da subjetividade autnoma. O jogo

    comea a virar.

    A autonomia que primeiro se refere contingncia do que pode agradar, no

    determinvel a priori nem podendo amparar-se numa realidade externa, desdobra-se em

    autonomia dos interesses prosaicos do consumo (Hegel) e, assim, se liberta, inclusive, da

    finalidade de agradar. Como exerccio da liberdade criativa para-si, a arte promete encontrar a

    verdade para alm do entendimento abstrato, posto ser a relatividade do ser-para-outro [Sein-

    fr-Anderes] que primeiro pe o problema do conhecimento.57 A finalidade indeterminada do

    agradar, que antes inaugurava a autonomia da esttica em relao determinao material da

    epistemologia e determinao formal da moral, denunciada como figura de um ser-para-

    outro relativo, superado na arte objetiva, histrica, imagem refletida da prpria subjetividade.

    Assim, Hegel aponta a prpria realidade na realidade prpria da arte.58 abstrao das

    categorias do entendimento se contrapem os traos da realidade concreta (em-si) animada

    conhecimento. Dissertao (Mestrado em Filosofia) Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006. 57

    O verdadeiro desenvolvimento da cincia, que parte do eu, mostra que o objeto tem e conserva neste a determinao perene de um outro, em troca do eu, e que portanto o eu, do qual se parte, no o puro saber, que verdadeiramente superou a oposio prpria da conscincia, mas est ainda aprisionado no fenmeno. Hegel, G.W.F. Ciencia de la Lgica. Buenos Aires: Solar, 1982, p.99-100 58

    Longe de ser um problema, o ser-para-outro hegeliano no tem mais a forma problemtica que tem em Kant, mas converte-se numa prerrogativa da prpria existncia. Cf. Hegel, op.cit., p.154ss

  • 45

    pela universalidade conceitual (para-si): organicidade (por oposio causalidade

    determinante), singularidade/universalidade concreta (em oposio universalidade abstrata) e

    ser-para-si (em oposio finalidade exterior). O efeito esttico no possui uma causa

    mecnica, pois a obra um organismo; ela universal em sua singularidade, e no por cair sob

    uma classe de objetos artsticos; por fim, ela no tem uma finalidade prtica exterior, pois

    existe para-si, assim como o homem. Pela consubstanciao da coisa em si em sujeito para si,

    a arte se torna manifestao da verdade absoluta do Esprito.

    O problema se transforma em soluo. De modo exemplar, os acidentes da percepo

    tambm se consubstanciam. Uma das teses em jogo na manuteno do problema era a de que a

    percepo esttica, ainda que seja descarregada por percepes imediatas e nelas se mantenha

    em grande medida, s possvel enquanto percepo de segunda ordem, a fim de tornar

    presentes conexes imaginrias infinitas, e que sustentam a indeterminao do juzo que lhes

    acompanha. Enquanto a mera percepo decide rpido, a percepo esttica teria um estreito

    parentesco com o ato de pensar, marcado pela funo de retardar e refletir, de se deter no

    tempo.59 Ao invs de se tornar um problema, tal descolamento se revela a prpria verdade da

    arte, com o perdo do paradoxo, isto , sua capacidade de retirar as coisas da imediatez

    sensvel, referi-las subjetividade e devolv-las sensibilidade, movimento pelo qual a idia

    ganha efetividade e que ser, para Hegel, o verdadeiro.60

    59 O que passa apressado na natureza a arte segura para a durao; um rpido sorriso a desaparecer, um sbito

    movimento maldoso com a boca, um esgazeado de olho, um rastro de luz efmero, assim como movimentos mentais na vida dos homens, incidentes, ocorrncias que vo e vm, e so sempre por isso esquecidas todos e cada um ela arrebata da existncia corrente e tambm supera, nessa relao, a natureza. Hegel, G.W.F. Vorlesungen ber die sthetik I. In: Werke, B.13. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970, p.216. Cf. tambm Luhmann, N. El arte de la sociedade. Mxico: Herder, 2005, p.31ss; e Seel, M. Ethisch-sthetische Studien. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996, p.53 60

    Hegel, Vorlesungen ber die sthetik I , op.cit., p. 205

  • 46

    Isto, no entanto, feriria o pressuposto do movimento de aproximao da arte na direo

    da verdade (novamente: de que nessa aproximao ela ao mesmo tempo se distancia do

    conhecimento), se Hegel no pretendesse superar, simultaneamente, um certo conceito de

    conhecimento. Essa superao se d na medida em que o verdadeiro ocorre, no entanto, de

    forma mais perfeita no movimento do conceito, onde pode percorrer todas as mediaes

    necessrias ao pensamento racional, isto , ao conhecimento para alm da sensibilidade

    imediata.61

    Nesse sentido, a perspectiva anterior de Goethe, e de alguns romnticos, reflete

    precisamente esse duplo movimento da arte: aproximar-se da verdade, afastar-se do

    conhecimento. Goethe, um dos primeiros a apontar explicitamente esse movimento na forma

    da relao da verdade com a poesia, especificamente compreendia a cincia como

    observao da natureza, e no como especulao puramente racional.62 Exatamente por isso

    que v na poesia a linguagem (apenas simblica) adequada expresso da verdade da idia,

    pois esta sempre, para usar alguns de seus adjetivos, impenetrvel [unerforschliche],

    incompreensvel [umfassenderes] e impronuncivel [unaussprechliches].63

    Quando aproximamos a arte da verdade, e ao mesmo tempo nos recusamos a conferir-

    lhe um valor cognitivo, estamos tentando superar o problema da esttica sem superar o

    61 Para Robert Pippin, Hegel no se ope ao conceito de conhecimento em Kant, mas apenas o complementa com

    um conceito superior de verdade. Hegel distingue entre um tratamento genuinamente filosfico de tais questes de inteligibilidade e uma procura ordinria pela verdade. Ele enfatiza que diferentes questes normativas esto em jogo. A correo (ou Richtigkeit), a noo de verdade como correspondncia, por exemplo, no algo que Hegel quer desafiar. Para finalidades ordinrias, essa questo (Nossa concepo coincide com seu contedo?) a que pensamos quando perguntamos se uma proposio verdadeira. Contudo, a verdade (Wahrheit), como Hegel a considera, outra coisa, e, novamente, diz respeito coincidncia do objeto consigo mesmo, isto , com o seu conceito. Pippin, R. The Persistence of Subjectivity. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p.49 nota 50. 62

    Gonalves, Mrcia. O Belo e o Destino. So Paulo: Loyola, 2001, p.77 63

    Cf. Diferena entre o conceito hegeliano e o conceito goethiano de simblico. In: Ibid., pp.77-80. Cf. tambm Brger, P. Wissenschaft als Kunst. Zu Goethes naturwissenschaftlichen Verfahren. In: Zur Kritik der idealistischen sthetik. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1983, pp.25-30

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    problema do conhecimento, o que impossvel. Destituda dos atributos do conhecimento

    (clareza, distino, conceitualidade, determinao), a verdade revelada na arte identifica-se

    com um suposto caos originrio. Por isso Schlegel, assim como Boileau antes dele, fala de

    uma bela confuso.64 Deste modo, porm, a esttica fica cega para o processo individual de

    aparecer dos objetos estticos.65 Quem percebe esteticamente no percebe tudo (ou nada),

    indistintamente. Uma obra de arte no d acesso ao caos primordial ou pura diversidade livre

    de toda articulao. Antes, quem percebe esteticamente percebe alguma coisa em seus

    aspectos indistintos. Uma obra de arte d acesso ao caos de algo, diversidade e indistino

    determinada, de algo em seus aspectos e conexes infinitas.

    Somente com uma fisionomia ontolgica que a reflexo sobre a arte supera, a um s

    tempo, a esttica e a teoria do conhecimento. Em Hegel, tal superao ocorre apenas, e

    sobretudo, na medida em que ele introduz um ponto de vista histrico no conceito de razo, o

    que lhe permite dizer da arte que ela uma parte ou momento da verdade, historicamente

    deixado para trs justamente quando a arte se torna mera esttica, isto , curva-se finalidade

    do agradar e deixa de refletir o verdadeiro. Isto no teria acontecido por acaso, mas em virtude

    da limitao essencial da arte na manifestao da verdade racion