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usjt • arq.urb • número 17 | setembro-dezembro de 2016
Certeza... [de Le Corbusier] | tradução de Andréa de Oliveira Tourinho e Fernando G. Vázquez Ramos
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ResumoTradução comentada do texto final (conclusão, sob o título de Certitude..., escrita em novembro de 1932) do livro Croisade ou le Crépuscule des Académies, de Le Corbusier, publicado em Paris em 1933.
Certeza... [de Le Corbusier]TRADUÇÃO DO TEXTO «Certitude...» de autoria de Le Corbusier, que integra sua obra: Croisade ou le Crépuscule des Académies. Paris: G. Crès, 1933, p.75-77.Tradução de: Andréa de Oliveira Tourinho e Fernando G. Vázquez Ramos1
AbstractCommented translation of the final text (conclu-sion, under the title of Certitude..., written in No-vember 1932) of the book Croisade or le Crépus-cule des Académies, by Le Corbusier, published in Paris in 1933.
1 Os tradutores agradecem a colaboração e assessoria de Pascale Blondeau Anduze Acher e a Profa. Ana Maria de Oliveira.
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A tradução, como Coleridge expressou de for-
ma tão perspicaz, não é mais do que um ins-
trumento especulativo. Uma aproximação inter-
pretativa que re-traça, como defende George
Steiner, as ideias do texto original, colocando-as
sempre em uma nova perspectiva, sem, contudo,
perder a linha original. No caso do texto que nos
ocupa, essa aproximação foi complexa. Exigiu o
contato com o francês de princípios do século
passado (com forte influência retórica do sécu-
lo XIX), que se serve de expressões e sentidos
corriqueiros para a época, mas de difícil tradução
em nossos dias. Exigiu o entendimento do uso
simbólico de expressões, típicas do discurso da
modernidade defendido por Le Corbusier, em um
texto que, por essas circunstâncias, se encontra
entre a arenga e o manifesto, mas que se resolve
de forma poética, pois aspira alcançar a alma hu-
mana mais do que o intelecto. Finalmente, obri-
gou a um distanciamento controlado do sentido
impositivo, quase apelativo, do texto original,
pois a forma natural de se expressar dos anos
1930 pode parecer grandiloquente e pomposa, o
que para a época não era. As imagens literárias
apresentadas pelo autor também exigiram uma
atenção especial para tentar manter o espírito
e o ambiente histórico ali descrito o mais perto
possível do leitor atual. Assim, com o intuito de
esclarecer estes pontos, introduzimos algumas
notas explicativas que, acreditamos, possibilitam
enriquecer a leitura. A tradução acompanha o
texto original.
Introdução
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CERTITUDE...
Sur l’Acropole, dans le giron silencieux de ce pay-
sage surgi de Ia préhistoire, s’élève un discours pa-
thetique, presqu’un cri, une clameur courte, entière,
violente, compacte, massive, aiguë, tranchante, dé-
cisive: le marbre des temples porte la voix humaine.
Architecture: quand tout a été fait, résolu, cons-
truit, payé; quand Ia maison est terminée, quand
Ia vie s’empare de l’utilité de l’ouvrage, le ravis-
sement éclate devant cette agile machine à habi-
ter: le progrès a versé ici sa corne d’abondance;
l’air est bon, le soleil pénètre par les baies, l’eau
est dans toutes ces tuyauteries et chaque robinet
est une fontaine miraculeuse; Ia lumière jaillit des
fils et Ia chaleur circule dans des artères com-
me dans un corps vivant... Subitement, au fond
même de l’être, se creuse un silence. Nous tres-
saillons à Ia voix qui petit à petit s’élève, discourt,
raconte, chante et décrit l’épopée humaine: les
sentiments essentiels qui dominent nos gestes,
nos travaux, nos cupidités, nos courses dans Ia
lutte quotidienne, - ces agissements de l’âme qui
sont le fond même de notre existence, ces évé-
nements par lesquels nous souffrons, nous pleu-
rons, prions et crions notre joie, - le grand, le gai,
le triste, le doux, le fort, le tendre, le brutal.
Et de l’ouvrage astucieux, il ne reste plus qu’un
fruit: notre émotion.
Dans les oeuvres qui accompagnent notre vie, ra-
CERTEZA...
Sobre a Acrópole,2 no tranquilo regaço da paisa-
gem surgida da pré-história, ergue-se um discurso
dramático, quase um grito, um clamor curto, pleno,
violento, compacto, grande, agudo, afiado, decisi-
vo: o mármore dos templos porta a voz humana.3
Arquitetura: quando tudo foi feito, resolvido,
construído, pago; quando a casa está terminada,
quando a vida assume a utilidade da obra, a admi-
ração surge frente a esta ágil máquina de morar:
o progresso verteu aqui sua cornucópia; o ar é
bom, o sol entra pelas janelas, a água está em to-
das essas tubulações e cada torneira é uma fonte
milagrosa; a luz jorra dos fios e o calor circula nas
artérias como em um corpo vivo ... De repente,
no fundo mesmo do ser, alarga-se um silêncio.
Emocionamo-nos com a voz que, pouco a pou-
co, se ergue, discursa, narra, canta e descreve a
epopeia humana: os sentimentos essenciais que
dominam nossas ações, nosso trabalho, nossas
cobiças, nossas corridas na luta cotidiana, - des-
ses atos da alma que são o fundamento de nossa
existência, esses eventos pelos quais sofremos,
pelos quais choramos, oramos e clamamos nos-
sa alegria - o grande, o alegre, o triste, o doce, o
forte, o terno, o brutal.
E desta obra inteligente, só resta um fruto: nossa
emoção.
Nas obras que acompanham nossa vida, raras
2 Le Corbusier visitou a Acró-pole em 1911, durante a via-gem que o levou aos Balcãs, experiência retratada nos ar-tigos publicados sob o título Voyage d’Orient no periódico Feuille d’avise da la Chaux--de-Fonds. Voltou a visitar o sítio em 1933 (em agosto) por ocasião do IV CIAM. Seu interesse pela Acrópole tinha se manifestado também em Vers une architecture (1923), onde reproduz um dos dia-gramas de August Choisy. (Notas de Tradução - NT)3 A provável influência de Jean Cocteau na utilização desta expressão é apontada no artigo que antecede esta tradução. (NT)
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res sont les provocateurs de cette voix humaine;
nous subissons I’immense brouhaha, cette co-
hue, le marécage d’où ne s’élève rien du tout, ni
un mot, ni une parole, ni un discours.
S’il est une destinée attachée à l’Acropole d’Athènes,
c’est de détenir au creux des monts Pentélique et
de l’Hymette le son même de Ia voix humaine et Ia
validation des gestes des hommes. On est ici au
fond de Ia question, devant Ia question même.
L’initiation aux inflexions vraies de Ia voix humai-
ne révèle au coeur, aux yeux, au toucher, les tra-
vaux méritants debout dans les campagnes, les
bourgs et les villes. Au nom de l’Acropole, tel mur
qui enclôt un pâturage nous paraît noble; et nous
apprécions Ia signification de Ia ligne; cette meu-
le de foin, vivante et palpitante de Ia caresse de
Ia main des paysans, se dresse dans les éteules
comme un monument; cette masure de troncs et
de torchis devient Ia confession d’une sensibilité
riche et pure; ce pont, cet avion, cette baraque
de tôle ondulée, cette autostrade espagnole ser-
tissant les rives de Ia Méditerranée, des Pyrénées
à Ia Sierra Nevada, cette barque de pêcheurs ou
ce barrage dans Ia vallée, en un mot, ces cons-
tructions dans Iesquelles s’est inscrit un esprit,
passent du plan de leur utilité à celui de leur men-
talité: discours, parole, frappent au centre même
de notre sensibilité.
Que nous importe que le Parthénon soit d’ordre
dorique et que deux chapiteaux ioniques soient
são as que provocam essa voz humana; sofremos
o imenso estrondo, esse tumulto, o pântano do
qual nada surge, nem uma palavra, nem uma fala,
nem um discurso.
Se existe um destino ligado à Acrópole de Atenas,
é o de capturar nas profundezas dos montes Pen-
télico e Himeto4 o próprio som da voz humana e
a validação dos gestos dos homens. Estamos no
fundo da questão, diante da própria questão.
A iniciação às verdadeiras inflexões da voz huma-
na revela ao coração, aos olhos, ao tato, os traba-
lhos dignos, permanentes, nos campos, nas vilas
e nas cidades. Em nome da Acrópole, o muro que
encerra uma pastagem nos parece nobre; e nós
apreciamos o significado da linha; essa palho-
ça, animada e palpitante pela carícia das mãos
dos camponeses, eleva-se do restolho como um
monumento; esse casebre de troncos e de bar-
ro torna-se a confissão de uma sensibilidade rica
e pura;5 essa ponte, esse avião, esse barraco de
telha ondulada, essa rodovia espanhola encrava-
da nas margens do Mediterrâneo,6 dos Pirineus à
Serra Nevada, esse barco de pescadores ou essa
barragem no vale, em uma palavra, essas cons-
truções nas quais se inscreveu um espírito, pas-
sam do plano de sua utilidade para aquele de sua
mentalidade: discurso, fala, golpeiam no próprio
centro de nossa sensibilidade.
Que nos importa que o Parthenon seja de ordem
dórica e que dois capiteis jônicos estejam no Pro-
4 Montes nas proximidades de Atenas de onde foram re-tirados os mármores para a construção dos edifícios da Acrópole. (NT)5 Como Croisade foi para imprensa antes da viagem a Atenas, por conta do IV CIAM (jul.-ago. 1933), as imagens, que a descrição de Le Corbusier nos oferece nesta passagem, estão cer-tamente relacionadas com a Acrópole que encontrou a princípios de século, na visita de 1911, quando o sí-tio ainda estava envolto em campos pastoris, de onde surgiam, como muros bai-xos, as bases dos templos, resultado das escavações levadas a cabo tanto por Panayiotis Kavvadias (1885 a 1909) como por Nikolaos Balanos, que começou seu trabalho em 1909, ainda que para 1911 já tivesse conse-
guido restaurar o Erecteion. Encontramos essa imagem bucólica nos desenhos que acompanham o Voyage d’Orient. (NT)6 Le Corbusier realizou qua-tro viagens a Espanha, a pri-meira em 1928, depois em 1930, em 1931, e finalmente em 1932. Pode ser que as imagens que evoca sejam da viagem de 1931, quando via-jou pela costa mediterrânea até Argel (COAA, 2016). O ar-quiteto publicou o resultado dessa viagem na revista Plans (n. 8, out. 1931), sob o título: “Retours ... ou l’aneignement du Voyage” (LE CORBU-SIER, 2004), em que fala da “rodovia contínua” que foi mandada construir por Primo de Rivera (ditador espanhol, 1923-1930). Este artigo ser-viu, posteriormente, como base para seu livro Sur les 4 routes (1941). (NT)
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aux PropyIées?
Les «ordres»? Classements académiques. Con-
nais pas ... C’est d’autre chose qu’il s’agit: il
s’agit de Ia puissance émotive venue de fond et
qui, dépassant l’utilité, émane comme un parfum
assaillant celui qui passe: il l’arrête et lui parle de
cette chose qui ne sert à rien d’autre qu’à entrete-
nir Ia flamme intérieure. Notre journée est fécon-
dée et nous avons le courage de vivre.
* * *
En cette époque tumultueuse où nous vivons,
iI avait fallu, suivant une chronologie logique et
fatale, s’arracher tout d’abord aux discours du
diable, et refouler le diable luimême, qui mas-
caradait les oeuvres humaines d’une vêture de
mensonge et d’artifice. Les Académies, invo-
quant l’Acropole d’Athenes où elles n’avaient
d’ailleurs jamais été voir, avaient tissé le voile
du mensonge: lucre, vanité, goujaterie, bêtise,
insensibilité. Les gens du Nord, les premiers en-
gagés dans l’aventure machiniste, avaient été
saisis d’une rage dévastatrice: un nettoyage, il
faut nettoyer! Ce fut presque une religion, celle
de Ia négation, celle du vide, celle du propre,
celle de l’absence. C’était une attitude mentale,
une noble intention morale. Sous de tels coups,
chez ceux qui déjà en possédaient Ia substance,
Ia force créatrice humaine, vraie, se levait et, ici
et là, les oeuvres de l’architecture contemporai-
ne sont apparues.
pileu?
As “ordens”? Classificações acadêmicas. Não
conheço ... Trata-se de outra coisa: trata-se da
força emocional que vem do fundo e que, além
da utilidade, emana como um perfume que assal-
ta quem passa: ele o detém e lhe fala dessa coisa
que não serve para nada que não seja manter a
chama interior. Nossa jornada é fecunda e nós te-
mos a coragem de viver.
* * *
Nesta época tumultuada em que vivemos, se-
ria necessário, seguindo uma sequência lógica
e fatal, extirpar em primeiro lugar o discurso do
diabo, e reprimir o próprio diabo,7 que mascara
as obras humanas com uma capa de mentira e
de artifício. As Academias, invocando a Acró-
pole de Atenas, onde, aliás, nunca foram vistas,
teceram um véu de mentiras: lucro, vaidade,
grosseria, estupidez, insensibilidade. Os povos
do Norte,8 os primeiros engajados na aventu-
ra maquinista, foram capturados por uma fúria
devastadora: uma limpeza, é preciso limpar! Era
quase uma religião, aquela da negação, aquela
do vazio, aquela do limpo, aquela da ausência.
Foi uma atitude intelectual, uma nobre intenção
moral. Sob tais golpes, aqueles que já possuíam
a substância, a verdadeira força criativa humana
levantava-se e, aqui e ali, as obras da arquitetura
contemporânea apareceram.
7 As referências ao diabo podem estar relacionadas com a simbologia maçô-nica, pois remetem, neste caso, ao caos e não ao mal. Le Corbusier voltará sobre esse tema em Le poème de l’angle droit (1955). (NT)8 Não fica claro no texto quem são os “povos do Nor-te”, poderiam ser os ingleses - Morris e o Arts & Crafts, por exemplo -, mas parece mais apropriado se pensar nos alemães, especialmente nas experiências de Peter Behrens e do protorraciona-lismo germânico, que con-duz a Adolf Loos. (NT)
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Je dis aujourd’hui, qu’apres cet effort dont il faut
remercier les gens du Nord, ceux du Sud, ceux
de Ia Méditerranée où le soleil vide, nettoie, épure
mieux que les brumes, où le soleil dénude un bloc
de pierre jusqu’à ne lui laisser d’autre valeur mo-
ral e que celle même de Ia proportion, je dis que
d’Athènes à Alicante, l’architecture moderne peut
et doit affronter Ia clameur de l’Acropole: le fer, Ia
tôle, le ciment armé, Ia pierre, le bois, peuvent et
doivent, en obéissant à leur loi profonde, contenir
dans Ia tension de Ia grande économie, le verbe
même de l’architecture qui est:
« Qu’as-tu voulu me dire?»
Une question humaine, humble, pauvre, indigente,
mais pleine, au total, des raisons de notre bonheur.
Architecture: manifestation décisive de nos puis-
sances créatrices. C’est d’une voix humaine qu’il
s’agit: profonde comme le temps, permanente et
qui porte un message devant elle, allégrement.
Novembre 1932.
Digo hoje que, após este esforço pelo qual deve-
mos agradecer aos povos do Norte, aqueles do
Sul, aqueles do Mediterrâneo, onde o sol esvazia,
limpa, purifica melhor do que as brumas, onde o
sol desnuda um bloco de pedra até deixá-lo sem
valor moral a não ser o da proporção,9 digo que,
de Atenas a Alicante, a arquitetura moderna pode
e deve enfrentar o clamor da Acrópole: o ferro,
a chapa, o cimento armado, a pedra, a madeira,
podem e devem, obedecendo à sua lei essencial,
conter, na tensão da grande economia, a exigên-
cia primeira da arquitetura que é:
“O que você quer me dizer?”
Uma questão humana, humilde, pobre, indigente,
mas plena, no geral, das razões da nossa felicida-
de. Arquitetura: manifestação decisiva dos nossos
poderes criativos. Trata-se de uma voz humana:
profunda como o tempo, permanente e que leva,
diante dela, uma mensagem, alegremente.
Novembro 193
9 Já tinha escrito em seu Ca-derno de Notas (LE CORBU-SIER apud COAA, 2016) que a arquitetura que defende “é eminentemente latina, por-que se baseia nas relações matemáticas e possui uma enorme claridade na sua concepção”. (NT)