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TECNOLOGIA ENGENHARIAS Terra de inovação Centro de Materiais Cerâmicos investiga novas aplicações em siderurgia e produtos elétricos DINORAH ERENO O avanço do estudo de materiais cerâmicos tem proporcionado uma série de novos produtos para uso industrial. Duas das mais importantes novidades dessa área saíram recentemente do Laboratório Interdisciplinar de Eletroquímica e Ce- râmica (Liec), da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), onde os pes- quisadores, coordenados pelo professor Elson Longo, conseguiram desvendar com vantagens inovadoras, inclusive com o registro de uma patente, a tecno- logia empregada por empresas interna- cionais para fabricar dispositivos que protegem as redes elétricas contra so- 66 . AGOSTO DE 2002 PESQUISA FAPESP 78 brecargas causadas por raios. Eles tam- bém fizeram modificações nos refratá- rios cerâmicos utilizados pelas siderúr- gicas para produzir aço, que resultaram em significativa economia para a Com- panhia Siderúrgica Nacional (CSN), de Volta Redonda (RJ). A empresa já eco- nomiza US$ 6 milhões por ano com as mudanças feitas no vagão - chamado de carro torpedo - usado para transportar o gusa, o ferro líquido que será trans- formado em aço. Essas duas novidades fazem parte das várias linhas de pesquisa do Liec, laboratório que integra o Centro Mul- tidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos (CMDMC), do qual também participam o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), o Instituto de Física de São Carlos, da Universidade de São Paulo (USP), e o Instituto de Química de Araraquara, da Universidade Estadual Paulista (Unesp). O CMDMC é um dos dez Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) selecionados no ano 2000 pela FAPESP. Para esse programa, a Fundação reser- va R$ 15 milhões por ano. Um dos objetivos dos Cepids é o es- tímulo à pesquisa inovadora, desenvol- vendo produtos como o dispositivo cerâmico elaborado no Liec capaz de proteger a rede de transmissão de ener- gia. Chamado de varistor, ele tem dupla

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TECNOLOGIA

ENGENHARIAS

Terra de inovaçãoCentro de Materiais Cerâmicosinvestiga novas aplicaçõesem siderurgia e produtos elétricos

DINORAH ERENO

Oavanço do estudo demateriais cerâmicos temproporcionado uma sériede novos produtos parauso industrial. Duas das

mais importantes novidades dessa áreasaíram recentemente do LaboratórioInterdisciplinar de Eletroquímica e Ce-râmica (Liec), da Universidade Federalde São Carlos (UFSCar), onde os pes-quisadores, coordenados pelo professorElson Longo, conseguiram desvendarcom vantagens inovadoras, inclusivecom o registro de uma patente, a tecno-logia empregada por empresas interna-cionais para fabricar dispositivos queprotegem as redes elétricas contra so-

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brecargas causadas por raios. Eles tam-bém fizeram modificações nos refratá-rios cerâmicos utilizados pelas siderúr-gicas para produzir aço, que resultaramem significativa economia para a Com-panhia Siderúrgica Nacional (CSN), deVolta Redonda (RJ). A empresa já eco-nomiza US$ 6 milhões por ano com asmudanças feitas no vagão - chamado decarro torpedo - usado para transportaro gusa, o ferro líquido que será trans-formado em aço.

Essas duas novidades fazem partedas várias linhas de pesquisa do Liec,laboratório que integra o Centro Mul-tidisciplinar para o Desenvolvimentode Materiais Cerâmicos (CMDMC), do

qual também participam o Instituto dePesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen),o Instituto de Física de São Carlos, daUniversidade de São Paulo (USP), e oInstituto de Química de Araraquara, daUniversidade Estadual Paulista (Unesp).O CMDMC é um dos dez Centros dePesquisa, Inovação e Difusão (Cepids)selecionados no ano 2000 pela FAPESP.Para esse programa, a Fundação reser-va R$ 15 milhões por ano.

Um dos objetivos dos Cepids é o es-tímulo à pesquisa inovadora, desenvol-vendo produtos como o dispositivocerâmico elaborado no Liec capaz deproteger a rede de transmissão de ener-gia. Chamado de varistor, ele tem dupla

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função: é isolante e condutor de eletri-cidade. Ao receber a descarga elétrica deum raio, o dispositivo, instalado em pára-raios entre os fios condutores (que dis-tribuem energia) e a terra, é acionado. Avariação de voltagem detectada faz comque a cerâmica se torne condutora. Acorrente indesejada é então descarrega-da para a terra pela cerâmica varistora,evitando danos à linha de transmissão.Quando cessa o efeito do raio, que duramilésimos de segundo, o material cerâ-mico volta a atuar como isolante.

Existem vários tipos de varistores nomercado mundial e quatro empresas quedominam essa tecnologia: Matsushita,no Japão; Asea Brown Boveri e Siemens,

de 1999, dez Estados brasileiros ficaramno escuro durante quatro horas em con-seqüência de um raio que caiu em umasubestação no município de Bauru.

Leite ressalta que as empresas gera-doras e distribuidoras de energia têmprocurado, cada vez mais, proteger seusequipamentos das descargas elétricasprovocadas por raios. Esse mercado po-tencial motivou duas empresas de Mi-nas Gerais e uma de São Paulo a fabricaro varistor de óxido de zinco com a tec-nologia desenvolvida pelo Liec. As ne-gociações já estão em andamento. Oproduto fabricado com dióxido de es-tanho atraiu a atenção, mas ainda de-pende de interessados em colocá-lo nalinha de produção.

Algumas empresas fabricam pára-raios no Brasil, mas a maioria dos blo-cos é importada e, segundo Longo, nãoexiste um padrão de qualidade. "Somen-te um avançado conhecimento de ciên-cia básica pode propiciar a geração des-se tipo de tecnologia", diz. "Essa é agrande jogada." Ele lembra que umatecnologia desenvolvida para melhorarpeças cerâmicas (azulejos, pisos) foiessencial para chegar aos varistores."Descobrimos que o oxigênio era fun-damental para eliminar o coração ne-gro (defeito no centro da peça, origina-do durante o processo de queima) daspeças de revestimento cerâmico. Esseprojeto foi desenvolvido em parceriacom a White Martins e está sendo utili-zado pela Cerâmica Gerbi,"

na Europa; e General Electric, nos Esta-dos Unidos. "O varistor é um sistemacomplexo, tem pelo menos oito com-ponentes formados por óxidos diferen-tes e uma seqüência de tratamento tér-mico que são guardados como segredoindustrial", conta o professor Edson Lei-te, um dos pesquisadores do Liec.

Invenção japonesa - Desenvolvido noJapão na década de 70 para protegerequipamentos de baixa voltagem, o dis-positivo foi adaptado pelos norte-ame-ricanos para trabalhar com alta tensão.Os varistores disponíveis no mercado sãoà base de óxido de zinco (ZnO), uma tec-nologia decifrada pelo Liec, que tam-

bém já patenteouuma nova propostapara fabricação dessesdispositivos utilizan-do dióxido de esta-nho (Sn02)' matéria-prima encontrada emgrande quantidadeno Brasil.

Segundo o pro-fessor Longo, tam-bém coordenador doCepid de MateriaisCerâmicos, o de dió-xido de estanho émais resistente con-tra ambientes quími-cos agressivos, alémde ter maior condu-tividade térmica. No.momento em que oraio cai onde estáinstalado o varistor,a temperatura chegaperto dos 2000 Cel-sius. A descarga elé-

trica parte da nuvem até o solo e provo-ca a ionização do ar ao longo do seupercurso, podendo gerar a formação denitratos. Esses nitratos podem atacar oóxido de zinco, formar nitrato de zincoe destruir o varistor. Longo ressalta queo dióxido de estanho não tem esse pro-blema. "Essa é uma invenção 100% na-cional. Todos os artigos internacionaisque foram publicados no mundo sobredióxido de estanho são nossos", conta.

No Brasil, o risco de blecautes pro-vocados pela queda de raios é muitogrande. Segundo dados do InstitutoNacional de Pesquisas Espaciais (Inpe),cerca de 100 milhões de raios atingem oterritório nacional por ano. Em março

Transporte rápido - A pesquisa tecno-lógica também é um fator de competi-tividade para as indústrias siderúrgicas.Mas, como em outros setores, as inova-ções incorporadas à produção de açoconseguem ser mantidas em sigilo porum curto período de tempo. Sempre quehá um congresso, as novidades são anun-ciadas, e os técnicos, em seguida, tratamde adaptá-Ias. Estar um passo à frente daconcorrência, no entanto, faz toda a di-ferença, como pôde comprovar a CSN.

A novidade que levou a siderúrgicaa economizar US$ 6 milhões por anofoi o desenvolvimento de um isolantecerâmico, colocado entre a carcaça demetal e o refratário cerâmico do carro,e de uma tampa, também de cerâmica,que proporcionaram um ganho de 400

Celsius, perdidos anteriormente duran-te o transporte entre os altos-fornos e oconversor (equipamento utilizado para

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transformação do gusa emaço pela adição de oxigênio,que reage com o carbono,formando dióxido de carbo-no). Isso significa que o gusapode ser feito em uma tem-peratura menor. "Dessa for-ma, utiliza-se menos o car-vão coque, o que representa um ganhoeconômico, embora pequeno, porqueesse combustível é barato. O ganho mes-mo está no fato de que o carro torpedopode andar mais rápido porque não háperda de temperatura': conta Longo.

ASNtambém conseguiu umaço de mais qualidade, com

menos enxofre, sem fazermudanças no sistema de.produção, resultado de

um processo desenvolvido há dois anospelos pesquisadores do Liec. O silício,o fósforo e o enxofre são três elementosindesejáveis que ficam incorporados aoferro líquido. Os dois primeiros sãomais fáceis de serem eliminados. Já oúltimo interfere na qualidade do aço,deixando-o mais quebradiço, e necessi-ta de um processo mais complexo paraser retirado.

O novo método, em fase de testesindustriais na siderúrgica, permite a re-moção gradual do enxofre com quatrodiferentes agentes (carbonato de cálcio,carbeto de cálcio, alumínio-magnésio eborra de alumínio), injetados duranteo transporte de gusa nos carros torpe-dos. Os processos utilizados atualmen-te no mundo inteiro usam o carbonato

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de cálcio para retirar o indesejado en-xofre. "Colocamos numa primeira eta-pa carbeto de cálcio com carbonato decálcio e acrescentamos a borra resul-tante da fabricação de alumínio, paraaumentar a temperatura do banho dedessulfuração (eliminação do enxofre)':conta Longo. A pesquisa que" levou aesse processo inovador faz parte da tesede doutorado de Sérgio Murilo Iustus,orientado por Longo e pelo pesquisadorSidney Nascimento Silva, da CSN. A si-derúrgica investiu R$ 150 mil nesse pro-jeto, que recebeu ainda bolsa de douto-rado da FAPESP.

"Também desenvolvemos um siste-ma para a CSN produzir o ferro-gusa àIa carte, com padrão de qualidade do açodefinido pelo comprador': conta Longo.As porcentagens de enxofre e as mistu-ras são feitas por computador. Antes deesse sistema ser implementado, depen-dendo da compra, a usina tinha de pararo que estava produzindo para fazer açocom porcentagem menor de enxofre,por exemplo. Quanto menor a quanti-dade dessa substância, melhor o aço.

Longo diz que o aço brasileiro chegaaos Estados Unidos 30% mais baratoque o fabricado lá em função das ino-vações aplicadas ao sistema de produ-

ção. "Quando começamos a trabalharcom a CSN, há 12 anos, a produção erade 2 milhões de toneladas por ano. Hoje,está em quase 5 milhões de toneladasanuais, com os mesmos equipamentos.O processo é o mesmo, só mudamos osrefratários." A otimização dos equipa-mentos, que funcionam 350 dias por ano,eliminou as paradas na produção.

Única etapa - As pesquisas do Liec nãose resumem só a produtos com aplica-ção imediata. Materiais nanoestrutu-rados (com a escala de milionésimos demilímetro) estão sendo estudados no la-boratório e devem estar disponíveis parao desenvolvimento de vários equipa-mentos nas áreas de óptica e de ele-trônica, nos próximos anos. Tambémchamados de nanocompósitos, eles re-sultam da mistura de dois materiais di-ferentes, em escala nanométrica.

Um desses compósitos, com pro-missoras propriedades testadas emlaboratório, poderá ser aplicado em na-no circuitos eletrônicos para computa-dores, com redução do tamanho atualem 30 ou 40 vezes e aumento da veloci-dade de processamento, e em catalisado-res (substâncias que aceleram reações quí-micas), utilizados principalmente pela

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indústria farmacêutica, quí-mica e petroquímica e paraa geração de hidrogênio, como objetivo de obter energialimpa.

Para conseguir esse na-nocompósito, composto poruma matriz de sílica ou dió-xido de silício amorfo e par-tículas metálicas de níquel,foi desenvolvida uma rotade síntese - baseada em umpolímero obtido a partir doácido cítrico -, processo cha-mado de sol-gel, que utilizareagentes químicos no pro-cessamento e apenas umaetapa de tratamento térmi-co, enquanto as demais exi-gem, no mínimo, duas. "Éisso que estamos patentean-do': conta Leite. Esse proces-so também resolve dois pro-blemas das nanopartículasmetálicas: a aglomeração ea formação superficial deóxidos nesse material. "Co-mo as nanopartículas me-tálicas carregam informaçãomagnética, saber como se processa eorganiza esse material é uma vantagemenorme, já que podemos aplicar a tec-nologia para outros materiais", diz Lei-te. Entre essas aplicações está um foto-catalisador (catalisador ativado pela luz),destinado a limpar águas poluídas.

Os estudos para evitar o crescimentode partículas durante a preparação domaterial começaram em 1999 com oóxido de estanho, quando a equipe doLiec começou a trabalhar com semicon- .dutores nanoestruturados. "Usamos umdopante em que se coloca um átomo deterra rara na estrutura do dióxido deestanho. Durante o aquecimento, o óxi-do de estanho expulsa esses vizinhos in-desejáveis, os contaminantes, para a su-perfície e, nessa operação, o crescimentoé estancado", resume Leite.

Vantagem tecnológica - Os pesquisa-dores do Liec também sintetizaram na-nofios e nanofitas do semicondutor dedióxido de estanho por um processomais simples e barato que o apresenta-do pelos norte-americanos Zheng WeiPan e Zu Rong Dai, em artigo publica-do em março do ano passado na revistaScience. Os norte-americanos obtiveramesses materiais, com potencial aplicação

em nanoeletrônica, utilizando um for-no a vácuo, o que torna o procedimen-to mais caro e praticamente inviável paraa indústria. Já os brasileiros chegaram aosmesmos resultados usando um fornocomum, na forma de tubo. A patente doprocesso já foi pedida, e os resultados,publicados no Journal ofNanoscience andNanotechnology, em abril deste ano.

As linhas de pesquisa no Liec esten-dem-se a outros materiais e aplicações,como o estudo da fotoluminescência emcompostos amorfos. Esses materiais, aexemplo do vidro, não têm organizaçãoatômica interna definida, ao contráriodos cristais, nos quais os átomos ou mo-léculas se distribuem de forma orga-nizada e regular. A fotoluminescênciacaracteriza-se pela emissão de luz por

o PROJETO

Centro Multidisciplinarpara o Desenvolvimentode Materiais Cerâmicos - Cepid

COORDENADORElson Longo - UFSCar

INVESTIMENTOR$ 1.204.888,02 (média anual)

algumas substâncias e pelaação da radiação que incidenelas. Essa propriedade é co-nhecida desde os anos 60,mas apenas em materiaiscristalinos.

"Acabamos descobrin-do uma nova classe de ma-

terial luminescente", conta o professorPaulo Sérgio Pizani, do Departamentode Física da UFSCar. Nos experimentosrealizados em laboratório, verificou-se afotoluminescência em titanatos de bá-rio, cálcio, estrôncio e chumbo, compos-tos em estado amorfo, sem a necessida-de de condições especiais e de síntese. Aemissão de luz nesses compostos amor-fos foi obtida em temperatura ambien-te e em formas de pó e materiais nano-estrutura dos (filmes finos), permitindoa aplicação em vários tipos de superfície.

Longo ressalta que o grande ganhoda ciência é contribuir com o dia-a-diadas pessoas. E lembra o papel desempe-nhado pela Empresa Brasileira de Pes-quisas Agropecuárias (Embrapa). Atecnologia desenvolvida para a soja e acana-de-açúcar, por exemplo, foi fun-damental para aumentar a produtivi-dade e a competitividade desses produ-tos, com significativo peso na balançacomercial agrícola. O Liec segue à riscaesse preceito. Os resultados podem serverificados nos produtos desenvolvidosem parceria com a indústria e em ma-teriais com aplicações que, se hoje estãotão distantes do cidadão comum, certa-mente vão ter implicações nas mudan-ças do seu cotidiano. •

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