CENTRO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS - UEL Portal ... · obtenção do título de Mestre em...

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1 CENTRO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL LUANA PAGANO PERES MOLINA VOZES DE UMA HISTÓRIA: AS NARRATIVAS A PARTIR DE CONHECIMENTOS PRÉVIOS DE ALUNOS SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE (CAMBÉ/PR) LONDRINA 2012

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    CENTRO DE LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    MESTRADO EM HISTRIA SOCIAL

    LUANA PAGANO PERES MOLINA

    VOZES DE UMA HISTRIA: AS NARRATIVAS A PARTIR DE

    CONHECIMENTOS PRVIOS DE ALUNOS SOBRE GNERO E

    SEXUALIDADE (CAMB/PR)

    LONDRINA

    2012

  • 2

    LUANA PAGANO PERES MOLINA

    VOZES DE UMA HISTRIA: AS NARRATIVAS A PARTIR DE

    CONHECIMENTOS PRVIOS DE ALUNOS SOBRE GNERO E

    SEXUALIDADE (CAMB/PR)

    Dissertao apresentada ao Programa de

    Mestrado em Histria Social da

    Universidade Estadual de Londrina, em

    cumprimento s exigncias para

    obteno do ttulo de Mestre em Histria

    Social, na Linha de Histria e Ensino.

    LONDRINA

    2012

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    LUANA PAGANO PERES MOLINA

    Catalogao elaborada pela Diviso de Processos Tcnicos da Biblioteca Central da

    Universidade Estadual de Londrina

    Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)

    M722v Molina, Luana Pagano Peres.

    Vozes de uma histria : as narrativas a partir de

    conhecimentos prvios de alunos sobre gnero e

    sexualidade (Camb/PR) / Luana Pagano Peres Molina.

    Londrina, 2012.

    xi, 126 f.

    Orientador: Maria de Ftima da Cunha.

    Dissertao (Mestrado em Histria Social) Universidade Estadual de Londrina,

    Centro de Letras e Cincias Humanas, Programa de Ps-Graduao em Histria Social,

    2012.

    Inclui bibliografia.

    1. Histria social Teses. 2. Identidade sexual na educao Narrativas pessoais

    Teses. 3. Adolescentes Comportamento sexual Teses. 4. Histria Estudo

    e ensino Teses. I. Cunha, Maria de Ftima da. II. Universidade Estadual de

    Londrina. Centro de Letras e Cincias Humanas. Programa de Ps-Graduao em

    Histria Social. III. Ttulo.

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    VOZES DE UMAA HISTRIA: AS NARRATIVAS A PARTIR DE

    CONHECIMENTOS PRVIOS DE ALUNOS SOBRE GNERO E

    SEXUALIDADE (CAMB/PR)

    Avaliado em ________ com conceito________

    BANCA EXAMINADORA

    PROFESSORA DRA. MARIA DE FTIMA DA CUNHA

    Orientadora

    PROFESSORA DRA. LUCIA HELENA OLIVEIRA SILVA

    Examinador Externo

    PROFESSOR DRA. MARCIA ELISA TET .

    Examinador Interno

  • 5

    Dedico esta dissertao a

    todos que compartilham a

    vontade de uma educao

    mais humana, igualitria e

    democrtica.

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    No serei um poeta de um mundo caduco.

    Tambm no cantarei o mundo futuro.

    Estou preso vida e olho meus

    companheiros. Esto taciturnos mas

    nutrem grandes esperanas. Entre eles,

    considero a enorme realidade. O presente

    to grande mas no nos afastemos. No

    nos afastemos muito. Vamos de mos

    dadas. [...] O tempo a minha matria, do

    tempo presente, os homens presentes, a

    vida presente.

    Carlos Drummond de Andrade

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    AGRADECIMENTOS

    Desenvolver uma dissertao exige de ns, alunos, paixo pelo tema,

    desenvoltura na escrita, sacrifcios, horas de leituras e pacincia para conseguirmos

    expressar em palavras, pargrafos e ao longo do texto, toda a riqueza e importncia

    daquilo que pensamos, pesquisamos e acreditamos estar fazendo a diferena em nossos

    estudos e pesquisas atuais.

    Agradecer as mais diversas pessoas que nos ajudaram a atravessar este caminho

    a oportunidade grandiosa que temos de dar um toque mais humano, vivo e sublime

    aos dois anos do curso de Mestrado em Histria Social, pelos ensinamentos, incentivos

    e nsia de fazer esta travessia ao nosso lado.

    Primeiramente, quero agradecer a todos os professores que trouxeram grandes

    questionamentos, novas leituras e abordagens nas disciplinas realizadas, permitindo-nos

    diferentes olhares e interpretaes. Obrigada pela experincia, pelos conselhos, pelas

    amizades e principalmente por dividir conosco o poderoso conhecimento.

    s professoras Mrcia Tet e Lcia Helena Oliveira por participarem da minha

    qualificao e darem continuidade ao fechamento desta pesquisa. Muito Obrigada por

    terem aceitado o meu convite.

    Agradeo a todos os meus amigos pelo imenso carinho, mas no posso deixar de

    com todo meu corao agradecer em especial a Talita Martins, Katia Rodrigues, Karina

    Frasson, Jos Roberto Radigonda e Samuel Pavan, por sempre me apoiarem, me

    animarem quando o desnimo queria vencer a coragem e o mais importante, sempre me

    incitavam a seguir em frente. Todos vocs contriburam para que hoje eu estivesse aqui.

    Mais do que isso, nos dedicamos aos risos, ao companheirismo, aos encontros de finais

    de semana na casa do Beto e a arte de sermos eternos educadores, companheiros e

    amigos.

    Agradeo a minha famlia e ao amor incondicional dos meus avs, que mesmo

    sem entender exatamente o que era uma dissertao, acreditavam que eu poderia ir cada

    vez mais longe. Nunca duvidaram de mim. Sempre me amaram, e isso, o melhor de

    qualquer coisa dentro de mim.

    Com muito amor e carinho agradeo s minhas gatinhas, Cora e Pequena, por

    sempre estarem me esperando em casa, por me amarem e alegrarem meus dias e horas.

  • 8

    T-las foi e especial, mesmo quando vocs querem pular pela janela, ou miam sem

    parar para cada bichinho que entra em casa, roubam minhas meias ou tomam minha

    cama e travesseiro. Cada minuto com vocs sempre ser especial.

    Em especial, quero agradecer ao meu grande amigo e irmo do corao Diego

    Fernando que nos grandes tropeos de 2011 estendeu sua mo para mim, me acolheu

    fortemente e me ajudou a sobreviver durante toda tempestade. Voc foi meu super-

    heri, e nunca poderei esquecer a generosidade e carinho que me faz voltar a acreditar

    que tudo acabaria bem. Eu te amo demais.

    Maria de Ftima da Cunha, minha orientadora desde a graduao, que sempre

    acreditou no meu trabalho, no meu empenho e em todas minhas loucuras. Sua bondade

    e carinho marcaram nossa histria. Foi uma longa trajetria e mais uma etapa que

    concretizamos juntas, obrigada por tudo!

    E por fim, ao meu amor, por sonhar comigo, viver comigo e enfrentar todos os

    dias os desafios de nos reinventarmos, amarmos e sermos uma s alma! Assim fao das

    palavras de Pablo Neruda, meu agradecimento a voc: Mas se amo os teus ps s

    porque andaram sobre a terra e sobre o vento e sobre a gua, at me encontrarem.

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    MOLINA, Luana P. P. Vozes de uma Histria: as NARRATIVAS a partir de

    conhecimentos prvios de alunos sobre gnero e sexualidade (CAMB/PR).

    Dissertao apresentada ao Programa de Mestrado em Histria Social. Universidade

    Estadual de Londrina, 2012.

    RESUMO: Esta dissertao de mestrado tem como objetivo apresentar uma discusso

    referente s relaes de Gnero e Sexualidade presentes no cotidiano escolar, realizada

    no Colgio Estadual Antnio Raminelli, localizada na cidade de Camb, PR. Ao longo

    do trabalho, utilizamos como fonte documental um instrumento de investigao de

    conhecimento prvio (questionrio), que foi aplicado junto a adolescentes estudantes do

    ensino mdio cuja faixa etria variou entre 14 a 17 anos. Buscamos compreender, por

    meio das narrativas coletadas, questes referentes s construes e dinmicas das

    relaes de gnero e sexualidade e se o ensino de histria permite a possibilidade de

    reflexo e discusso destas temticas no ambiente escolar. Nosso estudo busca analisar

    os modos como os alunos constroem e se reconstroem a posio da normalidade das

    discusses de gnero e sexualidade, e os significados que lhes so atribudos no

    ambiente educacional./

    PALAVRAS CHAVES: Gnero; Sexualidade; Narrativas de Alunos; Histria e

    Ensino.

  • 10

    MOLINA, Luana P. P. Las voces de una historia: Los relatos de conocimiento previo

    de los estudiantes sobre Gnero y Sexualidad (CAMB/ PR). Tesis presentada en el

    programa de mster en Historia Social. Universidad Estadual de Londrina, 2012.

    RESUMEN: Esta tesis para completar el mster en Historia Social tiene como objetivo

    presentar una discusin sobre las relaciones de gnero y sexualidad en la vida escolar

    cotidiana. En su desarrollo se utilizo como fuente documental, una herramienta de

    investigacin de conocimiento previo (cuestionario), el cual fue aplicado en

    adolescentes estudiantes de secundaria con edades comprendidas entre 14 a 17 aos.

    Tratamos de entender, a travs de los relatos recogidos, las cuestiones relativas a la

    construccin y la dinmica de las relaciones de gnero y la sexualidad, y si la enseanza

    de la historia es posible traer la reflexin y la discusin de estas cuestiones en el entorno

    escolar. Nuestro estudio tiene como objetivo analizar las formas en que los estudiantes

    construyen y reconstruyen la posicin de normalidad en las discusiones sobre gnero

    y sexualidad, y los significados asignados a ellos en el mbito educativo.

    PALABRAS-LLAVES: Gnero; Sexualidad; Historia y educacin.

  • 11

    SUMRIO

    INTRODUO.........................................................................................................pg. 1

    CAPTULO I: A SALA DE AULA COMO ESPAO DA CONSTRUO DAS

    DIFERENAS.........................................................................................................pg. 10

    1.1 Algumas abordagens dos estudos de gnero........................................................pg.12

    1.2 Sexualidade: Novas discusses...........................................................................pg. 17

    1.3 A sala de aula: Ensinando quem sou eu e os outros............................................pg. 23

    1.4 Educao Sexual: Como ensinar em sala de aula?..............................................pg. 36

    CAPTULO II: GNERO, SEXUALIDADE E AS

    ADOLESCNCIAS........................................................................................... pg. 48

    2.1 O Saber histrico e as questes de gnero e sexualidade.................................. .pg. 52

    2.2 O Paradigma da complexidade nos estudos de gnero e

    sexualidade................................................................................................................pg. 56

    2.3 Podemos afirmar uma inveno da adolescncia?..............................................pg. 62

    CAPTULO III ANLISE DAS NARRATIVAS DOS ALUNOS.....................pg. 80

    3.1 A escola e o cotidiano escolar.................. ......................................................... pg. 82

    3.2 Outros Olhares: O perfil dos alunos...... ............................................................ pg. 87

    3.3 As vozes da Histria: As narrativas dos alunos ..................................................pg. 90

    CONSIDERAES FINAIS................................................................................pg. 114

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS................................................................pg. 117

    APNDICE............................................................................................................pg. 123

    Apndice A - Instrumento de Investigao do Conhecimento Prvio dos Alunos .......... pg. 124

    ANEXOS.................................................................................................................pg. 127

  • 12

    INTRODUO:

    Os corpos somente so o que so na cultura. Sendo

    assim, os significados de suas marcas no apenas

    deslizam e escapam, mas so tambm mltiplos e

    mutantes.

    Guacira Lopes Louro1

    A presente pesquisa, para a dissertao de concluso do programa de Mestrado

    em Histria Social, tem como problemtica a construo das relaes de gnero e

    sexualidade no cotidiano escolar.

    Ficamos a interpretar e reinventar o mundo diante das variaes do cotidiano,

    reelaborando e ressignificando conceitos e hbitos. Novas ideias surgem e as

    tecnologias se movimentam em mltiplas direes simultaneamente, acarretando

    transformaes a cada segundo, o que nos permite uma dimenso ampliada

    sexualidade, devido a multiplicidade de modelos e construes subjetivas.

    A compreenso de que as formas de ver o mundo so desenvolvidas a partir das

    experincias sociais presentes na construo das subjetividades, ou seja, identidades

    individuais e coletivas, nos possibilita refletir sobre em quais condies, as relaes de

    gnero e a construo da sexualidade se inscrevem em diferentes fazeres docentes e

    discentes nos cotidianos escolares.

    Entende-se que o ser humano, ao longo de todo seu desenvolvimento, partilha de

    grandes potencialidades que sero traados e delineados por uma complexa rede de

    sentimentos, sentidos, apropriaes e produes.2 A partir da historiografia da Nova

    Histria, foram includos temas que at ento estavam de fora do mbito do interesse

    dos historiadores: diferentes expresses do cotidiano vivido por diferentes sujeitos, na

    sua diversidade de classe, tnica, de gnero, entre outros. Ou seja, nas mais diferentes

    esferas da vida humana e entre os mais diferentes sujeitos.

    Com a revista Annales dHistorique Economique et Sociale, no inicio do sculo

    XX, tendo como seus lderes Lucien Febvre e Marc Bloch, inicia-se o movimento que

    ficou conhecido como a Escola dos Annales, tentando integrar a Histria as mais

    1 LOURO, Guacira Lopes. Corpos que escapam. In: Estudos feministas: volume 04.

    Braslia/Montreal/Paris: Labrys. 2003. 2 Esta Dissertao de Mestrado est sendo desenvolvida a partir de trabalho anterior realizado em nossa

    monografia de TCC concluda em 2008, intitulada: Gnero e Sexualidade: construes das diferenas na

    vivncia escolar, sob a orientao da Profa. Dra. Maria de Ftima da Cunha.

  • 13

    diversas vertentes das cincias humanas, como as cincias sociais e da psicologia.

    Tinham como objetivo, eliminar o esprito de especificidade e promover a

    pluridisciplinaridade. Como percebemos:

    Em primeiro lugar, a substituio da tradicional narrativa de

    acontecimentos por uma histria - problema. Em segundo lugar, a

    histria em todas as atividades humanas e no apenas histria

    poltica. Em terceiro lugar, usando completar os dois primeiros objetivos, a colaborao com outras disciplinas, tais como a

    geografia, a sociologia, psicologia, a economia, a lingstica, a

    antropologia social, e tantas outras 3.

    Segundo o historiador Peter Burke, em seu livro A Escola dos Annales, esse

    movimento trouxe consigo mudanas em relao s fontes histricas, que no mais se

    concentravam em documentos da esfera poltica, mas sim, ampliando suas fontes e seus

    mtodos, trazendo novos sujeitos histricos, nas esferas polticas, sociais e culturais.

    Est lgica est envolta de diferentes modos de escrever a Histria, tcnicas, temas de

    investigao, assim como diferentes concluses.

    A partir deste contexto os estudos histricos passam a vivenciar o

    multiculturalismo e nos apoiando nestas novas teorias buscamos a construo de

    caminhos para uma educao mais justa, no sentido da compreenso e da valorizao da

    diversidade humana em suas mltiplas dimenses.

    Por isso, trabalhar questes referentes s relaes de gnero e sexualidade ter a

    possibilidade de problematizar os espaos sociais, como por exemplo, na

    cultura/vivncia escolar, abrangendo a multiplicidade e a pluralidade dos sujeitos a fim

    de perceber tenses e conflitos que envolvem essa construo histrico-cultural; acerca

    da incluso e excluso de pessoas, conhecimentos, discursos, prticas e polticas

    educacionais.

    A diversidade se tensiona, instiga e inquieta; se percebida no mbito

    de um processo dialgico, pode se revelar pedaggica [...] novas possibilidades de encontros, formas de (re)conhecimento e

    sensibilidades, bem como oportunidades para desmitificar o que

    imaginamos acerca de ns mesmos, dos outros e do mundo. inestimvel o que a diversidade pode nos proporcionar ao nos fazer

    avanar criticamente, sobretudo em relao a ns mesmos, a nossos

    valores, significados, representaes (e autorepresentaes,

    3 BURKE, Peter. A Escola dos Annales 1929 1989. So Paulo: Ed. Unesp. 1997, p. 12.

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    geralmente to encantadas e generosas), limites, silncios e

    possibilidades4.

    A identidade de gnero est intrinsecamente ligado sexualidade, de forma que as

    atividades sexuais ocorrem seguindo as particularidades das pessoas frente s exigncias

    culturais, normas e padres da sociedade. Segundo Werebe, devido interveno dos

    fatores ideolgicos na sexualidade humana, no podemos caracteriz-la fora de seu

    contexto scio-cultural:

    Todo indivduo nasce num momento dado da histria, no seio de uma cultura distinta. Seus desejos, suas emoes e relaes inter-pessoais

    so formados pelas suas interaes com a cultura, dentro da

    sociedade em que vive5.

    A sexualidade foi e continua a ser construda histrica e culturalmente ao longo

    do tempo, inserida em um contexto social especfico, regido por normas e regras

    comportamentais.

    Os papis sexuais e seus esteretipos foram e so construdos, impostos e

    negociados em diferentes culturas e sociedades ao longo do tempo, assim devemos levar

    em conta as transformaes socioculturais onde esto inseridas, como por exemplo, no

    perodo entre 1950 e 1970, o feminismo no Brasil ganhava fora e a historiografia

    passava a se interessar pela participao feminina na histria. Mas j no perodo de

    1950, o feminismo incorporava outras frentes de luta, pois alm das reivindicaes

    voltadas para a desigualdade no exerccio de direitos, como polticos, trabalhistas e

    civis, questionava tambm as razes culturais de certas desigualdades. Denunciava

    assim, essa forma mstica de um eterno feminino, ou seja, a crena na inferioridade

    natural da mulher. Questionava igualmente a ideia de que homens e mulheres

    estariam predeterminados, por sua prpria natureza, a cumprir papis opostos na

    sociedade: ao homem, o mundo externo; mulher, por sua funo procriadora.

    Podemos demarcar a dcada de 1980 no Brasil, como o momento em que

    acontece uma inovao nos estudos sobre o feminino, passando-se a utilizar os Estudos

    de Gnero para se trabalhar com questes ligadas ao feminino. Trabalhar com gnero

    4 DINIS, Nilson Fernandes. Educao, relaes de gnero e diversidade sexual. In: Educao e Sociedade. Campinas: Vol. 29, n. 103, pp. 477-492, maio/ago. 2008. Disponvel em >. 5 WEREBE, Maria Jos Garcia. Sexualidade, poltica e educao. Campinas: Autores Associados, 1998,

    p. 15.

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    como categoria de anlise significa abordar o relacional entre homem e mulher, ou seja,

    as duas categorias elaboram as suas identidades como complemento ou oposio ao

    outro. Enfim, buscou-se um aprimoramento terico-metodolgico que permite recuperar

    os mecanismos das relaes sociais entre os papis sexuais. Como nos diz a historiadora

    Eni de Mesquita Samara:

    Pensar em Gnero e Identidade conjuntamente significa discutir um

    tema que, em funo da sua complexidade, exige o entendimento em

    vrios nveis de reflexo e anlise. Isso se deve, primeiramente, ao

    fato de estarmos elaborando as relaes entre os sexos, na sua perspectiva cultural

    6.

    Todas essas transformaes acabam por afetar as formas de viver e construir as

    identidades de gnero. Guacira Lopes Louro pontua que a sexualidade construda e

    aprendida num processo ao longo de toda vida, de diferentes modos e sujeitos, por meio

    dos diversos processos culturais, que ir produzir e transformar a simbologia do corpo, e

    envolvendo-lhe em um sentido social.

    Assim, as identidades de gnero sero compostas e definidas por relaes sociais

    e redes de poder de determinada sociedade. A aceitao ou admisso de uma nova

    identidade sexual ou a transformao desta, torna-se uma alterao essencial que atinge

    diretamente a essncia humana.

    [...] Atravs de processos culturais, definimos o que ou no

    natural; Produzimos e transformamos a natureza e a biologia e, consequentemente, as tornamos histricas. Os corpos ganham

    sentidos socialmente. A inscrio dos gneros feminino ou

    masculino - no corpo feita, sempre no contexto de uma determinada cultura, portanto, com as marcas dessa cultura. As

    possibilidades da sexualidade das formas de expressar os

    desejos e prazeres tambm so sempre socialmente estabelecidas e codificadas. As identidades de gnero e sexuais,

    so, portanto, compostas e definidas por relaes sociais, elas

    so moldadas pelas redes de poder de uma sociedade [...]7

    Aqui o corpo, ser o prprio indivduo, e seu valor est fortemente agregado s

    posturas e aparncias em torno da classe social, raa, religio, etc. Ser na sociedade,

    principalmente a atual, que o corpo torna-se uma referncia para a noo de identidade

    6 SAMARA, Eni de Mesquita. Gnero em debate: Trajetria e perspectivas na historiografia

    contempornea. So Paulo. Editora Autntica, 2000. p. 13. 7 LOURO, Guacira Lopes. O Corpo Educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte. Ed.

    Autntica, 1999 (a). p. 11-12.

  • 16

    de gnero, sexual ou biolgica, dentro das mais diversas imposies culturais, num

    mbito dentro da esttica e aes morais e sexuais.

    A sexualidade atualmente deixou de ser apenas um aspecto biolgico de

    procriao para tornar-se cultural, portanto, diferentes culturas tm suas prprias

    normas, crenas e valores que vo compondo a dimenso humana. As regras sexuais so

    diferentes para ambos os sexos, sendo geralmente a maioria das restries ligada ao

    gnero feminino, determinado pela cultura que impem quais so as prticas sexuais

    apropriadas ou no.

    Pontuamos neste momento a importncia dos movimentos sociais em torno de

    debates ligados aos temas de sexualidade e das relaes de gneros, como por exemplo,

    a diversidade sexual, a violncia sexual, aborto, entre outros, que so iniciados

    principalmente em torno da afirmao dos questionamentos destes movimentos:

    A contestao da posio central se fez e se faz, portanto, a partir de

    vrias frentes: de gnero, de sexualidade, de raa, de classe, e o embate que promovido por essas frentes algumas vezes se articula e se

    refora, em outras no. A palavra chave desses movimentos ou dessa

    poca diferena.8

    As questes da sexualidade, na cultura ocidental, por muito tempo, foram

    motivos de tabus, devido suas posturas repressoras por parte da sociedade, diante dos

    comportamentos e conceitos em torno do sexo. Assim estes tabus foram manipulados de

    varias formas, ora como pecado, ora como fator de controle poltico da sociedade e em

    algumas vezes, at como instrumento de prazer e felicidade. No caso do Brasil, foi no

    perodo entre 1920 e 1930, que a Educao Sexual comeou a apontar, como cuidado

    das mulheres e evitar atitudes femininas consideradas imorais e garantir o ato sexual

    como reproduo. Como trabalha Mary Neide Figueir em estudos referente Educao

    Sexual:

    Partimos do pressuposto que a sexualidade, sobretudo, uma construo scio-cultural e, portanto, no esttica, mas sim histrica e

    mutvel. Acreditamos que em todo processo de interao professor -

    alunos, alunos- alunos, e escola famlia, por exemplo, d-se a construo, manuteno ou a ressignificao dos valores morais, das

    8 LOURO, Guacira Lopes. Feminilidades na ps-modernidade. In: labrys, tudes fministes/ estudos

    feministas. juin/ dcembre 2006/ junho/ dezembro 2006. Disponvel em:

    http://vsites.unb.br/ih/his/gefem/labrys10/riogrande/guacira.htm
  • 17

    normas sexuais e de todos os significados relacionados s questes da

    sexualidade 9.

    Todos ns somos educados sexualmente ao longo de toda nossa vida, desta

    forma, esta pesquisa tem o intuito de trabalhar com adolescentes, uma vez que a fase da

    adolescncia, est marcada pelas transformaes nas varias dimenses psicossociais e

    culturais, onde o jovem busca e confronta sua identidade pessoal, sexual e social.

    nessa fase da vida que fica mais visvel, a incorporao dos modelos de

    masculinidade e feminilidade. E neste contexto que se forjam as relaes sociais entre

    os sexos, ou seja, as relaes de gnero, que vo dar forma e significado s atitudes e

    prticas como homem ou mulher, suas interaes sexuais, ideias e representaes sobre

    a sexualidade e identidade sexual.

    A sexualidade um dos importantes aspectos da adolescncia, muito enfatizado

    no apenas pelos dados j apontados, mas tambm por que nessa fase da vida do ser

    humano que a identidade sexual est se formando. A partir da ideia de Knobel10

    o

    nascimento de uma criana em nossa sociedade, a famlia j comea a diferenci-la

    sexualmente atravs de roupas, cores, brinquedos e objetos. Os pais sutilmente se

    encarregam de ir impondo, durante a infncia, as diferenas entre meninos e

    meninas e a sociedade trata de acentu-las mediante elementos meramente externos.

    Cano, Ferriani e Gomes11

    apontam que as mudanas fsicas correlacionadas

    com as mudanas psicolgicas levam o adolescente a uma nova relao com os pais e

    com o mundo, mas isto s ser possvel se o adolescente puder elaborar lentamente os

    vrios lutos pelos quais passa, ou seja, o da perda do corpo infantil, a perda dos pais na

    infncia e a perda da identidade infantil. Quando o adolescente vive todo esse processo,

    ele se inclui no mundo com um novo corpo j maduro e uma imagem corporal formada,

    que muda sua identidade, e esta a grande funo da adolescncia, a busca da

    identidade que ocupa grande parte de sua energia.

    Alm disso, relaciona-se a importncia das discusses referentes sexualidade e

    adolescncia, pois:

    [...] cada vez mais, a sexualidade tem sido tema de discusso e debate no apenas na sociedade brasileira e sua importncia fica ainda mais

    9 FIGUEIR, Mary Neide Damico. Educao Sexual: Como ensinar no espao da escola. In: Anais do I

    Congresso de Educao Inclusiva. SP. 2003. p 1-2. 10 KNOBEL, M. Orientao familiar. Campinas: Papirus, 1992 11 CANO, M.A.T.; FERRIANI, M.das G.C. Sexualidade na adolescncia: um estudo bibliogrfico. In:

    Revista Latino Americana de Enfermagem, Ribeiro Preto, v. 8, n. 2, p. 18-24, abril 2000.

  • 18

    pronunciada quando controvrsias sobre o aborto, os direitos das

    minorias sexuais e, mais recentemente, a alarmante propagao da

    AIDS se colocaram no centro das atenes pblica na vida contempornea.

    12

    Portanto, nosso intuito no julgar os adolescentes que fazem parte do corpo

    documental deste trabalho, mas sim compreender o que fazem e sob qual entendimento

    o fazem.

    O pressuposto inicial deste trabalho, parte da premissa que o cotidiano escolar,

    o mbito de vivncia dos alunos. Espao no qual seus referenciais ideolgicos, o

    convvio entre docentes, discentes, coordenao e direo, por vezes, no possibilita o

    desenvolvimento de meios para a construo das relaes de gnero de forma positiva e

    igualitria e no desenvolvem sujeitos autnomos de suas ideias, corpo, em geral, de

    sua identidade. Outro enfoque a predominncia de proposies essencialistas e

    excludentes nos conceitos utilizados para pensar identidades sexuais e de gnero.

    No ensino de histria entenderamos que esta disciplina no seria somente uma

    narrao do passado, mas o professor/historiador seria capaz de fazer uma anlise dos

    acontecimentos traando ligaes entre as vrias temporalidades e propiciando o

    entendimento de seus desdobramentos no presente. No caso dos estudos de gnero e

    sexualidade, o ensino de histria abriria uma ponte para desconstruir conceitos e

    abranger o entendimento da construo histrica-social nos diferentes perodos e

    culturas referentes estes temas.

    Frana13

    diz que necessrio entender o papel do Ensino de Histria no processo

    de desvendamento dos problemas sociais, uma vez que este requer dilogo com os

    diferentes saberes, que so elaborados em diversos nveis e locais.

    Assim, poderamos dizer que a Histria a priori teria a finalidade de nos fazer

    compreender a prpria historicidade na qual estamos envolvidos e tambm nos ajuda a

    enxergar a condio de sujeito histrico e transformador do contexto social que

    vivemos. O educador no pode abster-se do seu papel em relao s questes de

    aprendizagem da sexualidade humana e suas implicaes sociais; pois ele que detm

    os meios pedaggicos mais acessveis e necessrios para uma interveno sistemtica

    12 PARKER, R.G. Corpos, prazeres e paixes: a cultura sexual no Brasil contemporneo. So Paulo: Best

    Seller, 1991. 295p. 13 FRANA, Cyntia Simioni. Possibilidades e Limites na Construo do Conhecimento Histrico

    Escolar em Conexo com o Mundo Virtual. Dissertao de Mestrado. UEL, Londrina-PR: 2009.

  • 19

    sobre a sexualidade, de modo a proporcionar a formao de opinies mais crticas sobre

    o assunto.

    As questes de estudo levantadas nesta dissertao so: Como so trabalhadas as

    questes sobre sexualidade no ambiente escolar? Como, por meio das narrativas dos

    jovens, pode ser observada a dinmica entre gneros? A escola enfrenta quais tipos de

    preconceitos referentes ao gnero e sexualidade? O ensino de histria possibilita a

    reflexo e discusso sobre as diferenas sociais?

    Esta dissertao ser composta por trs captulos. No primeiro captulo iremos

    abordar o espao escolar como um lugar privilegiado de construo das diferenas e

    discutiremos o conceito de cotidiano escolar na perspectiva de Agnes Heller. E tambm

    investigaremos como estas discusses sobre gnero e sexualidade so trazidas para a

    questo do ensino de histria em especial atravs dos PCNs, particularmente no volume

    10 dos Temas Transversais, que aponta a necessidade de se discutir em diversas reas,

    inclusive na histria, a dimenso da sexualidade e gnero no universo dos jovens

    atravs dos currculos escolares.

    O captulo dois se desdobrar sobre os primeiros estudos de gnero e

    sexualidade, no s no campo da histria, mas tambm em outras reas do

    conhecimento e tambm os vrios discursos sobre o perodo da adolescncia.

    Em seguida, no terceiro captulo, abordaremos as narrativas dos alunos na faixa

    etria entre 14 e 15 anos, (das turmas do primeiro e segundo ano do ensino mdio do

    Colgio Estadual Antnio Raminelli na cidade de Camb, no norte do Paran), sobre

    questes de gnero e sexualidade; obtidas atravs de um instrumento de investigao. E

    neste mesmo instrumento previamente elaborado, abordamos questes com um intuito

    de investigar o que pensam e, como so as atitudes e as construes das relaes

    afetivas desses jovens.

    Desta forma podemos dizer que nossa dissertao tenta pensar a escola como

    um espao que atua tanto na instruo como ainda na interiorizao de hbitos e valores

    que possam dar suporte sociedade em construo, preparando as crianas e jovens

    moral e fisicamente tendo por base a educao do corpo. Ou seja, capazes de expressar

    e exibir os signos, crenas, normas e as marcas corporais da sociedade.

  • 20

    CAPTULO I

    A ESCOLA E A CONSTRUO DAS DIFERENAS

  • 21

    CAPTULO I: A SALA DE AULA COMO ESPAO DE CONSTRUO DAS

    DIFERENAS.

    Nenhuma identidade sexual mesmo a mais normativa automtica,

    autntica, facilmente assumida; nenhuma identidade sexual existe sem

    negociao ou construo. No existe, de um lado, uma identidade

    heterossexual l fora, pronta, acabada, esperando para ser assumida e,

    de outro, uma identidade homossexual instvel, que deve se virar

    sozinha. Em vez disso, toda identidade sexual um constructo instvel,

    mutvel e voltil, uma relao social contraditria e no finalizada.

    Dbora Britzman14

    O desdobramento deste primeiro captulo implica na conceitualizao de gnero

    e sexualidade, assim como tambm a maneira como eles se interagem.

    Quando tratamos de gnero e as relaes estabelecidas dentro deste conceito, no

    mbito histrico, referimos construo social das identidades de feminino e masculino

    e a maneira que desenvolve suas relaes sociais em cada sociedade e cultura vigente.

    Portanto, a ideia de gnero fundamenta-se em valores scio-culturais estabelecidas por

    normas em dada sociedade, no caso deste trabalho, na sociedade ocidental, a qual atribui

    lugares sociais diferentes entre homens e mulheres.

    O conceito de gnero procura explicar as relaes sociais entre homens e

    mulheres, resultado de questionamentos que surgiram no movimento feminista e aps

    diversas tentativas de explicar atravs de teorias biolgicas a condio da subordinao

    feminina. No havendo uma explicao coerente que articulasse a opresso das

    mulheres no trabalho, famlia, sexualidade, poder e identidade, nesse sentido, o conceito

    de gnero veio buscar uma compreenso destas questes e permitir analisar as suas

    consequentes relaes, colocando em xeque as formas de organizaes sociais vigentes

    quanto s hierarquias e desigualdades.

    Assim, ao dissermos que as relaes de gnero so construdas socialmente, isso

    implica dizer que elas se do de forma diferente de uma sociedade para outra e em

    pocas diferentes. Ou seja, os sujeitos histricos tm suas relaes fundamentadas por

    um padro dominante no gnero, como: homem/ mulher, provedor/ reprodutor, pblico/

    privado, dominao/ submisso. Segundo a historiadora Joan Scott esse pensamento

    14 BRITZMAN, Dbora. O que essa coisa chamada amor. Identidade homossexual, educao e

    currculo. In: Educao e Realidade. Vol. 21(1), jan/jul.1996, p. 67.

  • 22

    dicotmico e polarizado sobre os gneros, nos faz pensar e representar as relaes

    sociais dentro dessa lgica, portanto desconstruir a polaridade rgida dos gneros

    implica em buscar os processos e as condies que estabeleceram os termos da

    polaridade. Portanto, que se historicize a polaridade e a hierarquia nela implcita.

    Guacira Lopes Louro15

    , seguindo a ideia de Joan Scott ainda retrata que uma das

    conseqncias mais significativas da desconstruo dessa dicotomia residiria na

    possibilidade de se repensar as possibilidades existentes na compreenso das diferentes

    formas de masculinidade e feminilidade que se constituem socialmente. Incorporando

    essa discusso, ainda questiona que o rompimento dessa dicotomia poder levantar

    problemticas, como o conceito de heterossexualidade, tratando de mulheres e homens

    que vivem feminilidades e masculinidades de formas diversas e no hegemnicas. E,

    portanto, ao aceitarmos que a construo de gnero histrica e se faz e refaz

    constantemente, estamos entendemos que as relaes de gnero, seus discursos e

    representaes tambm so histricos e esto em constante mudana.

    Em contrapartida, as mudanas ocorridas ao longo do sculo passado, ainda

    visvel a presena da ideia da mulher ocupando o espao privado, ligada aos cuidados

    com a famlia mesmo com o crescente aumento de sua participao no mercado de

    trabalho, enquanto o homem participante ativo no espao pblico. Como por exemplo,

    cria-se uma diviso entre as esferas pblicas e privadas, onde a mulher esta envolta do

    domstico e da subjetividade, enquanto que a esfera pblica considerada como o

    espao dos homens, da liberdade, dos direitos.

    As diversas instituies, como a escola, universidade, famlia, igreja, mdia,

    entre outros, colaboram diretamente na construo das identidades masculinas e

    femininas, influenciando nas suas relaes. Portanto, desde crianas so treinadas a

    desenvolver papis e habilidades especficas e diferenciadas, que iro influenciar ao

    longo de sua vida, atravs de vrias formas: na observao de como se do as relaes

    de gnero dentro de casa e fora dela, na orientao que recebem quanto a brinquedos e

    brincadeiras, roupas e modos tidos como mais adequados a cada gnero.

    1.1 ALGUMAS ABORDAGENS DOS ESTUDOS DE GNERO:

    15 LOURO, Guacira Lopes. Gnero, Sexualidade e Educao. Petrpolis: Ed. Vozes. 1999 (b). p. 34.

  • 23

    Acredita-se que as relaes sociais entre os sexos constituem-se numa rede

    ideolgica, onde acaba por colocar o ser humano numa relao hierarquizada. No que se

    refere s relaes de gnero, apesar dos avanos das ultimas dcadas, a forma como

    esto intrnsecas na nossa sociedade e nos valores predominantes, acabam por colocar a

    mulher numa posio e situao de subordinao.

    Assim, as atribuies sociais impostas, que levam manuteno das

    desigualdades, da forma como esto mesmo que muitas vezes ainda despercebidas e

    ou camufladas so formas de manter a opresso entre os gneros, na tentativa de

    manuteno da permanncia entre homens e mulheres nos seus lugares sociais.

    A partir do final de 1960, o conceito de gnero foi trabalhado inicialmente pela

    antropologia e psicanlise, com diferentes perspectivas tericas, situando a construo

    das relaes de gnero na definio das identidades masculina e feminina, como base

    para a existncia de papis sociais distintos e tambm hierrquicos16

    . Mas ser a partir

    do incio da dcada de 1970 que um grupo de estudiosas anglo-saxs comearia a

    utilizar o termo gender, traduzido para o portugus como gnero e aderido

    principalmente pelo movimento feminista17

    .

    No Brasil, nesse perodo, foi um momento relevante para questionamentos

    sobre gnero, devido s conquistas conseguidas, como por exemplo, o direito ao voto e

    todas as mudanas que ocorreram com a chamada revoluo sexual, alm das

    pertinentes reivindicaes devido desigualdade no exerccio de direitos, como

    polticos, trabalhistas e civis. O feminismo no Brasil, devido influncia dos

    movimentos feministas da Europa e dos Estados Unidos, comea a ganhar fora e a

    historiografia passa a se interessar pela participao feminina, buscando a compreenso

    da trajetria histrica e da construo de seu lugar social, que segundo Guacira Lopes

    Louro:

    levantaram informaes, construram estatsticas,

    apontaram lacunas em registros oficiais, vieses nos

    livros escolares, deram voz quelas que eram silenciosas e silenciadas, focalizaram reas, temas e

    problemas que no habitavam o espao acadmico,

    falaram do cotidiano, da famlia, da sexualidade, do domstico, dos sentimentos

    18.

    16 FARIA, Nalu & NOBRE, Miriam. Gnero e Desigualdade. In Cadernos Sempre viva, SP: 1997. 17 MEYER, Dagmar. Gnero e Educao: teoria e poltica. In: Louro, Guacira Lopes (Org.). Corpo,

    Gnero e Sexualidade. Petrpolis: Ed. Vozes, 2003. p. 9-27. 18 LOURO, Guacira Lopes. Op. Cit. 1999 (b). p. 19.

  • 24

    O feminismo, em sua definio um conjunto de ideias e prticas que tendem a

    superar as desigualdades sociais vivenciadas pelas mulheres, com a inteno de deter a

    violncia, as situaes de opresso e excluso. Alm do que, assim como o gnero,

    repensa as relaes entre o mundo pblico e privado19

    . E ser nesse contexto que esse

    movimento afirma que no sero as caractersticas anatmicas (biolgicas) que definem

    as diferenas apresentadas como justificativas para a presente desigualdade entre os

    gneros. Mas sim que as diferenas sero social e culturalmente construdas.

    Dagmar Meyer, em seu trabalho Gnero e Educao: teoria e poltica20

    ir

    trabalhar com a ideia de Duas ondas do movimento feminista, ou seja, no primeiro

    momento aglutinava-se, principalmente, em torno da busca e luta do direito ao voto que

    ocorre com a constituio de 1934 e ao acesso ao ensino superior, com o direito

    educao e ao exerccio da docncia, em condies dignas de trabalho. O segundo,

    momento ocorre nos anos 60 e 70 do sculo XX, quando se associa aos movimentos de

    oposio aos governos da ditadura militar, remetendo necessidade de investimentos

    em produo de conhecimento, cujo objetivo no seria somente de denncia; mas sim

    compreender e explicar a subordinao social e invisibilidade poltica que as mulheres

    historicamente foram submetidas.

    Essa segunda onda impulsionou os primeiros estudos sobre as necessidades e

    dificuldades das mulheres, levando para a academia temas considerados secundrios,

    como o cotidiano, a famlia, sexualidade, entre outros.

    Meyer ainda trabalha com a explana sobre um feminismo heterogneo e plural,

    que se divide entre feminismo liberal-burgus, que se engajou mais na luta pelo direito

    ao voto e pelo acesso ao ensino superior, o feminismo socialista, que lutavam pela

    formao de sindicatos e por melhores condies de trabalho e salrio, e o feminismo

    anarquista, que se direciona ao direito s decises referente ao prprio corpo e

    sexualidade. Mas a vertente do movimento feminista, que embasa esse trabalho, inicia-

    se no final do sculo XX e que se mantm atualmente na produo acadmica: o

    feminismo ps-estruturalista, concebendo a cultura como um campo de luta, que

    trabalha o conceito de gnero em grandes dimenses sociais, culturais e lingusticas:

    como exerccio de poder, uma vez que a linguagem possui o poder de nomear,

    classificar, definir normalidades e anormalidades, em processos construdos e impressos

    19 ALVES, Branca Moreira & PITANGUY, Jacqueline. O que feminismo. So Paulo: Ed. Brasiliense.

    1995. passim. 20 MEYER, Dagmar. In: Louro, Guacira Lopes. Op. Cit. 2003.

  • 25

    nos corpos, separando-os entre gnero e principalmente dando enfoque a discusso da

    sexualidade. Levando-se em conta, no somente a mulher como campo de anlise, mas

    as relaes de poder entre homens e mulheres e as muitas formas sociais e culturais de

    se vivenciar e se constituir como sujeitos de gnero:

    O feminismo ps-estruturalista nos aproxima de abordagens muito

    mais amplas, que nos levam a considerar que as prprias instituies,

    os smbolos, as normas, os conhecimentos, as leis e polticas de uma sociedade so constitudas e atravessadas por representaes e

    pressupostos de feminino e de masculino e, ao mesmo tempo,

    produzem e ressignificam essas representaes21

    .

    Apoiando-se nessa perspectiva, Meyer discute o conceito de gnero dentro dessa

    pluralidade atravs dos processos em que a cultura constri e distingue corpos e

    sujeitos femininos e masculinos, admitindo marcas sociais, como por exemplo,

    classe, raa, sexualidade, gerao, religio, entre outros, onde articula-se essas

    modificaes e produes como formas de vivncia e experincias por diversos

    grupos, ou mesmo dentre desses grupos, mas distinguindo-se pela postura e gestos dos

    indivduos em diferentes momentos de sua vida.

    Na dcada de 1970, a mo de obra feminina ganha espao no comrcio,

    prestao de servios e indstrias, porm ainda sim so vista de maneira subalternada,

    ganhando mal e no obtendo reconhecimento. O feminismo, nesse perodo, no Brasil

    ganha o carter de um grande movimento social, juntando-se a organizaes dos

    trabalhadores e movimentos populares e criando um novo sujeito social, as mulheres,

    que se organizaram em busca de uma identidade comum, igualdade e oportunidades no

    mercado de trabalho. Como as autoras Nalu Faria e Miriam Nobre em Gnero e

    Educao, descrevem sobre esse novo sujeito social:

    As mulheres conquistaram visibilidade e, por sua ao, os costumes

    comearam a ser transformados. A intensa campanha para que as

    mulheres denunciassem a violncia de que eram vitimas e pela

    punio dos culpados modificou o senso comum, ao questionar a defesa da honra como justificativa legtima para o assassinato de

    mulheres. O movimento de luta por creches conquistou as primeiras

    creches pblicas e o cuidado das crianas menores de seis anos passou a fazer parte da agenda das polticas sociais

    22.

    21 Idem, p. 16. 22 FARIA, Nalu & NOBRE, Miriam. Op. Cit. p. 38.

  • 26

    Essas mesmas autoras ainda discutem as expresses identidades de gnero e

    relaes de gnero para desconstruir os papis sociais entre homens e mulheres pela

    sociedade, que na verdade no so determinadas pelas diferenas biolgicas entre os

    sexos, mas sim repensando esse discurso social existente. Como tambm diz Guacira

    Lopes Louro, o gnero tambm tem uma dimenso e uma expresso biolgica23

    .

    Portanto, mulheres e homens imprimem atravs de seus corpos, gestos, posturas e

    disposies, a partir das relaes de poder vividas nas relaes de gnero.

    A presena ainda hoje dessas idias tradicionais na hierarquizao dos papis

    sociais, costuma ser justificada pela idia de que esses papis so naturais, ou seja,

    homens e mulheres j nasceram para serem desse jeito e transcorrerem dessa maneira:

    A naturalizao dos papis e das relaes de gnero faz parte de uma

    ideologia que tenta crer que esta realidade fruto da biologia, de uma essncia masculina e feminina, como se homens e mulheres j

    nascessem assim. Ora, o que ser mulher e ser homem no fruto da

    natureza, mas da forma como as pessoas vo aprendendo a ser, em uma determinada sociedade, em um determinado momento histrico.

    Por isso, desnaturalizar e explicar os mecanismos que conformam

    essas identidades so fundamentais para compreender as relaes

    entre homens e mulheres, e tambm seu papel na construo do conjunto das relaes sociais

    24.

    Portanto, se a forma de ser homem e mulher so uma construo histrica, as

    relaes entre estes variam ao longo da histria. E no ltimo sculo, como j citado,

    essas relaes sofreram transformaes, principalmente no papel social das mulheres,

    seja na busca de autonomia, sexualidade, direito ou no a reproduo, terem acesso aos

    meios de produes econmicas, terem maior reconhecimento, entre tantos outros

    mritos e direitos. E mesmo que os homens intervenham mais ativamente no espao

    familiar e domstico, a gesto da vida cotidiana na famlia ainda cabe prioritariamente a

    mulher.

    A ajuda masculina no mbito familiar mantm-se numa participao mais

    auxiliar. Portanto, no ocasiona uma ruptura na diviso sexual nos papis familiares no

    interior de seu quadro tradicional fundando pela preponderncia feminina. A mulher

    ainda tem responsabilidade principal pelos filhos e na estruturao e execuo das

    tarefas, mesmo quando esta trabalha fora de casa, como explica Giles Lipovetsky, em

    seu livro A terceira mulher: Permanncia e a revoluo do feminino.

    23 LOURO, Guacira Lopes. Op. Cit. 1999 (b). passim. 24 FARIA, Nalu & NOBRE, Miriam. Op. Cit. p. 29.

  • 27

    Segundo este autor, no final do sculo XX, as mulheres reivindicam o poder e

    igualdade atravs do esprito de competio, disputando na hierarquizao o fim de suas

    antigas inibies, com sua presena nas esferas de poder polticas, econmicas e sociais.

    Envoltas pela cultura e valores atuais de poder e status, as mulheres buscam estratgias

    de carreiras, querem ser bem sucedidas em suas organizaes e empresas, visam os

    postos de responsabilidades, como um sujeito histrico socialmente legtimo.

    Michael Foucault25

    e suas contribuies a respeito das relaes de poder, diz que

    o poder no centralidade, mas sim que pode ser constitudo por toda sociedade, se

    exercendo em estratgias e manobras, ao que ele chama de exerccio de poder. Esse

    exerccio de poder ocorre entre sujeitos que transgredindo essa relao, acaba por

    encontrar, incitar, produzir e criar a resistncia, que inerente a qualquer exerccio do

    poder.

    Hoje homens e mulheres, atravs de suas diferentes prticas sociais, constroem

    relaes em que h esse exerccio de poder, ao buscar negociaes, avanos,

    entendimento na diversidade de suas relaes, de seus poderes. Mas, essas relaes

    certamente no so construdas somente por mecanismos de represso ou censura, so

    tecidas tambm atravs de gestos, modo de ser e agir, condutas e posturas, por fim, os

    gneros tambm se produzem e reproduzem nas e pelas relaes de poder, nos diz

    Louro26

    .

    Foucault27

    ainda afirma que nossos gestos so construes historicamente

    datadas, ou seja, se deve problematizar os significados e valores determinados pela

    cultura atravs dos corpos, que por si s, uma construo social, cultural e histrica.

    Coloca-se ainda a maneira como se disciplinam os corpos, atravs do poder,

    docilizando-os e controlando-os. Atenta-se que seu objeto de estudo no so os corpos,

    mas a maneira que se da s relaes sociais a partir deles, experincias e relaes que

    estes produzem de forma hierarquizada:

    Desnaturalizar o corpo de forma a evidenciar os diferentes discursos que foram e so cultivados, em diferentes espaos e tempos [...] e

    assim entender seu poder de excluir, inferiorizar e ocultar

    determinados corpos em detrimento de outros28

    .

    25 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Rio de Janeiro: Ed. Graal: 1993, p. 29. 26 LOURO, Guacira Lopes. Op. Cit. 1999 (b). p. 41. 27 FOUCAULT, Michel. Microfsica do poder. Rio de Janeiro: Ed. Graal. 1992. 28 LOURO, Guacira Lopes. Corpo, Gnero e Sexualidade. Petrpolis: Editora Vozes, 2003, p. 33.

  • 28

    Por fim, a identidade de gnero, que define a masculinidade e a feminilidade

    funo de vrios fatores psicossociais, culturais e polticos de uma sociedade do que

    apenas do sexo biolgico.

    1.2 SEXUALIDADE: NOVAS DISCUSSES:

    O tema referente ao sexo e as diversas forma de se fazer sexualidade, na maioria

    das vezes foi silenciado ou tratado como tabu e vergonhoso, de maneira a ser visto

    como impuro e pecaminoso. As instituies ora manipulam o sexo de todas as formas,

    num momento como pecado, ligado a um ato impuro, no outro como fator poltico de

    controle na sociedade. Assim:

    As sociedades modernas no se caracterizam por terem

    obrigado o sexo a permanecer na sombra, mas por terem se

    obstinado a falar do sexo sempre... enfatizando-o como algo

    secreto29

    .

    Ou seja, o corpo em toda sua dimenso foi controlado, domesticado e submetido

    a padres, disciplina, atravs de esteretipos, mentalidades, vesturios, etc. Assim o

    imaginrio, enquanto campo de significaes produzidas sofre continuadamente

    manipulaes culturais. Segundo os padres sociais e tradicionais, concede a mulher a

    passionalidade na relao, enquanto ao homem uma postura de relao sexual sem

    afeto, somente pelo prazer e na iniciativa e controle da progresso da relao.

    As relaes sociais entre homens e mulheres dentro da conotao sexual, so

    influenciadas diretamente pelas expectativas dos esteretipos, que mudam e se

    transformam historicamente e conjuntamente com as sociedades, criando os papis

    sociais estabelecidos pela identidade de gnero. Assim como a identidade de gnero e

    intrinsecamente ligado a ela, as atividades sexuais ocorrem segundo as particularidades

    do individuo frente s exigncias culturais, normas e padres da sociedade. Segundo a

    autora Werebe, devido interveno dos fatores ideolgicos na sexualidade humana no

    podemos estud-la e caracteriz-la fora de seu contexto scio-cultural:

    Todo indivduo nasce num momento dado da histria, no seio de uma

    cultura distinta. Seus desejos, suas emoes e relaes interpessoais

    29 FOUCAULT, Michel. Histria da sexualidade. Vontade de saber. 3 edio, RJ:Graal.1980

  • 29

    so formados pelas suas interaes com a cultura, dentro da

    sociedade em que vive30

    .

    Desta forma, cada cultura ir determinar quais so as prticas sexuais mais

    apropriadas, morais e saudveis. Segundo essa mesma autora, cada sociedade ir se

    organizar atravs da diviso social e sexual do trabalho, distribuio de empregos,

    regulamentao e legalizao das unies conjugais, as responsabilidades paternas e

    funes domsticas. Fixando assim, os papis sexuais que so definidos e impostos em

    diferentes culturas.

    O conceito de sexualidade difere-se do conceito de sexo. O sexo refere-se

    relao sexual, o ato em si. J a sexualidade muito mais uma questo social que

    individual, sendo regida pelos comportamentos, normas e regras culturais e a orientao

    sexual do indivduo, que diz respeito afetividade, ao amor, ao contato entre as duas

    pessoas, ao prazer, curiosidade, descobertas e atrao. Ou seja a outros sentimentos

    que ampliam a dimenso da sexualidade, levando em conta, o papel e o valor do sexo

    que cada cultura cria. Mary Neide Figueir nos diz:

    O significado do sexo e da sexualidade, consiste em que o primeiro

    est relacionado diretamente ao ato sexual e satisfao da

    necessidade biolgica de obter prazer sexual [...]. A sexualidade, por sua vez, inclui o sexo, a afetividade, o carinho, o prazer, o amor ou

    sentimento mtuo de bem querer, os gestos, a comunicao, o toque e

    a intimidade. Inclui tambm, os valores e as normas morais que cada cultura elabora sobre o comportamento sexual

    31.

    No caso da tradio judaicocrist sobre a sexualidade, enraizada na cultura

    ocidental, h a crena de que a procriao seria a razo bsica para o relacionamento

    sexual, por isso um dos motivos de a Igreja condenar a homossexualidade que esta

    engloba o ato sexual no como procriao, mas por prazer.

    No sculo XVIII, predominava as ideias de Rousseau que tinham como

    fundamento a crena na bondade e a sociedade como a origem do mal. Seu trabalho

    inspirou reformas e polticas educacionais cujo objetivo da educao seria o

    desenvolvimento das potencialidades da criana e o seu afastamento dos males sociais.

    Em seu livro Emlio ou Da Educao, ele associa o sexo dor, ao sofrimento, s

    30 WEREBE, Maria Jos Garcia. Op. Cit. p.15. 31 FIGUEIR, Mary Neide Damico. Op. Cit. p. 2.

  • 30

    perverses e ao enfraquecimento, por isso, os interesses da criana por essa questo

    deveriam ser retardados pela educao.

    Marilena Chau (1987) pontua que durante o sculo XIX, o sexo passou a ser

    investigado e estudado num contexto mdico-cientfico, onde a maior preocupao era

    classificar as patologias fsicas e psquicas, a propagao de doenas venreas, os

    desvios e as anomalias sexuais com objetivos higinicos, como reguladores das

    condutas consideradas anormais. Essa prtica teve a escola como um de seus

    propagadores, principalmente com o surgimento dos internatos, tanto na Europa quanto

    no Brasil, aproveitando-se do discurso da higiene para normatizar o comportamento dos

    jovens. Segundo a autora Werebe, nessas circunstncias, a educao empenhou-se no

    combate a masturbao, alm dos professores evitarem o despertar da curiosidade dos

    alunos, desenvolvendo assim o medo e a repulsa dentro de seu corpo discente em

    relao sexualidade. Portanto, a escola se mostrava como espao da no-sexualidade.

    Nesse sentido, Paulo Rennes Maral Ribeiro, complementa:

    A sexualidade construda como experincia histrica singular que

    sofre mecanismos diversos de represso, cuja historicidade exclui da anlise o desejo e o sujeito do desejo e inclui os valores morais

    puritanos 32

    .

    No sculo XX, com o movimento feminista e a ascenso das mulheres na luta

    pelo voto, encabeando organizaes e movimentos sociais, com questionamentos

    referentes ao aborto, casamento e virgindade, principalmente na dcada de 1960, surge a

    esse contexto a comercializao da plula como agente anticoncepcional, que buscava

    desvincular o sexo da procriao. Maria Luzia Macedo de Arajo, em A construo

    histrica da sexualidade, descreve que a luta pelos direitos da mulher, sua liberdade

    sexual, igualdade de direitos sociais, profissionais e conjugais, levou ao questionamento

    dos valores at ento estabelecidos. As mudanas, porm, no ocorreram na mesma

    poca nas diferentes sociedades e camadas sociais, ao contrrio, ainda hoje observamos

    grandes contrastes.

    No mbito da sexualidade a contracultura teve uma grande importncia como

    representao da emancipao sexual:

    32 RIBEIRO, Paulo Rennes Maral. O Ficar e o Rolo: Provocando debates sobre as atitudes e relaes

    afetivas dos jovens do final do sculo XX e incio do sculo XXI. In: __________. & FIGUEIR, Mary

    Neide Damico & RIBEIRO. Adolescncia em questo: Estudos sobre a sexualidade. So Paulo: Ed.

    Cultura Acadmica. 2006. p. 28.

  • 31

    Embutiam-se na contracultura questionamentos polticos e novos

    estilos de vida entre os jovens, alm das drogas, da aceitao do amor

    livre, aborto, homossexualidade e nudez em pblico. Particularmente, no entanto, o movimento hippie propunha a paz e o retorno

    natureza e teve como marco o concerto de Woodstock, em 1969. O

    movimento para a Libertao Gay assumiu caractersticas polticas, sendo importante para estudos sobre sexualidade, pois foi a primeira

    vez que os homossexuais enfrentaram preconceitos e assumiram uma

    postura poltica 33

    .

    A sexualidade est intrnseca personalidade de todo ser humano. Seu

    desenvolvimento depende da satisfao de necessidades humanas bsicas, como desejo

    do contato, intimidade, expresso emocional, prazer, carinho, amor. Com isso, a

    sexualidade construda atravs da interao entre os indivduos e as estruturas sociais

    e seu total desenvolvimento essencial para o desenvolvimento individual, interpessoal

    e social.

    Por fim, no se pode repensar a sexualidade sem discutir os papis scio-

    sexuais, perceber as crenas, atitudes e valores, assim estudando o individuo inserido

    em sua dimenso social, o que inclui o aspecto educacional. Ou seja, se a escola institui-

    se como uma agncia de treinamento das crianas e adolescentes com a finalidade de

    responder s demandas socioculturais e tecnolgicas que emergem no pas, agindo na

    maioria das vezes de maneira inconsistente, inoperante e discriminadora. Deixando

    assim de ser um lugar de abertura ao desenvolvimento individual, afetivo e emocional e

    de auto realizao para o indivduo.

    Entendemos que h vrios tipos de escolas, sejam particulares, como pblicas

    de periferias ou de zonas centrais, religiosas, laicas e por assim adiante, possuindo

    populaes heterogneas do ponto de vista das multiplicidades sociais que as habitam.

    Como nos coloca Isaura Rocha Guimares:

    O Brasil passou a ser um pas de duas escolas, uma,

    bem montada, que se reveste dos padres internacionais na competio educativa, e particular;

    e a outra, desleixada, insuficiente, com padres nfimos

    de qualidade e segurana, que pblica. 34

    .

    Uma de nossas intenes problematizar o espao e a educao escolar, como

    um lugar onde aprendemos as diferentes construes e olhares sobre os corpos e os

    33

    ARAJO, Maria Luiza. A construo histrica da sexualidade. In: RIBEIRO, Marcos (ORG.). O Prazer e o Pensa. So Paulo: Ed. Gente: 1999. p. 32. 34 GUIMARES, Isaura Rocha. Sexualidade e Educao Escolar: Uma discusso terica. In:

    RIBEIRO, Paulo Rennes Maral & FIGUEIR, Mary Neide Damico (Orgs). Op. Cit. p.11.

  • 32

    gneros e tambm como lugar onde existe a possibilidade de rompermos com os

    esteretipos. Como, por exemplo, a ocupar e reconhecer nossos lugares sociais, atravs

    de diferentes e conflitantes formas de conceber e de viver o gnero e a sexualidade,

    homogeneizando a maneira de se conhecer o eu e o outro. Desta forma, a escola

    pode delimitar espaos, apontando aqueles (as) a serem modelos, permitindo tambm,

    que os sujeitos se reconheam ou no nesses moldes e caso no haja esse

    reconhecimento, ela se torna mais do que discriminatria, mas tambm insuficiente (no

    sentindo de abrangncia das diferenas). Porm, cabe ressaltar que pelo prprio carter

    de produo de conhecimento, a escola tambm pode ser pensada como um lugar de

    potencial revolucionrio que carrega em seu interior.

    Dessa forma, nos lembramos de Andr Chervel quando afirma ser inconcebvel

    como no se percebeu durante tanto tempo o poder criativo que a escola detm e

    desempenha, pois ela forma no apenas os indivduos, mas tambm uma cultura que

    pode penetrar, moldar e modificar a cultura da sociedade global.35

    Isso no significa que

    a escola deve ser vista como um imprio dentro do imprio, mas necessrio

    reconhecer a sua autonomia relativa em relao s outras dinmicas que coexistem no

    campo social.36

    Dessa forma, a escola pode ser vista como dotada de uma dinmica

    prpria, possuidora de saberes, hbitos, valores, modos de pensar, estratgias de

    dominao e resistncias, critrios de seleo que fazem parte daquilo que se chama

    cultura escolar.

    Nesse contexto, o professor de Histria pode fazer emergir o plural (a memria e

    projetos de diferenciados sujeitos sociais) ou pode perpetuar uma memria dominante.

    Talvez a reposta mais comum encontrada nos ltimos anos para esse dilema, tanto no

    ensino pblico quanto no privado, seja a concepo do ensino temtico e multicultural,

    como pode ser constatado nos textos dos PCNs, por exemplo. Para Selva Fonseca, essa

    constatao nos remete a repensar pelo menos trs aspectos. Primeiro, no basta

    introduzir novos temas nos currculos multiculturais, se na prtica, nas relaes

    cotidianas se promove a excluso atravs de brincadeiras, jogos ou formas de avaliao.

    Segundo, deve-se reconhecer que o professor no opera no vazio. Existem outros

    espaos educativos atuando nas concepes dos alunos como, por exemplo, a televiso,

    os quadrinhos ou os acontecimentos cotidianos. E terceiro, a perspectiva do ensino

    35CHERVEL, Andr. Histria das disciplinas escolares: reflexo sobre um campo de pesquisa. In: Teoria

    e educao. Vol. 2, 1990, p. 177-229. 36 FORQUIN, 1992; SACRISTN, 1995, Apud FONSECA, 2003

  • 33

    temtico e multicultural deve vir acompanhada de uma mudana na formao dos

    professores: postura crtica e reflexiva, cultivo tolerncia e respeito diversidade e s

    diferenas.

    Podemos dizer igualmente que, atualmente, parte das pesquisas se volta para a

    compreenso da lgica da Histria, nomeadamente no que diz respeito ao pensamento

    dos alunos, em especial nos trabalhos de ingleses e portugueses Peter Lee e Izabel

    Barca. Tais trabalhos assumiram um objetivo central procurando encontrar os vrios

    componentes dessa lgica atravs da produo filosfica da Histria, da Psicologia,

    nomeadamente das teorias construtivistas do conhecimento, focalizando o seu labor

    investigativo no pensamento histrico dos alunos atravs de uma slida fundamentao

    emprica, centrada, sobretudo em ideias chave como as de mudana, desenvolvimento,

    causa, efeito, entre outros.

    Guacira Lopes Louro, por outro lado aponta em seus livros, a ideia da escola

    como um espao das construes das diferenas, ou seja:

    Diferena, distines, desigualdades... A escola entende disso. Na verdade, a escola produz isso. Desde seus incios, a instituio

    escolar exerceu uma ao distintiva. Ela se incumbiu de separar os

    sujeitos tornando aqueles que nela entravam distintos dos outros, os

    que a ela no tinham acesso. Ela dividiu tambm, internamente, os que l estavam, atravs de mltiplos mecanismos de classificao,

    ordenamento, hierarquizao. A escola que nos foi legada pela

    sociedade ocidental moderna comeou por separar adultos de crianas, catlicos de protestantes. Ela tambm se fez diferente para

    os ricos e para os pobres e ela imediatamente separou os meninos das

    meninas. Concebida inicialmente para acolher alguns mas no todos ela foi, lentamente, sendo requisitada por aqueles aos quais

    havia sido negada. Os novos grupos foram trazendo transformaes

    instituio. Ela precisou ser diversa: organizao, currculos, prdios,

    docentes, regulamentos, avaliaes iriam, explcita ou implicitamente, garantir e tambm produzir as diferenas entre

    os sujeitos 37

    .

    Dessa forma, acreditando que a escola seja, ora um lugar onde se aprende

    determinados papis e, ora uma possibilidade de rompimento com os mesmos, caberia a

    pergunta: de que maneira esse ambiente de aprendizado e construes, desenvolve

    determinados perfis de gnero e sexualidade? possvel ver a escola como um espao

    de subverso dessas construes?

    37 LOURO, Guacira Lopes. Op. Cit. 1999 (b). p. 57.

  • 34

    1.3 A SALA DE AULA: ENSINANDO QUEM SOU EU E OS OUTROS:

    Num ambiente onde meninos e meninas convivem diariamente e intimamente,

    eles e elas se movimentam, circulam e se agrupam de maneiras distintas. Com isso,

    gestos, movimentos e sentidos so produzidos no espao escolar e incorporados,

    tornando-se parte de seus corpos. o que Louro, chama de corpo escolarizado, ali

    eles aprenderam a olhar e se olhar, ouvir, calar e falar, podendo como sujeitos reagirem,

    responderem, recusarem ou assumirem esses modelos inteiramente. Assim, a autora

    pontua que atravs do aprendizado de papis, cada um (a) deveria reconhecer o que

    considerado adequado e inadequado para um homem ou mulher numa determinada

    sociedade:

    Todos os sentidos so treinados, fazendo com que cada um e cada uma conhea os sons, os cheiros e os sabores bons e decentes e

    rejeitem os indecentes; aprenda o que, a quem e como tocar (ou, na

    maior das vezes, no tocar); fazendo com que tenha algumas

    habilidades e no outras... E todas essas lies so atravessadas pelas diferenas, elas confirmam e tambm produzem diferenas.

    Evidentemente, os sujeitos no so passivos receptores de imposies

    externas. Ativamente eles se envolvem e so envolvidos nessas aprendizagens

    38.

    Complementando a fala de Louro, Dagmar Meyer, em Gnero educao:

    teoria e poltica, pontua o espao escolar e as prticas pedaggicas se desenvolvendo a

    partir de uma identidade que norma, aceita e legitimada, sendo heterossexual, de

    classe mdia, judaico-crist e branca. Assim o mbito escolar como espao da diferena,

    reduzida as instncias sociais, envolvidas pelo efeito dessa produo, portanto ser a

    diferena que marcar e reduzir o indivduo ou grupo de indivduos a ela.

    Outro ponto que esta autora levanta, a necessidade de compreenso de que

    tanto a normalidade quanto a diferena so social e culturalmente produzidas:

    Um corpo que, ao mesmo tempo que nico e revelador de um eu

    prprio, tambm um corpo partilhado porque semelhante e similar

    a uma infinidade de outros produzidos neste tempo e nesta cultura 39

    .

    Devemos perceber o espao escolar em toda sua dimenso, como um campo

    poltico, desde seu currculo, disciplinas, normas regimentais, suas formas de avaliao,

    tipos de materiais didticos, que acabam por refletir e produzir as desigualdades de

    38 Idem, p. 61. 39 MEYER, Dagmar. In: Louro, Guacira Lopes (Org.). 2003. p. 40.

  • 35

    gnero, de raa e etc., incentivando o preconceito e a discriminao. Por isso, Guacira

    Lopes Louro pontua de maneira incisiva as ideias equivocadas que os educadores

    possuem da educao sexual:

    Muitos pensam que se deixarem de tratar desses problemas a

    sexualidade ficar de fora da escola. indispensvel que

    reconheamos que a escola no apenas produz ou reflete as concepes de gnero e sexualidade, que circulam na sociedade, mas

    que ela prpria produz 40

    .

    Por isso, a principal finalidade da educao sexual no universo escolar, seria

    desconstruir os modelos e padres hegemnicos da sexualidade e de gnero. Assim,

    seria possvel explicitar a hierarquia de poder e de interesses envolvidos na

    intencionalidade de sua construo, para enfim, apresentar outras possibilidades sexuais

    presentes no social, na cultura e na poltica da vida humana, problematizando o modo

    como so significadas e como produzem seus efeitos sobre a existncia das pessoas.

    Todavia, devemos enfatizar que de forma alguma vemos o espao escolar em

    uma perspectiva que pretende ver na escola apenas o lugar de reproduo social, na

    esteira do pensamento de Bordieu e Passeron. Mas sim a partir dos estudos de

    Dominique Julia que convida os historiadores da educao a se interrogarem sobre as

    prticas cotidianas, sobre o funcionamento interno da escola. A metfora aeronutica da

    caixa-preta adquiria valor de argumentao. Recusando estudos essencialmente

    externalistas, como a histria das ideias pedaggicas, das instituies educativas e das

    populaes escolares, que tomavam como fontes privilegiadas os textos legais,

    propunha uma histria das disciplinas escolares, constituda a partir de uma ampliao

    das fontes tradicionais 41

    .

    Tal perspectiva visava que a defesa aos estudos histricos na educao no se

    fazia acompanhar por um desdm s anlises macropolticas. Pretendia, ao contrrio, a

    aproximao entre estas e os estudos voltados para o interior das instituies de ensino.

    A decisiva questo das fontes emergia como problema, ao qual Julia contornava

    sugerindo a capacidade do historiador em fazer flecha com qualquer graveto e

    lembrando o inusitado das surpresas dos arquivos, reveladas apenas queles que se

    40 LOURO, Guacira Lopes. Op. Cit. 1999 (b). p. 80-81. 41 MENDES DE FARIA Fo., Luciano; GONAVES, Irlem; VIDAL, Diana G. e PAULILO, Andr L. A

    cultura escolar como categoria de anlise e como campo de investigao na histria da educao

    brasileira. In: Educao e Pesquisa, So Paulo, v.30, n.1, p. 139-159, jan./abr. 2004.

  • 36

    deixavam sensibilizar por novos objetos, a despeito de reconhecer as dificuldades

    inerentes a uma investigao sobre as prticas culturais, uma vez que elas no

    costumam deixar traos. Alertava, por fim, para a necessidade de se recontextualizarem

    as fontes, suspeitando que a grande inrcia que percebemos em nvel global pode

    estar acompanhada de mudanas muito pequenas que insensivelmente transformam o

    interior do sistema42

    . Externava, assim, sua crena nas inovaes pedaggicas,

    esposando uma concepo de cultura escolar como inventiva.

    Desta forma, podemos pensar que no desenvolver do curso de Histria, no

    ensino fundamental e mdio, as discusses podem transcender para um terreno poltico

    sobre o multiculturalismo, como as mulheres, homossexuais e os negros; enfim aqueles

    que so subordinados na sociedade e que fogem do currculo escolar da cultura branca,

    europia e heterossexual. Tomaz Tadeu da Silva, diz que os currculos escolares de

    todos os nveis de ensino deveriam incluir uma amostra que fosse mais representativa

    das contribuies das diversas culturas subordinadas (mulheres, negros/negras, homens

    e mulheres homossexuais gays e lsbicas), numa perspectiva crtica do que

    tolerncia e convivncia entre as diferentes culturas:

    Apesar de seu impulso aparentemente generoso, a idia de tolerncia,

    por exemplo, implica tambm uma certa superioridade por parte de

    quem mostra tolerncia. [...] A noo de respeito implica um certo essencialismo cultural, pelo qual as diferenas culturais so vistas

    como fixas, como j definitivamente estabelecido ,restando apenas

    respeit-las 43

    .

    Maria de Ftima da Cunha 44

    e Tadeu da Silva consideram que os currculos

    no so como ideias e abstraes que passam de mente em mente, mas tambm como

    experincias ou prticas, que podemos refletir e pensa-los como um campo de

    possibilidades, de contestao e de construo divergente.

    Devemos ainda enfatizar que as renovaes, na perspectiva de ensino e

    aprendizagem em Histria, acompanharam as tendncias historiogrficas. Como, por

    exemplo, a Nova Histria preocupada com questes culturais e dialogando com outras

    42 Julia, 2001, p. 15, apud MENDES e outros, 2004; 43 SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade Uma introduo s teorias do currculo. Belo

    Horizonte: Ed. Autentica. 2001, p.88. 44 CUNHA, Maria de Ftima da. Gnero e Sexualidade nos PCNs In: Fronteiras, vol. 15, Florianpolis:

    2007, p. 76-86.

  • 37

    reas das cincias humanas como a antropologia, a sociologia e flertando com uma

    hermenutica que fizesse sentido ao analisar o homem e suas prticas culturais.

    A perspectiva a qual o ensino de histria se direciona aponta para ideia de que

    devemos considerar a historicidade do homem na construo da Histria. Assim com a

    superao da ideia de uma histria pronta e acabada, dos grandes feitos e heris, surgem

    a histria das minorias, das incertezas, da multiplicidade cultural. Essa nova concepo

    conduz formao de cidados crticos, reflexivos e no apenas seres passivos e

    contemplativos da realidade em que vivem.

    Nas propostas atuais de ensino, esto definidos os pressupostos tericos,

    metodolgicos e polticos de uma prtica de ensinar e aprender histria que busca

    instrumentalizar os alunos para anlise da realidade. Isso ocorre na medida em que se

    prope a valorizao das experincias individuais e coletivas dos alunos e a

    compreenso de suas relaes scio-histricas como ponto de partida da formao da

    conscincia histrica.

    Assim, a prtica escolar no se limita somente ao ambiente em que ela opera,

    mas tambm no cotidiano familiar, nas experincias humanas e nas intenes que se

    mesclam e acabam por projetar uma representao de uma poca histrica e inserindo-

    se na prpria determinao do sentido do mundo. Esse agir intencionalmente segundo

    Jrn Rsen, cria smbolos, representaes que superam o limite da prpria vida

    podendo assim perpetuar memrias.45

    Portanto, a formao de uma identidade nacional unvoca, atualmente d lugar s

    mltiplas identidades, locais, regionais, globais. So muitas as referncias que do

    sentido vida dos indivduos, conscincia de mltiplos pertencimentos, de etnia,

    religio, classes sociais, entre outras. E tudo isto divulgado pelos meios de comunicao

    e informao. Segundo Vera Maria Candeau:

    A arena cultural, quer nos pases capitalistas centrais, quer nos pases

    perifricos, exige que se repense a questo das identidades culturais,

    considerando-se a multiculturalidade das sociedades contemporneas, marcadas pelo enfraquecimento de antigas referncias culturais, pela

    influncia de uma cultura globalizada e pela multiplicao de

    afirmaes identitrias.46

    45 RSEN, J. Conscientizao histrica frente ps-modernidade: a histria na era da nova

    transparncia. In: Histria, questes e debates. Curitiba, Departamento de Histria, UFPR, Ano 12, n.

    20-21, 1997. 46CANDAU, V. M. (Org.). Multiculturalismo e educao: questes, tendncias e perspectivas em

    sociedade, educao e cultura (s): questes e propostas. Petrpolis, RJ: Vozes, 2002, p.17.

  • 38

    Neste sentido, a questo do multiculturalismo, da diferena nos essencial. a

    expresso de que, querendo ou no, vivemos em mundo permeado por diferentes

    culturas. No entanto, a diferena, sem a necessria articulao com a igualdade, pode

    levar o indivduo a se fechar em grupos e a tender a certos preconceitos e

    discriminaes ou fundamentalismos.

    As mltiplas culturas nos permitem pensar em como os diferentes grupos

    constituem sua prtica significativa e estabelecem relaes sociais. Segundo Tomaz

    Tadeu da Silva:

    Produzimos significados, procuramos obter efeitos de sentido, no

    interior de grupos sociais, em relao com outros indivduos e com

    outros grupos sociais. Por meio de significao construmos nossa posio de sujeito e nossa posio social, a identidade cultural e

    social de nosso grupo, e procuramos constituir posies e as

    identidades de outros indivduos e de outros grupos.47

    Nesta perspectiva, a ideia de diferena nos serve tambm para nos tornarmos

    sujeitos sensveis s diferenas, diante de situaes de grupos desfavorecidos e

    excludos. As reivindicaes desta multiculturalidade se fazem a partir de uma melhor

    integrao destas minorias as mesmas condies e direitos usufrudos pela maioria de

    determinada sociedade, e no para se distanciar dela. Segundo Marcelo Gustavo

    Andrade de Souza:

    Os multiculturalistas defendem que, como o universalismo, a

    igualdade um equvoco, pois a igualdade pretendida - ou pelo menos at ento defendida - pelos monoculturalistas no engloba o

    conjunto de todos os cidados, por que excluem inmeros indivduos,

    grupos e identidades, do acesso a todos os bens e direitos. 48

    Ainda segundo Souza a respeito dos pressupostos igualitrios:

    A igualdade um valor ilusrio e abstrato, pois no se aplica aos

    indivduos reais, mas a um cidado ideal, ou melhor, idealizado a

    partir de um grupo particular, que no corresponde a todos, mas sim a alguns. Por mais contraditrio que parea, o multiculturalismo

    defende que no h nada mais universal que as diferenas humanas,

    se h algo que caracteriza a todos os seres humanos, este algo o fato de sermos diferentes, o que no justificaria em hiptese alguma a

    desigualdade.49

    47 TOMAZ, Tadeu da Silva. Op. Cit. 2001, p.21. 48 SOUZA, Marcelo Gustavo Andrade de. Tolerar pouco?: por uma filosofia da educao a partir do

    conceito de tolerncia. 2002, p.159. (Tese de Doutorado para a PUC-RJ) 49 SOUZA, Marcelo Gustavo Andrade de. Op. Cit. 2002, p.160.

  • 39

    Estas questes problematizadas por Souza nos levam percepo de que os

    novos pressupostos para o ensino de histria possuem a funo de formar

    historicamente o indivduo para uma sociedade plural, pautada na complexidade das

    relaes sociais e econmicas. As relaes pertinentes disciplina nos impem uma

    preocupao com especificidades de outras formas de existncia que foge a simples

    dicotomia entre bom e mau, certo e errado percebendo as contradies, tenses e

    conflitos no qual a identidade ou as identidades so forjadas.

    Dessa forma, o ensino de histria no Brasil e as polticas educacionais para

    disciplina tm ampliado de forma complexa seus objetivos na atuao da vida prtica do

    indivduo. Igualmente, tm buscado em seu mago educar alunos para apreender os

    sentidos de cidadania e pluralidade ou:

    (...) Compreender a cidadania como participao social e poltica, assim como o exerccio de direitos e deveres polticos , civis e

    sociais, adotando no dia a dia, atitudes de solidariedade, cooperao e

    repdio as injustias, respeitando o outro e exigindo para si respeito; conhecer e valorizar a pluralidade do patrimnio sociocultural

    brasileiro, bem como aspectos socioculturais de outros povos e

    naes, posicionando-se contra qualquer discriminao baseada em

    diferenas culturais e pr-conceitos.50

    Ou seja, devemos proporcionar a reflexo de que a histria que serve a uma

    homogeneizao s permite que os indivduos permaneam fechados em suas prprias

    concepes. Os conceitos de diversidade cultural ao invs de identidade nacional

    tm sido cada vez mais visualizados nos contedos de histria. Estes buscam a reflexo

    e a compreenso dos processos humanos de criao da cultura e diferentes culturas nos

    tempos e espaos.

    Dessa forma, ainda devemos lembrar o que indica Tomaz Tadeu da Silva, o

    currculo aquilo que ns (estudantes, professores) fazemos, mas tambm aquilo que

    as coisas fazem a ns. Os currculos teriam efeitos, nos produziriam tambm,

    demonstrando, dessa forma, os vnculos com as relaes de poder existentes na

    sociedade. A partir dessas consideraes, pensamos ser possvel analisar quais ideias a

    respeito de gnero os PCNs procuram veicular.

    Todavia, ainda para Cunha, seria interessante enfatizar, primeiramente, que j h

    algum tempo a questo da sexualidade e de gnero na educao, no sistema escolar e

    50 CAIMI, Flvia Elosa. Histria escolar e memria coletiva: como se ensina? Como se aprende?. In:

    ROCHA, Helenice e outros (orgs.). A Escrita da Histria Escolar- memria e historiografia. RJ, Ed.

    FGV: 2009. p.166.

  • 40

    mais especificamente na escola, desperta a ateno dos pesquisadores. Segundo Moema

    Toscano, os primeiros estudos voltados para essas discusses datam do final dos anos

    1970 e incio dos anos 1980. Para a autora, o alvo principal dessa reflexo era a

    denncia quanto a prticas abertamente sexistas nas escolas, com a tolerncia, quando

    no com a cumplicidade de pais e professores. Ainda para Toscano: (...) Estes, em

    geral, no se apercebiam do peso de seu papel na reproduo dos padres tradicionais,

    conservadores, que persistiam na educao, apesar de seu aparente compromisso com

    a democracia e a modernidade [...] 51

    .

    Desta forma, segundo Cunha, percebe-se ento que a temtica dessas questes,

    tratada pelos PCNs, vm na esteira de estratgias e de discusses de dcadas anteriores.

    No volume 10 dos Temas Transversais dos PCNs, intitulado Pluralidade Cultural e

    Orientao Sexual, argumenta-se sobre a urgncia da incluso do tema da sexualidade

    nos currculos, em decorrncia, principalmente, do aumento da gravidez indesejada de

    adolescentes, bem como do risco sempre presente da contaminao pelo vrus da AIDS.

    Fica claro nesse volume dos Temas Transversais que 52

    :

    A retomada contempornea dessa questo deu-se juntamente com os

    movimentos sociais que se propunham, com a abertura poltica, a repensar sobre o papel da escola e dos contedos por ela trabalhados.

    Mesmo assim no foram muitas iniciativas tanto na rede pblica

    como na rede privada de ensino 53

    .

    De acordo com os PCNs, em especial aps a dcada de 1980, esses problemas

    se agravaram acentuadamente. A princpio, haveria um certo receio quanto aceitao

    da insero desses temas na escola, mas uma pesquisa realizada, em 1993, pelo Instituto

    Data-Folha em dez capitais constatou que 86% das pessoas ouvidas eram favorveis

    incluso da orientao sexual nos currculos escolares.

    Ainda para Cunha, apesar de reconhecer que seria na famlia que a criana

    recebe a maior parte da educao sobre a sexualidade, para os PCNs, a escola tambm

    teria papel importante nesta orientao. At porque, segundo os mesmos, o espao

    escolar seria invadido por informaes provenientes principalmente da mdia, em

    especial da TV, e haveria ainda a clara presena da sexualidade dos adultos na escola:

    51 TOSCANO, Moema. Esteretipos Sexuais na Educao um manual para o educador. Petrpolis:

    Vozes: 2000. p. 21. 52 PARMETROS CURRICULARES NACIONAIS. Temas Transversais. Pluralidade cultural:

    orientao sexual/Secretaria da Educao. Ensino Fundamental. 2. Ed. RJ, DP&A: 2000, p.111. 53 CUNHA, Maria de Ftima da. Op. Cit. 2007.

  • 41

    Pode-se notar, por exemplo, a grande inquietao e curiosidade que a gravidez de uma

    professora desperta nos alunos. Segundo a autora, caberia perguntarmos ento o por

    qu dessa curiosidade? Estaria ligada ao fato das professoras ocuparem uma posio

    intocada, distante, para os alunos? Para os mesmos, professoras no fariam sexo? E

    mais, os alunos j no teriam visto outras mulheres grvidas fora do espao escolar?

    Cunha demonstra que ao longo das pginas discute-se muito a necessidade da

    orientao sexual e da preveno de doenas transmissveis, em especial da AIDS,

    pensando-se no bem-estar das crianas e dos jovens e da vivncia de sua sexualidade

    atual e futura. Enfatiza-se que a sexualidade tem importncia psquica, pois se

    relaciona com a busca do prazer, que seria fundamental para os seres humanos. Assim,

    cada sociedade cria um conjunto de regras que ditam o comportamento sexual dos

    indivduos. Entretanto, apesar da explcita preocupao com o que se denomina de

    dimenso do prazer, esta parece ficar deslocada frente ao intenso medo em relao

    AIDS. Em algumas pginas as palavras AIDS/HIV aparecem citadas at quatro vezes54

    .

    Fica evidente a preocupao em se alertar para o perigo da doena, mas como pensar

    ento a dimenso do prazer que pode matar?

    primeira vista, uma das propostas apresentada pelos PCNs consiste em

    discutir tabus, preconceitos e atitudes existentes na sociedade de forma, seno

    totalmente isenta, mas de modo distanciado. Este distanciamento exigido

    principalmente por parte dos professores, levando os alunos a tirarem as prprias

    concluses. Um dos exemplos dados sobre temas tabus a virgindade.

    Todavia, h que se ressaltar que, segundo os Temas Transversais tal

    posicionamento por parte do educador, diante dessas questes demandaria um

    conhecimento terico, ou pelo menos leituras sobre a temtica da sexualidade que

    levasse a uma reflexo sobre valores e preconceitos dos prprios educadores:

    O professor deve ento entrar em contato com questes tericas,

    leituras e discusses sobre as temticas especficas de sexualidade e

    suas diferentes abordagens; preparar-se para a interveno prtica

    junto dos alunos e ter acesso a um espao grupal de superviso dessa prtica, o qual deve ocorrer