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Centro de Estudos Anglicanos CENTRO DE ESTUDOS ANGLICANOS COMPARTILHAR 74 OS CAMINHOS RUMO À UNIDADE CRISTÃ NO BRASIL Pe. Elias Wolff Introdução A expressão da fé cristã no Brasil acontece num contexto de pluralismo eclesial, religioso e social que se apresenta como um grande desafio para a missão que as diferentes igrejas têm de proclamarem o Evangelho. Essa realidade é um desafio também para a aspiração ecumênica de congregar todos os cristãos numa comunidade que seja por todos reconhecida como a Igreja de Jesus Cristo. Nesse contexto, o relacionamento entre os cristãos assume formas que se contradizem como, de um lado, o denominacionalismo, o sectarismo, o fechamento e, de outro lado, a busca de aproximação, de diálogo e de cooperação. Desse modo, constitui uma importante tarefa à reflexão teológica verificar em que medida esse comportamento possibilita ou não o surgimento de relações intereclesiais que favoreçam a unidade na fé cristã. Isso exige analisar, no processo histórico do cristianismo no Brasil, os elementos que permitam constatar como as igrejas estabelecem relações entre si, o nível e a relevância dessas relações para a construção de caminhos rumo à unidade cristã. A nossa perspectiva de estudo Os estudos históricos, teológicos e pastorais tanto da Igreja Católica quanto de outras comunhões eclesiais no Brasil apresentam uma profunda carência na apresentação das suas relações ecumênicas. O caráter eminentemente confessional desses estudos tende a desconsiderar, na maioria das vezes, a sua dimensão ecumênica, e quando a temática aparece é, normalmente, apenas um item entre outros, quase como um fenômeno estranho no contexto histórico, teológico e pastoral das igrejas. Isso tem influências na reflexão teológica e mais ainda na eclesiologia das diferentes confissões cristãs, onde se constata a carência da perspectiva ecumênica. No interior do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil - CONIC -, apenas a Igreja Metodista e a Católica Romana foram objeto de estudo sistemático sobre suas Arquivo de Textos – Ecumenismo 1

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CENTRO DE ESTUDOS ANGLICANOS

COMPARTILHAR 74

OS CAMINHOS RUMO À UNIDADE CRISTÃ NO BRASIL

Pe. Elias Wolff

Introdução

A expressão da fé cristã no Brasil acontece num contexto de pluralismo eclesial, religioso e social que se apresenta como um grande desafio para a missão que as diferentes igrejas têm de proclamarem o Evangelho. Essa realidade é um desafio também para a aspiração ecumênica de congregar todos os cristãos numa comunidade que seja por todos reconhecida como a Igreja de Jesus Cristo. Nesse contexto, o relacionamento entre os cristãos assume formas que se contradizem como, de um lado, o denominacionalismo, o sectarismo, o fechamento e, de outro lado, a busca de aproximação, de diálogo e de cooperação. Desse modo, constitui uma importante tarefa à reflexão teológica verificar em que medida esse comportamento possibilita ou não o surgimento de relações intereclesiais que favoreçam a unidade na fé cristã. Isso exige analisar, no processo histórico do cristianismo no Brasil, os elementos que permitam constatar como as igrejas estabelecem relações entre si, o nível e a relevância dessas relações para a construção de caminhos rumo à unidade cristã.

A nossa perspectiva de estudo

Os estudos históricos, teológicos e pastorais tanto da Igreja Católica quanto de outras comunhões eclesiais no Brasil apresentam uma profunda carência na apresentação das suas relações ecumênicas. O caráter eminentemente confessional desses estudos tende a desconsiderar, na maioria das vezes, a sua dimensão ecumênica, e quando a temática aparece é, normalmente, apenas um item entre outros, quase como um fenômeno estranho no contexto histórico, teológico e pastoral das igrejas. Isso tem influências na reflexão teológica e mais ainda na eclesiologia das diferentes confissões cristãs, onde se constata a carência da perspectiva ecumênica. No interior do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil - CONIC -, apenas a Igreja Metodista e a Católica Romana foram objeto de estudo sistemático sobre suas

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relações ecumênicas.1 Nenhuma outra apresenta uma análise satisfatória sobre a trajetória histórica, as razões teológicas e os meios do seu empenho ecumênico.

Contudo, praticamente todas as igrejas possuem em seus documentos normativos orientações sobre o ecumenismo. Além disso, existe no Brasil uma experiência de diálogo ecumênico que urge ser refletida teologicamente. Essa experiência é vivida em diferentes modos e organizações, segundo a intensidade da participação de seus agentes, mostrando-se com tendências às vezes paralelas, às vezes divergentes, mas que possibilitam visualizar os elementos que permitem afirmar: a) a existência de uma prática ecumênica dos cristãos no Brasil, constituindo o “movimento ecumênico” no nível nacional; b) a hipótese da existência de uma teologia subjacente à história do diálogo ecumênico, que não está ainda suficientemente explicitada e articulada; c) a urgência de respostas relevantes aos desafios que o ecumenismo apresenta para a compreensão e vivência da fé cristã no Brasil.

Tal fato exige verificar em que medida ele favorece ou dificulta o surgimento de relações em vista da unidade na fé, os caminhos e horizontes da unidade almejada. Assim, pode-se buscar superar algumas das limitações (numérica e interpretativa) dos estudos existentes até o momento sobre o diálogo ecumênico local, articulando sistematicamente os esforços ecumênicos realizados no Brasil.2 Priorizam-se aqui as relações entre as confissões cristãs, entidades ecumênicas e cristãs que mais diretamente se encontram relacionadas ao CONIC. A análise acontece em três horizontes: histórico, teológico e pastoral.

1 - O horizonte histórico da unidade cristã no Brasil

1 H.B. Rodrigues, No mesmo barco, São Paulo, 1986; J. Hortal, E haverá um só rebanho, São Paulo, 1989; E. Wolff, O Ecumenismo no Brasil - Uma introdução ao pensamento ecumênico da CNBB, São Paulo, 2000.2 Entre os estudos mais expressivos do diálogo ecumênico no Brasil, nem todos ainda publicados, destacam-se: E.W. Seibert, Busca da unidade na confissão de fé – Um estudo comparativo entre o Credo Niceno-Constantinopolitano e declarações de fé cristã recentes no Brasil, Dissertação de Pós-Graduação em Ciências da Religião, na Universidade Metodista - SP, 1995; G. Tiel, O Ecumenismo na perspectiva do Reino de Deus - Uma análise do movimento ecumênico de Base, São Leopoldo, 1998; J. Alves, Macroecumenismo - Gênese e trajetória de uma idéia, Dissertação de Pós-Graduação em Ciências da Religião, na Universidade Metodista - SP, 1999; C.G. Bock, O Ecumenismo eclesiástico em debate - Uma análise a partir da proposta ecumênica do CONIC, São Leopoldo, 1998; E. Abumanssur, A tribo ecumênica - Um estudo do ecumenismo no Brasil nos anos 60 e 70, Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais - PUC/SP, 1991; J. Hortal, E haverá um só rebanho; E. Wolff, O Ecumenismo no Brasil; H.B. Rodrigues, No mesmo barco; J. de Santa Ana, Ecumenismo e libertação, Petrópolis, 1987.

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A compreensão dos caminhos da unidade cristã no Brasil exige uma análise dos seus inícios, seu desenvolvimento, suas diferentes etapas, os fatos e agentes neles implicados. Esse horizonte histórico pode ser subdividido em dois grandes períodos, cada um destes apresentando suas próprias subdivisões: a formação do pluralismo eclesial e a formação do movimento ecumênico.

1.1 - A formação do pluralismo eclesial no Brasil e seus desafios para a unidade cristã.

A história do cristianismo no Brasil é configurada pelo pluralismo eclesial e os conflitos dele resultantes, particularmente entre o catolicismo e o protestantismo. Nesse contexto, o relacionamento intereclesial assume formas que se contradizem. Num primeiro momento, prevalece o caráter polêmico e conflitivo e, posteriormente, a busca de aproximação, de diálogo e de cooperação. No contexto da polêmica situam-se implicações de três principais naturezas:

a) Jurídica, pelo fato de a Igreja Católica Romana ter sido, por muito tempo, a igreja oficial do Estado. Quando as denominações protestantes e os anglicanos chegaram no Brasil, não encontraram nenhuma tolerância para suas manifestações de fé, e a igreja oficial considerava os acatólicos como hereges, perigosos, maus, pagãos.3 Por outro lado, o protestantismo, sobretudo de caráter missionário, entendia que o Brasil precisava ser evangelizado através da eliminação das “superstições católicas”, consideradas a causa do atraso material e moral do povo.4 Nesse contexto, as implicações jurídicas assumiram três modalidades:

1) de proibição do pluralismo eclesial (1500-1800), uma vez que a rigorosa disciplina religiosa do Brasil Colônia atingia a ordem civil e religiosa. A Igreja da Colônia era jurisdicionada à Igreja da Metrópole, de modo que os interesses da Companhia das Índias se ajustavam à disciplina eclesiástica. Durante todo o período do Brasil Colônia os protestantes e anglicanos viviam sua fé procurando evitar confrontos com as autoridades do país, uma vez que o comportamento religioso era também uma questão jurídica.5

2) De tolerância (1800-1890): no período do Brasil Império surgiram novas situações na vida do país que favoreceram a penetração dos cristãos não católicos romanos, sobretudo quando o governo português passou a viver sob a proteção da

3 J.F. Hauck, A Igreja na emancipação, in J.O. Beozzo, ed., História da Igreja do Brasil, Tomo II/2, Paulinas/Vozes 1985, 1284 Tal foi, por exemplo, o objetivo da Sociedade Brasileira de Tratados Evangélicos, criada em 1883, por Eduardo Carlos Pereira (A.G. Mendonça, O celeste porvir – A inserção do protestantismo no Brasil, São Paulo, 1984, 86).5 E. Braga–K.J. Grubb, The Republic of Brazil – A Survey of the Religious Situation, London, 1932.

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Inglaterra. Problemas sociais e políticos6 atingiram diretamente a Igreja Católica Romana, de algum modo abrindo brechas para a penetração das idéias protestantes em setores da população, sobretudo nas classes médias e altas. Além disso, os acordos comerciais entre Portugal e a Inglaterra, como o Tratado de Aliança e Amizade e Comércio e Navegação (1810), criaram tensões no campo religioso, uma vez que a intolerância religiosa seria forte obstáculo à execução do tratado. Desse modo, os acatólicos passaram a gozar de uma liberdade parcial para expressarem suas convicções religiosas, protegidos agora pelo Artigo V da Constituição do Império, de 1824.

3) De legitimação (1890 ...): as restrições religiosas que ainda se mantinham no Brasil Império (ligadas à construção de templos, ao reconhecimento civil de seus casamentos e ao registro de crianças, entre outros) foram aos poucos desaparecendo do código civil brasileiro e os acatólicos começaram a ganhar espaço. Esse processo culminou com a abolição, ao menos legal, de toda restrição religiosa com o fim do padroado no Brasil República, quando o Decreto no 119-A, de 7 de janeiro de 1890, abandonava definitivamente uma religião oficial para a nação.

b) Teológico-doutrinal: o fim das polêmicas no âmbito da lei civil não significou o fim das tensões nas relações intereclesiais, que conservaram suas motivações doutrinais. O axioma salus extra ecclesiam non est,7 aplicado de forma exclusiva à Igreja Católica Romana, é questionado pelo estabelecimento das colônias protestantes no país. Na base da polêmica teológico-doutrinal está a contraposição entre a “Igreja dos sacramentos” versus a “Igreja da Palavra”, base sobre a qual se apóiam outros elementos de confronto, como: o caráter mediador das estruturas eclesiais e dos ministérios como sendo de iure divino, e a tendência ao relativismo dos elementos institucionais na Igreja; o número dos sacramentos, a relação entre Escritura e Tradição; o princípio sola scriptura, sola gratia, sola fide; a compreensão racional da fé, de um lado, e as tendências pietistas, puritanas e fundamentalistas, de outro; o individual e comunitário na vivência da fé.

c) Pastoral: os elementos de caráter histórico e doutrinal influenciam determinantemente nas motivações e estratégias do processo de evangelização nas diferentes igrejas. Inicialmente, essas motivações assumem ares de conquista e defesa do espaço religioso. Os missionários evangélicos buscam estabelecer uma nova ordem religiosa, precisando para isso conquistar o espaço ocupado pela ordem vigente. O catolicismo romano busca defender a legitimidade de seus espaços

6 Como a influência jansenista, a escassez de bispos, a proibição da entrada de noviços nas ordens religiosas, em 1855, entre outros.7 Cipriano, Epistula, 73,21, citado por J. Quasten, Patrologia – I primi due secoli, vol. I, Casale, 1995, 603. O Concílio Vaticano II permite formular, no n. 14 da LG, positivamente essa expressão, afirmando três aspectos da mesma: toda salvação vem de Cristo, através da Igreja; a Igreja é Corpo de Cristo; esta Igreja peregrina é necessária para a salvação.

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sagrados, reforçando suas bases catequéticas, devocionais e estruturais. Na atualidade, as motivações de “conquista” e “defesa” não são explícitas como no período da polêmica. Mas as igrejas nem sempre conseguem demarcar suficientemente as fronteiras entre “evangelização” e “proselitismo”, “conquista” e “defesa”. A falta de cooperação ecumênica na evangelização é sintoma das diferenças existentes na compreensão de evangelização, em seu conteúdo, finalidade e estratégias.

Enquanto o elemento jurídico não mais se constitui na atualidade um

“problema” para as relações intereclesiais, o teológico/doutrinal e o pastoral apresentam-se como os atuais espaços de concentração das questões ecumênicas a serem enfrentadas.8 A esses, somam-se atualmente outros desafios, oriundos agora de outras direções: das religiões não-cristãs, do pentecostalismo, e da sociedade brasileira. Ao menos no interior do CONIC, é possível observar que tais desafios são considerados como “preocupações comuns” às igrejas que o compõe.9

1.2 – A história do empenho eclesial pela unidade cristã

Diante dos conflitos oriundos do pluralismo eclesial faz-se mister compreender como os cristãos no Brasil tomam consciência dessa realidade como expressão da divisão que contradiz o Evangelho da unidade em Cristo Jesus, por todos crido e anunciado. Primeiramente, é possível constatar que a complexidade do pluralismo eclesial, religioso e social não impede de todo a existência de relações intereclesiais, que assumem perspectivas diferentes conforme os agentes e os contextos sócio-eclesiais nelas envolvidos. É, assim, possível apresentar a história do movimento

8 No campo doutrinal, as tensões foram incrementadas com a publicação do documento da Congregação para a Doutrina da Fé, da Igreja Católica Romana, Dominus Iesus, no ano 2000. No campo pastoral, as tensões se intensificam, sobretudo onde se constata a prática do proselitismo.9 O fato de considerar essa realidade como uma preocupação comum embasa-se na grande sintonia que se constata na bibliografia sobre a questão nas diferentes igrejas a título de exemplo: Cnbb, Guia para o diálogo inter-religioso - Relações com as grandes religiões, movimentos religiosos contemporâneos e filosofias de vida - Estudos da CNBB 52, São Paulo, 1987; A Igreja Católica diante do pluralismo religioso no Brasil (I) - Estudos da CNBB 62, São Paulo, 1981; A Igreja e os novos grupos religiosos - Estudos da CNBB 68, São Paulo, 1993; A Igreja Católica diante do pluralismo religioso no Brasil (II) - Estudos da CNBB 71, São Paulo, 1993; A Igreja Católica diante do pluralismo religioso no Brasil (III) - Estudos da CNBB 79, São Paulo, 1994; Ieclb, “A confissão luterana na concorrência religiosa”, Arquivo da IECLB; Missão e proselitismo, in Boletim Informativo - BI 136 (1994), anexo 1; Conic, Seminários sobre “Comunidade cristã, comunidade de cura”, realizado nos dias 23 a 25 de agosto de 1991, in Conic, Notícias, 11 (1991) 4; Inculturação e sincretismo - Conclusões do seminário realizado nos dias 21 de setembro a 1o de outubro de 1993, São Leopoldo, 1995.

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ecumênico no Brasil, em seu dinamismo e perspectivas. A base material para se escrever essa história é composta pelas iniciativas ecumênicas, registradas nos documentos oficiais das confissões, nas entidades afins e na reflexão dos teólogos.10

A necessidade de uma periodização histórica do ecumenismo brasileiro apresenta-se como um dos muitos desafios a serem enfrentados. Ele não pode ser incluído sem mais nas etapas do ecumenismo de todo o continente, pois essa tentativa não logra apresentar satisfatoriamente uma compreensão das suas peculiaridades.11 Buscando novos caminhos para escrever a história do ecumenismo no Brasil, opta-se aqui pelo estabelecimento de períodos constatados a partir dos elementos que caracterizam os diferentes momentos do diálogo ecumênico, constatando a emergência de três grandes fases:

a) o ponto de partida, que se dá pela realização do diálogo exclusivamente no interior do protestantismo de missão e vai desde a criação da primeira entidade ecumênica no Brasil, a Aliança Evangélica Brasileira (1903), até às vésperas do Concílio Vaticano II (1957). A principal característica desse período é a postura anticatólica e denominacionalista do protestantismo missionário, representado, sobretudo, por metodistas e presbiterianos, fazendo com que o diálogo assuma ares de um “pamprotestantismo”.

b) O segundo período, 1957-1982, apresenta novas características devido ao

ingresso no diálogo ecumênico da Igreja Evangélica de Confissão Luterana, da Anglicana e da Católica Romana, quando muitas das iniciativas do protestantismo

10 As tentativas de maior fôlego para apresentar a história das relações ecumênicas no Brasil, até o momento, são: no âmbito protestante, D.A. Reily, História documental do protestantismo no Brasil, ASTE 1984 e G. Tiel, Ecumenismo na perspectiva do Reino, 20-67; no âmbito católico-romano, para a história da cooperação em alguns organismos ecumênicos, J. Hortal, E haverá um só rebanho, 233-245; para a história do empenho ecumênico da CNBB, E. Wolff, O Ecumenismo no Brasil, 39-80.11 Os principais estudos do movimento ecumênico no continente encontram-se em: D.S. Plou, Caminos de unidad – Itinerario del diálogo ecuménico en América Latina (1916-1991), Quito, 1994; J.A. Mackay, Las iglesias latinoamericanas y el movimiento ecuménico, New York, 1963; T.S. Goslin, Los Evangelicos en la América Latina, Buenos Aires, 1956; J. Premazzi, Reflexiones sobre el ecumenismo en America Latina, Genebra, 1982. A nível continental, o metodista J. de Santa Ana divide o movimento ecumênico em três períodos: o período interdenominacional protestante (1913-1929); o surgimento dos movimentos eclesiais: a tomada de consciência latino-americana (1929-1961); a opção pelos setores populares (1961...). (Il movimento ecumenico in America Latina, in SIAL, 16-17 [1994] 41-43). Mesmo que as relações ecumênicas das confissões no Brasil em grande parte recebam influências do movimento continental, existem, contudo, características próprias, cujo processo não se enquadra exatamente nos mesmos períodos propostos por Santa Ana.

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missionário passaram a fazer parte de um projeto de unidade mais amplo.12O ano de 1957 é significativo pela criação do primeiro organismo ecumênico que apresentou preocupações de caráter teológico, o Grupo Ecumênico de Reflexão Teológica - GERT -, composto por luteranos, metodistas, anglicanos e católicos romanos. A partir da década de 60, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB -, criada em 1952, procurou concretizar as orientações dos Padres conciliares sobre ecumenismo, contemplando-as em suas orientações pastorais, sobretudo através das Diretrizes Gerais de Ação Pastoral.13 Nesse período, o movimento ecumênico passou a desenvolver-se de modo mais orgânico, recebendo estruturas/organismos que lhe possibilitam dar passos mais firmes no caminho da unidade.14 A novidade é que agora os líderes eclesiásticos intensificam o diálogo, cuja importância consiste em três principais fatores: o crescimento do conhecimento mútuo e da formação da consciência ecumênica; o diálogo sobre questões pastorais e doutrinais (sobretudo nos 14 encontros dos EDI); a tomada de posições comuns sobre questões sociais. No aspecto teológico-doutrinal, o principal resultado dessa fase foi o acordo sobre o mútuo reconhecimento do Batismo, realizado em 16 de maio de 1978.

c) O terceiro e atual período vai da criação do Conselho Nacional de Igrejas

Cristãs do Brasil - CONIC (1982) -, até os dias de hoje. É o momento de consolidação de iniciativas tomadas nos períodos precedentes, como o incremento das preocupações teológicas, manifestadas pela realização dos seminários, como BEM (Curitiba, 1985), a doutrina da justificação pela fé (Porto Alegre, 1998), a hospitalidade eucarística (Brasília, 1999) e o estreitamento da cooperação, pelo surgimento de novas iniciativas ecumênicas, como a atuação de acatólicos nas pastorais sociais da Igreja Católica e a Campanha da Fraternidade Ecumênica, realizada no período quaresmal do ano 2000. Nesse período, é através do CONIC que acontece o diálogo multilateral sobre temáticas teológicas e pastorais em perspectiva eminentemente nacional, sendo esse organismo a evidência de um grande progresso no ecumenismo brasileiro, permitindo afirmar que atualmente o processo da unidade, mesmo que avance com dificuldades, “é irreversível”.15

12 Para as comunidades não-católicas, esse fato tem origem no movimento ecumênico a nível continental, sobretudo nas Conferências ecumênicas realizadas no Panamá (1916), Montevidéu (1925) e Havana (1929) e na criação do Conselho Mundial de Igrejas – CMI (Amsterdã, 1948) (O.E. Costas, ed., De Panamá a Oaxtepec, Quito, 1982). Para os católicos, foi decisivo o Concílio Vaticano II (1962-1965), pelo qual a Igreja Católica se manifestou mais intensamente sintonizada com o movimento ecumênico (F. Lepargneur, O ecumenismo católico após a terceira sessão, in REB,24 (1964) 976-986; F.B. de Ávila, A encíclica Ecclesiam suam e a consciência católica Brasileira, in Síntese, 23 (1964) 12-25).13 E. Wolff, O Ecumenismo no Brasil, 41-42.14 Situam-se aqui a criação dos organismos ecumênicos, entre outros: Coordenadoria Ecumênica de Serviços - CESE (1973) -, Comissão Nacional Católico-Luterana (1974), Encontros de Dirigentes de Igrejas - EDI (1975

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1.3 – Urgências (inquietações) teológicas na história do diálogo local

Algumas inquietações teológicas que surgem da leitura histórica do diálogo ecumênico no Brasil:

a) O dado do pluralismo eclesial como elemento interpelador da consciência cristã – Isso supõe uma leitura do pluralismo eclesial a partir de dentro, como alguém que se sente, por um lado, afetado por essa realidade e, por outro, ao assumir essa realidade como sua, reconhece que participa da sua configuração. Tal é a base para que cada comunhão eclesial assuma a sua parcela de culpa pela divisão dos cristãos. Essa consciência impede de pôr-se numa condição de juiz exclusivo e externo da realidade, sentindo-se imerso, interpelado e co-responsável pelas dificuldades que ela apresenta para a fé cristã. A partir disso, pode-se criar melhores condições para o relacionamento com o “outro religioso” sem posições exclusivistas, mas, inclusive, reconhecendo nele possíveis elementos de sintonia na formação da identidade cristã e eclesial.

b) As iniciativas de diálogo como serviço ao Evangelho da unidade - A

motivação primeira do diálogo intereclesial é o apelo do Evangelho: “Que todos sejam um”. A partir disso, a complexidade do pluralismo eclesial, manifestado em suas estruturas eclesiásticas e doutrinais, não impossibilita de todo a existência de relações de proximidade entre as confissões, mas, antes, as exige. O Evangelho sustenta e exige o surgimento de iniciativas que se deixem impulsionar pela criatividade da fé. Teologicamente, reconhecer o valor da história do diálogo local é reconhecer a possibilidade de compreender a ação do Espírito agindo pelos sinais que expressam a busca de unidade dos fiéis em Cristo.

c) A necessidade de reescrever a história da Igreja centrada mais em Cristo do que nas estruturas eclesiais - Há que se provocar profundas transformações na perspectiva dos estudos históricos das confissões cristãs existentes no país. Escrever a história do movimento ecumênico não é apenas considerar a história das diferentes confissões numa “perspectiva” ecumênica. Nem é, tampouco, fazer “outra” história, ou um apêndice, ou uma via paralela ao curso histórico percorrido pelas igrejas. Uma história do ecumenismo é possível como uma história ecumênica das confissões, que considere o cristianismo atual como um fato que tem elementos comuns a católicos romanos, protestantes, anglicanos e ortodoxos.16 Trata-se de uma tentativa

15 E. Schimidt, O CONIC e o seu compromisso ecumênico, in Conic, Notícias do CONIC, 18 (1994) 6-7.16 Em termos latino-americanos, essa possibilidade vem sendo desenvolvida. A proposta mais concreta é apresentada por Hans-Jürgen Prien, mostrando a necessidade urgente de uma “historiografia ecumênica” do cristianismo latino americano, com uma metodologia “que não relaciona o povo de Deus como uma única Igreja institucional, mas o vê presente em todas as

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necessária e urgente de considerar a ecumenicidade do ser e agir das igrejas, caracterizado pela centralidade de Cristo e seu Evangelho como elemento comum.

d) A história do diálogo local privilegia mais o horizonte pastoral do que o teológico. Tal fato é compreensível, devido às emergências contextuais da evangelização. Mas há que haver sintonia entre as práticas ecumênicas dos cristãos e os princípios teológicos/doutrinais das igrejas, o que continua sendo um grande desafio no movimento ecumênico.

e) O elemento que mais favorece a integração dos dois horizontes acima acenados não é um pressuposto teológico ou doutrinal, mas uma realidade concreta, teologal e teológica ao mesmo tempo: o mundo dos empobrecidos e excluídos. A opção preferencial pelos pobres expressa a opção por Jesus Cristo e pelo seu Reino, num “movimento centrípeto”17 que transcende os limites eclesiásticos, abrangendo todas as forças nas igrejas e na sociedade que possibilitam a credibilidade do Evangelho pelo testemunho da unidade dos fiéis em Cristo. Nessa perspectiva, a unidade cristã é expressão da vontade sincera das igrejas em viverem o seguimento de Cristo como diakonia. A unidade está em função do Reino. E nele os pobres têm um lugar privilegiado (Mt 5,3; Lc 6,20).18

f) O ecumenismo é uma realidade de data recente no Brasil, e a maioria das

igrejas e dos cristãos confessam a sua “inexperiência” a respeito. Isso explica por que é ainda pouco institucionalizado (com exceções em algumas regiões) e depende, em grande parte, do carisma dos ministros das igrejas. Por isso pode acontecer que numa região de pouca consciência ecumênica se encontre uma experiência extremamente interessante. A atual mudança das igrejas para uma atitude ecumênica (ou, pelo menos, de uma parte de seus ministros) cria certa tensão (de um lado, o povo estranha, pois “antigamente não era assim”; de outro lado, uma parte do povo acha o ecumenismo “coisa natural”). Certo é que, se existe alguma consciência ecumênica, a questão do ecumenismo não é considerada ainda de urgência ou prioridade.

estruturas eclesiais abaixo de sua cabeça: Cristo” (Problemas e Metodologia para uma História da Igreja na América Latina, in E. Dussel, ed., Para uma história da Igreja na América Latina, Petrópolis, 1986, 75). Também Enrique Dussel se conscientiza desse fato, afirmando que “por um lado exige-se uma história do cristianismo, como fenômeno único e unificado, para o que é preciso superar os estreitos limites das igrejas divididas em sua longa história européia; por outro lado, se chama atenção que tal visão é adiantar-se à realidade histórica das igrejas realmente existentes - mesmo em suas visões e a partir de suas próprias tradições - mas com espírito ecumênico (quer dizer, de abertura, respeito, etc.)” (Para uma história da Igreja na América Latina, 140).17 Julio de SantA ana, Ecumenismo e libertação, 264.18 Seminário sobre Ecumenismo para Bispos Presidentes e secretários Executivos das Comissões Episcopais de Ecumenismo da América Latina e Caribe (promovido pelo Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos, no México, de 04 a 06 de agosto de 1998), in Conic, Notícias do CONIC, 24 (1998) 5.

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g) Como já observado, uma história do ecumenismo no Brasil está ainda por

ser escrita. Os elementos aqui apresentados procuram abrir caminhos nessa direção. Isso exige suprir a carência na consciência histórica do diálogo local, resgatando e explicitando os elementos que mostram as iniciativas ecumênicas registradas nos documentos oficiais das confissões, nas entidades afins e na reflexão dos teólogos. Certo, essa história é ainda recente, em proporção ao período da divisão, e limitada, em vista da meta que busca atingir. Fatos como preconceitos, polêmicas e desencontros que estão na raiz da divisão não foram ainda cancelados na memória dos cristãos. Mas a unidade futura depende dos passos, ainda se poucos, realizados até aqui. Retroceder é contradizer o Evangelho da unidade.

2 – O horizonte teológico da unidade cristã no Brasil

Uma vez considerado o horizonte histórico do diálogo local, é necessário verificar, então, qual é o suporte teológico que orienta as iniciativas em busca da unidade cristã. Trata-se de compreender a necessidade e a possibilidade de se elaborar uma reflexão teológica que ampare o diálogo, apresentando propostas para a sua fundamentação teológica. O ponto de partida é a hipótese de que as iniciativas ecumênicas dos cristãos, das diferentes confissões e dos organismos possuem (ou deveriam!) motivações teológicas que as sustentam, e que os elementos de proximidade dessas motivações possibilitam mostrar a sua ecumenicidade. Assim, é preciso explicitar os elementos de fé e os princípios doutrinais subjacentes à história das relações ecumênicas, articulando-as de modo a fundamentarem o diálogo ecumênico local, o que leva a analisar a relação entre ecumenismo e teologia.

A) Dificuldades e possibilidades para uma teologia ecumênica no Brasil

1 – As dificuldades para o fundamento teológico do ecumenismo no Brasil

O pluralismo eclesial significa também um pluralismo doutrinal, concepções diferentes sobre a fé, a Igreja, a unidade. Entre as principais dificuldades que a teologia das diferentes igrejas manifesta para desenvolver a dimensão ecumênica constatam-se:

a) Do lado evangélico

1) A origem histórico-filosófico-teológica diversificada do protestantismo, o que produz uma pluralidade de concepções da fé cristã, de modo que o que se chama de protestantismo brasileiro são, na verdade, “vários protestantismos” que se configuram diferentemente a partir da origem de cada um e das motivações da sua presença no

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Brasil. Daqui as variações entre o protestantismo de “imigração” e o protestantismo “missionário”; entre grupos que apresentam disposição para o diálogo de modo irrestrito, outros de modo restrito e outros ainda totalmente fechados ao diálogo, onde impera ainda o confessionalismo, o tradicionalismo e o fundamentalismo teológico;

2) A instabilidade doutrinal: algumas denominações evangélicas não possuem ainda um corpo doutrinal definido e consistente, o que dificulta uma contribuição própria no diálogo teológico. Talvez esse fato seja devido à flexibilidade excessiva (ou talvez mesmo provisoriedade) das estruturas eclesiais do protestantismo, e, em menor medida, também dos anglicanos, o que pode explicar as tendências à proliferação de doutrinas e de comunidades;

3) a des-contextualização, ainda em nossos dias, de algumas denominações protestantes e suas instituições em relação à sociedade brasileira, o que faz com que a sua orientação teológico-pastoral dificulte a formação de seus fiéis de modo harmonioso e integrado com o ambiente;

4) o pentecostalismo ascendente em algumas denominações protestantes, que dificulta a abertura para o diálogo e retoma posições proselitistas, causando sérias dificuldades tanto nas relações internas ao protestantismo quanto deste com a Igreja Católica Romana.

b) Do lado católico romano

As maiores dificuldades parecem ser:

1) o fato de que por muito tempo, sendo o catolicismo romano oficial no Estado brasileiro, não se poderia imaginar a possibilidade de explicitação de elementos da fé cristã além dos critérios epistemológicos da sua teologia;

2) criou-se, assim, um prolongado período de contendas e polêmicas entre padres e pastores que plantou raízes profundas no imaginário coletivo católico romano, o que contribuiu para dificultar o surgimento de uma cultura ecumênica, dando ‘a impressão de que dialogar com quem se separou da Igreja Católica é ser conivente com a separação”;

3) a tensão existente entre a reflexão teológica, os documentos magisteriais e a prática ecumênica de alguns fiéis católicos, que por vezes causam dificuldades para a explicitação do real significado de ecumenismo na Igreja Católica Romana;

4) a superioridade numérica de teólogos e faculdades de teologia católicas parece produzir certa desconsideração do grupo minoritário de teólogos das outras comunhões eclesiais;

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5) mesmo depois que a Igreja Católica Romana se integrou no movimento ecumênico, a sua ecumenicidade foi dificultada por dois principais elementos: a) o diálogo teológico foi por muito tempo compreendido como algo que se realiza apenas entre os dirigentes eclesiásticos, com preocupações eminentemente teórico-doutrinais, enquanto a teologia emergente no país assume perspectiva mais pastoral; b) conseqüentemente, incentiva-se mais o “ecumenismo de base”, ou “ecumenismo prático”, acreditando poder superar as divergências doutrinais pela cooperação no testemunho da fé em situações sociais concretas na vida dos cristãos.

Em síntese, a dificuldade da reflexão ecumênica no Brasil assume três principais características: de rejeição ao argumento, que pode até existir, mas na medida em que o interlocutor se disponha a abandonar seus princípios; de indiferença, não há por que se preocupar com o diálogo doutrinal no nível local, pois ele já está acontecendo em outros ambientes (Europa, EUA) e os resultados obtidos até o momento não são muito animadores; de reducionismo, o que importa é incentivar a cooperação em iniciativas práticas, com tendências ao indiferentismo ou até mesmo relativismo doutrinal.

2 – As possibilidades da reflexão ecumênica no Brasil

Diante das dificuldades acima constatadas surge a pergunta sobre a possibilidade de superação do “vazio ecumênico” no pensamento teológico das diferentes confissões cristãs. Quatro são os principais caminhos a serem percorridos a partir do que foi visto no horizonte histórico do diálogo local: a) o resgate dos elementos que configuram a história do diálogo local; b) a explicitação do que as igrejas propõem em seus documentos normativos sobre o ecumenismo;[2] c) a reflexão dos teólogos;[3] d) o incentivo à criação de espaços para a reflexão ecumênica, como institutos teológicos que demonstram considerável abertura para tanto; entidades que são criadas com essa finalidade específica; as Comissões Nacionais Bilaterais; o CONIC, sobretudo através da Comissão Teológica e dos seminários. Mesmo se tais iniciativas possam parecer tímidas em relação à meta e não permitam afirmar a existência de uma “teologia ecumênica no Brasil”, elas encorajam o teólogo à reflexão.

Esses elementos vinculam-se com os esforços para a recepção do Concílio Vaticano II e das Conferências Gerais do Episcopado católico-romano na América Latina, o movimento ecumênico internacional, a proximidade entre os teólogos das diferentes igrejas numa temática e numa metodologia da reflexão que privilegia a relação fé-ação, igrejas-sociedade, a hermenêutica histórica e bíblica do saber teológico. Esses fatores, devidamente explorados e articulados, podem possibilitar a abertura de caminhos para a superação das dificuldades acima observadas para uma teologia ecumênica no Brasil. A base fundamental é a hipótese de que as iniciativas

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ecumênicas das igrejas, dos cristãos e dos organismos ecumênicos possuem motivações de fé que as sustentam, o que implica na reflexão teológica. Sem razões teológicas consistentes, as iniciativas históricas do diálogo não se sustentam.

3 - Uma proposta metodológica para a reflexão ecumênica no Brasil É preciso considerar de modo adequado os espaços de ecumenicidade na reflexão da fé acima constatados, permitindo que a reflexão aconteça de modo contextualizado e oferecendo, assim, um aparato teórico às igrejas que participam da mesa do diálogo. A ecumenicidade na reflexão da fé se dá nos vários elementos que fazem do actus theologicus uma tarefa que não é dever de uma só comunhão eclesial. É claro que não existe ainda no país um consenso sobre uma metodologia de reflexão ecumênica, até mesmo pela atematização desta. Mas pode-se verificar uma notável sintonia em alguns elementos constitutivos do pensar ecumênico nas igrejas e nos organismos ecumênicos:

a) Princípios metodológicos – A fé, as Escrituras, a identidade eclesial, a capacidade de diálogo com o diferente, a contextualização.

b) Momentos e modelos metodológicos – É possível distinguir três principais momentos na elaboração da reflexão ecumênica no Brasil: a convivência dos cristãos, a cooperação ecumênica intereclesiástica, o diálogo teológico-doutrinal. Esses momentos constituem o “ecumenismo popular”, e o “ecumenismo institucional”.[4] A reflexão teológica situa-se na intermediação entre essas dimensões, criando modelos metodológicos de diálogo: 1) controvérsia apologética – presente, sobretudo, no período da implantação no Brasil das comunhões eclesiais evangélicas e dos anglicanos; 2) o método comparativo, baseado, sobretudo, na comparação das diferentes doutrinas, mas sem maiores aprofundamentos. Esse método foi utilizado, sobretudo, pelo GERT; 3) o método contextual-relacional, que busca compreender o processo da unidade inserido no meio social em que vivem os cristãos.

c) Hermenêutica da comunhão – Os princípios metodológicos se articulam no último momento da elaboração da reflexão, favorecendo a proximidade entre as tradições teológicas das igrejas para dialogar sobre as divergências considerando os fundamentos comuns da fé, sobretudo no horizonte bíblico, cristológico e trinitário. As tradições particulares assumem um sentido universal quando integradas nesses horizontes. Tal hermenêutica deve ser: bíblica, eclesiológica, visar a comunhão mais no conteúdo da fé do que na linguagem, respeitar a existência de uma hierarquia das verdades na fé cristã (UR 11). A conseqüência é a inter-relação entre confessionalidade e interconfessionalidade da teologia, de modo que a particularidade da expressão da fé numa determinada tradição confessional não elimina o caráter de transcendência ao ambiente original da reflexão, pois pertence à sua estrutura ser ao mesmo tempo particular e universal. Esse fato possibilita o encontro entre as

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diferentes racionalidades da fé, garantindo, assim, o caráter ecumênico do ato teológico.

d) Horizontes temáticos – Do que foi considerado na apresentação histórica do diálogo local, constata-se que a ecumenicidade do saber teológico no Brasil aponta para alguns principais horizontes ou temas, dentre os quais destacam-se: ecumenismo e Bíblia, ecumenismo e história, ecumenismo e cultura, ecumenismo e missão, ecumenismo e ação social. Tais horizontes se configuram numa contínua oscilação entre o dado pastoral-popular e o teológico-doutrinal, ambos marcando, não sem tensão, todos os passos metodológicos da reflexão e do agir ecumênicos.

e) A compreensão teológica da unidade - A partir de então, surge uma compreensão da unidade cristã entendida como koinonia, teologicamente fundamentada como “união com Deus em Jesus Cristo por meio do Espírito Santo”. Tal koinonia deve, porém, ser expressa por estruturas que possibilitem a todos os cristãos a visibilidade da comunhão na fé, nos sacramentos e com os pastores. Tal é o maior desafio (eclesiológico) do diálogo ecumênico e é a base para o testemunho comum do kerygma, na diakonia e na martyria.

Importante ainda é observar o fato de que a reflexão teológica sobre o ecumenismo no Brasil se dá em estreita sintonia com todo o continente latino-americano, no nível social e eclesial. Tal aspecto diz respeito à teologia produzida na América Latina, particularmente aquela que se desenvolve na perspectiva da “libertação”. É que existem evidências históricas que sintonizam o pensamento ecumênico brasileiro com essa teologia. E isso não é mero acaso, de modo que é necessário explicitar as intuições ecumênicas presentes na reflexão dos teólogos “da libertação” das diversas comunhões eclesiais no Brasil. Mas uma ressalva deve ser feita: mesmo se a teologia ecumênica tem “aproximações” com a teologia da libertação, não é a “mesma coisa”, apresentando, pois, peculiaridades metodológicas que as distinguem, se considerado que o horizonte da unidade é mais amplo que o da libertação, pelo fato de que a libertação não é um fim em si mesma, mas deve possibilitar a unidade do povo de Deus.

Assim, é preciso incrementar no movimento ecumênico brasileiro a convicção de que um ecumenismo consciente e convincente exige convicções teológicas concretas, bem como o desenvolvimento de uma metodologia adequada à reflexão ecumênica da fé cristã. Urge despertar a consciência para o ecumenismo como uma realidade que diz respeito à fé dos cristãos e que, por isso, exige uma orientação de natureza essencialmente teológica. E a teologia ecumênica existe para que essa consciência seja, o mais possível, compartilhada por todos os que buscam a unidade,

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iluminando o diálogo doutrinal pelo conhecimento das idéias e dos fatos relacionados com aqueles que querem dialogar.

Isso significa afirmar que o ecumenismo não é uma simples “estratégia” ou um simples “instrumento” para a compreensão das verdades cristãs. É, antes, de per si, uma realidade teologal, enquanto impulso à busca da verdade que garante a unidade do povo de Deus, movido pela força do Espírito “que conduzirá à verdade plena” (Jo 16,13). Isso é um desafio para a teologia produzida pelas igrejas no Brasil. Estas precisam incentivar seus teólogos à reflexão que se deixa mover pela ação do Espírito que constrói possibilidades para “conhecer a mente dos irmãos separados” (UR 9). Enquanto inteligibilidade das verdades cristãs, a teologia precisa abrir-se à aspiração ecumênica, percorrendo as vias da confissão de Jesus Cristo como Deus e Salvador e da vocação das comunidades cristãs a darem glória à Trindade, princípio-modelo da comunhão aspirada (UR 2). O significado teológico do ecumenismo está no fato de ele referir-se ao desígnio salvífico de Deus Pai, que se realiza pela adesão de todos à mensagem do seu Filho e à conseqüente incorporação no seu Corpo, a sua Igreja una e única, numa verdadeira comunhão conservada e fortalecida pela ação do Espírito Santo

B) Os elementos constitutivos da unidade cristã

O que foi anteriormente considerado orienta na busca dos elementos que, concretamente, favorecem a reconstituição da unidade eclesial. Tais elementos devem, de algum modo, estar presentes - ainda que implicitamente - na história do diálogo local e nos seus fundamentos teológicos. Se essa presença for constatada é, então, possível um progresso na reflexão que busca explicitar os fatores que possibilitam à Igreja de Cristo ser reconhecida por todos os cristãos na sua unidade e unicidade, enquanto a inexistência desses fatores pode significar a inexistência da própria Igreja numa determinada denominação cristã. A doutrina católica ensina que é fundamental para o bom êxito do diálogo ecumênico compreender que a unidade da Igreja não é acidental, nem sequer algo que possa ser reduzido à categoria de conveniente, mas essencial ao ser Igreja.19 Se falta aos cristãos a consciência de pertencer ao único Corpo de Cristo, falta algo essencial à sua convicção cristã e eclesial.

O ponto de partida aqui é a hipótese de que, se existe a busca da unidade, esta exige a concepção dos seus elementos constitutivos, concepção essa que vai se formando no processo do diálogo, de acordo com os agentes, o contexto eclesial e social e a intensidade com que as confissões se integram nele. A ausência do consenso nesses elementos caracteriza a divisão entre as comunhões eclesiais. E 19 [25]. João Paulo II, Ut unum sint, São Paulo, 1996, n. 20. Também: Cnbb, O que é ecumenismo - Uma ajuda para trabalhar a exigência do diálogo, São Paulo 1997, 15.

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como eles têm a ver, em última instância, com a autoconsciência eclesial de cada confissão, o que se constata é que os desafios ecumênicos de maior proporção se concentram, em última instância, nas questões eclesiológicas, pois o diálogo sobre a unidade cristã apóia-se na convicção de cada confissão de que ela pertence à Igreja de Cristo.

Assim, urge explicitar os elementos que, concretamente, convergem para a manifestação da unidade da Igreja, segundo o que resulta do diálogo local. Como tais elementos da unidade eclesial não são ainda evidentes, o intento aqui é verificar se o empenho ecumênico no Brasil possibilita cumprir as seguintes tarefas: individuar esses elementos, perceber a sua natureza, verificar a concepção ou modelo de unidade que eles podem formar, detectar o grau de consciência e de sintonia das confissões a propósito, considerando-os fundamentais para a unidade cristã e contribuindo, assim, para o diálogo que acontece também em outras latitudes. A escolha desses elementos não é gratuita, mas resulta da fonte bibliográfica de três origens: 1) os documentos normativos das confissões em diálogo; 2) os resultados do movimento ecumênico internacional; 3) o que foi tratado nos círculos ecumênicos no Brasil (como as Comissões Bilaterais Católica-Luterana, Católica-Anglicana – CONAC, e o CONIC) e na reflexão dos teólogos. Concretamente, trata-se da compreensão da natureza da Igreja, em sua unidade, santidade, catolicidade e apostolicidade; em suas dimensões mistérica e institucional; em sua sacramentalidade e ministerialidade; em sua missão e relação com a sociedade

. 1- Os elementos constitutivos da unidade cristã, priorizados no diálogo local

É possível verificar que o diálogo local “prioriza” (ainda que inconscientemente)

o debate sobre questões relativas à fé, aos sacramentos, aos ministérios e à evangelização. Sobre cada um desses elementos existem convergências e divergências, cabendo à teologia, produzida em perspectiva ecumênica, explorar os caminhos para a superação das divergências e confirmar as possíveis convergências. Sem tratar todas as questões relativas a cada um deles, o diálogo local expressa a consciência de que esses elementos possibilitam a congregação dos fiéis em Cristo numa mesma e visível comunhão eclesial, e isso é o que permitirá à Igreja de Cristo ser reconhecida por todos de modo concreto na sua unidade e unicidade. A discussão ecumênica em torno a esses elementos diz respeito, em última instância, ao modo como formam, fundamentam e expressam a visibilidade da koinonia. Por isso o diálogo local deve avançar nos modos de expressar também estruturalmente essa consciência.

1.1 – A unidade na fé

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A fé foi sempre a força propulsora do movimento ecumênico. Sem a fé não existiria a busca da unidade, e sem a busca da unidade a fé cristã não conseguirá encontrar a sua verdadeira identidade e expressão para todos os cristãos. As “discrepâncias doutrinais” (UR 3) impelem à busca da unidade na fé, em vistas de uma compreensão e de um testemunho comum do seu conteúdo. Tais discrepâncias referem-se, sobretudo: à natureza da fé cristã, às suas mediações, ao compromisso que a fé exige e à sua relação com as obras.

a) O Credo e a Base Constitutiva do CONIC – No Brasil, essas divergências são tratadas a partir de uma base comum: o Credo Niceno-Constantinopolitano, comum a todas as comunhões eclesiais. Dois principais elementos possibilitam verificar ser o Credo uma base sólida para o diálogo sobre a unidade na fé: o uso comum por todas as igrejas e a profunda convergência entre o Credo e a Base Constitutiva do CONIC,20

onde verifica-se que os cristãos se encontram sintonizados no conteúdo essencial da fé em seu conteúdo bíblico, trinitário e cristológico.21 Aqui encontram-se as verdades fundamentais proclamadas pelas igrejas, como parte insubstituível da fé cristã, permitindo aos cristãos assumirem juntos uma “comum expressão histórica da fé”. Já foi dito que, com exceção da questão eclesiológica, onde se reconhece haver divergência entre as igrejas, “não há discordância evidente entre o Credo e a Base”. Por ora, existe o consenso de que “a unidade das igrejas-membros na fé deverá preceder sempre qualquer profissão comum dela”.

b) A doutrina da justificação – Outro elemento de grande contribuição para a

unidade na fé é a doutrina da justificação. Acompanhando o desenvolvimento do diálogo internacional, as igrejas do Brasil, sobretudo a IECLB e a Católica Romana, procuraram confrontar-se, num clima de diálogo, sobre a doutrina da justificação.22 A bem da verdade, os resultados alcançados sobre essa doutrina não foram mérito das igrejas no Brasil, uma vez que a Declaração Comum aconteceu no nível internacional. Mas as discussões realizadas possibilitaram encontros dos representantes das duas igrejas no país, e a recepção do documento internacional mostra a grande sintonia do diálogo local com o diálogo internacional, o que muito contribui para a busca da unidade na fé. Assim, pode-se atualmente afirmar a convergência acerca: da base bíblica comum para católicos romanos e luteranos sobre a doutrina da justificação; a relação intrínseca entre fé e obras, no sentido de que as obras possibilitam um crescimento na graça e têm como mérito a promessa da recompensa eterna,

20 Conic, Caminhando juntos na fé comum - Documentos do CONIC 2, São Paulo, 1984. 21 W.E. Seibert, Busca de unidade na confissão de fé, 180-191; Conic, Caminhando juntos na fé comum; O caminho do CONIC e a busca da unidade da Igreja, in Conic, Mensagens e Declarações, vol. II, São Paulo, 1992, 7-11.22 Nos dias 14 e 15 de novembro de 1996, reuniram-se em Porto Alegre a IECLB e a CNBB, num seminário sobre a Doutrina da justificação por graça e fé. Os resultados da discussão foram publicados pela Comissão Nacional Católica-Luterana no livro Doutrina da justificação por graça e fé - Declaração conjunta Católica Romana-Evangélica Luterana, Porto Alegre, 1998

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conforme Mt 6,1-4, dada gratuitamente por Deus, numa proximidade teológica entre “mérito” e “bênção”; o simul iustus et peccatur também deixa de ser motivo de polêmica acerca dessa doutrina, pois o perdão dos pecados e a presença santificadora de Deus é simultânea; a dimensão eclesiológica da doutrina da justificação, pois “o ser humano alcança a justificação enquanto entra na comunhão da Igreja... É, pois, no âmbito da Igreja que se desenvolve a vida do justificado”;23 a contextualização do tema, pois “justificação” questiona a “lei de produção” (obras) da sociedade capitalista. É de se esperar que também outras igrejas no país intensifiquem o diálogo sobre a doutrina da justificação.

1.2 – A unidade sacramental

Em sua própria constituição a Igreja possui uma natureza sacramental, expressa por seus elementos visíveis e invisíveis, de modo que ela é compreendida como “sinal” e “instrumento” da comunhão com Deus e entre os homens (LG 1). A sacramentalidade da Igreja tem expressão principal nos sacramentos particulares, o que viabiliza a tese de que “os sacramentos fazem a Igreja e a Igreja faz os sacramentos”. Desse modo, a divisão entre os cristãos acerca da doutrina e da teologia dos sacramentos significa divisão na Igreja e vice-versa. Os cristãos evangélicos têm em comum o número dos sacramentos (Batismo e Ceia) e a tendência em negar uma eficácia objetivamente salvífica aos mesmos, considerando-os mais como sinais da promessa que significam. Eles alimentam ou testemunham a fé que justifica, mas não possuem a virtualidade da graça.24 A doutrina católica, por sua vez, afirma o setenário como realidade instituída por Cristo (DH 1601 e 1603); a natureza dos sacramentos como sinais que contêm e conferem ex opere operato a graça (DH 1605-1607); a realidade da graça e do caráter para os três sacramentos que o conferem (DH 1608-1609); o ministro humano com poder, intenção e condição moral exigida (DH 1610-1613).

Constatadas as principais divergências, é preciso também verificar como o diálogo ecumênico sobre os sacramentos no Brasil abre caminhos para as futuras convergências. Aqui constata-se a influência de quatro importantes fatores: 1) o Concílio Vaticano II, que afirma a existência de sacramentos válidos nas outras comunhões eclesiais, como o Batismo (UR 3), a Eucaristia, os ministérios ordenados; 2) a teologia católica romana pós-conciliar, que recupera a Palavra de Deus no interior da fé e dos sacramentos, bem como o conceito de memorial, de história da salvação e a realidade sacramental da Igreja como um todo; 3) o estudo dos sacramentos em

23 A. Lorscheider, Declaração conjunta, 29.24 M. Lutero, Do cativeiro babilônico da Igreja - Um prelúdio de Martinho Lutero (1520), in N.M. Dreher, ed., Martinho Lutero - Obras Selecionadas, vol. II, São Leopoldo, 1989, 422; A Confissão de Augsburgo, art. 13; J. Wesley, Sermão XVI: Os meios da graça (V, 4), in Sermões, São Paulo, 1953, 342; Segunda Confissão Helvética, in O Livro de Confissões, 5,169.

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contexto ecumênico; 4) a contextualidade da reflexão teológica latino-americana que reflete os sacramentos na vida concreta dos cristãos, e não apenas a partir das proposições dogmáticas.

Mas o diálogo local não tratou ainda de todos os sacramentos. Concretamente, os sacramentos que no Brasil já foram objeto de diálogo nos círculos ecumênicos foram:

1) O Batismo: dois eventos merecem destaque no diálogo local: a) o acordo oficial do mútuo reconhecimento do Batismo, realizado no IX EDI, em 1978; b) o estudo do documento do Secretariado de Fé e Constituição do CMI, BEM, no seminário promovido pelo CONIC, em Curitiba, em 1985.25 Destes encontros, pode-se concluir que, com relação a esse sacramento, não existe apenas uma doutrina comum, mas também uma prática comum. Existe uma comum consciência de que o Batismo torna todos membros do corpo de Cristo e irmãos na fé, de modo que “pelo Batismo passamos a ser com-formados com Ele; com-vivemos, com-ressuscitamos, somos com-glorificados”.26

2) A Eucaristia: os principais elementos de divergência são: a) o modo da presença de Cristo nas espécies do pão e do vinho e a conservação das espécies depois da celebração; b) a celebração, o ministro e o caráter sacrifical; c) a intercomunhão. É nos últimos anos que se tem intensificado o diálogo entre as igrejas do CONIC sobre o sacramento da Eucaristia, do qual pode-se vislumbrar algumas convergências: Cristo encontra-se sacramentalmente presente nas espécies do pão e do vinho consagrados/abençoados, embora exista divergência na explicitação do modo dessa presença; a Eucaristia como memorial perpétuo; os benefícios salvíficos da Eucaristia; a celebração eucarística como fonte e ápice da vida Cristã; a Eucaristia como ação de graças. O consenso maior está na existência de um vínculo indissolúvel entre Igreja e Eucaristia. A Eucaristia é expressão da comunhão já existente, mas que aspira à perfeição. Ela não é meio para a comunhão eclesial, e sim expressão desta. A mesa do Senhor é uma somente, e indivisível, porque o próprio Cristo é indivisível.

3) O Matrimônio: os desafios no diálogo ecumênico são de duas principais naturezas: a) pastoral: a vivência dos valores da fé cristã na vida familiar e os matrimônios mistos; b) teológico-doutrinal: a sua sacramentalidade e indissolubilidade, e a validade do rito da celebração. As convergências aparecem numa comum fundamentação bíblica do Matrimônio como instituição querida por Deus (Gn 2,18-24), reconhecendo nele um caráter ou sentido sagrado. A razão é que o próprio Deus é o princípio e a fonte de todo amor e de toda comunhão de vida, tal como se constata no Antigo e Novo Testamento, onde Cristo revela-se como o esposo por excelência (2Cor 11,2; Ap 21,2). Desse modo, o Matrimônio é sinal da aliança de 25 Conic, Documento de Curitiba, in Conic, Notícias do CONIC, 3 (1985), encarte, letra “a”.26 Conic, Caminhando juntos da fé comum, 24.

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Cristo com a Igreja, expressa no amor entre os membros de seu corpo (Ef 5,21-23) que formam “uma só carne” (Gn 2,24; Mt 19,6) por toda a vida (Mt 19,6).27

4) O ministério ordenado: a base comum sobre a qual pode-se dialogar sobre os ministérios é formada pelos seguintes elementos: a) a natureza ministerial de toda a Igreja; b) a ministerialidade da Igreja funda-se no ministério de Cristo; c) a ministerialidade da Igreja tem expressão peculiar no ministério ordenado como algo imprescindível para todas as confissões cristãs; d) o caráter de “representação” inerente ao ministério ordenado. Essa base comum permite constatar algumas convergências na compreensão do ministério eclesial: a origem - chamado de Deus a alguns de seus féis para a função de pastores/as na comunidade, com a incumbência de perpetuar na Igreja a missão de Cristo; a finalidade - servir a comunidade em suas necessidades, particularmente proclamando a palavra, celebrando o culto, administrando os sacramentos e reconciliando as pessoas com Deus e com a comunidade. Em todas as igrejas, sendo o ministério uma participação especial do mistério de Cristo, ele está intimamente relacionado com a Eucaristia/Ceia; a participação no governo - faz parte da realidade desse ministério participar do governo da Igreja, nos modos de cada confissão eclesial. Em todas as igrejas o ministério ordenado compõe uma hierarquia “responsável pela construção da koinonia e também centro de liderança e de unidade da Igreja”.28

Tais convergências, contudo, não são ainda suficientes para superar as dificuldades no diálogo sobre os ministérios ordenados. Por um lado, pode-se perceber notável sintonia na fundamentação bíblica e na finalidade pastoral do ministério eclesiástico. Por outro lado, as diferenças acentuam-se na sua explicitação teológica. Aqui, o dissenso concentra-se basicamente na concepção da natureza do ministério; na estrutura, ou seja, nos diferentes “graus” do ministério ordenado; e no sujeito do ministério ordenado. Para algumas igrejas, o ministério possui uma natureza sacramental, diferindo do comum não apenas quanto ao grau, mas também quanto à essência (LG 10), possuindo um “caráter” que configura o ministro da Igreja com Cristo sacerdote, de forma a poder agir na pessoa de Cristo Cabeça, Mestre e Senhor (LG 23; PO 2.12). Para outras, o ministério ordenado é apenas uma função, como “expressão do compromisso batismal ... de seguir e servir a Cristo em todas as pessoas”.29 A Ordem é secundária em relação ao Batismo e não constitui, em sentido estrito, um sacramento, mas “um artigo de fé e de ordem”.30 Esse é o “dissenso de

27 Conic, Os casamentos interconfessionais: uma visão teológico-pastoral – Documentos do CONIC 4, São Paulo, 1986.

28 Conac, “1982-1992: Dez anos de diálogo”, item 6. Arquivo da Casa da Reconciliação.29 M. Maybee, Uma experiência de reestruturação do diaconato, in Partilha Teológica, 7 (1998) 38-39.30 R.S. Josgrilberg, “Comentário ao Documento BEM, do ponto de vista metodista”, item III, Arquivo da CNBB.

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raiz”, origem dos demais desafios no diálogo ecumênico sobre os ministérios eclesiásticos, como a sucessão apostólica e a autoridade na Igreja.

No Brasil, dois são os principais caminhos para o diálogo sobre os ministérios, teológico e pastoral, sendo o primeiro menos percorrido que o segundo. Esses caminhos estão sendo trilhados desde o GERT,31 atualmente, sobretudo, pela CONAC e pelo CONIC. Importa resgatar o caráter de vocacionado do ministro, desenvolvendo a diakonia da “representação” da Igreja e da missão de Cristo. Cristo Cabeça, ministro da unidade do seu corpo eclesial, é representado pelo ministério ordenado, sem que se esgote em tal ministério a ministerialidade da Igreja, nem se faz representar o Christus totus. O ministro ordenado, enquanto ministro da unidade, remete aos demais membros do corpo a variedade dos dons e serviços suscitados pelo Espírito. Talvez aqui encontrem-se as possibilidades para que se possa desenvolver uma concepção da diversidade ministerial na Igreja de modo convergente à unidade e comunhão no único ministério de Cristo.

As sementes sobre o diálogo em torno aos sacramentos estão plantadas no campo ecumênico. Mas não é ainda possível colher os seus frutos. Algumas estão ainda em fase de germinação, outras já em fase de produção e, até mesmo, de amadurecimento. O importante é que a semente tenha condições de germinar e amadurecer, o que exige sensibilidade para com a sua fragilidade, cuidados e esperança. Os cristãos convergem na compreensão do caráter sacramental de suas comunhões e tal é a base ampla para o diálogo sobre a sacramentalidade de suas estruturas e ofícios. Daqui entendem-se os esforços para se chegar a possíveis consensos também sobre os sacramentos particulares, o estabelecimento de uma Base comum (CONIC) para o diálogo, e o despertar do interesse teológico no diálogo ecumênico local.32

3 - O horizonte pastoral do ecumenismo no Brasil

O terceiro horizonte a ser desenvolvido na compreensão do ecumenismo no Brasil é o pastoral, sobretudo na análise da relação entre unidade cristã e promoção humana. Situa-se aqui a relação concreta do diálogo intereclesial com a sociedade brasileira, cuja diversidade geográfica, de povos, raças, culturas e expressões

31 “Deus, pelo seu Espírito (At 13,1-3), concede ao candidato uma dádiva espiritual, uma disposição para testemunhar o Evangelho e administrar os sacramentos” (Gert, ata do XVII encontro, de 05/04/61. Dossiê do Arquivo da Sede Provincial dos Padres Jesuítas, Porto Alegre, p. 77).32 E. Wolff, O espírito da unidade cristã, in Encontros Teológicos, 24 (1998) 42-52; A.L. do Vale Ribeiro, A proposta ecumênica da carta apostólica Tertio Millennio Adveniente, in Teocomunicação, 114 (1996) 495-501; F.R. Orofino, Acariciando o sonho - Ecumenismo e igrejas cristãs, CEBI, Série A Palavra na Vida, n. 122, 1998.

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religiosas, dificulta compreendê-la como um todo único. A comunicação entre esses elementos é difícil, árdua, trabalhosa, e as tensões que daí surgem provocam conflitos que não poucas vezes desestruturam o complexo social, causando rupturas e inimizades. Tal realidade tem a ver com o processo da unidade cristã, pois não poucas vezes as divisões existentes na sociedade dão origem às divisões entre os cristãos e as acentuam. O problema em questão é como dar testemunho da unidade na fé numa sociedade dividida entre classes sociais, gêneros e culturas que vivem tensões e separações profundas.

Concretamente, aqui é preciso verificar: quais são as implicações da unidade cristã para a sociedade brasileira como um todo; como determinados fatores sociais podem influenciar no processo da unidade cristã; como os participantes do diálogo ecumênico cooperam na missão de proclamar o Evangelho em meio às situações sociais de dificuldades em que vivem os cristãos no Brasil; e como a busca da unidade cristã se relaciona com a promoção humana. No caso do Brasil, onde milhões de homens e mulheres encontram-se impossibilitados de obterem as condições necessárias para uma existência digna e justa, a dimensão pastoral do ecumenismo recebe relevância particular.

A base para se poder verificar essa relação é a sintonia existente nos pronunciamentos sociais das diferentes igrejas, nos seminários e consultas promovidos pelos organismos ecumênicos, e na tomada de posições conjuntas sobre determinadas situações em que vive o povo brasileiro. Na articulação desses elementos, pode-se vislumbrar os esforços de um comportamento unificado das igrejas para individuar as causas da divisão do povo de Deus e para a crítica profética das situações de injustiça social. A justificativa é o fato de o ecumenismo ser um serviço ao ser humano e à integração deste, em relações de harmonia e de justiça, na sociedade em que vive.33 Constata-se aqui a estreita relação entre a busca da unidade na fé e a promoção humana.

Percebe-se, assim, que o desafio da busca da unidade dos cristãos e a sua incorporação na única Igreja de Jesus Cristo é inseparável daqueles oriundos da sua diversidade social, de modo que a realização dessa aspiração exige compreender também os fatores sociais causadores da divisão nas bases da sociedade onde vivem os cristãos. Isso justifica a necessidade de o diálogo ecumênico acontecer de modo contextualizado, vinculando as relações intereclesiais com a sociedade, como pertinente à única unidade buscada. Aqui estão em jogo tanto concepções diferentes da sociedade, quanto interesses antagônicos na relação que as confissões estabelecem com ela. É nesse contexto que se deve explorar as possibilidades da cooperação ecumênica frente às questões que angustiam a vida social dos cristãos

33 R.C. Fernandes, Sociedade civil e ecumenismo, in Comunicações do ISER, 44 (1993) 62-64; A.G. Mendonça, Ecumenismo y nuevas llaves de lectura de la realidad, in Revista de Cultura Teológica, 6 (1994) 73-85.

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brasileiros. Esse fato é entendido de modo inserido na ação pastoral das confissões, de modo que, na explicitação do seu fundamento teológico, desenvolvem-se as possibilidades de compreender a evangelização em perspectiva ecumênica. Constata-se que no Brasil é, sobretudo, nas chamadas “pastorais sociais” e nos movimentos populares que existem maiores experiências de cooperação ecumênica, o que possibilita então determinar quais são os níveis, os espaços e as razões teológicas da cooperação intereclesial.

Como já acenado, no foco desse horizonte está a relação entre a unidade cristã e a promoção humana. A justificativa é o fato de o ecumenismo ser um serviço ao ser humano e, no caso do Brasil, a homens e mulheres que se encontram impossibilitados de obterem as condições necessárias para uma existência digna e justa. A promoção humana constitui, portanto, um modo privilegiado de unir os cristãos em projetos que visam a humanização de toda a sociedade, como condição para que todos possam comungar da “vida em abundância” (Jo 10,10), oferecida por Cristo. O caráter ecumênico dessa realidade está na busca da sintonia nos princípios de uma antropologia cristã e nos meios técnicos da promoção humana. Como algo inerente à missão de anunciar a Boa-Nova do Reino de Deus, as confissões afirmam possuir uma palavra teológica sobre o ser humano. E fazer com que essa palavra seja pronunciada numa linguagem comum a todos os cristãos, é o desafio a ser enfrentado. O diálogo local manifesta condições para se explorar tal possibilidade, explicitando a vinculação entre o kerygma cristão e as aspirações existenciais do ser humano, de modo que as necessidades humanas só serão satisfeitas pelo encontro com Aquele que se apresenta como “o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14,6). Busca-se, então, uma nova ordem de relações humanas no contexto cósmico-histórico, mas com finalidade escatológica, encaminhando toda a humanidade para a koinonia do Reino de Deus.[49] Quando isso acontecer, é então que a humanidade realiza o projeto do Criador de “fazer habitar toda a plenitude” (Cl 1,19) no Seu Filho Jesus, de modo que a real promoção humana consiste em conduzir as pessoas à unidade em Cristo, para que Ele seja “tudo em todos”. O ecumenismo é um caminho para essa meta.

À guisa de conclusão O que se procurou fazer aqui foi apresentar elementos para a compreensão da

prática e reflexão ecumênicas no Brasil, em seus aspectos histórico, teológico e pastoral, verificando a sua legitimidade, características, resultados e lacunas. Refletiu-se sobre as relações interconfessionais que visam a aproximação no testemunho da fé cristã, identificando os caminhos mais condizentes com a aspiração da unidade visível da Igreja de Cristo e a perspectiva dessa unidade, a partir da experiência do diálogo ecumênico local. Na nossa análise, ficou transparente a existência de dois principais caminhos rumo à unidade cristã no Brasil, o teológico e o pastoral, sendo o segundo

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mais enfatizado em relação ao primeiro. Estes “caminhos” vinculam a busca da unidade na fé cristã e a promoção humana, possibilitando o encontro entre o kerygma cristão e as aspirações humanas mais profundas, que só serão satisfeitas pelo encontro com Aquele que se apresenta como “o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14,6). Tal fato é fundamental para a compreensão do ecumenismo no Brasil, e está na base dos esforços pela restauração da unidade cristã e sua explicitação em estruturas eclesiais que possibilitem a real koinonia do povo de Deus.

A) Nesse caminho, algumas etapas já foram superadas: 1) o diálogo que visava um “pamprotestantismo”, dos primeiros tempos do movimento ecumênico no Brasil. O diálogo acontece num esforço de desarmamento dos espíritos de polêmica e apologia descaridosa, adotando atitudes de humildade e de respeito mútuo. Mais do que tentativa de afirmação de uma identidade, o diálogo exige uma disposição de abertura para “descobrimentos inesperados” (UUS 38) da verdade cristã. 2) A tendência à uniformidade, buscando-se valorizar a pluralidade nos modos de participar do diálogo. Daqui a possibilidade para se entender as diferenças como expressões da única verdade do Evangelho. 3) O ecumenismo apenas de cúpula, procurando desenvolver nas comunidades dos fiéis a consciência de que ecumenismo é uma responsabilidade comum de todo batizado, que deve ser assumida por todos, conforme as potencialidades e os limites próprios de cada um. 4) Nas comunidades, a convivência, o respeito mútuo e a cooperação vêm assumindo o espaço do preconceito e do distanciamento entre cristãos de diferentes confissões.

B) Por essas razões, é possível afirmar que: 1) existe no Brasil uma caminhada rumo à unidade cristã, a qual permite verificar os horizontes da unidade buscada e a intensidade do engajamento dos cristãos nesse processo. O caminho é lento e difícil, mas, mesmo com os limites, a experiência do diálogo local demonstra a possibilidade do encontro e da reciprocidade. 2) A questão ecumênica não é afrontada por modismo, e sim pelos desafios que apresenta, como resposta de fé ao desejo de unidade manifestado por Cristo: “que todos sejam um” (Jo 17,21). A fé, portanto, deve estar na origem da busca da unidade e fortalece as suas motivações. 3) A busca da unidade na fé está diretamente relacionada à busca da unidade visível da Igreja de Cristo. O que se visa é a unidade de todo o povo de Deus numa comunidade una, santa, católica e apostólica, unida pelo Espírito em torno a um só Pastor, Jesus Cristo, para a glória de Deus Pai. 4) Em sua natureza mais profunda, a Igreja é compreendida como a realidade de koinonia. Embora sem definir com nitidez, o diálogo local entende que a koinonia, na perspectiva cristã, tem a Trindade como princípio e modelo, e aparece como algo que vai além de toda uniformidade e da simples diversidade reconciliada, cuja expressão maior seria a comunhão eucarística, celebrada por pastores, cujo ministério seja mutuamente reconhecido. 5) O diálogo é contextualizado, possibilitando a vinculação entre unidade na fé e na promoção humana. 6) Os frutos estão aparecendo: nas relações entre os dirigentes eclesiásticos existe a localização de pontos de encontro e existe mútua procura de avizinhamento;

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no nível teológico-doutrinal, chegou-se a acordos como o mútuo reconhecimento do Batismo e o estabelecimento de uma base comum para o diálogo, sobretudo entre as Igrejas do CONIC. 7) Dentre as características gerais do diálogo local, pode-se afirmar que ele é: universal, pela pluralidade das questões abordadas; diferenciado, pela diversidade dos seus sujeitos; reciprocamente aberto, pela convicção de que ecumenismo não se faz por vias de mão única.

C) Os limites também se fazem notar. Existem elementos de divergência na compreensão da unidade da Igreja, o que significa tanto diferenças eclesiológicas quanto variações nas exigências para a unidade, conforme a doutrina das confissões em diálogo. A verificação dos elementos constitutivos da unidade eclesial não significa consenso sobre sua natureza teológica e o modo de expressá-los nas estruturas eclesiásticas. Por essas razões, enquanto o ideal da unidade aparece como algo confirmado, o “modo” de concretizá-lo não encontra ainda consenso, exigindo a perseverança e apurado discernimento dos seus caminhos.

Os desafios que mais se manifestam são: ad intra ao movimento ecumênico - a centralização em pessoas mais do que nas instituições e os conflitos entre carisma e instituição; as tensões inerentes ao posicionamento ecumênico das confissões e as dúvidas sobre as reais intenções ecumênicas dos organismos ecumênicos; a tensão entre a perspectiva cristã e o diálogo inter-religioso; as diferentes concepções de unidade cristã, por vezes demasiadamente ligadas ao confessionalismo; a tensão entre a defesa das identidades e a abertura ao diferente; mesmo quando existe a afirmação de elementos comuns na fé, como no Credo e nas “notas” da Igreja, isso não significa consenso na sua interpretação teórica e sua aplicação no nível prático, isto é, não encontra conseqüências consensuais na estrutura histórica das diferentes confissões. Os elementos aqui detectados como fundamentais para a visibilidade da comunhão eclesial são, ao mesmo tempo, os elementos sobre os quais as igrejas também manifestam divergências. Ad extra ao movimento ecumênico - a realidade social de divisão e a pluralidade do campo religioso brasileiro; o proselitismo, sobretudo no meio pentecostal; a frágil unidade interna de algumas comunidades; a perda de sentido da pertença eclesial e a privatização da prática da fé dos cristãos; o trânsito dos cristãos de uma confissão para outra em busca de uma experiência religiosa satisfatória; o recente posicionamento dogmático de algumas igrejas, que abala o clima de abertura, respeito e transparência no diálogo.

D) A superação dos desafios acima constatados exige:

1) A intensificação dos esforços ecumênicos em todas as suas direções, estreitando o diálogo entre as lideranças eclesiásticas e os organismos ecumênicos, entre o caminho teológico/doutrinal e o pastoral, entre a busca da unidade cristã e os esforços pela promoção humana. Isso implica em renovar e revigorar o diálogo

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ecumênico no Brasil, de modo a tornar compatíveis criativamente tanto a necessidade de estruturação e funcionamento, quanto a capacidade de inovação e mudança. Implica, ainda, que as igrejas e os organismos realizem um esforço decidido por explicitar as convicções teológicas que fundamentam o seu compromisso ecumênico.

2) Tal fato exige que a dimensão prática do ecumenismo seja sustentada por motivações de fé consistentes. Torna-se, desse modo, clara a especificidade da ação ecumênica dos cristãos e como esta se relaciona com a sua condição de cidadãos. Cria-se, assim, uma visão ecumênica como princípio de vida, radicada na vivência comunitária da fé. Daqui o nosso esforço, humilde, por explicitar alguns princípios epistemológicos que podem guiar a reflexão sobre a unidade cristã no Brasil.

3) Que as diferentes formas de participação no movimento ecumênico estejam fundamentadas na consciência dos elementos que já são comuns entre os cristãos. Essa consciência possibilita a compreensão da unidade como algo constitutivo original da fé cristã, das causas da divisão e dos modos de evitá-las, bem como a compreensão de que o que é diferente nos outros implica em respeitá-lo, mesmo que não seja ainda possível compartilhar da sua posição, e o rompimento com toda pretensão de superioridade. Concretamente, isso é possível, se forem fortalecidas as iniciativas ecumênicas, sobretudo no cotidiano dos cristãos, nas iniciativas oficiais das igrejas, na conjugação entre os caminhos teológico e pastoral.

O movimento ecumênico no Brasil não tratou de todas as questões relativas à recomposição da unidade cristã, e mesmo nos elementos tratados existem lacunas. Mas não compete ao diálogo local apresentar soluções a questões que dizem respeito à universalidade da fé cristã, vivida também por comunidades cristãs em outras latitudes. A análise do diálogo local mostra que é já um grande passo apresentar a consciência da relevância desses horizontes para a reconstituição visível da unidade cristã. Mesmo que os resultados do diálogo ecumênico no Brasil não possibilitem afirmar um modelo próprio de unidade, oferece elementos indispensáveis para modelos que queiram ser consistentes. A unidade proposta vai além da convivência pacífica de diferentes concepções e estruturas da fé cristã. Não se admite um minimalismo ecumênico. A unidade buscada é entendida dentro do horizonte da koinonia que expressa uma real e visível comunhão entre todos os filhos e filhas de Deus.

Por tudo isso, nos caminhos rumo à unidade cristã, maior é o número das perguntas do que das respostas. Muitas vias são percorridas às apalpadelas, entre conflitos, mal-entendidos, tensões, inclusive possíveis rupturas. O caminho é ainda longo e é preciso percorrê-lo realisticamente e com a perseverança da fé. É preciso que se desenvolvam estruturas a favor da unidade. Mas o aspecto mais importante do movimento ecumênico, sem diminuir os demais, é o desenvolvimento de uma mística da unidade, na súplica humilde para que o Espírito Santo suscite na Igreja, como sinal do Reino já em ação na história da humanidade, o dom da plena unidade ou

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comunhão entre todos os discípulos de Cristo, para a glória de Deus Pai. Seja como for, existem condições para cultivar a semente do diálogo, incentivando os elementos comuns já constatados e crendo que a unidade é, acima de tudo, dom de Deus. Deus oferecerá sempre novas oportunidades para estruturar os seus projetos, de modo a satisfazer as aspirações de comunhão do seu povo, fortalecendo os caminhos rumo à unidade cristã.

E-mail: [email protected]

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