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CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO CEARÁ FACULDADE CEARENSE CURSO DE BACHARELADO EM SERVIÇO SOCIAL FRANCISCA DEUZIRENE NOBRE DE LIMA SITUAÇÃO DE RUA E DROGADIÇÃO: UM ESTUDO SOBRE A EXPERIÊNCIA DOS PROFISSIONAIS DO CENTRO POP NO MUNICÍPIO DE FORTALEZA (CE) FORTALEZA 2014

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CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO CEARÁ

FACULDADE CEARENSE

CURSO DE BACHARELADO EM SERVIÇO SOCIAL

FRANCISCA DEUZIRENE NOBRE DE LIMA

SITUAÇÃO DE RUA E DROGADIÇÃO: UM ESTUDO SOBRE A EXPERIÊNCIA

DOS PROFISSIONAIS DO CENTRO POP NO MUNICÍPIO DE FORTALEZA (CE)

FORTALEZA

2014

FRANCISCA DEUZIRENE NOBRE DE LIMA

SITUAÇÃO DE RUA E DROGADIÇÃO: UM ESTUDO SOBRE A EXPERIÊNCIA DOS

PROFISSIONAIS DO CENTRO POP NO MUNICÍPIO DE FORTALEZA (CE)

Monografia apresentada ao curso de graduação em Serviço Social do Centro de Ensino Superior do Ceará, como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Serviço Social. Orientadora: Profa. MS. Ivna de Oliveira Nuns.

FORTALEZA

2014

FRANCISCA DEUZIRENE NOBRE DE LIMA

SITUAÇÃO DE RUA E DROGADIÇÃO: UM ESTUDO SOBRE A EXPERIÊNCIA DOS

PROFISSIONAIS DO CENTRO POP NO MUNICÍPIO DE FORTALEZA (CE)

Monografia como pré-requisito para obtenção do título de Bacharelado em Direito, outorgado pela Faculdade Cearense – FaC, tendo sido aprovada pela banca examinadora composta pelos professores. Data de aprovação: ____/ ____/____

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________

Profa. MS. Ivna de Oliveira Nunes

Faculdades Cearenses - FAC

_______________________________________________________

MS. Luciana Sátiro Silva

Faculdades Cearenses - FAC

_______________________________________________________

MS. Lara Denise Oliveira Silva

Universidade Federal do Ceará – UFC

Como exemplo de luta, determinação e

honestidade a que me seguiu nesse

percurso, dedico este trabalho aos meus

pais, Clotildes Reis e Francisco Nobre;

aos meus irmãos; a toda minha família e

ao Junior, pelo amor e companheirismo.

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Ele (Deus), pois sei que me concedeu pessoas ao meu redor

que me ajudou nessa trajetória, entre várias outras, e assim lembrava-se dessa

como força para seguir neste trabalho tão desafiador, mas que me proporcionou

realização também.

Agradeço aos meus pais Clotildes Reis Lima e Francisco Nobre, pelo

amor, dedicação e preocupação que me deste e me dão ao longo da minha vida e

deste trabalho, sempre apresentando boa expectativa, confiança e cuidado, me

motivando cada vez mais. Aos meus irmãos, Dejean e Deuzilene pelo apoio e às

vezes na ajuda em alguns desafios que vivenciei no início deste trabalho, assim

dedico em nomes de uma das conquistas de nossos objetivos.

Ao Junior, pelo o amor e apoio durante a construção do trabalho, sempre

ao meu lado me motivando e às vezes me acompanhando nas altas horas da

madrugada, não me deixando desencorajar neste percurso. Bem como seus

familiares, que sei que de alguma forma contribuíram nos momentos da produção

deste trabalho.

Ao meu sobrinho, Nandinho que em muitos momentos de aflição, correria,

e dificuldades no percurso deste trabalho me presenteou com seus sorrisos e

carinhos tornando esse processo mais ameno e tranquilo, saudades criança!

Às amizades que fiz no período da faculdade, em especial à Izabelly

Karynne e Marcos Antônio, além de Miriam, Mikaela e Joana os quais fizeram parte

de momentos alegres e me fizeram rir ainda em períodos difíceis na faculdade e até

na minha vida. Até mesmo pelos momentos de divergências, que posteriormente

víamos e ríamos desses episódios, fazendo nos conhecermos mais e confiar no

nosso companheirismo como amigos e colegas acadêmicos.

Inclusive a outras amizades que de certa forma me propiciaram a

participar, discutir e ampliar minhas percepções sobre participação política e assim

contribuindo para formação acadêmica, tornando ação relevante para carregar em

minha bagagem na trajetória acadêmica, profissional e nas vivências como ser

humano.

À minha orientadora Ivna Nunes, por aceitar e abrir de braços abertos

meu trabalho no momento em que me encontrei desamparada e sem força para

seguir na realização deste. Obrigada pela paciência, por acreditar em minha

capacidade, pelas reflexões, pelas correções e mais correções e pelo incentivo para

elaboração de ideias e para conclusão deste trabalho. Muito carinho e obrigada!

Às participantes das entrevistas que muito contribuíram na concretização

deste trabalho.

Ao corpo docente da Faculdade Cearense, que possuem relevância para

minha formação acadêmica, profissional e até como ser humano. Saudades de

muitos que mesmo as aulas sendo pouco difíceis, fazia com que esses momentos

se tornassem mais divertidos e interessantes.

À Luciana Sátiro e Lara Silva por aceitarem participar da banca e

contribuírem como este processo de conhecimento.

Por fim, a todos, que embora não tenha citado neste, de alguma forma

contribuíram e me motivaram nessa realização. Muito obrigada!

“Quando tiver sessenta que os meus olhos

funcionem bem. E eu, estando só, busque os

meus netos na escola. Que seus sorrisos me

lembrem que eles são a fortuna que acumulei.

Nossas visitas ao asilo sejam apenas para ver os

quadros dos que lá moraram, porque os meus

amigos estarão comigo, jogando suas redes no

rio, proseando sobre como a nostalgia sempre

esteve em alta, com anos de atraso. Mas aí me

lembro: Rapaz, você ainda tem trinta e três e seu

mundo ainda é aquele onde as filas por um rim

dão as suas voltas no continente.

Que anda quente demais exceto dentro do carro

com vidros fechados, porque, se abertos, tudo

pode acabar ali num assalto. Se eu chegar até lá

que possamos ser mais médicos e menos juízes.

E, ao estarmos num semáforo que não seja pra

pedir dinheiro, mas para dar abraços,

perceberemos que são os nossos irmãos que

estão ali com frio na rua enquanto permanecemos

aqui salvos e aquecidos com nossas lareiras. Mas

aí me lembro: Rapaz você está nos trinta, e grito:

"tempo, pare um pouco para eu respirar! Ainda

não consegui ser a metade do que deveria ser”!

Então ele me diz: "você continua um sonhador”.

Que ainda sonha que tudo mude quando tiver

sessenta”.

(Guilherme de Sá)

LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

CadÚnico Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal

CAPR Centro de Atendimento à População de Rua

CAPS Centro de Atenção Psicossocial

CAPS AD Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas

CDPPEAS Célula de Desenvolvimento de Programa e Projetos Especiais da

Assistência Social

CASSI Coordenadoria de Políticas Públicas de Assistência Social

CFESS Conselho Federal de Serviço Social

CNAS Conselho Nacional de Assistência Social

CENTRO POP Centro de Referência Especializado para População em Situação

de Rua

CPSE Coordenação da Proteção Social Especial

CRAS Centro de Referência da Assistência Social

CREAS Centro de Referência Especializado da Assistência Social

CREAS POP Centro de Referência Especializado da Assistência Social para

População em Situação de Rua

CPDrogas Coordenadoria de Políticas sobre Drogas

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IMPARH Instituto Municipal de Pesquisas, Administração e Recursos

Humanos.

EAN Espaço de Acolhimento Noturno para População em Situação de

Rua

LOAS Lei Orgânica da Assistência Social

MDS Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome

NASF Núcleo de Apoio à Saúde da Família PBF – Programa Bolsa

Família

PNAS Política Nacional de Assistência Social

PNISPSR Política Nacional para Inclusão Social da População em Situação

de Rua

PSB Proteção Social Básica

PSE Proteção Social Especial

SAMU Serviços de Atendimento de Urgências e Emergências (SAMU),

SEAR Serviço Especializado de Abordagem de Rua

SEDAS Secretaria de Educação e Assistência Social

SEMAS Secretaria Municipal de Assistência Social

SME Secretaria Municipal de Educação

SETRA Secretaria de Trabalho, Desenvolvimento Social e Combate à

Fome

SUAS Sistema Único de Assistência Social

RESUMO

A presente pesquisa objetiva analisar as percepções e as ações profissionais

empreendidas junto à relação da população em situação de rua e drogadição no

município de Fortaleza, através do Centro de Referência Especializado para a

População em Situação de Rua. Este trabalho propõe ainda entender a trajetória

para as ruas, tomando o contexto histórico em que sinalizou essa população,

principalmente na conjuntura capitalista e os seus desdobramentos que aparecem

como consequências para as degradações de condições de vida, estas causas que

implicam também na ida para as ruas como forma de sobrevivência e/ou de

moradia. Contudo, sem desconsiderar outros fatores que vão além da questão

estrutural que, por sua vez envolve o uso de drogas. A compreensão da população

em situação de rua e drogadição tomam como direção considerar a visão dos

profissionais frente a essas realidades e sua percepção sobre a visão da sociedade

na realidade que vivenciamos, apresentando-se muitas vezes como invisível ou

distorcida no imaginário social, inclusive de alguns profissionais da assistência social

e de outras políticas sociais. O trabalho tem como intuito também compreender a

política de assistência social executada através do Centro Pop, bem como o seu real

trabalho frente ao processo da situação de rua e de drogadição – parte do objeto de

estudo - que aparece em muitos casos como experiência envolvida, em diversas

interfaces na situação de rua. Na realização desse estudo, os dados metodológicos

utilizados constituíram-se em pesquisa biográfica, análise documental através da

ficha de atendimento/cadastro e das entrevistas sob análise na perspectiva

qualitativa. Desse modo, entendemos que a situação de rua e drogadição é uma

relação que apresenta como real evidenciada por diversas interfaces, contudo

compreendendo que não se trata de uma relação genérica. Constatamos ainda que

assim como a drogadição, há outras adversidades que indicam demandas

coexistentes, tornando-se necessário a atenção efetiva do Estado junto aos serviços

sociais para o reconhecimento da população em situação de rua e da drogadição e

assim, propiciar uma atenção integral e diversa frente às singularidades e múltiplas

facetas dessa realidade.

Palavras-chaves: População em situação de rua. Drogadição. Política de

assistência social.

ABSTRACT

This research aims to analyze the perceptions and professional actions undertaken

by the ratio of the population homeless and drug addiction in the city of Fortaleza,

through the Center for Specialized Reference Population in the Streets. This work

proposes yet understand the trajectory to the streets, taking the historical context in

which signaled this population, especially in a capitalist environment and its

consequences that appear as consequences for the degradation of living conditions,

these causes also involve the way for streets in order to survive and / or housing.

However, without disregarding other factors beyond the structural issue which in turn

involves the use of drugs. Understanding the population homeless and drug taking as

a direction to consider the views of practitioners facing these realities and

perceptions about the vision of society in reality we experience, performing as often

invisible or distorted the social imaginary, including some social care professionals

and other social policies. The work is also aimed to understand the policy of social

assistance implemented through the Centre Pop, as well as your actual work against

the process of homelessness and drug addiction - part of the object of study - which

appears in many cases as experience involved, in several interfaces in the streets. To

conduct this study, the methodology used is data on the biographical research,

document analysis through attendance / registration form and interviews in qualitative

analysis in perspective. Thus, we believe that homelessness and drug addiction is a

relationship that appears as real as evidenced by several interfaces, yet realizing that

this is not a generic relationship. We also acknowledge that as the addiction, there

are other adversities that indicate coexisting demands, making it necessary to

effective care of the state with social services to the recognition of the population

homeless and drug addiction and thus provide a diverse and comprehensive care

front singularities and multiple facets of this reality.

Keywords: Population living on the streets. Drug addiction. Welfare.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................... 12

2 CONTEXTUALIZANDO A REALIDADE DA POPULAÇÃO EM

SITUAÇÃO DE RUA: BREVES DISCUSSÕES ............................................ 26

2.1 O histórico da população em situação de rua ................................................ 27

2.2 A repercussão sócio-histórica da população em situação de rua no

contexto brasileiro .......................................................................................... 36

2.3 Características as pessoas em situação de rua: vivências e fatores

implicados na trajetória para as ruas ............................................................. 43

2.4 A interlocução entre a situação de rua e o uso de drogas ............................. 50

3 A PNAS: POSSIBILIDADES E DESAFIOS NA INTERVENÇÃO À

DUPLA DEMANDA - POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA E

DROGADIÇÃO. ............................................................................................. 62

3.1 A Assistência Social como política no Brasil .................................................. 63

3.2 A Política Nacional de Assistência Social do Brasil. ...................................... 65

3.3 A intervenção da PNAS nas demandas coexistentes entre situação

de rua e uso problemático de álcool e outras drogas .................................... 70

4 A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA E DROGADIÇÃO E

A PNAS NO MUNICÍPIO DE FORTALEZA................................................... 73

4.1 A situação de rua e drogadição: a realidade em Fortaleza .................... 73

4.2 A política de Assistência Social e a experiência na intervenção

em torno da questão situação de rua e drogadição ...................................... 76

4.2.1 As vivências dos profissionais na atuação de trabalho junto à

população em situação de rua no município de Fortaleza ............................ 79

4.2.2 A relação situação de rua e drogadição: percepções a experiências

na atuação profissional a essas realidades. ................................................... 82

4.3 A inclusão de outras políticas sociais na atuação junto à população

em situação de rua: desafios e possibilidades .............................................. 92

4.4 A população em situação de rua: perfil, aspectos e demandas .................... 98

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................... 102

6 REFERÊNCIAS ............................................................................................ 106

7 ANEXOS................................................................................................................112

8 APÊNDICE............................................................................................................117

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1 INTRODUÇÃO

Vivenciamos, durante a realização desta pesquisa, uma dura realidade e

percebemos que embora ainda haja uma certa invisibilidade da população em

situação de rua, este é um público que dentre as adversidades vividas antes e na

vivência das ruas, tem na drogadição uma das questões mais agudas, que é o

móvel esta pesquisa.

Ao longo de minha trajetória acadêmica e pessoal, tive conhecimento de

diversas questões que merecem a atenção de debates e estudos, porém escolhi

como tema deste trabalho de conclusão de curso, a questão das drogas, associada

às pessoas em situação de rua.

É certo considerar que a questão das drogas, assim como a situação de

rua tem tido algum tipo de atenção do Estado1, evidenciadas pelas políticas públicas,

como a Política Nacional sobre Drogas e a Política Nacional para a População em

Situação de Rua, bem como pelos serviços a essas demandas: CAPS AD, CENTRO

POP (CP). Além disso, essas questões são realidades que ainda vêm sendo alvo de

discussões e pautas de noticiários veiculados pela mídia.

Contudo, considerando que tanto o uso de drogas, como a situação de

rua se apresentam como fenômenos complexos, atrelados a diversas interfaces e

fatores envolvidos, merecem ser ainda bastante estudados pelos pesquisadores,

profissionais e órgãos competentes.

A partir da minha inserção em campos de estágio supervisionado em

Serviço Social, tive a oportunidade de me aproximar dessa questão e, também, de

alguns usuários de drogas, muitos destes que fazem das ruas seu espaço de

socialização, moradia ou aquilo que lhe propicia “um grito de liberdade”. Apesar de

ser uma realidade bastante conhecida, não tinha ainda lido ou discutido sobre2.

Inicialmente me questionava sobre a questão das drogas, no que se

refere aos motivos do seu uso. Através de minha participação nos grupos de

1 Compreende-se como Estado um ordenamento político de uma comunidade, originado da

dissolução da comunidade primitiva fundada sobre os laços de parentesco e da formação de comunidades mais amplas oriundas da união de vários grupos familiares por motivos de sobrevivência internos (o sustento) e externos (a defesa) (BOBBIO, 1987).

2 As vivências e experiências obtidas sobre o assunto se deram nas práticas de estágio, iniciadas em 2012 e finalizadas em 2014.

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laboratório de valores do CREMA3, que discutiam sobre os valores da vida humana

e da sociedade, e os relacionavam com as vivências dos próprios adictos

encontrados naquela instituição, pude conhecer um pouco mais sobre os usuários

de substâncias psicoativas: suas concepções, as complicações geradas pelo abuso

de drogas e outras experiências coexistentes, como a vivência nas ruas.

A partir dos relatos que ouvi, percebi que a relação situação de rua e uso

de drogas é decorrente de uma série de fatores e circunstâncias sociais, a exemplo,

os conflitos familiares, que por sua vez, são ocasionados por diversas situações.

Somada a essas apreensões, tive minha maior aproximação e

inquietação das situações que indicavam sobre o tema no meu último campo de

estágio - a Assessoria Psicossocial, da Promotoria de Defesa de Saúde Pública, do

Ministério Público do Ceará, no município de Fortaleza – concepções, aspectos,

demandas e o funcionamento de alguns serviços, da rede de saúde e de atenção

social aos usuários de drogas, muitos destes em situação de rua.

Em acesso aos processos instaurados na referida Promotoria, percebi

que, embora o uso de drogas não esteja presente na vida de todos que vivenciam as

ruas como moradia ou forma de sobrevivência, há um número significativo de casos

que indicam essa relação. Isso se evidenciou através de um levantamento sucinto,

que observei em 684 processos (maio de 2013 a abril de 2014), os quais indicavam

216 que envolviam essa realidade, equivalente aproximadamente 32,5%. Durante o

estágio, recebíamos algumas ligações telefônicas anônimas ou de usuários

transeuntes pelas ruas da cidade de Fortaleza que informavam sobre o paradeiro de

pessoas em situação de rua. Muitos destes identificados como usuários de drogas

ao decorrer do tempo que passaram a utilizar os espaços públicos como locais de

moradia, sobrevivência ou alternativos à sua liberdade de ações e opções

subjetivas.

Dentre alguns casos, não havia identificação de alguma referência familiar

ou oriunda de outros âmbitos, relações sociais. Contudo, em outros casos, segundo

relatos de familiares em entrevistas ou ligações telefônicas, percebemos que alguns

sujeitos em situação de rua possuíam moradia e referências familiares, porém, com

o uso compulsivo de drogas passavam a ir para as ruas. Bem como os que

3 CREMA – Centro de Recuperação Mão Amiga, é uma organização não governamental, em forma de comunidade terapêutica, iniciada a partir de outubro de 2008, em Maracanaú/CE, destinado ao trabalho de recuperação de jovens e adultos que fazem uso abusivo de drogas.

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passavam a se ausentar de casa, vivenciando as ruas como forma de socialização,

e passavam a fazer uso de substâncias psicoativas.

Através das respostas emitidas pelos serviços envolvidos, seja da saúde,

como os CAPS AD`s por exemplo e da assistência social, como os CREAS, CRAS

observei ainda relatos que evidenciavam algumas ações limitadas relativas aos

casos de uso de drogas e situação de rua.

Tais situações podem ser exemplificadas pela saída de usuários de

drogas que chegaram a vivenciar as ruas e percebidos pelas descrições como casos

sem possível intervenção, haja vista a escolha da ida para as ruas, ou já ter havido

primeira tentativa, sem lograr êxito na intervenção para tratamento. O que se

percebia em muitos relatos era a medida de internação compulsória indicada ou

apoiada aos familiares como intervenção possível àqueles usuários.

Salientamos também que, embora o uso de drogas indicasse problemas

em relação à saúde dos sujeitos em situação de rua, alguns destes não

demandavam cuidados apenas na questão da saúde pelo envolvimento com essas

substâncias, mas também por outras circunstâncias que não eram, de pronto,

percebidas na vida dessas pessoas.

Nesse universo, observávamos através de contatos em trabalhos

articulados algumas posições de estranhamento, limitadas e relacionadas a

percepção de “coitado” ou fatalistas a esse público, o que fez com que

desenvolvessem inquietações e indagações acerca do assunto: Qual as percepções

dos profissionais envolvidos nas demandas da população em situação de rua e

usuárias de drogas sobre esse segmento social? Como interviam no sentido de

compreender circunstâncias sociais e as razões da trajetória para as ruas? Quais as

estratégias de aproximação, relação e sensibilização aos usuários que estão em

situação de rua e fazem uso de drogas a outras alternativas de vida? Quais seus

princípios envolvidos no trabalho com esse segmento social? Quais são os valores

da população em situação de rua que são conservados, e que podem interferir no

trabalho profissional a esses usuários? Até que ponto há possibilidade de intervir nas

demandas da população em situação de rua, usuárias de drogas?

No decorrer do tempo, as aproximações e pesquisas sobre o assunto e o

contato indireto com outros serviços da área da saúde e da assistência social sobre

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as demandas da situação de rua e uso de drogas foram contribuindo para a ideia

sobre esse trabalho, até chegar a definição do objeto de estudo.

A partir de estudos sobre a população em situação de rua, verifiquei que,

embora esse segmento social não esteja totalmente relacionado ao uso de drogas,

esse uso vem sendo vivenciado por um número significativo dessa população

apresentando uma realidade cotidiana em nossas cidades, e a necessidade de

contínuo estudo e reflexão-crítica acerca desse fenômeno.

Segundo a Pesquisa Nacional sobre População em Situação de Rua

(2008), os problemas de alcoolismo e/ou outras drogas são um dos principais

motivos pelos quais pessoas passaram a viver e morar nas ruas (35,5%), seguido do

desemprego (29,8%) e conflitos familiares (29,1%). Dos entrevistados, 71,3%

mencionaram pelo menos um desses três motivos para a situação de rua (sendo

que estes podem estar correlacionados entre si ou um ser consequência do outro,

haja vista que a situação de rua é, muitas vezes, decorrente de todo um contexto

social de ausência de oportunidades e vivência de situações inacessíveis ou

violadoras de direitos). Esses dados apresentados indicam a coexistência de

diversas adversidades, como a relação entre a situação de rua e o uso de drogas e

consequentemente, ações que contemplem essa complexa questão social.

Nessa direção, considerando que a Política de Assistência Social passou

a ser incluída na agenda de intervenções a esse segmento, por meio da Lei nº

11.258, de 30 de dezembro de 2005, que incluiu a criação de programas de amparo

às pessoas em situação de rua na Lei Orgânica da Assistência Social (Lei 8.742, de

07 de dezembro de 1993), torna-se relevante buscar seu reconhecimento como

possibilidade de atenção a essas pessoas, incluindo as que fazem uso de drogas.

Vale ressaltar que a Política de Assistência Social também foi

contemplada pelo Programa “Crack, é possível vencer”, que diante do viés

intersetorial4, a referida política passou a ter papel relevante nas demandas do uso e

dependência de drogas.

Por isso, o estudo se direcionou para a análise das ações desenvolvidas

nos serviços de assistência social a esse segmento, tendo como serviço de

referência e alvo do estudo o CP, que é previsto no Decreto Nº 7.053/2009 e na

4 De acordo com Raichelis (2000), a intersetorialidade permite a abordagem de forma ampla da problemática social em seu caráter complexo e multidimensional.

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Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, como unidade de referência da

proteção social especial de média complexidade, de atenção às pessoas em

situação de rua.

Ressaltamos que o recorte do espaço da pesquisa se deu no município

de Fortaleza, cidade que também contemplou o serviço de atenção às pessoas em

situação de rua. A realidade da situação de rua no referido município foi evidenciada

no noticiário: “Fortaleza não sabe quantos moradores de rua tem” o qual referiu que

em 2007, dos 3.241 usuários atendidos no CP, 73% mencionaram fazer uso de

algum tipo de drogas5.

Contudo, anteriormente ao CP, o referido município teve como serviço

destinado às pessoas em situação de rua o Centro de Atendimento à População de

Rua (CAPR), criada ainda pela Secretaria Municipal de Assistência Social de

Fortaleza (SEMAS). A partir de 2011, esse serviço passou a ser reformulado,

identificado como Centro de Referência Especializado para População em Situação

de Rua (CP a ser reformulado, identificado como Centro de Referência

Especializado para População em Situação de Rua (CP).

Assim, o trabalho se direcionou em compreender o contexto municipal de

Fortaleza, tendo como objetivos: apreender as percepções de profissionais que já

atuaram no CP junto à população de rua, bem como pessoas nessa situação

relacionada com uso de drogas; compreender as ações desses profissionais

empreendidas junto aos que vivenciam as ruas e fazem uso de drogas; caracterizar

o CP na política municipal de Assistência Social de Fortaleza, bem como

contextualizar a população de rua, envolvida com o uso de drogas, e identificar o

perfil desse segmento social.

Para o alcance desses objetivos o trabalho passou por fases, iniciado

com a pesquisa bibliográfica – livros, revistas, teses, dissertações, monografias e

com o acesso a noticiários e outras produções através da internet. Com isso,

contribuiu para ampliação dos conhecimentos, que até então tinha apreendido sobre

5 Fortaleza não sabe quantos moradores de rua tem: última pesquisa com moradores de rua na

Capital foi divulgada em 2008, que apontou o número de 1.701 pessoas em situação de rua. Desde então, voluntários e militantes apontam crescimento do problema e percebem mudanças no perfil de quem busca refúgio nos espaços públicos, inclusive o significativo índice de uso de álcool e outrasdrogas”.Disponívelem:<http://www.opovo.com.br/app/opovo/cotidiano/2014/02/03/noticiasjornalcotidiano,3200632/fortaleza-nao-sabe-quantos-moradores-de-rua-tem.shtml>. Acesso em: 27 de março de 2014.

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o objeto em questão através da aproximação com os campos de estágio. Como

parte dessa fase de pesquisa, a participação em encontros e seminários que

abordavam a questão das drogas e outras situações relacionadas também foi um

dos meios de informação.

Nessa trajetória, descobri concepções e posicionamentos sobre a

temática, contribuindo para novas visões da realidade e ampliação das minhas

concepções sobre a questão das drogas.

Observei que a temática escolhida indicou várias interfaces e

perspectivas, apresentando-se como um fenômeno complexo que exige a escolha

de determinados métodos e técnicas que possibilitem compreender o objeto,

considerando o processo histórico que este está inserido.

O percurso da pesquisa é identificado como uma longa trajetória de

buscas sobre a temática escolhida, e no seu decorrer, deparamos com situações

inesperadas, que indicam desafios no trajeto desta.

Relativo a isso, explicito neste trabalho que este sofreu alterações,

conforme os rumos e caminhos que percorri durante a pesquisa. O primeiro campo

que havia direcionado minha pesquisa, anteriormente dirigida apenas aos usuários

de drogas – o Centro Integrado de Referência sobre Drogas – tornou-se inviável,

quando na segunda visita realizada a este, no intuito de firmar a minha pesquisa

naquele local, fui esclarecida que precisaria da autorização da Plataforma Brasil

(Comitê de Ética) para a realização da pesquisa naquele local. Informação não

explicada quando perguntei na primeira visita com o intuito de me aproximar do

campo de pesquisa.

Contudo, na época em que obtive essa informação, me pareceu

impossível conseguir a autorização por absoluta falta de tempo hábil para recebe-la

a tempo de concluir minha pesquisa até o final do semestre. Essa circunstância me

angustiou, pois já havia direcionado o trabalho para as pesquisas referentes àquela

instituição.

Porém, decidida em continuar com os estudos referente ao tema: drogas,

situações coexistentes e intervenção, bem como a trajetória entre pesquisa teórica e

de campo, passei a pesquisar outras possibilidades, buscando identificar um

trabalho que direcionasse para a questão das drogas e a outras questões sociais,

como a inclusão da Assistência Social enquanto política interventiva.

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Nessa oportunidade, meu interesse pela intervenção da Assistência

Social nas demandas das drogas, tendo como ciência do envolvimento de outros

fenômenos relacionados a esta - como já havia vivenciado no campo de estágio da

Promotoria de Saúde, tornou-se mais acentuado. Assim, a situação de rua,

experiência que atualmente coexiste em significativo número com o uso de drogas

despertou meu interesse para o estudo dessa relação, que se encontrava em

segundo plano e o qual ainda se aproximava da minha primeira busca - a

participação de políticas sociais nas demandas de drogas coexistentes com outras

circunstâncias sociais. Nesse sentido, direcionei meus questionamentos à dimensão

da relação uso de drogas e situação de rua, e a inserção da Política de Assistência

Social, especificamente, do Centro de Referência Especializado de Assistência

Social para a População em Situação de Rua, que atende à essa população, que se

relacionam, em significativa parcela, ao uso de drogas. Dessa forma, considerando a

temática do objeto de estudo escolhido, compreendi que o presente trabalho requer

um estudo configurado pela abordagem qualitativa.

Relativo a esses objetivos, Minayo (1994) aponta que o trabalho com

significados, motivos, valores e atitudes, corresponde a um espaço mais profundo

das relações, dos processos e dos fenômenos, os quais não devem ser submetidos

a redução da operacionalização de variáveis.

A pesquisa objetivou compreender sobre os significados de questões

particulares de determinado fenômeno social, que por sua vez, é permeado de

vários aspectos e relações sociais.

Martinelli (1999) esclarece e reforça que na experiência de um trabalho

com a pesquisa qualitativa, é relevante a relação direta entre sujeito e o

pesquisador, que ainda não há desconexão do sujeito da sua estrutura, e a busca

para compreensão dos fatos dar-se pela interpretação que ambos (pesquisador e

sujeito) desenvolvem de suas vivências cotidianas.

Além disso, como norteador do processo da pesquisa, foi utilizada o viés

da dialética, considerando que o estudo teórico está vinculado as experiências

práticas e assim, deve estar intrínseco na trajetória de apreensão do conhecimento.

Dessa forma, metodologicamente, o trabalho foi realizado em duas etapas: a

exploração bibliográfica e a pesquisa de campo/entrevista.

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E como ação contínua, diante da inclusão da questão no objeto de

estudo, as pesquisas bibliográficas se estenderam e foram ampliadas no sentido de

compreender esse fenômeno - relação do uso de drogas e situação de rua. Assim, a

busca exploratória foi a primeira fase, mas que percorreu os momentos deste

trabalho. Essa investigação foi através da pesquisa bibliográfica de estudos e

documentos referenciados que contribuíram na problematização da temática e na

produção teórica acerca do objeto em questão.

Segundo Gil (2002), a pesquisa exploratória oferece maior familiaridade

com o problema, possibilitando o aprimoramento das ideias e a descoberta de

instituições. Além disso, aponta que esse tipo de pesquisa envolve o levantamento

bibliográfico de livros, artigos científicos, publicações periódicas que discute o objeto

e revela concepções de pessoas que possuem experiência prática com o problema

pesquisado.

Diante dessa experiência, a pesquisa bibliográfica foi relevante para a

ampliação das minhas percepções acerca da questão das drogas, sobre as políticas

sociais envolvidas e o despertar pela busca das reais ações profissionais relativas a

questões do uso de drogas e situação de rua, com foco na Política de Assistência

Social.

Desse modo, no decorrer dessa pesquisa, realizada após a minha

inserção no campo de estágio e posteriormente em outros espaços, possibilitou-me

expandir os horizontes da temática, contribuindo para uma apreensão mais

cuidadosa dos aspectos e dos relatos apresentados no campo de pesquisa, nas

entrevistas com os interlocutores.

Isso contribuiu para que, quando me deparado com o campo de pesquisa

e com os profissionais, não ter havido formação de conclusões imediatas quanto aos

significados e os objetivos das ações realizadas pelos sujeitos, neste caso, pelos

profissionais referenciados pelo serviço do Centro de Referência Especializado para

a População de Rua.

O segundo passo se deu através da pesquisa de campo, a partir da

observação dos fatos e fenômenos, levando em consideração tanto a apresentação

real, como os possíveis aspectos implícitos inerentes a estes. Deve atentar também

para a relação fluente que deve estabelecer para assim, obter os dados suficientes

para o trabalho.

20

A pesquisa de campo foi realizada no Centro de Referência Especializado

de Assistência Social para a População de Rua, considerando sua referência no

atendimento às pessoas em situação de rua. O referido equipamento é localizado à

rua Antônio Pompeu, nº 134, no centro de Fortaleza, Ceará. Acrescentamos que o

CP do Centro foi o primeiro serviço especializado a ser criado no município de

Fortaleza, tendo maior histórico de atendimentos comparado com o CP do Benfica,

que foi instituído em 2013. Dessa forma, diante de mais de 3.000 arquivos de fichas

de cadastro/atendimento, o serviço do centro foi escolhido para obtermos o perfil do

público de estudo deste trabalho.

Assim, no intuito de coletar dados precisos e firmar a veracidade das

demandas que o objeto em questão aborda, foram realizadas análise documental,

por meio da classificação de documentos nos arquivos do serviço – tanto os que já

foram encaminhados para outros serviços, como os que estavam sendo

acompanhados naquele período que ocorrera minha pesquisa. Bem como através

de outras fontes, que apresentasse centralidade e relevância sobre o objeto em

questão. Com isso, também foi realizado um levantamento do perfil e das demandas

do público alvo que esta pesquisa pretende se dirigir: pessoas em situação de rua,

que possuem alguma modalidade de uso com drogas (uso, abuso ou dependência

química). A pesquisa documental se deu no CP do centro de Fortaleza, realizada sob

autorização da Secretaria Municipal de Trabalho, Desenvolvimento Social e

Combate à Fome (SETRA). Na ocasião fui recebida pelo coordenador Elias

Figueiredo, que me direcionou aos arquivos onde se encontravam as fichas de

cadastro/atendimento dos usuários que estão ou estavam em situação de rua.

Naquele momento, senti-me bem recebida, pois a maioria dos presentes não sabia o

motivo de minha visita e percebi que, naquele espaço, haviam pessoas que estavam

ali há pouco tempo, situação evidenciada pelas constantes trocas de conhecimentos

uns com outros, e certo estranhamento nas falas relativas a alguns usuários daquele

serviço.

Nessa perspectiva, a observação simples se adequa a essa finalidade,

pois como Gil (2002) afirma, essa observação é a maneira espontânea de observar

os fatos, permanecendo alheio, e identificando-se mais como espectador do que ator

do processo.

21

Dessa forma, este instrumento de pesquisa foi utilizado no intuito de

apreender e registrar fielmente os momentos que presenciei no espaço do serviço e

os documentos e fontes relevantes ao subsídio da análise do objeto em questão,

sem interferir nos processos de trabalho do campo em questão.

A utilização do diário de campo foi imprescindível para o registro das

minhas percepções e reflexões acerca do campo e das ocasiões das entrevistas

com os referidos profissionais. Esse instrumento torna-se relevante para anotar

dados observados em momentos inesperados e as informações colhidas através

das falas dos sujeitos pesquisados.

Nesse sentido, Becker (1997) menciona a importância do diário de campo

e refere que esse instrumento deve ser um meio de registro de comportamentos

contraditórios com as falas, de manifestações dos interlocutores quanto aos vários

pontos pesquisados, dentre outros aspectos.

A aplicação de questionários foi empreendida no intuito de elaborar o

perfil dos usuários, pessoas em situação de rua e usuárias e drogas, do referido

serviço. Bem como, para a elaboração do perfil da instituição CENTRO POP do

município de Fortaleza.

O questionário é identificado como técnica que compõem um número de

questões apresentadas por escrito às pessoas, visando conhecer opiniões, crenças,

interesses, expectativas, situações vivenciadas (Gil, 2002).

Por fim, foram empreendidas entrevistas com os profissionais que (já)

atuaram no CP no intuito de apreender suas experiências profissionais quanto à

demanda das pessoas em situação de rua, em especial aos que fazem uso de

drogas para desvendar e compreender os significados produzidos pelos valores e

práticas destes no que se refere a atenção às pessoas em situação de rua, que

fazem alguma modalidade de uso (uso, abuso ou dependência química) do

município de Fortaleza. Nesta fase, foram realizadas 03 entrevistas (execução e

gestão).

Essa iniciativa foi motivada pela busca de apreender suas experiências

adquiridas no CP, que na época da pesquisa, estava passando por um processo de

mudança de profissionais, com a lotação de novos contratados6.

6 Seleção Pública Simplificada para a contratação por tempo determinado de profissionais de nível superior e médio da Secretária Municipal de Trabalho, Desenvolvimento Social e Combate à Fome – SETRA.EditalNº03.2014.Disponível

22

Diante desse processo de mudança, concomitante ao período do meu

processo de pesquisa, e ainda considerando o tempo relativamente curto para o

alcance dos objetivos, e a aquisição de experiências desses novos profissionais nas

demandas das pessoas em situação de rua relacionadas com o uso de drogas,

decidi entrevistar aqueles profissionais antes do processo de mudança já referido.

Desse modo, a pauta pré-estabelecida da escolha (já previamente) das

entrevistadas foi o recorte temporal, direcionado para os profissionais que haviam se

inserido e atuado no referido serviço com experiências pelo menos de 06 meses,

com trabalho realizado até março de 2014.

As entrevistas foram registradas através de gravações em áudio,

mediante o consentimento dos entrevistados, e transcritas posteriormente, no

sentido de coletar informações, concepções e dados inerentes aos objetivos do

trabalho. Os nomes atribuídos a cada entrevistado para identificar as falas, serão de

cantoras de músicas brasileiras que gosto de escutar. As transcrições serão

analisadas em diálogo com as categorias definidas a partir da leitura teórica sobre o

objeto.

As entrevistas foram empreendidas em locais alternativos de socialização

escolhidos pelas próprias interlocutoras para assim conseguirmos realizar um

trabalho espontâneo e agradável, como de fato foram alcançados. No decorrer das

entrevistas, percebi que nas ocasiões as participantes se sentiram à vontade na

maioria das entrevistas, somente em alguns momentos dos relatos que

evidenciavam posição pessoal sobre percepções do serviço do CP, como se

constituiu e como se evidencia atualmente, é que notei certa cautela e um pouco de

hesitação nas palavras.

O tipo de entrevista foi constituído como semiestruturada, por possibilitar

uma relativa flexibilidade no decorrer das informações, caso surjam novos

questionamentos inerentes ao objeto da pesquisa, possibilitando inclusão de novas

questões a serem perguntadas. Contudo, a prioridade nesse tipo de entrevista é

seguir a ordem prevista dos pontos a ser perguntados para seguir fielmente com os

interesses do trabalho. Costa (2001) reforça sobre esse instrumental, ao afirmar que

em<:http://www.fortaleza.ce.gov.br/sites/default/files/u1777/edital_03.2014__profissionais_paraa_setra_0.pdf>. Acesso em: 04 de março de 2014.

23

trata-se de um guia planejado previamente, servindo como norte para a entrevista,

podendo adaptar-se com o entrevistador e assim, não exigindo uma ordem rígida de

questões. No entanto, Demo (2006) afirma que uma reconstrução crítica dos dados

obtidos na entrevista, requer do pesquisador a não contentação em apenas expor,

descrever ou apresentar as falas, mas agir na descoberta de relações ocultas,

vazios e silêncios, aclamações frases fortes e fracas, presenças tímidas e

avassaladoras, além das ausências, atentando para as dinâmicas do fenômeno

além da padronização posta. Além disso, é relevante citar sua referência sobre o

olhar – que não é fácil de se ver e acompanhar os argumentos elaborados para as

perguntas realizadas ao que se quer investigar.

Assim, desenvolvendo uma percepção crítica das representações sociais

que são mediatizadas. Para Richardson (1999), o pesquisador deve esclarecer ao

entrevistado sobre o objetivo e o porquê do empreendimento da entrevista. Os

instrumentais referidos são direcionados para a coleta de dados, identificados como

relevantes para o registro de percepções sobre os acontecimentos e relatos no

decorrer da pesquisa de campo e ao alcance dos objetivos da pesquisa.

Posteriormente, os dados apreendidos foram organizados

sistematicamente de acordo com os pontos relativos aos objetivos e submetidos a

análise, articulados com o embasamento teórico para que se tornem mais

contundentes e a melhor interpretação e compreensão do objeto de estudo em

questão.

Nessa experiência, Oliveira (2000) contribui na medida que esclarece que

é no processo de construção textual que o pensamento flui, dificilmente possível

antes da textualização de dados obtidos na observação sistemática. Ainda aponta

que além do olhar e o ouvir – elementos relevantes na percepção da realidade pela

pesquisa empírica, o escrever representa um passo indissociável do pensamento.

Dessa forma, o exercício da pesquisa é inerente ao ato de observar, ouvir

e escrever, como uma intrínseca interação relevante ao processo de pesquisa e

construção de novos conhecimentos a partir dos fenômenos que são apreendidos

cognitivamente, na imediaticidade e na percepção aguçada que pode se

desenvolver no exercício da prática da investigação.

Vale ressaltar que este trabalho sofreu algumas mudanças, mas

compreendo que devo ser fiel no relato dos reais acontecimentos e sua exposição

24

neste capítulo – percurso metodológico da pesquisa. No entanto, os percalços da

pesquisa nos obrigaram a um esforço maior na continuidade dessa ação, buscando

conhecer novos elementos que aparecem na trajetória da investigação sobre o tema

de estudo.

Diversos autores contribuíram para o aprofundamento das discussões e

da compreensão das categorias que constituem o estudo do objeto, como Varanda

(2009), Silva (2006), Escorel (1999), Castel (1998), entre outros. Através das leituras

e pela revisão literária, percebi que a relação situação de rua e uso de drogas é

permeada por aspectos, que incluem a cultura, os desdobramentos sócio-políticos e

econômicos das últimas décadas, permeados por diversas metrópoles do mundo.

Vale ressaltar que as situações devem se atentar para o aspecto social,

além da questão do tratamento, da percepção patológica sobre essas questões,

principalmente, acerca do uso de drogas. Assim, a minha decisão foi pesquisar

sobre o uso de drogas e sua relação com as pessoas em situação de rua, que hoje

apresenta-se frequente em um grande número de pessoas.

Embora haja a existência de algumas produções sobre o tema de estudo

escolhido, ainda permanece atual e de relevância, haja vista que está envolvido em

um contexto social sujeito a transformações sociais e, assim, a novas e distintas

concepções sobre o assunto, que pode configurar nos aspectos sócio-políticos e na

intervenção dos serviços sociais disponíveis à população usuária.

O capítulo “Contextualizando a realidade da população em situação de

rua: breves discussões” objetiva explanar o histórico da população em situação de

rua, tendo em vista que se trata de uma realidade que envolve aspectos sociais,

políticos, econômicos e culturais, a partir dos conceitos estudados. Assim, será

contextualizado a vivência da população em situação de rua, tomando em

consideração a história da sociedade, principalmente no contexto capitalista e da

atual conjuntura que implica na expressiva desigualdade social, nas condições de

trabalho e, consequentemente, nas condições humanas de vida, percebidas também

no objeto de estudo.

Acrescentamos que diante das apreensões, apresentaremos ainda o

modo de vida, que em meio as diversas configurações da situação de rua,

evidenciando assim seu caráter heterogêneo, pode ter vários significados e

finalidades. Serão explanas também os motivos que decorrem não ir para as ruas,

25

bem como a interlocução com a questão das drogas que, embora não seja uma

relação genérica entre situação de rua e drogadição, o uso dessas substâncias se

apresenta como experiência expressiva nessa situação, em variadas interfaces,

como veremos no referido capítulo.

O capítulo “A PNAS: Possibilidades e desafios na intervenção à dupla

demanda – população me situação de rua e drogadição” versará sobre o

desenvolvimento da assistência como política direcionada à população em situação

de rua, inclusive sobre o início da articulação com a rede de atendimento para o

acesso de outras políticas sociais à referida população, inclusive em atenção as

demandas do uso de álcool e outras drogas, tenho em vista a intersetorialidade

pautada na Política Nacional para a População em Situação de Rua.

O último capítulo consiste em apresentar a situação de rua e drogadição

no município de Fortaleza e a repercussão da política de assistência social

direcionada a esse público, a partir do desenvolvimento dos serviços de atenção,

tomando em consideração as percepções e vivências profissionais na atuação à

população em situação de rua, inclusive na demanda coexistente da drogadição,

que também sinaliza ser vivenciada por parte da população em situação de rua.

Ademais, ao considerar a processualidade histórica do objeto de

pesquisa, a interpretação e conclusão final sobre o estudo realizado não se cristaliza

como verdades acabadas e inalteradas. Dessa forma, consideramos que o objeto

em questão (sujeitos e aspectos inerentes) é sujeito de contínua atenção e

reflexões, bem como as ações e serviços desenvolvidos a este, considerando ainda

as relações sociais envolvidas nessa realidade.

26

2 CONTEXTUALIZANDO A REALIDADE DA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE

RUA: BREVES DISCUSSÕES

A população em situação de rua não é algo fácil de conceituar, haja vista

que carrega uma série de determinações, interfaces e circunstâncias sociais,

econômicas e culturais, sinalizando assim, seu aspecto heterogêneo.

Assim, compreender esse segmento social nos sinaliza ter uma investida

desafiadora, devendo então considerar diversos significados. Para isso, neste

capítulo, serão explanadas definições que possibilitem somar percepções junto às

definições de instrumentos políticos para melhor compreensão dessa realidade.

A situação de rua vem sendo considerada por diversos autores7 – os

quais serão referidos adiante – como complexa e decorrente de inúmeras situações

que convergem para essa vivência. As vivências nas ruas podem incluir tanto a

utilização das ruas para moradia, como espaço de vivência permanente, indicando

assim, longo tempo nos espaços públicos, como também meio de atividade para

obtenção de sustento e estratégias de sobrevivência.

Quanto às denominações atribuídas a população em situação de rua, o

que podemos perceber como evidência são considerações pejorativas, do senso

comum, direcionadas aos que não possuem condições de moradia, ou dignas de

vida, aos que não têm ou não querem enfrentar os desafios da vida social e aos que

permanecem nas ruas, condição de sua própria “escolha”. Tais termos são

evidenciados por vagabundos preguiçosos, bêbados sujos, mendigos, vadios

(GOMES, 2012).

No entanto, para compreendermos melhor sobre o universo da população

em situação de rua, precisamos investigar a trajetória sócio histórica, e os aspectos

sociais, econômicos, políticos e culturais que incidem no objeto de estudo,

compreensão que seria insuficiente se nos detivéssemos às denominações

reproduzidas pelo imaginário social sobre essa população.

Essa trajetória apresenta que a população em situação de rua decorre de

uma série de fatores, mas principalmente que se trata de uma realidade inerente aos

diversos tempos longínquos e contemporâneos que iremos discutir a seguir.

7 Dentre os autores que discutem sobre os aspectos e fatores implicados na situação de rua,

podemos citar: SILVA, 2006; VARANDA, 2009; ROSA, 2005; MATTOS, 2006, entre outros.

27

2.1 O histórico da população em situação de rua

A vivência nas ruas seja como moradia ou como espaço de subsistência

não é fenômeno originado do cenário urbano contemporâneo, mas sim, oriunda de

tempos longínquos, proveniente da história da humanidade.

Porém, compreender a situação de rua nos remete principalmente ao

surgimento das cidades pré-industriais da Europa, e com o desenvolvimento do

capitalismo, vem apresentando momentos de retração e outros de expansão (SILVA,

2009 apud GOMES, 2012).

No período anterior ao desenvolvimento das cidades – no Feudalismo,

muitas pessoas mantinham sua subsistência através de atividades laborais

desenvolvidas em terras de proprietários. Devido a isso, firmavam relações de

fidelidade e submissão a estes, motivadas também pelo abrigo e proteção obtidos

nesses espaços privados.

Contudo, essa população ainda se encontrava em precárias e frágeis

condições de vida e de trabalho, sinalizando assim vulnerabilidade de

desabrigamento e, consequentemente, a possibilidade da ida para as ruas.

Os que não se submetiam às condições de proprietários de terras

passavam a utilizar a rua como moradia, como afirmam Arruda e Pilleti (1996): “Para

elevar seus rendimentos, os senhores feudais aumentaram as obrigações dos

servos. Muitos tiveram de abandonar as terras em que viviam ou chegaram a ser

expulsos delas; passaram a viver como mendigos ou bandidos” (ARRUDA; PILLETI,

1996, p.121).

Assim, surgiam “itinerantes” que sem moradia e a autonomia para a

reprodução de sua vida, diante das condições precárias de vida, ficavam próximos

aos feudos e às cidades que se formavam, buscando sobrevivência e ações de

caridade que as igrejas já ofereciam.

Dessa forma, Silva (2006) afirma que nesse contexto de expropriação de

produtores rurais e camponeses, de sua transformação em assalariados, como

resultados da acumulação primitiva, surge o fenômeno do pauperismo e, ainda da

população em situação de rua.

O Renascimento Comercial, ainda na Idade Média, foi um processo

histórico que apresentou o agravamento dessa situação, evidenciado como pobreza

28

marcada pela disparidade entre os que detinham lotes de terras dos que se

situavam distante do comércio e do consumo - elementos que indicavam marca

prerrogativa de organização da vida social.

Porém, em meados dos séculos XVI a XVIII, em que se iniciou e avançou

o novo modelo econômico – o capitalismo mercantil, os sistemas econômicos e

políticos foram submetidos a diversas transformações que, por sua vez, incidiram na

vida material e subjetiva da sociedade, principalmente, na classe social que não

tinha meios de produção e para comercialização à sua sobrevivência.

A expansão do comércio e do desenvolvimento das cidades era objetivos

centrais desse novo período. E como elemento fundamental para o almejo de

valores e lucros, ações e estratégias foram empreendidas como estratégias de

apropriação da força de trabalho da camada populacional pobre.

Acrescentamos ainda a destituição de terras dos camponeses que ainda

possuíam como meio de sua sobrevivência.

Encurralados no campo, com as terras comunais usurpadas, os camponeses foram obrigados a vender sua força de trabalho para subsistir em penosas condições de trabalho (longas jornadas, baixos salários, trabalham de menores [...] e de mulheres) (FALEIROS, 1991, p. 10).

Outra estratégia de controle aos interesses dos latifundiários era

empreendida através de instrumentos legais impostos como forma de aprisionar um

grande contingente populacional à estrutura socioeconômica estabelecida.

Nesse contexto, Castel (1998 apud BEHRING; BOSCHETTI, 2011)

explana que as leis: dos Pobres (1601), a lei de domicílio (1662) e a Lei de

Speenhamland Act – Lei de Assistência aos Pobres (1795), as quais tinham um

caráter punitivo e coercitivo, tinham a função de manter a ordem de pobres e

miseráveis, no sentido de impor-lhes aos imperativos do trabalho estabelecido,

aceitando os baixos salários e assim, inibindo-os de deslocarem-se para outras

regiões em busca de melhores condições de vida. Essas legislações indicavam a

intolerância e a proibição da mendicância dos pobres.

Percebemos então, que o crescimento das cidades e as novas formas de

trabalho e economia não favoreciam a todos que estavam inseridos nesse mesmo

contexto. Nesse cenário, havia os que detinham propriedades e meios de

reprodução material e do capital, ocupando espaços estratégicos para os interesses

29

comerciais, e outro grupo social que se encontrava em aglomeração, em espaços

desfavoráveis de condições mínimas de vida, incluindo a moradia.

Assim, com o surgimento e o desenvolvimento de civilizações, à medida

que avançavam no aspecto socioespacial para urbanização e nos aspectos políticos

e econômicos, contraditoriamente, por outro lado, desencadeavam o surgimento, ou

pelo menos, a acentuação de uma classe pauperizada, excluída desse cenário de

desenvolvimento. Essa classe social, quando não submetida aos ditames

estabelecidos pela ordem econômica, passava a vivenciar condições extremas de

pobreza, evidenciando assim uma refração da questão social, que se agrava cada

vez mais nesse circuito de relação antagônica entre capital e trabalho (ARRUDA;

PILETTI, 1996).

Nesse contexto, pessoas em situação de rua podem ser identificadas

como o resultado de situações extremas decorridas das transformações que

beneficiavam a valorização do capital. E isso foi agravado alarmantemente com o

avanço do capitalismo para seu estágio industrial, em meados dos séculos XVIII e

XIX, em que valorizava as maquinarias, como instrumentos primordiais, substituindo

a mão-de-obra da classe trabalhadora.

No entanto, vale ressaltar que foi com a emergência do processo

industrial e o avanço do capitalismo que se desencadeou a expansão do movimento

de migração.8 E isso decorreu da esperança da população em melhorar suas

condições de vida e ascender socialmente naquele cenário, quando passou a

perceber a possibilidade aparente e atrativa da oferta de trabalho e assim, a

possibilidade de mobilização de recursos para alcançar objetivos almejados

(PASTORE, 1969 apud RAQUEL, 2012).

Observamos então que o processo de migração foi um movimento

relacionado ao fator estrutural, como falta de emprego, falta de perspectiva do local

de origem, ou seja, ausência de condições de reprodução de vida.

Contudo, diante do intuito da intensificação da produtividade, a lógica

industrial caracterizou-se pela adesão aos equipamentos mecânicos, de energia a

8 Migração é um processo social, deve-se supor que ele tenha causas estruturais que impelem

determinados grupos a se pôr em movimento. Estas causas são quase sempre de fundo econômico - deslocamento de atividades no espaço crescimento diferencial da atividade em lugares distintos e assim por diante – e atingem os grupos que compõem a estrutura social do lugar de origem de um modo diferenciado (SINGER, 1998 apud SCMITZ, 2009).

30

vapor e da eletricidade, o que gerou a substituição gradativa da força do trabalho

humano por esses itens de produção (Oliveira, 2013).

Dessa forma, Galvêas refere em seu artigo9 que nesse período

econômico não havia trabalho para todos e, mesmo os que trabalhavam, possuíam

uma condição salarial mínima, até insuficiente para a sua subsistência. Junto a essa

classe trabalhadora, presenciavam-se mendigos, resultado do desemprego, pela

não absorção da excessiva mão de obra disponível.

Assim as produções materiais progrediram para o plano privado, e os que

não eram absorvidos pelo trabalho industrial, tornavam-se excedentes, identificando

ai um verdadeiro processo excludente pelo novo sistema de produção, àqueles que

só possuíam a sua força de trabalho para oferecer.

Relativo a esse contexto, Netto e Braz (2006, p. 88) esclarecem que:

O capitalismo é definido como a organização da sociedade na qual a terra, as fábricas, os instrumentos de produção, etc. pertencem à um pequeno número de proprietários fundiários e capitalista, enquanto a massa do povo não possui nenhuma ou quase nenhuma propriedade e, por isso, deve vender a sua força de trabalho.

Essa parcela da população passou a ser responsável pelas suas próprias

formas de sobrevivência, e muitos sem condições de reprodução de vida, passaram

a somar o segmento que utilizaram as ruas como espaço de estar, morar ou/e

buscar estratégias de sobrevivência.

Assim, o excedente populacional relativo à oferta de trabalho dessa nova

ordem econômica passou a constituir uma espécie de reserva de mão-de-obra

disponível aos pressupostos e exploração do novo sistema do capital.

Nesse sentido, Alves (2006, p.22) explana que:

Na corrente marxista a origem dos fluxos é interpretada como o resultado de processos estruturais que se desenrolaram nas áreas de origem e resultam em fatores de expulsão populacional, colocando um determinado grupo social em movimento.

Contudo, ressaltamos que o processo de migração não foi resultado

apenas do movimento voluntário da população pela busca de melhores condições

9 Artigo produzido por Elias Celso Galvêas: “Revolução industrial” e suas consequências: da

corporação de artesãos e manufaturas locais à produção em escala internacional, Disponível em: <http://www.miniweb.com.br/historia/Artigos/i_contemporanea/rev_indu_consequencias.html>. Acesso em: 22 maio 2014.

31

de vida. Outros processos históricos ocorridos no período industrial indicaram que o

movimento migratório também foi decorrente da expulsão das pessoas das terras.

A exemplo disso, A lei de Cercamento de Terras foi um episódio que se

desembocou no período emergente industrial, e sinalizou como fator contribuinte ao

processo de migração. Tratou-se de uma investida estratégica para a saída de quem

vivia no campo.

Cotrim (2002) esclarece que a Política do Cercamento consistia na

transformação das áreas comuns aos servos e senhores (ambos vinculados na

relação feudo-vassálica) em áreas de pastagem para as ovelhas. Como os vassalos

dependiam dessas áreas para tirar seu sustento, com a implementação dessa Lei

estes se viram obrigados a abandonar os campos e procurar trabalho assalariado

nos centros urbanos, constituindo assim a classe do proletariado.

Silva (2009) refere que muitas pessoas que foram expulsas de suas terras

não foram absorvidas pela indústria no mesmo tempo que se tornaram tão

disponíveis. Isso se dava pela incapacidade da indústria, ou pela dificuldade de

adaptação repentina ao novo modelo disciplinar de trabalho.

Assim, esse novo episódio apresentou que junto com as transformações

da produção econômica, a condição de moradia de milhares de camponeses foi

outra questão alterada, tendo em vista que estes foram expulsos de suas terras,

para a produção dos grandes proprietários. Com isso, muitos camponeses expulsos

de suas terras foram parar nas cidades, onde muitos encontravam empregos na

indústria, mas a maioria perambulava. Diante disso, o processo de migração

também foi decorrente da expulsão de pessoas das terras.

É relevante citar também aqui a Revolução Verde10, processo que

implicou no deslocamento de muitos moradores, principalmente da área do campo.

Esse processo foi reflexo da lógica de produção intensificada, revelada pela

10

A Revolução Verde foi um processo que realizado para o interesse de dominação político-econômica do grupo capitalista liderado pelos Estados Unidos, empreendeu práticas de intensificação da produção agrícola, aderiu ao modelo baseado no uso intensivo de agrotóxicos e fertilizantes sintéticos na agricultura, ocorrido principalmente no campo e presente na vida de muitos produtores em diversas áreas do mundo. Contudo, para a sustentação da Revolução Verde, o referido grupo usou de estratégia ideológica, o objetivo de acabar com a fome, considerado como problema a ser enfrentado na época. Porém, o que ocorreu na realidade foi o aumento da produtividade, tendo em vista que a agricultura foi concebida como um meio para reproduzir o capital, ao invés de interferir na questão da fome (GEORGE, 1978 apud ANDRADES & GANIMI, 2007, p.47).

32

transformação da produção da agricultura, com base na mecanização em detrimento

da mão de obra.

Sobre essa investida, Martine (1990, p.3 apud SOUZA, 2013) explana

que:

Com a mecanização promoveu-se uma verdadeira expulsão do homem do campo, entre 1970 e 1980, foram 30 milhões de pequenos produtores expulsos de suas terras. Sem terra e sem emprego suficiente para todo o contingente que perdia suas terras, vender a força de trabalho nas áreas metropolitanas era a única saída, aumentando consideravelmente o êxodo rural.

Tal processo se iniciou nos anos de 1940, mas foi em meados dos anos

de 1960 e 1970 que indicou resultados expressivos, com o aumento da produção

agrícola. Porém, diferente do discurso ideológico sobre o motivo da Revolução

Verde - aumentar a produção para erradicar a fome no mundo – indicou mais

agravos socioambientais, conforme a afirmação de José Maria Gusman Ferraz

(Pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa)11.

O pesquisador acrescenta que a investida revolucionária se fez

reconhecida como causa do aumento da concentração fundiária, o que causou o

“inchaço” das cidades, e assim a incidência da favelização antes não vista; bem

como a dependência daqueles que ainda com suas terras, não tinham mais a

liberdade de sua cultura de plantio.

Diante disso, percebemos que a Revolução Verde foi mais uma estratégia

de reprodução do capital, herdada do capitalismo desde seu estágio inicial, do que

de caráter positivo às adversidades que historicamente a população subalterna

vivencia como a disparidade social que há entre a classe detentora de bens

materiais e a classe trabalhadora.

Com o processo de expropriações de terras, significativa parcela de

trabalhadores que possuía alguma dimensão de terras, e que sofreram com esse

processo teve que se sujeitar a adversas condições de trabalhos nas fazendas,

ainda sujeitos a ser dispensados, devido a mecanização que se expandia nos

territórios, contribuindo assim, para o acúmulo do exército de reserva. (OLIVEIRA

1996 apud ANDRADES & GANIMI, 2006, p.53).

11

Muito além da tecnologia: os impactos da Revolução Verde – Com Ciência (Revista eletrônica de jornalismo científico). Disponível em:<http://www.comciencia.br/comciencia/?sec tion=8&edicao= 58&id=730>. Acesso em: 20 de maio de 2014.

33

Essa população está à mercê das condições de trabalho estabelecidas

pelo capitalismo, quando ainda permanecem em condições precárias, sofridas pelo

desemprego gerado desde o início do sistema capitalista. Assim, esse segmento

social embora não permaneça em situação estagnada, muitos passam a viver em

uma verdadeira “acrobacia”, ou seja, por vulnerabilidades e estratégias de

sobrevivência, o que pode decorrer ainda na ida para as ruas.

Assim, os processos inerentes ao capitalismo revelam que as

adversidades sociais são originadas dessas transformações vinculadas mais aos

interesses de uma minoria, indicando assim expressão radical da questão social na

contemporaneidade, materializada e evidenciada pela violência do capitalismo sobre

o ser humano. Tal violência se dá pela desapropriação dos meios de produção de

riqueza para uso próprio, fundamentada na estratégia de submissão da classe

trabalhadora que se constitui as condições capitalistas e assim a situações extremas

de degradação de vida, como mesmo a situação de rua (Silva, 2006).

Tiene (2004 apud SILVA, 2006) coloca que embora a rua seja uma esfera

pública, ainda não é percebida como espaço de todos, tendo em vista que é

marcado pela apropriação, que pressupõe o rito de iniciação para fazer parte dela e

da ordem social que indica a manutenção na mesma.

Dessa forma, a apropriação contribui mais ainda para a posição do sujeito

à margem do cenário e da dinâmica socioeconômica em que a sociedade é movida.

E a dicotomia entre público e privado torna-se mais presente na discussão sobre a

vivência dos que vivem nas ruas, considerando que estes estão inseridos em um

contexto que a apropriação faz distinguir seres humanos.

Nesse sentido, Escorel (1999), esclarece que a propriedade se relaciona

com a condição de cidadania, igualdade, proteção das leis e segurança e diante

disso, embora seja um sujeito político, a ausência de um lugar próprio e privado,

caracteriza a falta de ser humano.

No entanto, é necessário nos remetermos ao período que se expande até

os dias atuais, o qual evidencia uma nova configuração sociopolítica e econômica

que incide na sociedade, a partir da crise do capital dos anos de 197012, quando

agravou os interesses do capital.

12

A crise dos anos de 1970, na verdade, foi uma crise clássica de superprodução que orientada pela lei do valor, do padrão de acumulação capitalista, culminou no alto índice de inflação, expandindo o endividamento de processos públicos e provados. A referida crise passou a não responder a

34

Frente a essa crise, de forte instabilidade econômica, surgiram novos

preceitos, a luz do sistema neoliberal que incidiam sobre a estrutura do trabalho e do

mercado, para reconstituir o mercado.

Behring e Boschetti (2011) afirmam que o novo sistema neoliberal tratou

de uma reação a decadência capitalista, quanto a recessão e baixo crescimento

econômico, fundamentado na reestruturação dos setores político, econômico e

produtivo do âmbito de trabalho.

Na época, com a parceria principal do Estado, os governos13 que

idealizaram e apoiaram a referida proposta influenciaram mudanças em diversos

setores da sociedade: a expansão das organizações privadas nos serviços sociais,

diante das orientações internacionais para a proteção social e principalmente as

condições do trabalho, que passaram a ser flexibilizadas em prol dos interesses de

acumulação do capital (ibidem. p. 156).

Com as novas formas de contratos, as relações trabalhistas foram

desregulamentadas, baseadas em mecanismos flexíveis e vínculos de trabalhos

temporários, sem formalização e garantia de direitos no âmbito de trabalho (SILVA,

2006).

Mõntano (s/d) acrescenta que com o projeto neoliberal, no fim do século

XX, a sociedade assistiu diversas transformações que ultrapassaram o âmbito

econômico. Tais mudanças se deram no cenário societário, como o aspecto

sociocultural, tendo em vista a tentativa neoliberal de por fim a condição de direito

das políticas sociais e assistenciais, em substituição aos serviços comercializáveis e

de atividade filantrópico-voluntária.

Dessa forma, as condições sociais da população que possuía apenas sua

força de trabalho como forma de sobrevivência foram interferidas pela

reconfiguração das relações trabalhistas, que incidiu na desvinculação dos direitos

sociais à classe trabalhadora.

retração do consumo que se estendia diante do desemprego estrutural iniciado nesse período, ocasionada pela introdução de técnicas capital-intensivas e poupadoras de mão-de-obra; além da crise social e política dos países imperialistas, devido a ascensão das lutas de trabalhadores contra s propostas de austeridade; bem como resultado da crise de credibilidade do capitalismo, que não respondia mais a garantia do pleno emprego, das liberdades democráticas e da qualidade de vida (BEHRING; BOSCHETTI, 2011).

13 Os primeiros expoentes da política neoliberal foram os governos Thatcher (Inglaterra, 1979),

Reagan (EUA, 1980), Khol (Alemanha, 1982) e Schlutter (Dinamarca, 1983).

35

O discurso da necessidade da redução dos gastos excessivos pelo

Estado nas políticas sociais não exclui sua ação em outras dimensões, justificada

pelo mesmo diálogo.

Nesse sentido, Neto e Braz (2006) esclarecem que na realidade, o

objetivo do capital monopolista não é a exatamente a “diminuição” do Estado, mas

sim a redução das ações estatais coesivas, no tocante a satisfação das

necessidades, dos direitos sociais das classes subalternas.

Em contrapartida, a ideologia neoliberal impulsiona o Estado a intervir no

financiamento da esfera capitalista, justificada pela necessidade real desta de se

restabelecer como desenvolvimento à sociedade. Assim, surge uma nova direção

estatal: “Estado mínimo para o trabalho e máximo para o capital” (Neto & Braz,

2006, p. 227).

Outro fenômeno que se expandiu na época foi o número elevado da

pauperização da classe trabalhadora, ocasionado pela redução das taxas de

desemprego, falta de garantia derivada da flexibilização do trabalho e do

desemprego. Este último resultou de uma drástica diminuição de ocupações nas

áreas industriais, fator que também contribuiu para a expansão do exército de

reserva14.

Nessa direção, Castel (1998) explica que a partir dessa realidade de

regressão no âmbito das políticas sociais e do trabalho, a ideia de sujeitos

assegurados numa dada relação de trabalho, de caráter fixo e integrante passa a ser

desconsiderado, explicando a existência de populações em condições desfavoráveis

de vida, como os que passam a perambular, mantendo-se de um lugar para outro.

A partir dos anos de 1980, segundo Giddens (1999), a inserção dos

processos de modernização15 e globalização16 das estratégias de gestões

14

É um grande contingente de trabalhadores desempregados, que não encontra compradores para a sua força de trabalho (ENGELS, 1972 apud NETO & BRAZ, 2006).

15A modernização substituiu as formas de sociedades tradicionais que eram baseadas na agricultura.

O processo de modernização influiu em quatro grandes grupos de “complexos institucionais da modernidade”. O Poder administrativo foi um destes, que se refere ao desenvolvimento de um Estado-nação com formas burocráticas e racionais de governar as dimensões da população, como por exemplo, o capitalismo e a industrialização, que foi outro grupo interferido por esse processo, com a introdução da forma de produção fabril-industrial, como aspecto moderno dominante na economia mundial em detrimento das formas tradicionais de produção. Esse processo “distanciou” os indivíduos e as comunidades das sociedades tradicionais destas noções estreitas de tempo, espaço e status. O autor exemplifica que a modernização “desencaixou” o indivíduo feudal de sua identidade fixa no tempo e no espaço.

36

governamentais ocasionou um consenso da dissolução do Welfare State, o que

contribuiu para o aumento vertiginoso da população de rua, bem como para as

circunstâncias irreversíveis a essa população.

2.2 A repercussão sócio-histórica da população em situação de rua no

contexto brasileiro

Salientamos que o Brasil também foi cenário das transformações

societárias discutidas no tópico anterior. Tais transformações apresentaram diversas

repercussões na vida social, como a segregação socioespacial do país.

A questão que envolve a situação de rua, assunto que faz parte de nosso

tema de estudo, pode ser percebida como fato desencadeado por outros processos

que se desenrolaram no decorrer da história do Brasil. Mas ao nos reportamos sobre

o contexto brasileiro, não devemos dispensar a totalidade da estrutura social em

escala mundial.

Assim, como a Europa, o Brasil gradativamente aderiu ao processo de

transformações que atendiam à proposta de modernização das cidades, baseada na

lógica do urbanismo e, principalmente da industrialização, que se iniciava no final do

Século XIX e no começo do Século XX.

A introdução do processo industrial no Brasil é um dos principais

episódios que marca essas transformações no país, evidenciado pelos impactos

sociais, políticos e econômicos, com a produção industrial. Porém somado a isto, o

16

As metamorfoses do mundo do trabalho são acompanhadas pelo o que alguns caracterizam como processo de globalização da economia, mas que, incorporando a contribuição de Chesnais (1997 apud PELLOSO &CAMPOS, 2011) pode ser apontado como processo de mundialização da economia, ou de constituição de um regime de acumulação mundial predominantemente financeiro. Trata-se, conforme Husson (1994), da formação de um mercado unificado com companhias mundializadas, bem como da configuração de uma base planetária de concepção, produção e distribuição de produtos e serviços, inclusive com uma redefinição das especialidades no mercado mundial. A mundialização vem se revelando um processo contraditório, desigual e assimétrico, intensificado pela revolução tecnológica, sobretudo com a horizontalização das empresas e sua ligação pela rede de informática; e pelo neoliberalismo, cuja essência é o afastamento dos obstáculos à circulação do fluxo de mercadorias e dinheiro. No entanto, ela está longe de promover uma homogeneização do espaço econômico, reafirmando a idéia de um desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo, cuja maior expressão são as tendências recorrentes de crise do mercado financeiro, que atingem de forma diferenciada os países, segundo as características de sua inserção no mercado mundial (BEHRING, 2001, p.112).

37

deslocamento populacional foi questão pertinente, que incidiu na vida da grande

classe trabalhadora.

A partir dos anos de 1930, no governo de Getúlio Vargas o processo de

industrialização teve um salto significativo quanto ao seu desenvolvimento, atraindo

assim significativa parcela da população rural à modernidade das cidades, em busca

de perspectivas de vida contrárias as que vivenciavam.

Como resultado desse processo, Alves (1998) ressalta que houve um

intenso desordenamento no crescimento urbano, o que decorreu no surgimento das

chamadas favelas e acampamentos, com a falta de condições de moradia e de

outras necessidades à vida dos migrantes.

Apesar do cenário de desenvolvimento que as cidades industriais

sinalizaram, Santos (1994, p.81 apud RAQUEL, 2012, p.20) afirma que:

As pessoas que não encontram mais trabalho no campo dirigem-se para as cidades, engrossando a fileira dos trabalhadores ou candidatos a um trabalho urbano-industrial. No entanto não haverá trabalho para todos, advindo daí boa parte dos problemas, como os que conhecemos atualmente.

Assim sendo, observamos que, apesar do crescimento das cidades e do

desenvolvimento industrial ter sinalizado progresso na paisagem dos espaços

sociais e na dimensão econômica, significativa parcela da população, tanto do

espaço urbano e os chamados migrantes ainda se mantiveram em situações

desfavoráveis à sua sobrevivência, evidenciando a não contemplação de todos aos

rendimentos e prosperidade desse novo cenário social.

Diante disso, e da colocação de Santos (1994) que explana sobre a não

absorção de todos no âmbito do trabalho, podemos perceber que isso pode incidir

nas condições de vida da população, como trabalho, moradia, saúde, habitação,

entre outras condições básicas de vida.

Porém, é na conjuntura neoliberal – proposta aderida também pelo Brasil

à acumulação flexível, que o empobrecimento de parcela da população, bem como a

incidência situação de rua se apresentam com maior expressão na sociedade

(RAQUEL, 2012).

Silva (2006) afirma que sobre a população em situação de rua não há

registros concretos de sua origem exata, o que faz nos ater ao período a partir dos

anos de 1990, ano que indicou os primeiros estudos sobre esse segmento social e

38

que coincide com as mudanças impulsionadas pelo capitalismo na década de 1970,

e especificamente, na segunda metade dos anos de 1990 no contexto brasileiro.

Nesse período, a sociedade brasileira passou a ser orientada pela nova

proposta referida – neoliberal – atrelada a classe detentora do capital, a qual

apresentou elementos adaptadores, como a desestruturação das condições de

trabalho, exemplificado com a informalização e flexibilização.

As reformas empreendidas tiveram como base a modernização

conservadora ou de revolução passiva, e não de cunho social-democrata (Coutinho,

2010). E tais mudanças incidiram em alterações nas condições de vida e de trabalho

dos de “baixo” – evidenciado pelo desenvolvimento de um Estado social, porém

vinculado à classe capitalista, que detinham controle sob as classes subalternas,

para não correr o risco de dividir os índices de progresso socioeconômico com estas

(BEHRING; BOSCHETTI, 2011).

No entanto, salientamos que além das mudanças no processo econômico

e da disparidade pela desigualdade de quem possui capital e os que possuem

apenas a força de trabalho para sobreviver, a reestruturação produtiva – eixo do

neoliberalismo – apresentam outras configurações e consequências que a exemplo,

incidem no âmbito do trabalho e assim, na vida da classe trabalhadora.

As repercussões foram: o trabalho precário, relações trabalhistas sem

garantia de direitos, a redução dos postos de trabalho, bem como o desemprego,

que acentuou a superpopulação relativa no mundo e no Brasil e o pauperismo,

contribuindo para a expansão da população desapropriada de condições mínimas de

vida, como a população em situação de rua (SILVA, 2006).

Outra evidência que ainda aponta a relação entre trabalho e situação de

rua foi identificada na afirmação de Neves (1983 apud VARANDA; ADORNO, 2004),

que indica que nos primeiros estudos sobre a população em situação de rua no

Brasil, revelaram a existência de ex-trabalhadores vinculados a mendicância,

caracterizada por uma série de degradações das condições de trabalho a partir dos

anos de 1950 e 196017.

Contudo, embora a mendicância era percebida como adversidade

também relacionada a situação de rua, até 2009, era considerada alvo de ação

penal no Brasil.

17

Artigo: Descartáveis urbanos: discutindo a complexidade da população de rua e o desafio para políticas de saúde.

39

Relativo a isso, Siqueira (1932) explica que os chamados mendigos

podem ser reconhecidos por duas dimensões: os inválidos, que são os que inspiram

piedade, demandando real assistência às suas adversidades, e os que são válidos.

Esta última categoria se enquadra na concepção penal, tendo em vista que o autor

refere sobre os válidos como exemplo causador de perigo à ordem social. Explica

que não havendo condições mínimas de sobrevivência, e de busca ao trabalho

honesto, os chamados válidos servem-se do crime para subsistirem18.

Contudo, ao longo do tempo, a concepção jurídica sobre a mendicância

como contravenção penal foi alterada, tendo em vista que essa relação remetia ao

preconceito social, mais precisamente, a “criminalização da pobreza”. E ainda por

levar a limitação da liberdade dos sujeitos, sem que houvesse comprovações de

lesões ou ameaças de lesões.

Assim, a revogação do artigo da Lei de Contravenções Penais pela Lei

11.983, o que sinalizou uma concepção progressiva o Estado quanto essa

questão19.

Percebemos que a mendicância é um aspecto relacionado à população

em situação de rua, que reflete a desigualdade social, agravado pela falta da

integração entre proteção social do Estado e condições dignas de trabalho à

reprodução da vida (BURSZTYN, 2000 apud LIMA, 2008).

Contudo, parcela da população em situação de rua ainda aponta

atividades de dimensão ocupacional que realizam para obter rendimentos,

vinculados a serviços informais, como engraxates, coleta de materiais recicláveis,

cuidadores de carros.

De acordo com a “Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de

Rua, esse segmento social é composto, em grande parte, por trabalhadores. Isso se

evidencia por alguma atividade que, embora esteja na situação de rua, exercem

alguma atividade remunerada.

A referida pesquisa aponta que são 70,9% exercem alguma atividade

remunerada, destacando-se: catador de materiais recicláveis (27,5%), flanelinha

(14,1%), construção civil (6,3%), limpeza (4,2%) e carregador/estivador (3,1%).

18

Diante da situação concreta de perigo, a exemplo do período de meados anos de 1930 os mencionados mendigos ainda poderiam ser internados em instituto de reeducação, pelo prazo mínimo de um ano; e se chegasse a situação prisional, na possuía direito de fiança

19Disponível em: <:http://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/1591145/o-fim-da-contravencao-de-mendican cia>. Acesso em 10 de maio de 2014.

40

Pedem dinheiro como principal meio para a sobrevivência apenas 15,7% das

pessoas. E quanto a experiência em trabalho formal, 47,7% dos entrevistados

declararam nunca ter trabalhado com vínculo empregatício, através de carteira

assinada.

Consequentemente, percebemos que a população em situação de rua

embora possa estar desvinculada do mercado de trabalho, muitos ainda passam a

realizar alguma atividade, contrariando o imaginário desse segmento como restrito a

vadiagem e marginalização. E quanto as condições de trabalho, notamos que há um

número significativo de pessoas que nunca usufruíram de direitos trabalhistas

garantidos, evidenciado pela realidade da flexibilização do trabalho e de direitos

sociais vinculados também a realidade dessas pessoas.

Pochmann (2002, p.66 apud SILVA, 2006, p.32) contextualiza as razões

para a “escolha” das ocupações referidas pelos que vivem em situação de rua:

Deve-se destacar que as ocupações não organizadas encontram-se incluídas de forma dependentes e subordinadas à dinâmica capitalista. Contudo, embora opere conjuntamente com as ocupações organizadas, o segmento não organizado revela um espaço econômico limitado e intersticial na absorção da força de trabalho excedente ao modo de produção capitalista. Além disso, são o comportamento do segmento capitalista e a dimensão da população excedente que modulam os espaços de manutenção e reprodução das ocupações não organizadas.

Em uma matéria intitulada “Moradores de uma terra sem dono” (2010),

Robson Rodrigues refere que a crescente população em situação de rua no Brasil

evidencia a cruel miséria social aprofundada em diversos ramos da esfera pública; é

reflexo visível do agravamento social no Brasil, e a falta de políticas públicas à

garantia de condições mínimas de sobrevivência ao cidadão.

Em contrapartida, o que ainda se percebe são os estigmas do fracasso,

da impotência, da vagabundagem e da menos-valia, que decorrem no afastamento

das estruturas sociais, e nas ações de estratégias de sobrevivência no anonimato

(VARANDA, 2009).

Percebemos então um cenário social mais amplo em que o “problema das

ruas” está inserido, não o direcionado a uma conduta ou fragilidade restritamente

individual, mas a outros elementos que relacionam a falta de condições mínimas de

vida.

41

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio – PNAD, de

2007, apontam que as condições dignas de moradia ainda se apresentam como alvo

de conquista a ser alcançado por brasileiros, os quais 54 milhões de pessoas foram

observados com ausência de condições favoráveis de moradia. Alguns morando em

locais precários, que oferecem risco à saúde ou à segurança da população, outros

em loteamentos irregulares, em cortiços, pensões, aluguéis.

Ainda sobre esse contexto, Rosa (2005) reforça sobre a ida para as ruas

como decorrente também da ausência de trabalho, o que torna os espaços públicos

como áreas de aglomeração, inclusive os locais abandonados.

Nesse sentido, pensar sobre a relação que há entre pobreza, situação de

rua, e o trabalho, nos faz remeter sobre o cenário atual, que além da precarização

do trabalho já submetido a uma parcela da população absorvida pelo mercado,

ainda há cada vez mais a ausência do trabalho, porém, este ainda percebido como

“solução” para essas adversidades sociais, bem como ponto relevante para o

resgate da dignidade outrora perdida aos que vivem em situação de rua (LIMA,

2008).

No entanto, apesar do trabalho ser tema de questionamento quanto a

“saída” das ruas, Silva (2006) explica que as atividades laborais ainda se constituem

como fator principal e relevante na vida dos sujeitos que passaram a ir para as ruas.

Isso se dá pela forma como se elabora esse fenômeno na nossa

sociedade consubstancia uma carga de valores fundada na tese do trabalho que

dignifica o homem, associado à ideia do homem trabalhador, honesto que se opõe à

marginalidade (VIEIRA, 2004).

Nas pesquisas realizadas nos estados de São Paulo, Belo Horizonte e

Porto Alegre, as quais apontaram que as ocupações desenvolvidas pelos que

viveram em situação de rua eram aquelas que perderam postos de trabalho,

justificada pela falta de qualificação para seu exercício. São elas: eletricista,

carpinteiro, sapateiro, pintor, manobrista e motorista.

Como alternativas a condição do desemprego direcionaram-se para

outras atividades, como formas de manter sua sobrevivência: catadores de materiais

recicláveis, guardadores de carros, flanelinhas e engraxates.

42

Outro processo que se desenvolveu historicamente e se vincula com a

trajetória da ida para as ruas é o urbanismo20. Processo este que repercutiu

mundialmente em prol do embelezamento das cidades, e do processo industrial.

Vale ressaltar que esse processo foi impulsionado pelos interesses de

grupos empresariais que, movidos por interesses lucrativos, adequou a forma

urbana as reais necessidades de concentração e acumulação do capital (ABREU,

1987 apud AMADO, 2011).

Dessa forma, observamos que além das mudanças político-econômicas

empreendidas, implicou-se ainda na dimensão estrutural da sociedade que, por sua

vez, pode incidir nas condições de vida e de moradia da população.

Nesse contexto, a segregação foi aspecto característico do espaço

urbano, evidenciando mais ainda a desigualdade social através da divisão

organizacional das cidades. A divisão da localização de moradia e referência

colocavam alguns grupos sociais em locais desenvolvidos e outros à margem desse

cenário de desenvolvimento econômico e urbano social que eram impelidos a viver

em regiões menos desfavorecidas em termos de oferta de trabalho e do atrativo do

capital. Dentre estes, os que vivem em situação de rua também passaram e ainda

passam a ser excluídos deste cenário, agravado pela impressão de marginalidade e

perigo, implicando ainda mais ao isolamento social e físico desse segmento social

(NOGUEIRA, 2009).

A Pesquisa Nacional sobre a População de Rua: “Rua, aprendendo a

contar” (2009), aponta que o Movimento dos Sem Terra (MST) é outro processo

relativo a problemática dos que vivem em situação de rua, e isso inclui não somente

o movimento dos sem teto ocorridos nos espaços urbanos, mas claro, no espaço

rural que aponta para a uma parcela da população que não “possui chão”.

Embora o meio rural não disponha de ruas, existem as estradas, as quais

as pessoas se aglomeram às suas margens, constituindo também o segmento que

20A urbanização consiste em um processo de crescimento das cidades na era industrial, comum

deslocamento do centro da vida social do campo para as cidades e penetração das reformas nas áreas rurais. No Brasil, o processo de urbanização se deu de forma acelerada e decorreu em mudanças ao cenário urbano: o traçado das velhas cidades já não corresponde às exigências da nova indústria nem ao seu grande movimento. As ruas, sem uma infraestrutura necessária, são alagadas, abrem-se novas vias de acesso e novas formas de transporte como os trens e os bondes. Isto é a cidade passa a refletir não só as transformações que se realizam no âmbito do capitalismo mundial, mas também se preparam para oferecer as condições necessárias para o desenvolvimento industrial. Nesse contexto, destaca-se a precariedade das habitações, sobretudo das classes subalternas (GOMES, 2005 apud AMADO, 2011).

43

utilizam os espaços públicos como espaço de “abrigamento” ou de meios de

obtenção de renda, de sobrevivência.

2.3 Características as pessoas em situação de rua: vivências e fatores

implicados na trajetória para as ruas

A realidade da situação de rua evidencia a multidimensionalidade dessa

situação, frente às diversas circunstâncias e adversidades coexistentes que

explicam as causas e podem desenvolver na ida para as ruas.

Essa situação é representada por peculiaridades nas diversas regiões

brasileiras e na infinidade de histórias de vida desses indivíduos em uma mesma

região (MATTOS, 2006).

Castel (1998) reforça sobre o surgimento das populações que

perambulam “permanecendo em todo lugar”, pelo fato de se encontrarem excluídas

da condição de ocupação, de integração ao âmbito de trabalho que desenvolva

atividades que possibilitem prover o indivíduo.

Nesse sentido, a descartabilidade do ser humano no mundo globalizado

equivale a das mercadorias e por isso, nessa sociabilidade, se vê habitualmente

seres humanos “vivendo na rua e da rua, do lixo dos ricos”. (BURSZTYN, 2000 apud

NOGUEIRA, 2009).

A trajetória e a permanência em determinados locais públicos sejam como

moradia ou como forma de sobrevivência – são influenciados por recursos e

condições que implicam na dinâmica socioespacial em que esse segmento se situa.

E ao longo do tempo, esse segmento populacional passa a apreender determinados

locais, estratégicos a sua permanência e para suas diferentes funções da vida diária:

acesso a materiais descartados, como forma de sobrevivência, acesso à água,

locais para higiene, alimentação e pernoite.21

Outro fator relevante para essa dinâmica socioespacial, ou topografia

própria inerente à população de rua, são os locais estratégicos para obtenção de

renda, e isso refere aos “bicos” ou acesso a doações de esmolas, situados

principalmente em espaços que desenham um cenário que circulam pessoas em

volta da circulação de dinheiro (LIMA, 2008).

21

Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua – Rua: Aprendendo a contar (2009).

44

Em vista aos locais estratégicos de sobrevivência, evidencia-se que,

embora a população nas ruas possa significar pessoas sempre em movimento,

passam a identificar certos locais como seguros e possíveis a permanência da

obtenção de meios de sobrevivência.

Nessa direção, Pimentel (2005) refere que as relações se modificam com

certa fluidez e variam de acordo com as circunstâncias, como os fenômenos

naturais, alterações de espaços urbanos, ações policiais, dentre outros que

desencadeiam na mudança de espaço desse segmento social. Assim, isso se dá

quando há “saturação” do território, pela desqualificação da sua função imediata,

esgotado os atrativos à garantia de benefícios aos que ali ocupavam.

Além disso, as relações que se desenvolvem nos espaços públicos entre

os que vivenciam as ruas fazem com que formem vínculos entre eles, construindo

uma organização político-social, incorporando assim uma espécie de segunda vida,

uma forma política de viver. Muitos que moram nas ruas, por exemplo, passam a

compartilhar os espaços que indicam segurança e abrigo, assim como momentos de

atividades e locomoção para sua sobrevivência, como nos serviços que oferecem

alimentação, banho, pernoite (ESCOREL, 1999).

Pimentel (2005) refere que essa vivência compartilhada se configura

numa teia de relações, e trocas e de dependência mútua na mobilização e recursos

para a sobrevivência e a outros fins. Essa teia se estabelece numa rede de

solidariedade entre os que vivenciam em comum a experiência das ruas, por

exemplo.

No entanto, embora haja tal relação de solidariedade, o vínculo ainda

pode ter risco de ser rompido, haja vista a mobilidade que passam a ter pela busca e

“posse” de espaços, configurando locais de disputas para abrigo e segurança,

evidenciando a ausência de relações constantes de muitos que vivem em situação

de rua.

Por conseguinte, revela-se que a situação de rua ocasiona a vivência com

uma série de carência que passam a ser enfrentadas cotidianamente, exigindo

assim a adaptação a outras referências da vida social distintas daquelas

anteriormente vividas (VIEIRA, 2004).

Prates e Machado (2011 apud ABREU, 2013) explanam as expressões

como deambulantes ou andarilhos, vinculados ao movimento de deslocamento não

45

tão comum as pessoas em situação de rua. A pessoa considerada andarilho advém

muitas vezes de processos de expulsão de locais, nos quais foi aceito por um

período, mas logo depois rejeitado, devido a apreensão a ele como característico do

“meio da rua”, ainda relacionado ao acúmulo de objetos no espaço da rua, pelo uso

frequente de drogas, pela apresentação de delírios ou pelo incômodo causado por

sua presença e forma de ser, estar no mundo aos moradores do bairro ou pessoas

que por ali circulam.

Além disso, Brognoli (1996 apud ABREU, 2013, p.32) refere que a partir

de sua pesquisa, identificou os chamados “trecheiros” como pessoas que não tem

lugar fixo para se manter, passando a andar de um lugar para outro, como um

viajante, mas sem trecho.

Contudo, embora os termos mencionados possam indicar a situação

semelhante aos que vivem em situação de rua que por sua vez, possam apresentar

experiências e características comuns, os termos referidos não contemplam e assim

não solidificam com segurança a identificação e conceituação desse segmento

social de diversas singularidades em suas histórias de vida.

Porém, ressalta-se que os termos “morador de rua” e “pessoa em

situação de rua” são os mais comuns para definir as pessoas que utilizam a rua

como espaço de moradia e que usam estratégias de sobrevivência e aqueles que

somente tiram o seu sustento, mas não fazem da rua seu espaço de moradia.

Nesse sentido, Escorel (1999) afirma que a distinção entre “pessoas em

situação de rua” e “moradores de rua”, são os que usam a rua como moradia de

forma permanente, ou seja, pessoas que tem a rua como seu habitat. Relativo as

pessoas em situação de rua, são consideradas as que as utilizam por um período

restrito, assim a trajetória nas ruas é temporária, como um tempo de “passagem”.

Vieira (1994) ainda explica que as pessoas que ficam na rua são

identificadas por situações circunstanciais ocasionadas pela questão estrutural,

como a falta de condições dignas de vida, o desemprego, e assim a busca de

emprego em outros locais que ultrapassam seu lugar de origem, bem como pela

busca de outras condições inerentes à sua vida, como o tratamento em saúde e

aproximação com familiares.

Diante dessas ocasiões ocorridas em diversos eixos de tempo e espaço,

há várias configurações da presença nas ruas referidas por Vieira (1994), como: As

46

pessoas que estão na rua – são aquelas que já não possuem a percepção de perigo

e ameaça das ruas, passando assim a estabelecer contato e até vínculo com outras

pessoas que vivem na rua, seja como local de moradia ou de meio de sobrevivência.

Exemplos dessa experiência os guardadores de carro, descarregadores de carga,

catadores de papéis ou latinhas.

As pessoas que são da rua – são sujeitos que possui um tempo

significativo de vivência nas ruas, revelado por um processo de debilitação física e

mental, ocasionado pelo uso do álcool e das drogas, pela alimentação deficitária,

pelas atividades diversas que se dispõem a realizar para obtenção de renda, pela

exposição e pela vulnerabilidade à violência (VIEIRA, BEZERRA E ROSA, 1994, p.

93-95).

Quanto ao último levantamento realizado pela Pesquisa Nacional sobre a

População em Situação de Rua, foram contabilizadas 31.922 pessoas vivendo em

situação de rua, em 71 municípios pesquisados22.

Essas pessoas informaram viver em locais públicos (calçadas, praças,

rodovias, parques, viadutos, praias, túneis, prédios abandonados, becos e lixões),

privados (postos de gasolina, barcos, depósitos ou ferro-velho) ou pernoitando em

instituições (albergues, abrigos, igrejas, casas de passagem e de apoio).

A Pesquisa verificou que esse segmento é predominantemente

masculino (82%), e mais da metade (53,0%) são adultos, com faixa etária entre 25 e

44 anos de idade.

A Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua:

“Aprendendo a contar” (2009) aponta que a realidade das ruas ainda torna-se um

pouco distante do perfil das mulheres, levando-a a buscar outras formas de

sobrevivência, muitas vezes, submetendo-se a outros infortúnios até mais

agravantes à sua condição de vida.

Ainda segundo a pesquisa, o pequeno número de mulheres (18%),

comparando com a quantidade de homens (82%) de um levantamento equivalente a

22.669 pessoas nas ruas, pode indicar que muitas ainda optam permanecer em

22

Ressalta-se que a Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua não contemplou todos os municípios brasileiros. Sendo assim, o número contabilizado não corresponde ao total de pessoas em situação de rua no ano da pesquisa (2008). Entre as capitais que não foram pesquisadas, destaca-se São Paulo, Recife, Belo Horizonte e Porto Alegre, visto que os 03 primeiros haviam empreendido pesquisa recentemente, e este último realizara pesquisa de iniciativa municipal. A listagem dos municípios pesquisados localiza-se no Quadro 01, em anexo a referida pesquisa.

47

suas casas, suportando situações de violência e opressão, a ter que ir morar nas

ruas, enfrentando assim as dificuldades oriundas dessa vivência.

Contudo, ressaltamos que a pesquisa que aponta a vivência das ruas

como remota para o perfil feminino é relativamente real, tendo em vista que muitas

possuem essa experiência, indicando assim que é necessário ter um estudo

minucioso sobre a realidade da situação de rua para as mulheres.

Esse número pode ser explicado na dimensão histórica e culturalmente

percebida pela colocação da mulher como cuidadora do lar, submissa ao âmbito

doméstico e a desigual relação de trabalho, repercutindo também nos espaços

públicos, como as ruas (TIENE, 2004).

A referida pesquisa ainda revela que mais da metade da população em

situação de rua encontra-se na faixa etária da população economicamente ativa

(56,3% têm entre 25 e 44 de idade) o que nos faz questionar e compreender que as

repercussões das mudanças socioeconômicas, principalmente a partir dos anos de

1990 no Brasil incidiram sobre as condições de vida da classe trabalhadora que não

fora totalmente absorvida pelo sistema capitalista.

Pensar sobre a população em situação de rua nos faz questionar os

motivos que ocasionam essa trajetória, tendo em vista outras adversidades que

aparecem nessa vivência, como a insegurança de sobrevivência, a falta de

alimentação, moradia, saúde, renda fixa, ou seja, as mínimas condições de

sobrevivência.

O Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2012) indica

que a motivação da ida para as ruas, bem como para outras situações inerentes ao

universo das pessoas em situação de rua é caracterizada pela diversidade, tendo

como elementos principais a condição extrema de pobreza, a fragilidade ou

interrupção de vínculos familiares e a falta de moradia em situação regular. Em

decorrência disso, a situação se direciona para a formação de aglomerados em

ruas, praças, áreas degradadas, como locais abandonados e ruínas, e

eventualmente em abrigos e albergues que são utilizados para pernoite.

No entanto, Varanda (2009) afirma que a degradação econômica e a

desqualificação não são os únicos determinantes para a situação de rua, assim

sendo, não são únicos elementos que desenham o perfil desse segmento

populacional. Essa situação se deve também a situações vivenciadas por pessoas

48

que passam por rupturas cumulativas, no âmbito familiar e social quando nas

relações de trabalho, distanciando-as das estruturas socialmente aceitas, o que

pode ocasionar em vulnerabilidades e estigmas aos que passam a vivenciar as ruas

como moradia e sobrevivência.

Silva (2009) aponta que:

Os fatores mais enfatizados pela literatura contemporânea são a ruptura dos vínculos familiares e comunitários, a inexistência de trabalho regular e a ausência ou insuficiência de renda, além do uso frequente de álcool e outras drogas e problemas atinentes às situações de desabrigo (SILVA, 2009, p.105)

Nessa direção, a autora sistematiza os fatores que implicam na ida para

as ruas, que vai além do viés estrutural, o qual já foi explanado - ausência de

moradia, inexistência de trabalho e renda, mudanças econômicas e institucionais de

significativo impacto social, etc. São os fatores biográficos, vinculados à vida de

cada pessoa que passa a ir para as ruas (vínculos rompidos ou fragilizados, os

transtornos mentais, mortes familiares, roubo de todos os bens e outros infortúnios);

bem como os fatores naturais, reconhecidos como desastres - terremotos,

inundações.

Dentre esses motivos referidos a situação de rua, autores apontam como

razões fluentes para essa realidade a fragilização dos vínculos familiares,

considerando como problema associado em quase a totalidade, como problema de

ordem econômica, além do desemprego e da falta de condições para alimentação e

moradia (PRATES, REIS e ABREU, 2000 apud SILVA, 2006).

Salientamos que essa problemática ainda deve-se a outros fatores que

podem aparecer como singulares e de dimensão sociocultural que desencadeiam na

fragilização ou o rompimento dos vínculos familiares e, consequentemente, na saída

para as ruas.

Dentre esses outros fatores coexistentes, Varanda (2009) exemplifica a

tolerância à diversidade sexual. Para o autor, a liberdade de expressão sexual

aparece como um possível destino para as ruas, tendo em vista a dificuldade de

quem opta por uma sexualidade contrária aos padrões de sexualidade aceitos pelos

âmbitos domiciliares. Fazendo assim, a buscarem locais e relações que possam se

livrar de julgamentos externos. Quando ainda convivem com julgamentos

culpabilizantes, percebidos como contrários ou fora dos padrões, passam a ser

49

dificultosa a aceitação em ambientes que decorrem no nomadismo e posteriormente

ao anonimato da rua.

Nesse sentido, as noções de valores que atribuem a si e ao meio em que

vive devem ser consideradas, evidenciando que a subjetividade é pertinente nas

vivências e situações as quais pessoas passam, estão e permanecem.

Dessa forma, a organização social é uma questão que se apresenta como

ponto inerente as dimensões da vida, implicando também nas vivências e conflitos

sociais que desencadeiam o processo para fora de seu âmbito domiciliar. Essa

organização, por sua vez, se vincula a estrutura da sociedade, que emerge na vida

material e nas percepções da sociedade, atrelada aos padrões impostos pela

mesma. E isso remete a uma reação contrária e preconceituosa a posições e

opções distintas, desassociadas do modelo social.

Desse modo, as pessoas que vivenciam essa realidade de oposição

tende a perder suas referências familiares, de trabalho formal, com a escola bem

como com outras instituições (ibidem. p.37). Dimensões sociais, as quais os sujeitos

são identificados e reconhecidos ou não.

Além de escolhas e valores distintos, a divisão sexual dos papéis sociais

é outro aspecto sociocultural que envolve o fenômeno das ruas.

Varanda (2009) refere sobre o motivo da predominância do sexo

masculino nas ruas, uma vez que histórica e culturalmente, percebe-se no Brasil e

em muitas nações o homem como representante da família e de seu sustento.

O autor acrescenta que ainda considerando o contexto estrutural em que

vivemos, onde o desemprego é uma realidade presente, torna-se difícil a colocação

no mercado de trabalho ou no âmbito formal, levando a se ausentarem de casa,

muitos destes, passam a seguir o caminho para as ruas.

Além disso, a vivência nas ruas ainda representa cenário de violência e

de preconceito, tendo em vista que a realidade das ruas é masculinizada,

contribuindo para a percepção de fragilidade e de “vítimas fáceis” às mulheres.

Levando estas últimas a se adaptarem ao convívio e comportamentos machistas nas

falas e nos padrões de vivência dos homens – bebedeiras e o uso de droga (Ibidem.

p.19).

A Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua:

“Aprendendo a contar” (2009) afirma também que o fator principal da ida para as

50

ruas pelas mulheres é a perda de moradia (22,56%), seguido pelos problemas

familiares (21,92%) e pelo alcoolismo e drogadição (11,68%). Esses dados revelam

que outras adversidades e problemáticas ainda são suportadas por elas, e não pela

busca de liberdade de conflitos que possa vivenciar.

No entanto, visualizamos que tanto as experiências vivenciadas por

mulheres, como por homens, os fatores ou outras experiências que passam a

vivenciar é a perda de moradia, conflitos familiares e uso de álcool e outras drogas.

Este último, Silva (2006) aponta como um dos fatores biográficos mais presentes

nas pesquisas realizadas com pessoas em situação de rua.

2.4 A interlocução entre a situação de rua e o uso de drogas

Considerando que em meio as adversidades causadas e vivenciadas na

situação de rua, consideramos que o uso de drogas apresenta expressiva

coexistência nessa vivência. Contudo, apesar do número expressivo que apresenta

na Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua (2008) – 35,5%, nos

faz questionar a configuração que se apresenta tal uso e os reais motivos que as

experiências de situação de rua e drogadição se entrecruzam, para podemos

ultrapassar uma compreensão que pode ir além ou ser distinta do senso comum.

No entanto, vale ressaltar que a discussão que iremos explanar a seguir

não pretende referir o uso de drogas como realidade genérica na realidade de quem

vive em situação de rua, tendo em vista que o consumo de substâncias psicoativas

não é experiência de todos.

Porém Varanda (2009), a vida da maioria daqueles em que percorrem a

trajetória para a situação de rua, é identificada como uma experiência complexa,

esta tal situação, comumente, envolve o uso de bebidas alcóolicas, seja durante ou

depois do movimento para ruas.

Assim, revela a existência problemática que é a relação entre a situação

de rua e o uso de drogas, objeto de estudo que já explanamos e iremos discutir

continuamente.

A respeito das razões que levaram estas pessoas a estar em situação de

rua, a Pesquisa Nacional para a População em Situação de Rua apontou que

grande parte dos entrevistados referiu a situação de rua em decorrência do uso

51

abusivo de álcool e outras drogas (35,5%), o que se torna mais expressivo do que o

motivo desemprego (29,8%) e desavenças entre familiares (29,1%).

Como exemplo sobre dessa dupla realidade – situação de rua e

drogadição, Varanda (2009) em sua tese refere que em uma intervenção

psicoterapêutica, revelou que a infância de um jovem foi permeada por julgamentos

culpabilizantes, decorrendo em sua saída do âmbito familiar e outras experiências

da liminaridade, conduzindo-o a situação de rua e as drogas.

Ao pesquisar sobre essa relação – situação de rua e o uso de drogas - o

referido autor afirma que a hostilização familiar pode ser explicitada quando o sujeito

não contribui financeiramente com as despesas domiciliares, por conta do uso de

bebida ou de drogas, significando um dos fatores contrários as regras de

convivência em um ambiente familiar.

Essa realidade também foi percebida no campo em que estagiava –

Promotoria de Defesa da Saúde Pública. Nesse âmbito, através das falas de alguns

usuários, compreendemos que, embora estes tenham referências e âmbito familiar,

passavam a estar nas ruas, percebendo como um espaço de liberdade frente as

normas e conflitos familiares.

Nessa direção, passavam a se ausentar de casa, e estarem

frequentemente nas ruas. Somado a isto, através da relação construída com

“companheiros” de grupos vivenciados nas ruas esses usuários passavam a ter

acesso as drogas e a consumi-las como hábito recreativo de novidade.

Outros sujeitos ainda passam a fazer uso de drogas como forma de

potencializar sua “adaptação” com a situação de estar, de ficar, ou seja, nas ruas.

Situações que os sujeitos vivenciam como a morte de um familiar,

referência significativa à sua vida, decorrem em uma desestabilização emocional,

levando a perceber a bebida alcóolica como forma de minimizar seu sofrimento

(ibidem. p. 64).

Silva (2006) ainda reforça sobre a questão do uso de drogas, quando

refere que dentre as drogas mais consumidas o álcool é traço marcante nas histórias

de vidas antes e durante a estada nas ruas, sendo ainda fator decorrente da ida

para a rua. Esses dados reportam-se a Pesquisa Nacional sobre população em

52

situação de rua que aponta para trajetórias de fragilidades e processos de exclusão

social na vida desses sujeitos.

O consumo de bebida alcoólica passa a ser percebido por uma parcela da

população que vivem nas ruas como meio de “saída” ou de alívio as situações de

sofrimento, de rompimentos materiais, de laços familiares, emocionais, passando a

substituir o álcool ou potencializá-lo.

No entanto, a aparente reequilibração emocional, satisfação do desejo e

auto superação através do uso de álcool só encoberta o sofrimento e a precarização

da pobreza em que a população em situação de rua vivencia, revelando como um

processo reativo a exclusão social (ibidem. p.39).

O uso das drogas quanto uma ação ocorrida nas ruas ainda pode ser uma

forma de liberdade e alternativa à moralidade e ao controle social que limitam o

consumo dos usuários.

Isso leva em consideração os mecanismos sociais que operam no sentido

de limitar a disponibilidade da droga, limitando também seu uso (BECKER, apud,

VARANDA, 2009), e decorrendo na ida para as ruas, que passa a oferecer o uso

ilimitado dessa substância, afrouxando a legalidade e a moralidade presente nos

âmbitos sociais.

Nos últimos anos, dentre as drogas mais utilizadas pelas pessoas que

vivenciam a situação de rua, o crack, ou seja, a “pedra” (como é chamado o crack

pelos que vivenciam as ruas) também é uma das consumidas, haja vista por ser

produto de valor relativamente baixo e de fácil acesso (LIMA, 2008).

Para Rosa (2005), a população em situação de rua

Vivem no limite da possibilidade de uso de bebida ou da droga ilícita pela falta de perspectiva e de saídas, como também ficam à mercê de traficantes, que fazem deles usuários ou passadores e para acertos de contas entre eles próprios (ROSA, 2005, p.163)

Essa afirmação nos faz perceber que a situação de rua apresenta uma

complexa realidade, tendo em vista além de apresentar-se como uma adversidade,

ainda se vincula e pode acarretar outras situações que colocam em risco a vida de

quem está em situação de rua, como o uso abusivo de substâncias psicoativas.

Esse uso pode ser percebido apenas como um hábito, uma adversidade a mais, a

frente dos infortúnios que os sujeitos que vivem nas ruas passam não percebendo

alternativas de vida para ir contra os seus hábitos na rua.

53

Lima (2008) exemplifica algumas adversidades coexistentes à situação de

rua, como os momentos de lazer, comemorativos ou pelo vício compartilhado por

grupos que fazem uso de álcool e outras drogas os quais acabam originando

diferenças de percepções, ou até no ato de partilhar a compra de bebidas,

ocasionando divergências ou até morte, o que evidencia uma séria relação entre

violência, sociabilidade e bebida alcóolica.

A referida autora ainda coloca que o comprometimento na saúde física e

mental dos que passam a viver nas ruas é outra situação bastante presente, diante

do uso abusivo de substâncias psicoativas.

Assim, o uso abusivo dessas substâncias que causam dependência

podem agravar outras situações que os sujeitos antes de irem para as ruas

vivenciaram, bem como no cotidiano da vida nas ruas.

O uso de drogas apresenta uma série de fatores vinculados não somente

ao uso recreativo e de aspecto de privilégio dos que as consomem, mas também por

outros fatores (estruturais, psicológicos, emocionais, etc.) que também implicam na

ida para as ruas (VARANDA, 2009).

O álcool por não ser ilegal, pode distorcer a visão de quem consome essa

substância, denotando menos risco de seus efeitos para os que fazem uso/abuso

desta. Isso decorre da maior propagação aos jovens sobre os problemas

ocasionados pelas drogas ilícitas, o que faz com que esses sujeitos desconheçam

os riscos envolvidos no consumo das substâncias permitidas (SEIBEL &TOSCANO,

2001).

É certo saber, que por ainda haver certa discriminação quanto as drogas

ilegais, os usuários de drogas que desenvolvem problemas devido o abuso dessas,

que ainda se encontram em situação de rua não se sentem à vontade para procurar

orientação, ajuda para tratamento ou mesmo alimentação e pernoite em instituições,

permanecendo na mesma situação sem perspectivas de vida, em condição de

saúde debilitada, chegando até agravá-la.

Isso remete a cultura de estigmatização dos usuários de drogas,

intensificada ainda mais quando estes se encontram situação de rua que até, visto

que ainda não o reconhecimento distinção entre os que sofrem com o abuso de

drogas e os que se beneficiam com o tráfico dessas substâncias.

54

No entanto, tratar sobre o uso de álcool e outras drogas como doença,

ainda remete a uma concepção vinculada a ações biomédicas, baseadas na noção

higienista e discriminatória a esse uso, decorrendo em outras adversidades como os

desafios da vivência nas ruas23.

Em outros casos, situações diversas - desestruturação familiar, ausência

da efetivação da rede de proteção social, falta de oferta/alternativas de trabalho,

situação de rua - esta pode ser ainda resultado destes fatores referidos - podem

influir na experimentação e ao uso continuo de drogas, passando a ser situação

coexistente com as situações de risco social, como da situação de rua.

Contudo, Neves (2004) afirma que cada sociedade possui seus padrões

institucionalizados quanto ao uso de bebidas alcoólicas, a sua produção e a

variedade de motivos e de oportunidades construídas para o ato social de beber.

Neste caso, a patologização e concepção moral atrelada ao uso de álcool e outras

drogas vem sendo discutida, relacionada a um fenômeno socialmente construído.

Em contrapartida, Freire (1999 apud VARANDA, 2009) afirma que a

solução de questões complexas como alternativas de trabalho, uso abusivo de

drogas e outras questões de saúde requerem investigações de aspectos específicos

que possam orientar os gastos públicos e otimizá-los.

Nessa mesma linha de pensamento, o fenômeno do uso de drogas e da

situação de rua, quando considerado como fenômeno coletivo, na perspectiva social,

ainda evidencia injustiças sociais, como as veiculadas pela mídia (Rosa, 2005).

Outra realidade que fora veiculada pela mídia e pauta de discussão do

CFESS Manifesta, foi à violência contra à população em situação de rua,

evidenciada pelas ações de barbaridade, levando até a morte de muitos que viviam

nas ruas. Diversos foram os casos de violência e extermínio que a imprensa

divulgou nos últimos anos, como os assassinatos de mais de 30 pessoas em

situação de rua de Maceió (AL) durante o ano de 2010; a expulsão violenta de

pessoas que ocupavam a chamada “crackolândia”, em São Paulo (SP), em 2012,

em nome de uma pretensa política de combate ao crack, que gerou cenas

23

No período de estágio, observei que após o usuário/dependente de substâncias psicoativas sair do regime de internação, ou mesmo por evasão, alta médica ou pedido familiar, alguns acabavam voltando à mesma situação anterior e até em nível pior. E muitos desses usuários, passam a se inserirem em outras situações, como a situação de rua, fragilizando os vínculos familiares, chegando até o rompimento totalmente destes. Vale ressaltar, que em alguns discursos familiares, a situação de rua foi e pode também ser motivada pelo receio do usuário ou dependente tem em ser submetido novamente a internações psiquiátricas, como tratamento.

55

chocantes de multidões perambulando pelas ruas sob escolta policial; bem como o

registro de 87 casos de assassinatos de pessoas em situação de rua, entre 2011 a

2012, de acordo com o Centro Nacional de Defesa dos Direitos Humanos das

Pessoas em Situação de Rua, localizado em Belo Horizonte24.

Diante da histórica concepção de marginalização e vadiagem a qual a

população de rua fora considerada, ainda se percebe tal concepção presente nos

dias atuais, reveladas pelas ações violentas, contra a esse segmento populacional.

Por consequência, foram se desenvolvendo organizações e movimentos

sociais em prol da população em situação de rua, como o 1º Encontro Nacional do

Movimento de População de Rua, em 2012, apoiado por organizações, como o

Conselho Federal de Serviço Social, que ressaltou os casos de violência a esses

segmentos sociais.

No entanto, vale ressaltar que os movimentos ao reconhecimento e direito

à população em situação de rua estão acompanhados de preconceito, diante de

uma cultura construída socialmente amedrontada pelas multidões, levantes

populares que, mesmo em busca de conquistas populares, são marginalizados pelo

próprio aparelho estatal, incluindo estereótipos de marginalização e vandalismo. E

mesmo os que realmente buscam lutar pela reversão das condições em que a

população de rua se encontra, por exemplo, esta é vista como risco a segurança da

sociedade, e não como grupo que está em risco, diante dos inúmeros fatores e da

conjuntura a qual esse segmento está inserido.

Nesse contexto, ressaltamos que além do imaginário social de recusa a

população de rua, percebida como inoportuna e, principalmente, ameaçadora

(ESCOREL, 1999), o uso de drogas associada a essa situação reforça mais ainda

percepção de periculosidade e marginalidade aos que vivem nas ruas.

Na realidade, ainda resta a população em situação de rua o

reconhecimento como sujeitos de direitos e de suas necessidades ainda é um

desafio a ser superado, tendo em vista as percepções estigmatizadas ainda

pertinentes quanto esse segmento populacional, muitas vezes, considerado como

agente de sua própria condição que vivencia, diante das escolhas individuais que

destinam os sujeitos.

24Disponível em: <http://www.cfess.org.br/arquivos/cfessmanifesta2012_poprua_SITE.pdf>. Acesso

em: 22 de abril de 2014.

56

Nas palavras de Oliveira (2013), essa visão estigmatizante era e ainda é,

oriunda não apenas da sociedade civil, mas também do Estado, que tem sobre

esses sujeitos a quem, historicamente ficou relegado, o espaço das ações de cunho

meramente assistencialista, paternalista, autoritário e de “higienização social”.

Nogueira (2009) entende que devido a aparência suja e mal vestida que

essa parcela populacional apresentava, sinalizava uma concepção de marginalidade

e criminalidade, frente sua real condição de mendicância que agiam para sua

sobrevivência.

Devido a isso, as ações estatais voltaram também para o sentido de

reprimir mediante ação policial, e com uso de álcool, essas ações eram reforçadas

com violência e preconceito, direcionando os sujeitos para locais de recuperação ou

penitenciárias, e quando considerados loucos, dirigidos aos sanatórios.

Foi em meados do fim dos anos de 1980 e começo de 1990, a população

em situação de rua gradativamente passou a ser reconhecida como sujeito de

direito, o que favoreceu a legitimação de suas necessidades e a relevância de ações

como direito humano e à vida a esse segmento social. Esse processo foi favorecido

pelos movimentos populares, a exemplo do episódio ocorrido em 07 de setembro de

1985, que somou forças de organizações e levantes sociais com o objetivo de dar

visibilidade as necessidades e direitos da população que utilizava as ruas com

espaço de sobrevivência e/ou de moradia25.

Dentre as conquistas alcançadas através destes movimentos, o Fórum

Nacional de Estudos sobre População em Situação de Rua contribuiu ao acesso a

moradia, saúde e assistência social; bem como o 1º Congresso Nacional dos

Catadores de Materiais Recicláveis e a 1ª Marcha do Povo da Rua que contribuíram

para o reconhecimento da população em situação de rua na agenda pública.

Para Varanda (2009), o morador de rua enquanto sujeito de direito foi

reconhecido ao longo dos anos de 1990, que resultou na regulamentação da política

de atenção a população em situação de rua em São Paulo, e contribuiu para a

construção da política nacional direcionada a este segmento.

25

Disponível em Cartilha Suas e população em situação de rua: orientações Técnicas: Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua – Centro Pop SUAS e População em Situação de Rua Volume 03.

57

O Ministério de Desenvolvimento Social afirma ainda que já existem

políticas específicas para a população em situação de rua e desde 2006, o Ministério

envia recursos para equipamentos de acolhimentos de famílias em situação de

riscos nos municípios.

Porém, o 1º Encontro Nacional sobre População em Situação de Rua,

realizado pelo Governo Federal através do Ministério do Desenvolvimento Social e

Combate à Fome, ocorrido em 2005, representou o marco inicial à elaboração da

Política Nacional para População em Situação de Rua, através de debates e

propostas para a construção de políticas públicas para esses segmentos.

Ainda contou com a participação de representantes de governos

municipais, de organizações não governamentais e de fóruns ou entidades de

população em situação de rua, das cidades selecionadas a partir de critérios pré-

estabelecidos (São Paulo, Campinas, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, Niterói,

Londrina, São Luis, Vitória, Fortaleza, Porto Alegre e Brasília); bem como identificar

a População em Situação de Rua e de sua inserção nas discussões no âmbito das

Políticas Públicas.

Assim foi instituída a Política Nacional Para a População em Situação de

Rua, instituída no Brasil em 23 de dezembro de 2009 propõe-se a minorar “[...] de

forma descentralizada e articulada entre a União e os demais entes federativos que

a ela aderirem por meio de instrumento próprio”, a realidade em que se encontram

as pessoas em situação de rua.

Seus princípios e diretrizes referem sobre a garantia de proteção social as

que encontrem em situação de rua, através da efetivação das políticas públicas, de

forma intersetorial e transversal.

Em 2009, no II Encontro Nacional sobre População de Rua, de posse dos

resultados da Pesquisa Nacional concluída em 2008, e das aprendizagens e

experiências advindas do Encontro Nacional e seus desdobramentos, foi

estabelecida e validada a proposta intersetorial da Política Nacional para a

População em Situação de Rua, consolidada por meio do Decreto nº 7.053, de 23 de

Dezembro de 2009.

A partir disso, a Política Nacional para População em Situação de Rua

(2009) passou a enfocar a intersetorialidade como uma estratégia de negociação

permanente para o desenvolvimento de serviços, programas, projetos e benefícios

58

ao acesso e efetivação dos direitos humanos das pessoas em situação de rua nas

diversas políticas públicas, de modo a formar uma rede que assegure a efetividade e

a qualidade da atenção ofertada.

Essa mudança aponta o progresso da atuação a população em situação

de rua, haja vista que essa apresenta diversos fatores e adversidades presentes em

sua vida, como o uso de drogas, que pode agravar sua condição de saúde, quando

consumidas abusivamente demandando compreensão dessa realidade.

Ressaltamos ainda que a Política do Ministério da Saúde para a Atenção

integral aos usuários de álcool e outras drogas em 2003, iniciou também uma fase

na política de saúde, norteados pelos princípios de atenção integral, ou seja,

considerando as diversas questões, demandas coexistentes com a questão das

drogas; a lógica da redução de danos, acreditando que a “solução” não é somente a

abstinência, e sim a melhoria na qualidade de vida; cima intersetorialidade se

apresentou como um aspecto relevante que contribuiu para ações além da

dimensão da saúde, no que se refere a outros serviços de políticas e direitos sociais.

Atentando-nos a intervenção da problemática decorrente do uso de

drogas, podemos identificar que a atenção a essa realidade se deu a partir de 2001

na III Conferência Nacional de Saúde Mental, a qual foi ressaltada acerca da

inclusão social e da convivência com a diferença. A saúde pública passou a ampliar

sua atenção, incluindo ações relativas de tratamento, prevenção e reinserção social

voltadas para os que tinham problemas decorrentes do uso abusivo de álcool e

outras drogas, passando a ser alvo de intervenções no âmbito das políticas de

saúde do Brasil.

Posteriormente, em 2002, ancorada pela proposta da III Conferência

Nacional em Saúde Mental, as ações foram se voltando para a diminuição de leitos

de hospitais psiquiátricos e da implantação de serviços ambulatoriais, considerando

a territorialidade dos usuários desses serviços de saúde mental. Iniciou-se um

espaço preciso de discussões sobre a necessidade de novas formas de atenção aos

portadores de transtorno mental, incluindo os usuários de álcool e outras drogas,

mas agora, a luz dos princípios da Reforma Psiquiátrica.

Assim, foi criado por meio da lei 8.080, de 1990, o Sistema Único de

Saúde, que assegura o acesso a saúde a todos, sob dever do Estado.

59

Desde então, o Ministério da Saúde passou a publicar diversas portarias

dando início a um novo modelo de tratamento às pessoas portadoras de transtorno

mental, incluindo demandas decorrentes do uso de álcool e outras drogas.

Nesse contexto, o Brasil iniciou o desenvolvimento de uma nova

configuração de atenção à saúde aos usuários de álcool e outras drogas se fez

quando legitimada a Constituição de 1988, que assegurava atendimento voltado

para essa demanda em saúde.

Foram criados os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), incluindo os

CAPS AD, direcionados especificamente às demandas de álcool e outras drogas e

que hoje se apresentam referência ao atendimento da população usuária de álcool e

outras drogas.

Os referidos centros representam o novo modelo de atenção à saúde

mental, com o funcionamento sob as condições de ser referências de saúde,

localizadas territorialmente, no sentido de acessar aos usuários das comunidades,

configurando modelo de tratamento ambulatorial.

Outro serviço que se configurou como alternativa a assistência à saúde a

essa demanda foi o “Consultório de Rua”.

O Consultório de Rua foi criado em 2009, pelo Ministério da Saúde, que

adotou a vinculação dos Consultórios de ruas as secretarias municipais brasileiras,

visando realizar intervenções junto aos usuários de drogas em situação de rua.

Foram selecionados 14 municípios para executarem abordagem de rua com

usuários de substâncias psicoativas por meio das intervenções clínicas,

psicossociais e educativas26.

Essa alternativa aparece como proposta de ampliação de acesso a

assistência aos usuários em situação de rua.

Segundo a Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua

realizada pelo Governo Federal por meio do Ministério do Desenvolvimento Social

(MDS), em abril de 2008, o ministério identificou 31.922 pessoas –acima de 18 anos

– vivendo nessa condição. A pesquisa envolveu 71 municípios, sendo 23 capitais e

48 cidades com mais de 300 mil habitantes.

26

Dentre as cidades destacam-se: Maceió/AL, Manaus/AM, Salvador/BA, Fortaleza/CE, Brasília/DF, Uberlândia/MG, Belém/PA, João Pessoa/PB, Curitiba/PR, Recife/PE, Niterói/RJ, Rio de Janeiro/RJ, São Bernardo do Campo/SP, Guarulhos/SP.

60

A referida pesquisa ainda aponta que os problemas de alcoolismo e/ou

outras drogas são um dos principais motivos pelos quais pessoas passaram a viver

e morar na rua (35,5%), seguido do desemprego (29,8%) e conflitos familiares

(29,1%). Dos entrevistados, 71,3% mencionaram pelo menos um desses três

motivos para a situação de rua (sendo que estes podem estar correlacionados entre

si ou um ser consequência do outro, tendo em vista que a situação de rua é, muitas

vezes, decorrente de todo um contexto social de ausência de oportunidades e

vivência de situações inacessíveis ou violadoras de direitos).

Ainda sobre o uso de drogas pelas pessoas em situação de rua, Lima

(2008) afirma que em casos de problemas de saúde, decorrentes do uso de drogas,

essa população também é submetida à internação em instituições de grupos

religiosos, apresentando mais recaída, do que redução dos agravos do uso abusivo

de drogas. Sendo assim, gera-se um campo de discussão e reflexão quanto as

concepções e atuações relativas às demandas de álcool e outras drogas. Salienta-

se que os problemas decorrentes do uso de drogas perpassam a questão da saúde,

tendo em vista outros fatores (sociais, culturais, biográficos, etc.) na problemática

desse uso, e ainda em diversas outras situações, como a vivência nas ruas.

Vale salientar que em 2010, o Governo Federal divulgou sobre o Plano

Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, que disponibilizou R$100

milhões para o confinamento dos serviços do Sistema único de Assistência Social

(SUAS). Com isso, o MDS apresentou-se como agente de apoio a oferta de serviço

socioassistencial no Centro de Referência Especializado de Assistência Social para

a População de Rua (CREAS POP) nos municípios.

No ano seguinte, em 2011, como constituinte do Plano Integrado de

Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas, o governo federal, sob a presidência de

Dilma Rousseff criou o Programa “Crack, é possível vencer”. Através desse

programa, foram fortalecidas as ações intersetoriais, e a política de Assistência

Social passou a ter um papel relevante na intervenção às demandas do uso e

dependência de crack e outras drogas, principalmente no que diz respeito às ações

de prevenção e reinserção social.

Diante dessas colocações acima referidas e da Pesquisa Nacional sobre

a População em Situação de Rua, percebemos que a relação da situação de rua e

do uso de drogas é uma realidade evidente que se apresenta em grande número.

61

Nesse sentido, a análise ampla da realidade da população em situação de

rua se faz necessário, o que exige levar em consideração os diversos fatores,

aspectos e interfaces intrínsecas a esse fenômeno.

Então, tendo em vista a relevância da atenção intersetorial as demandas

da realidade de quem vivencia as ruas e contemplação pela Política de Assistência

Social das políticas sociais a essa realidade, torna-se relevante apreender a atuação

dessa política pública no fenômeno que apresenta a relação entre a situação de rua

e o uso de drogas, que prevalece já há tanto tempo em nossa sociedade; bem como

compreender as concepções e ações que são realmente empreendidas as

demandas que coexistem decorrentes da situação de rua e do uso de drogas.

Portanto, no próximo capítulo nos deteremos a discutir e compreender

com maior elucidação a atuação da Política de Assistência Social, considerando sua

referência e sua inclusão na agenda de intervenções à população em situação de

rua, inclusive relacionado ainda aos que faz uso de algum tipo de drogas.

62

3 A PNAS: POSSIBILIDADES E DESAFIOS NA INTERVENÇÃO À DUPLA

DEMANDA - POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA E DROGADIÇÃO.

A abordagem apresentada sobre o histórico e a realidade da população

em situação de rua nos sinaliza percorrer e analisar a historia da sociedade que em

suas várias dimensões social, econômica, política e cultural implicaram no objeto de

estudo em questão.

Isto é, compreender a assistência social também requer apreender sua

trajetória, ou seja, o sentido de sua elaboração, os motivos que implicaram em seu

desenvolvimento e os processos político, econômico e sociocultural que estão

implicados em sua repercussão, que se apresenta como mediadora entre o Estado e

as demandas da população, evidenciada pelo início do acesso a direitos sociais, por

meio da proteção social.

Nesse contexto, a criação da política de assistência social evidencia certo

avanço para o reconhecimento de grupos populares e assim de suas demandas,

como a população em situação de rua, que até então as ações voltadas a essa

população eram marcadas pela filantropia de grupos religiosos e de práticas

individuais de cunho privado e sentido caritativo27, ou senão invisível frente ao

próprio Estado.

No entanto, sem desconsiderar o contínuo processo socio-histórico

capitalista, mais especificamente, a ofensiva neoliberal que, por sua vez, passa a

interferir nas dimensões da vida em sociedade, inclusive no Estado interventor e,

consequentemente, no caminho de avanço e retrocesso das políticas sociais que se

revelam ainda nesse contexto.

27

As intervenções com moradores de rua são marcadas pela atuação filantrópica e religiosa que configuram a transferência do papel do Estado para a sociedade civil. São exemplos dessas entidades, segundo Sousa (1998 apud NOGUEIRA, 2009), a Organização de Auxílio Fraterno – OAF, na década de 1950, com atuação em São Paulo – que em 1980 passa a rever sua metodologia de intervenção passando a trabalhar com o estímulo à reflexão sobre a condição de morar na rua e à organização política e solidária que culminou no surgimento da primeira Cooperativa de Catadores de Papel (COOPEMARE); e a Fundação Leão XIII, no Rio de Janeiro.

63

3.1 A Assistência Social como política no Brasil

O reconhecimento da assistência como política pública é compreendido

como resultado de um processo social de mobilização popular em um cenário de

tensões sociopolíticas que o Brasil vivenciava em meados da década de 1980,

quando grande parcela da população se encontrava excluída do crescimento dos

planos econômicos28 do país, o qual proporcionava benefícios somente aos grupos

capitalistas.

Contudo, o processo de expansão dos movimentos sociais, conhecidos

como processo de redemocratização se evidenciou quando a situação político-

econômica do país se agravou com a crise de superprodução do capital de 197029 e

mais expressivamente na década de 1980, com dívida externa e assim, a

precariedade cada vez mais das condições de vida da população que se encontrava

desassistida de políticas e direitos sociais, diante da ausência de investimentos

sociais. O que restou foi as práticas clientelistas antes realizadas para atender as

demandas sociais por meio da troca de favor para favoritismo político (NOGUEIRA,

2009).

Como reação a esse cenário, o processo de redemocratização tomou

força e desencadeou investidas de reivindicações populares, como explicam Behring

e Boschetti (2011) a explanar que em decorrência do momento de tensão política, os

movimentos sociais lutaram pela democracia ante as adversidades que grande

parcela da população vivenciou com a concentração de riqueza econômica,

repressão e falta de participação política na ditadura militar.

Acrescentamos que além da democracia e dos direitos sociais e políticos,

a população gritava por um novo cenário societário, fundamentado na igualdade

28

De 1964 a 1966 - Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG); de 1967 a 1976 - Plano Decenal de Desenvolvimento Econômico e Social; 1968 a 1970 - Programa Estratégico de Desenvolvimento (PED); 1970 a 1971 – Metas e Bases para Ação de Governo (MB); 1972 a 1974 - I Plano Nacional de Desenvolvimento Econômico (PND); 1974 a 1979 – II Plano Nacional de Desenvolvimento Econômico. (DEMO, 1981).

29 A crise da dívida no Brasil tratou-se de um episódio econômico experimentado pelo país durante as décadas de 70 e 80 do século XX de má gestão de dinheiro captado no exterior, bem como pela redução da exportação do café aos Estados Unidos motivada pela crise do petróleo de 1970, por exemplo, não havendo assim arrecadação com seus produtos para quitação da dívida que aparecera posteriormente, o fomentou a paralisação do crescimento econômico brasileiro por uma década inteira (SANTIAGO, 2013). Disponível em:<http://www.infoescola.com/historia/crise-da-divida-no-brasil/>. Acesso em: 05 jun. 2014.

64

social, o que ia de desencontro da ordem conservadora e corrupta dos grupos

detentores do capital – a burguesia (NOGUEIRA, 2009).

Desta forma, esse momento contribuiu para a retomada do processo de

redemocratização mediante a aprovação da Constituição Federal do Brasil, de 1988.

E a partir deste episódio a assistência social passou a ser reconhecida como

instrumento de direito, desvinculando-se assim da lógica de caridade e clientelista.

Desse modo, a assistência teve seu reconhecimento como direito social,

integrada para o campo da Seguridade Social30e da Proteção Social31pública, se

constituindo como política universal, não contributiva e de responsabilidade estatal

(SOUZA, 2009).

Portanto, foi com a aprovação da Lei Orgânica de Assistência Social –

LOAS (Lei nº 8.742, de 07 de dezembro de 1993) que a assistência social foi

normatizada e explicitada sobre seu papel como direito não contributivo e

constitutivo da seguridade social:

A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado; é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas (LOAS, 1993).

Assim, esse processo revelou a contemplação de outros segmentos

sociais no âmbito de direitos sociais, não condicionando o acesso a direitos sociais

mediante a inserção no âmbito do trabalho e na condição de extrema pobreza, como

era considerada antes do reconhecimento da assistência como política no Brasil.

30

De acordo com o artigo 194 da Constituição Federal de 1988, a Seguridade Social é “um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”. A noção de seguridade indica o acesso conjunto de direitos e seguranças à manutenção da vida social. Contudo, a seguridade social no contexto brasileiro vem apresentando restrições no acesso as políticas que constituem seu tripé: saúde, previdência social e assistência social. Tais restrições são decorrentes da característica híbrida da seguridade social, em que sinaliza a divisão no fornecimento dos benefícios e serviços sociais sob dois pressupostos: da universalidade e não contribuição – política de saúde e da assistência social, pois os recursos a estas políticas são provenientes dos impostos fiscais arrecadados; e dialógica contributiva pelo prévio pagamento dos empregados e empregadores ao acesso dos direitos da previdência social (BOSCHETTI, 2009).

31 A proteção social pode ser definida como um conjunto de iniciativas públicas ou estatalmente reguladas para a provisão de serviços e benefícios sociais visando a enfrentar situações de risco social ou de privações sociais” (JACCOUD, 2009, P.58 apud COUTO; YASBEK e RAICHELIS, 2010).

65

3.2 A Política Nacional de Assistência Social do Brasil.

Ressaltamos que embora a política de assistência tenha realmente

apresentando legalmente um reconhecimento legítimo, contribuindo para romper

com a concepção de ajuda e favor das práticas sociais, esse instrumento de direito

ainda revela relativo avanço quanto sua efetivação enquanto política, inclusive no

tocante ao acesso e a dimensão da intervenção pelos serviços e benefícios

concedidos a população usuária.

Essa compreensão é evidenciada na lentidão que a trajetória da

assistência se apresenta, a exemplo do processo de mais de dois anos para o

reconhecimento e contemplação das demandas de segmentos sociais, como os

idosos e portadores de deficiência. Esse episódio é decorrente de uma conjuntura

adversa e paradoxal relativo à implantação desses direitos, tendo em vista que estes

se apresentaram incompatíveis entre os ajustamentos econômicos e as investidas

do Estado ao campo social (COUTO; YASBEK; RAICHELIS, 2010).

As autoras salientam que:

A incompatibilidade entre o campo social e econômico é legitimada pelo próprio discurso e pela sociabilidade embutidos no âmbito do ideário neoliberal, que reconhece o dever no sentido moral do socorro aos pobres não reconhece seus direitos (ibidem. p.34).

A sociabilidade referida no discurso do ideário neoliberal e atrelada ao

reconhecimento do socorro aos pobres não se configura como legitimação do direito

a esses sujeitos. O que prevalece é o direito atrelado a quem “serve” as rédeas do

trabalho nessa nova conjuntura neoliberal, mediante a contribuição para a

concessão como se realiza na previdência social. E não como um direito

reconhecido e incondicional à cidadania de todos (RAICHEIS, 2005).

Assim, com a emergência mais expressiva do ideário neoliberal em

meados dos anos de 1990, as ações do Estado frente às demandas sociais são

merecedoras de atenção, visto que os preceitos dessa nova proposta colocam como

prioridade a redução de custos sociais e arrecadação de impostos ao pagamento da

divina externa, em detrimento de investimos para os serviços sociais e à proteção

social a qual parte dos impostos deveria ser destinada.

O que ocorreu em meio desse cenário da crise social brasileira e a

interferência do neoliberalismo foi o que Mota (1995) aponta:

66

A tendência é de privatizar os programas de previdência e saúde e ampliar os programas assistenciais, em sincronia com as mudanças no mundo do trabalho e com as propostas de redirecionamento da intervenção social do Estado (MOTA, 1995, p.122 apud RAICHELIS, 2005, p.129)

Dessa forma, observa-se que as políticas sociais adotadas no Brasil pelo

Estado objetivaram intervir nos problemas de diversos segmentos sociais de forma

fragmentada, além do fornecimento de serviços sociais de forma distorcida que mais

se vinculava a interesses a integração ao aparelho estatal e minimização dos

conflitos e problemáticas sociais, do que uma efetivação real da reversão das

condições que a classe trabalhadora vivenciava, ausentes de estabilidade quanto à

preservação vida.

Em meio a esse cenário de movimento relutante a legitimação e garantia

da assistência social no âmbito do direito social, foi criada a Política Nacional de

Assistência Social – PNAS, constituindo-se assim como uma perspectiva de

reafirmação aprovada pela Resolução n.115, em 15 de outubro de 2004, do

Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS, apresentando-se como projeto de

resistência e ruptura frente a regressão dos direitos sociais decorrentes do ideário

neoliberal, e como reafirmação dos direitos dos usuários dessa política (COUTO;

YASBEK; RAICHELIS, 2010).

Além desta política situar a assistência social como proteção social não

contributiva, direcionada para o empreendimento de ações de proteção aos sujeitos

sociais contra riscos sociais inerentes aos ciclos da vida e para o atendimento de

necessidades individuais ou sociais (ibidem. p.41).

Nesse sentido, o Sistema único de Assistência Social - SUAS, aprovado

em 2005, pelo CNAS32 que objetiva materializar a referida política, se institui como

instrumento de estabelecimento de promoção e proteção social. Nesse sentido,

organiza os serviços socioassistenciais de forma descentralizada e hierarquizada,

coforme a matriz de padronizada de serviços, definidos pela Tipificação Nacional de

Serviços Socioassistenciais33 do Brasil.

32

O Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS foi instituído em 04 de fevereiro de 1994, como resultado da implementação contida na Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS). A instalação do Conselho foi uma conquista de profissionais e entidades sociais atuantes, tendo como função estabelecida pela LOAS, a aprovação, o acompanhamento, a fiscalização e a avaliação da Política Nacional de Assistência Social – PNAS e dos recursos para a sua implementação por meio do Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS) (RAICHELIS, 2005). 33

Resolução CNAS N o 109, de 11 de novembro de 2009, publicada no Diário Oficial da União em 25 de novembro de 2009.

67

Nesse mesmo contexto, o processo de afirmação e conquistas pelos

direitos da população em situação de rua foi ainda à esfera da institucionalidade,

como instrumento legislativo reforçador do direito a esse segmento, tendo em vista a

aprovação da alteração na LOAS e da Lei do SUAS, sob a Lei nº 11.258 /2005 que

alterou o art. 23 da Lei nº 8742/93,e na LOAS (Lei nº 12.345, de 06 de julho de

2011) a previsão que expressa instituição de programas para população em situação

de rua na política de Assistência Social.

Diante disso, a população em situação de rua passou a ser contemplada

também na Proteção Social a qual se organiza em dois níveis, observados na PNAS

(2004): a Proteção Social Básica (PSB) que se direciona ao segmento pobre, o qual

se encontra em situação de pobreza, privação, pela ausência ou precário acesso a

renda e serviços sociais públicos, tendo como linha de intervenção a proteção contra

situações de risco, em situações prestes a ser violados seus direitos, como sujeito

humano e social, e ao fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. Esses

serviços são prestados pelos Centros de Referência de Assistência Social, ou de

forma indireta por entidades ou por organizações que abrangem a área do CRAS,

sob coordenação do gestor da política de assistência social; e a Proteção Social

Especial (PSE), que subdivide-se em média complexidade e alta complexidade.

Nessa área de proteção social, ressaltamos a inserção das pessoas em

situação de rua como sujeitos de direitos, que assim como outros segmentos sociais

demandam direitos e condições humanas de vida, como assistência social, saúde,

trabalho, habitação, educação etc.

Diante da diversidade de interfaces de demandas que esse grupo

apresenta população em situação de rua, percebemos que esse público se insere

em ambas subdivisões: média complexidade, quando os vínculos familiares e

comunitários são mantidos, mesmo não residindo em domicílio, e evidenciamos

algumas demandas mediantes os serviços que caracterizam a intervenção de média

complexidade, os quais são: Serviço de orientação e apoio sócio-familiar, Plantão

Social, Abordagem de Rua, Cuidado no Domicílio; Serviço de Habilitação e

Reabilitação na comunidade das pessoas com deficiência; Medidas sócio-educativas

em meio-aberto (Prestação de Serviços à Comunidade – PSC e Liberdade Assistida

– LA); além da alta complexidade que objetiva proteger integralmente, mediante

acesso aos direitos de moradia, alimentação, higienização e trabalho as famílias e

68

indivíduos que possuem seus direitos violados, se encontram sem referências e/ou

em situação de ameaça, como observamos também nas vivências da população em

situação de rua, visto que muitos não possuem mais vínculo sociofamiliar e

encontram em situações precárias de vida, e ainda vivenciam ou passaram por

situações de violações de direitos, entre outras adversidades.

Podemos evidenciar também alguns serviços que contemplam demandas

da população em questão nessa subdivisão de proteção, os quais são: Atendimento

Integral Institucional; Casa Lar; República; Casa de Passagem; Albergue; Família

Substituta; Família Acolhedora; Medidas sócio-educativas restritivas e privativas de

liberdade (Semiliberdade, Internação provisória e sentenciada); Trabalho

protegido34. Couto, Yasbek e Raichelis (2010, p. 41, grifo das autoras) explicam que

“[...] a desigualdade social e a pobreza, inerentes à sociedade capitalista

contemporânea, engendram diferentes modalidades de desproteção social que

exigem atenção estatal diferenciada para o seu enfrentamento”. .

Assim, podemos compreender que a política de assistência social ampliou

a dimensão de intervenção à população que demanda seus serviços, diante do

cenário contemporâneo que como já discutimos, tende a excluir cada vez mais a

classe trabalhadora do acesso às condições de reprodução de sua vida, porém que

vai além do trabalho, ou seja, dos serviços sociais públicos aos direitos sociais

inerentes à sua vida.

Nesse sentido, Sposati (2010) defende que a assistência social deve

estruturar-se em um sistema descentralizado e territorializado, com a participação

dos municípios na execução da política de assistência social, inclusive na atenção

direcionada à população em situação de rua.

Assim, percebemos possível avanço no sentido de proporcionar a

ampliação do acesso aos cidadãos, o que revela a importância de considerar as

características territoriais, e os valores sociais, culturais, econômicos, políticos, etc.

Porém, relativo a última colocação da autora, intervir e identificar o indivíduo através

de uma determinada demanda pode restringir sua representação levando a

identificar os usuários por determinados “problemas”.

Couto, Yasbek e Raichelis (2010) afirmam sobre a relevância de situar os

riscos e vulnerabilidades sociais como indicadores que ocultam/revelam o lugar

34Sistema único e Assistência Social – MS. Disponível em: http://www.mds.gov.br/assistenciasocial

/suas. Acesso em 28 de junho e 2014.

69

social que ocupam na teia constitutiva das relações sociais que caracterizam a

sociedade capitalista contemporânea.

Nesse sentido, a compreensão da população em situação de rua como

sujeito excluído num contexto em que se situa e até implica para essa realidade, não

desconsiderando outros fatores, torna-se relevante a ser considerado e assim

compreender como segmento desprovido de mínimas condições de vida que

demanda direitos sociais como outros sujeitos que se encontram em outras

situações.

Acrescentamos que além da Política Nacional de Assistência Social

(2004) ter estabelecido a necessidade de atenção a população em situação de rua,

a Política Nacional para a População em Situação de Rua, instituída pelo Decreto

7.053, de 23 de dezembro de 2009, passou a considerar o público em questão e

suas demandas, tendo como objetivo a implantação de “centros de referência

especializados para atendimento da população em situação de rua, no âmbito da

proteção social especial do Sistema Único de Assistência Social” (BRASIL, 2009).

A referido Governo ressalta que é de responsabilidade da Política de

Assistência Social a implantação dos CENTRO POP‟s, que foi prevista no art. 7º do

referido Decreto o Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua, que

tem como lócus de sua oferta o Centro de Referência Especializado para População

em Situação de Rua (CP), como unidade de proteção social especial de média

complexidade segundo a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais,

mediante Resolução nº 109/2009.35

Contudo, a Política Nacional sobre a População em Situação de Rua

coloca a responsabilidade de outras políticas públicas participarem da atenção à

população em situação de rua, dada a proposta da intersetorialidade e

interdisciplinaridade referida no segundo eixo da Política Nacional para Inclusão

Social da População em Situação de Rua. “São imprescindíveis os trabalhos

conjuntos das diversas pastas governamentais, além de instituições ou de

movimentos da sociedade civil organizada” (PNISPSR, 2009).

35

SUAS e População em Situação de Rua: Reunião Técnica para o Fortalecimento da Inclusão da População em Situação de Rua no Cadastro Único para Programas Sociais e Vinculação a Serviços Socioassistenciais. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/assistenciasocial/populacao-em-situa cao-de-rua-cadastro/arquivos/SUAS%20e%20Populacao%20em%20Situacao%20de%20Rua.pdf>. Acesso em: 08 de junho de 2014.

70

Isto, revela a necessidade de implementar um trabalho articulado entre a

Política de Assistência Social e outras políticas sociais frente a população em

situação de rua que apresenta diversas determinações e interfaces em sua

constituição e vivências.

3.3 A intervenção da PNAS nas demandas coexistentes entre situação de rua e

uso problemático de álcool e outras drogas

Embora a Política de Assistência Social – PAS, tenha suas

particularidades de atuação, assim como outras políticas sociais, a população em

situação de rua, como exemplo dos usuários da referida política apresenta diversas

questões e demandas em sua realidade, como a questão das drogas, quando o

consumo destas apresenta problemas na saúde, entre outras dimensões da vida.

Assim, a política de assistência social vem apresentando um papel

expressivo nas demandas da situação de rua, como possibilidade para o acesso a

outras. Isso pode ser percebido na contemplação da realidade das drogas pela

referida política como veremos a seguir, pela ação do governo Federal. No entanto,

analisar essa contemplação, requer analisar que perspectiva pretende atuar frente a

drogadição. A questão das drogas é uma vivência que ainda a população em

situação de rua passa, evidenciada pelo índice de 35,5%, segundo a Pesquisa

Nacional sobre a População em Situação de Rua. Esse índice apresentou-se como

primeiro número, seguido do desemprego (29,8%) e de conflitos familiares (29,1%),

demonstrando assim expressiva relação existente entre a situação de rua e o uso de

drogas.

Salientamos que além de indicar como um dos motivos para a vivência

nas ruas, o uso de álcool e outras drogas ainda está presente na vida da população

em situação de rua, visto que é um aspecto atribuído genericamente à fuga da

realidade ou válvula de escape por onde circula as frustrações, sensação de perda,

solidão, tendo mesmo a necessidade de “anestesiar os sofrimentos” (ROSA, 2005).

Diante do que já explanamos no capítulo anterior, trazendo a

compreensão do uso de drogas como forma de superação e sobrevivência das

adversidades nas ruas, bem como um dos motivos que decorre na trajetória das

ruas, é que se desenvolveu uma atenção nessa realidade.

71

Nesse sentido, em 2011 a Política de Assistência Social passou a

representar relevante intervenção nos casos do uso de drogas, mediante o aspecto

intersetorial ampliado e fortalecido pelo programa “Crack é possível vencer”, lançado

pelo Governo Federal. O referido programa está integrado no Plano Integrado de

Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas, que objetiva uma ação de enfrentamento

do uso e dependência de drogas, através da prevenção reinserção social.

No âmbito da assistência social básica destacam-se as ações de caráter

preventivo voltadas ao território, que visam o desenvolvimento da mobilização

comunitária por meio de atividades como: campanhas e palestras, filmes, debates,

projetos de conscientização etc. Acrescenta-se que é preciso reconhecer, também, o

tripé biopsicossocial das dependências químicas, fruto da interação dinâmica de três

fatores distintos: o tipo de substância consumida, o indivíduo e o seu contexto social

e familiar.

Dessa forma, apreender os diversos arranjos familiares pode contribuir

para compreender as situações que implicam no uso ou não de substâncias

psicoativas. E assim, levar em consideração que o uso de drogas não apenas pode

agravar outras adversidades no âmbito sociofamiliar, na qualidade de vida das

famílias, como afirmam Almeida et al. (s/d), mas como decorrente de situações

adversas como a questão estrutural insuficiente para a reprodução da vida, a falta

de acesso às políticas sociais e de questões biográficas, como divergências de

posicionamentos individuais, perdas materiais, etc.

No âmbito da proteção social especial, Barros et al. (s/d) explica que a

intervenção se direciona para o acesso aos outros equipamentos e benefícios

socioassistenciais e vinculação à rede de serviços socioassistenciais e das demais

políticas públicas, na perspectiva da construção do processo de saída das ruas.

A iniciativa se dá pelo Serviço Especializado em Abordagem, que se dá

pelo trabalho em espaços públicos, pelo qual se identifica risco pessoal e social,

associados ao uso ou dependência de drogas.

Em Fortaleza, município em que o presente trabalho se empreende,

mediante a proposta intersetorial, diversos serviços foram inseridos no trabalho

articulado: o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), os Serviços de

Atendimento de Urgências e Emergências (SAMU), O Consultório de Rua e os

72

Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), inclusive os de atenção aos usuários de

álcool e outras drogas (CAPS AD).

Nesse sentido, Gomes, Fasolo e Lima (2012) referem sobre a criação do

Plano Municipal de Prevenção e Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas, que tem

como público prioritário a população que vive em situação de rua.

Atualmente, o órgão que atua junto com a Política de Assistência Social é

Secretaria de Trabalho, Desenvolvimento Social e Combate à Fome (SETRA), pela

nova gestão municipal de Fortaleza. Uma das questões a ser considerada e existente

na vida de grande parcela desse segmento, é o uso de drogas, principalmente o crack.

Segundo o titular da Secretaria Municipal do Trabalho, Desenvolvimento e Combate

à Fome (SETRA), Cláudio Ricardo, o município desenvolve um termo de referência

de cadastramento de pessoas em situação de rua, no intuito de agir com políticas

públicas, em uma atenção focalizada e “cirúrgica para resolver os problemas”36.

No entanto, essa referência faz-nos indagar sobre a dimensão em que o

governo municipal visa atuar quanto a essa demanda, haja vista que os termos

atenção focalizada e cirúrgica nos remetem a uma natureza patológica e a uma ação

pontual que se objetiva sanar o “problema”.

Para o arte-educador do Centro de Inclusão de Pessoa em Situação de

Rua, Orlando Coelho Barbosa, “não existe por parte do governo municipal uma

política clara em relação à população de rua, que seja intersetorial, mas sim, ações

pontuais37.

Diante dessa explanação, nos faz questionar e assim buscar

compreender a realidade que a Política de Assistência Social se configura e se

realiza frente a realidade da população em situação de rua, inclusive relacionada ao

uso de álcool e outras drogas. Ressaltamos que o presente trabalho direciona-se a

pesquisar essa realidade precisamente no âmbito municipal de Fortaleza.

36Fortaleza não sabe quantos moradores de rua tem: A última pesquisa com moradores de rua na

Capital foi divulgada em 2008. Desde então, voluntários e militantes apontam crescimento do problema e percebem mudanças no perfil de quem busca refúgio nos espaços públicos. Disponível em:<http://www.opovo.com.br/app/opovo/cotidiano/2014/02/03/noticiasjornalcotidiano,3200632/fortaleza-nao-sabe-quantos-moradores-de-rua-tem.shtml>. Acesso em: 10 de junho de 2014.

37Moradores de uma terra sem dono: O retrato da realidade dos moradores em situação de rua, indivíduos invisíveis aos olhos da sociedade, que perderam a cidadania e na medida em que nada têm, a principal coisa que lhes falta é dignidade - Robson Rodrigues. Disponível em: <http://sociologiacienciaevida.uol.com.br/ESSO/edicoes/32/artigo194186-2.asp>. Acesso em: 26 de março de 2014.

73

4 A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA E DROGADIÇÃO E A PNAS NO

MUNICÍPIO DE FORTALEZA.

A população em situação de rua, bem como parcela que faz ainda uso de

algum tipo de droga pode ser visto em diversos espaços e diversidade em sua

expressão. Considerando ainda o nível de incidência que pode variar de local para

local, e os fatores que implicam nessa realidade, que podem ser influenciados por

repercussão macroestrutural, indicando assim peculiaridades em sua realidade.

Deste modo, ressaltamos que neste capítulo o objetivo é explanar essa

realidade no âmbito municipal de Fortaleza, onde se evidenciou nos últimos anos a

participação da Política de Assistência Social no campo dos usuários que vivem em

situação de rua, inclusive relacionada com a demanda do uso de álcool e outras

drogas.

Com isso, explanaremos discussões que possibilitam identificar a

população em situação de rua em Fortaleza através do perfil, dos aspectos e

vivências, bem como pela sobre inserção deste público na área de intervenção da

Política de Assistência Social, através de sua abordagem e trabalho realizado nos

serviços e profissionais atuantes nessa demanda.

4.1 A situação de rua e drogadição: a realidade em Fortaleza

A cidade de Fortaleza, assim como outras cidades do Brasil apresenta o

reflexo desse cenário de mudanças que se desembocaram no decorrer dos séculos,

como os processos de urbanização e industrialização.

Fortaleza também foi palco de mudanças socioeconômicas, evidenciadas

em meados dos anos de 1950 e 1980, quando a cidade marcava as diferenças de

classes sociais, aparecendo os ricos e pobres, identificados ainda pelos locais que

estes habitavam da cidade.

Esse contexto é repercutido nos dias contemporâneos, como evidencia

nos dados do IBGE (2007), em que aponta a população cearense como detentora

dos piores rendimentos do país. A taxa de indigentes chega a 13,04%, e estes

sobrevivem mensalmente com um média de R$ 38,93.

74

Em Fortaleza especificamente, podemos observar ainda a condição de

moradia, com uma das adversidades entre tantas outras: o quadro déficit

habitacional é considerado hoje o quarto maior do país em termos absolutos,

chegando a 160.000 moradias, o que equivaleria dizer 800.000 pessoas vivem em

áreas de risco (HABITAFOR, 2006).

Contudo, Lima (2008) salienta que vivenciamos o cenário mais alarmante

da sociedade capitalista, e assim a acentuação das diferenças de classes sociais

vistas pelas condições de vida, estas agravadas pelas novas configurações do

trabalho, como as fragilidades nas relações trabalhistas, bem como pelo

desemprego.

Nesse contexto, a profissional Rita Lee (Assistente social) que trabalhou

com a população em situação de rua explica que: “[...] Não há trabalhos para todos,

tem pessoas que preferem trabalhar em outras formas de ocupações e não viver

sobre as regras do trabalho de 08 h por dia. Preferem o trabalho informal, e gastar

seu dinheiro como quiser, na hora que quiser”.

Dessa forma, a referida profissional esclarece que embora possa existir

pessoas são pedintes, visto que há muitas que ainda sobrevivem através de

atividades laborativas que apresentam-se como trabalho para obtenção de renda.

Frente a isso, Lima (2008) afirma que há um imaginário social que

considera a população que vivencia as ruas como pessoas que não seguem a

organização comumente do cotidiano de muitos, por estarem relacionado ao aspecto

da temporalidade, visto que o tempo de algumas pessoas de certa forma não é igual

ao tempo e perspectiva da emergência capitalista que rege a vida dos demais

cidadãos.

Contudo, além da questão estrutural, das fragilidades das relações

trabalhistas e até do desemprego de perdas materiais que implica na realidade da

população em situação de rua, observamos na fala as interlocutoras que há uma

multiplicidade de razões que decorrem na ida para as ruas, evidenciando assim

também como significados para os que passam a vivenciar as ruas, seja como

moradia, formas de sobrevivência e/ou por outras ações que aparecem como

valores à população em situação de rua.

Estar na rua para muitos é ter liberdade, embora tivesse casa, trabalhava e vivenciava a rua porque tinha vivenciado várias situações na família, conflito familiar e preferia viver naquele espaço [...] Outro tinha família, mas não

75

queria se enquadrar nesse sistema que a gente tanto fala, mas se insere e vive no que ele rege. (Rita Lee – Educadora social).

Diante dessas colocações, percebe-se que a liberdade vivenciada pelos

sujeitos nos espaços das ruas pode aparecer como valor na vivência das ruas, mas

também relacionado a outras questões que se configuraram como motivos da ida

para as ruas, como conflitos familiares, e assim rompimentos de vínculos destes,

alternativas de reprodução de vida frente ás estruturas e normas no âmbito social,

bem como do trabalho, considerando ainda o desemprego.

No entanto, Da Mata (Assistente social) ressalta que embora alguns

escolham estar, permanecer no espaço das ruas, criando formas de sociabilidade e

de formas de sobrevivência, a rua é contraditória visto que ao mesmo tempo em que

possibilita a liberdade, como evidenciamos na fala de um usuário, explanada pela

referida profissional: „Posso acordar hora que quiser, fazer algo, comer, caminhar‟

também apresenta riscos de vida, bem como a busca, o “corre-corre” para se

alimentar, entre outras ações.

Dentre os aspectos relativos à questão estrutural da vida, as profissionais

perceberam que a moradia aparece também como causa da situação de rua, porém

em expressão raríssima como causa para situação de rua “As pessoas que estavam

nas ruas por falta de moradia eram bem poucas, seria porque já nasceram na rua,

mas maioria tinha família” (Da Mata, Assistente social).

Quanto ao uso de drogas, as profissionais afirmaram que, embora nem

todos que vivenciam as ruas fazem uso de drogas, parcela significativa desse

público revela ter relação com o uso de algum tipo de drogas.

“Muitas pessoas antes de irem pra rua já faziam uso de alguma droga, e

estar na rua por ter fugido do local que morava por conta de dívida de drogas, a

família não aguentar mais, diz: Rita Lee (Educadora social).

Da Mata (Assistente social) acrescenta que ainda no âmbito familiar, o

uso de drogas pela adolescência, relacionado com a família, por ver o pai, a mãe

usarem, principalmente o álcool, bem como por violência de gênero sofrida em casa,

motivada mesmo pelo uso de bebida alcoólica.

Assim, a relação que apresenta com a situação de rua se dá também por

diversas razões e interfaces com a população de rua, apresentado como motivos da

ida para as ruas.

76

Contudo, a consumo de substâncias psicoativas ainda podem se

apresentar como experiência depois da ida para as ruas, “pois percebi, por exemplo

„Oh Maria, nunca usei drogas na minha vida, vim usar depois que fui pra rua‟, porque

em meio tantas situações que vivenciam” (Maria Rita, Assistente social), explanando

assim como forma também de lidar com as adversidades vivenciadas. “Por se tornar

mais branda a rua, como subterfúgio também daquela realidade que é tão

massacrante, tão severa” (Maria Rita, Assistente social).

Nesse sentido Silva (2006) acredita que o uso de álcool e outras drogas

se impõe expressivamente como estratégia de subsistência.

A interlocutora Maria Rita (Assistente social) relata que transtornos

mentais severos implicam também na saída para as ruas, os quais dentre essa

realidade, o uso de drogas pode ter acometido essa questão de saúde.

“Mas dizer quais são os motivos, são muitos e até bem mais do que falei

aqui”. Diante dessas exposições sobre motivos e significados que decorrem na ida

para a rua, percebe-se que a situação de rua, é uma vivência subjetiva, que

Gonzalez (2002 apud QUINDERÉ, 2013) compreende como construção de sentidos

e significados pelos sujeitos, mas que a construção destes se relacionam ao

contexto social que se vivencia. Assim, como exemplo apontamos a ida pra as ruas

e a construção das formas de uso e sentidos para quem vivenciam essas realidades.

4.2 A política de Assistência Social e a experiência na intervenção em torno da

questão situação de rua e drogadição

A atenção a população em situação de rua no município de Fortaleza foi

iniciada em 2006, com o desenvolvimento de um trabalho específico para esse

público, quando a Coordenadoria de Políticas Públicas de Assistência Social

(CASSI) ainda era vinculada à Secretaria Municipal de Educação e Assistência

Social (SEDAS).

Para a realização do trabalho municipal, foi preciso apreender sobre a

população em situação de rua, que se deu mediante o mapeamento no referido

município para saber os locais onde esse público utilizava como abrigamento ou de

77

vivência. Também foi criado o Grupo de Trabalho População de Rua38 no intuito de

articular-se com os usuários e os serviços (Toca de Assis masculino e feminino,

Albergue Shalom, Grupo Espírita Casa da Sopa e Pastoral do Povo da Rua) que se

ofereciam algum atendimento a essa população. (LIMA, 2008).

O contato com a população em situação de rua que usufruía dos

benefícios (doação de alimento, abrigamento, etc.) desses serviços objetivou

conhecer suas necessidades, e para isto foram empreendidos grupos focais

propostos por uma consultoria participante dessa investida.

Sobre esse processo, a profissional Maria Rita (Assistente Social) explica:

Foram realizadas visitas nas instituições que já atendiam a população de rua, principalmente as religiosas que já tem um trabalho bem renomado, que a gente tem que respeitar. Lá conversamos com os usuários para saber se a prefeitura abrisse um equipamento, os que eles gostariam que tivessem, se era banho, lavagem de roupa, alimentação, encaminhamento sociojurídico, oficinas [...] pra saber o que eles pensavam, achavam. E ai no final de 2006 foi montado o primeiro projeto de equipamento para a população de rua.

Diante da explanação da entrevistada, percebemos que embora a

população em situação de rua tenha se inserido no âmbito do direito, ainda assim

houve a consideração de serviços filantrópicos, religiosos os quais se apresentaram

como instituições que podem estar carregadas de significados a vida daqueles que

ainda eram desassistidos pelo poder público.

Em meio ao processo de construção do equipamento destinado a

população em situação de rua, a política de assistência social se estruturou em uma

nova secretaria (SEMAS) a qual contribuiu para o amadurecimento do projeto de

trabalho e com isso a constituição do Centro de Atendimento a População de Rua

(CAPR), no final de 2007 no município de Fortaleza (GOMES et al. 2012). Assim:

[...] a prefeitura começou a ter corpo, a tomar para si o que era algo só da Secretaria de Assistência Social e com os primeiros seminários para a população de rua, em que chamaram representantes da população de rua, começou a dar voz e vez. Tanto que os primeiros seminários eram esses:

38O Grupo de Trabalho População de Rua foi criado com o intuito de somar os esforços dos diversos

órgãos da esfera governamental e da sociedade civil com o objetivo de traçar estratégias para um atendimento de qualidade e intersetorial à população em situação de rua no município de Fortaleza. Coordenado pela SEDAS através da CPDDEAS foi um dos instrumentos de elaboração das ações que, mais tarde, comporiam a política de atendimento público à população em situação de rua em Fortaleza.

78

Dar voz e vez à população que ainda é muito invisível. (Da Mata, Assistente Social).

Dessa forma, esse equipamento indicou o início de um reconhecimento a

essa população que passou a ter voz e vez no cenário sociopolítico,

especificamente, no âmbito da política de assistência social.

Em 2009, o CAPR incluiu uma equipe multiprofissional a essa demanda,

por meio do Serviço Especializado de Abordagem de Rua (SEAR), que objetivava

realizar uma ação diuturna às pessoas e familiares que se encontrassem em

situação de rua pela cidade de Fortaleza (GOMES, FASOLO, LIMA, 2012).

Em 2009, também foi criado o Espaço de Acolhimento Noturno para a

População de Rua (EAN), no intuito de propiciar o acolhimento e ressignificação das

vivências nas ruas, bem como para a reorganização de sua vida, através do apoio a

construção de estratégias para a reorganização de vida e da autonomia desses

usuários.

Também tinha a Casa de Passagem que embora fosse mais pra pessoas em situação de risco, violação de direitos, por ter sofrido violência física, mas em alguns casos, quando a gente se comunicava, ainda o pessoal da Casa recebiam alguns em situação de rua (Rita Lee, Educadora Social).

Em 2011, com a reformulação do CAPR, o serviço passou a ser

identificado como Centro de Referência Especializado a população em situação de

rua, como estabelecido no Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome.

Contudo, Maria Rita (Assistente social) ressaltou que:

O CAPR era uma coisa, algo da gestão passada, e o CP foram nova nomenclatura do MDS (Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à fome), quando começou a ter uma política para população de rua, mas não mudou quase nada, visto que já vinha tendo um trabalho com a população

de rua desde então.

Para o trabalho do Centro de Referência a população em situação de rua,

o equipamento dispõe de uma equipe de assistentes sociais, psicólogos, advogados,

educadores sociais e coordenador (a). Contudo, destacaremos a atuação do

profissional assistente social e do educador social, os quais foram possíveis

estabelecer contato para apreensão das experiências profissionais. Ressalta-se que

as experiências de uma das assistentes sociais, se deram no CAPR e atual Centro

Pop, e a outra somente no CP. Relativo à educadora social, suas vivências foram no

atual Centro Pop.

79

4.2.1 As vivências dos profissionais na atuação de trabalho junto à população

em situação de rua no município de Fortaleza

De acordo com os relatos das profissionais entrevistadas, pudemos

perceber que muitos aspectos e características da população em situação de rua e

do próprio trabalho se assemelham, mas também apresentam percepções que

indicam traços singulares quanto algumas questões e demandas, como a questão

das drogas.

Através dos relatos das profissionais, observamos que a situação de rua

tem relação direta com o processo de pauperização, e assim reflexo contínuo da

conjuntura capitalista a qual vivenciamos em que ao mesmo tempo em que produz

riqueza, implica no aumento da pobreza, fator este contribuinte a situação de rua,

mas também adversidade vivenciada por outros grupos sociais que se encontram

em outras situações de vida.

Relativo a isso, a entrevistada Rita Lee (Educadora social) relata que:

Trabalhar e conviver com a população de rua é dar uma cutucada no seu ego. Essa população também existe porque eu, você também é responsável por isso, não no sentido de culpabilizar [...] é todo sistema que constrói isso, está arraigado na nossa cultura, nossa sociedade. Hoje tenho um olhar totalmente diferente depois de ir trabalhar com a população em situação de rua.

Assim, esta colocação ainda aponta a reflexão não somente enquanto

profissional, mas como ser humano da sua própria condição enquanto sujeito que se

insere num contexto socioeconômico onde não são garantidas as condições de

reprodução de vida, influenciada por exemplo, pela fragilidade das condições de

trabalho. Acrescentamos que a referida profissional objetivou explanar seus

rompimentos de pré-noções e juízos de valor sobre a população em situação de rua,

população esta que se torna ainda tão distante e desconhecida dos demais sujeitos

da sociedade.

Acerca disso, Silva explica (2006, p.95):

Pode-se dizer que o fenômeno população em situação de rua vincula- se à estrutura da sociedade capitalista e possui uma multiplicidade de fatores de natureza imediata que o determinam. Na contemporaneidade, constitui uma expressão radical da questão social, localiza-se nos grandes centros urbanos, sendo que as pessoas por ele atingidas são estigmatizadas e enfrentam o preconceito como marca do grau de dignidade e valor moral

80

atribuído pela sociedade. É um fenômeno que tem características gerais, porém possui particularidades vinculadas ao território em que se manifesta.

No entanto, a situação de rua é percebida por muitos olhares, como

percebida na fala da interlocutora Maria Rita (Assistente social):

Infelizmente, a sociedade não tem esse olhar que pode passar por essa situação. Não entende que é algo que pode acontecer com todo mundo. [...] eu já atendi pessoas que tinham família, nível superior, especialização, que tinham negócio próprio, e que por certas eventualidades, pelo desemprego [...], passaram a ir pra rua.

Quanto à complexidade e diversidade de interfaces e aspectos que a

população em situação de rua apresenta, Da Mata (Assistente social) compreende a

necessidade de atenção à singularidade desse público, porém percebe um

distanciamento de algumas políticas sociais e de profissionais da realidade desses

usuários.

É uma atuação bem desafiadora, pois trabalhar na assistência social é lidar com um público que já teve uma série de direitos violados, negados, e com a população em situação de rua é pior ainda. E por saber que essa população já tinha vindo de outros serviços, onde o profissional já tinha visto com olhar impregnado de preconceitos, de medo de juízo de valor mesmo,

então tentava ser muito acolhedora.

Sobre o trabalho do Serviço Social, a entrevistada Maria Rita (Assistente

social) relata que:

o trabalho do assistente social à população em situação de rua se dava por meio da realização de oficinas com temáticas acordadas conjuntamente com pedagogo, e esclarecia aos próprios usuários sobre os encaminhamentos possíveis, que eram para o Cadastro único

39, para

serviços, como da saúde, para regularização de documentos, e para este último ainda se realizava contato com instituições, para sensibilizar e isentar do pagamento para acesso a documentação, para o programa “Minha casa, minha vida”, para o acesso ao programa “Bolsa Família”, entre outros. Ainda havia a questão do aluguel social

40, oferecido através de um processo

seletivo com a gestão do serviço, mediante observação dos relatórios das

condições dos usuários demandatários.

39

O Cadastro único é um instrumento que permite conhecer a realidade socioeconômica das famílias, do núcleo familiar, de suas características e do domicílio e assim, como forma de acessar programas sociais do Governo Federal. Disponível em: http://www.mds.gov.br/bolsafamilia/cada strounico. Acesso em 08 de julho de 2014.

40Aluguel Social é um recurso de caráter assistencial destinado a atender em medida de urgência famílias que se encontram sem moradia, oferecido por um tempo determinado, mediante pagamento concedido por benefício à família correspondente ao valor do aluguel social, popular. Disponível em: http://www.crianca.mppr.mp.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=1551. Acesso em 08 de julho de 2014.

81

Outra questão envolvida no trabalho era o chamado projeto de vida41

que implicou num embate e discussões, tendo em vista as palavras semelhantes

das entrevistadas que refletiam que ao considerarmos as expectativas da vida de

qualquer pessoa, independente de estar ou não na rua, um determinado projeto

seria algo relativo, visto que não se há garantia de condições para a prosperidade de

vida continuamente.

Contudo, o termo “projeto de vida” era utilizado para sinalizar as

escolhas e objetivos que os usuários compreendiam como adequados a sua vida.

Nesse sentido, Maria Rita (Assistente Social) exemplifica:

A gente respeitava o projeto de vida. „Se era permanecer na rua, massa,

então vamos ver o que de melhor a gente pode resolver pra você ter qualidade de vida, estando nas ruas: é tirar seus documentos para tirar carteira de trabalho pra conseguir um emprego e permanecer na rua, porque é sua escolha‟. Era muito respeitado isso.

Dessa forma, percebemos que o chamado projeto de vida era indicado

como algo inerente a participação do usuário do serviço, possibilitada pela

perspectiva da autonomia - princípio reforçado pelas profissionais tanto do Serviço

Social, como da Educadora Social, utilizado nas vivências profissionais.

Segundo relatos, somado ao princípio da autonomia, que apontava a

valorização das escolhas dos usuários, a liberdade, a igualdade independente da

condição enquanto ser humano, a defesa pela dignidade e o respeito da vivência

dos usuários do equipamento – CAPR e CP eram incluídos na atuação à população

em situação de rua.

Além dos princípios utilizados, a interlocutora Da Mata (Assistente social)

acrescenta que

O trabalho do Serviço Social, pelo menos na época que atuou entre os anos de 2012 e 2013, representava relevância devido o fato de a referida profissão atuar na perspectiva do direito e assim contribuir para que tanto outros profissionais do serviço e a própria população em situação de rua, reconhecesse esta no âmbito do direito.

41

De acordo com a PNAS (2004), o projeto de vida é uma forma de visar e criar condições de vida e referências na sociedade, na condição de sujeito de direitos. Disponível em: http://www.mds.gov.br/falemds/perguntas-frequentes/assistencia-social/centro-pop-centro-de-referen cia-especializado-para-populacao-em-situacao-de-rua/centro-pop-institucional. Acesso em: 08 de julho de 2014.

82

Relativo a isso, Da Mata (Assistente social) lembra: “às vezes o usuário

chegava dizendo: „Dona Rita, eu vim pedir aqui uma ajuda‟ [...] se veio pedir ajuda

pode ir, não estou aqui pra ajudar, não estou aqui porque sou boa, não é benesse,

esse trabalho é pra acessar direitos”.

Observamos nas falas que embora tenha havido um reconhecimento do

direito a população em situação de rua, a concepção de benesse, ajuda ainda era e

é vivenciada por alguns sujeitos, inclusive usuários do CAPR e atualmente do CP,

visto que estavam acostumados a receber benefícios de instituições religiosas

filantrópicas, como alimentação, vestimenta etc.

Quando o poder público começou a assumir, queriam muito a caridade, e a gente começou a colocar que era direito. Só que inicialmente esqueceu-se de colocar que cada direito vem com dever, com autonomia, e ai trabalhamos com as escolhas e autonomia, dentro de direitos e deveres (Maria Rita, Assistente social).

Sobre a atuação da Rita Lee (Educadora social), esta disse que seu

trabalho tem um caráter mais informal, e mais próximo dos usuários que vivenciam

as ruas.

[...] era mais de diálogo, de ouvir a vivência do outro, de provocar minimamente algumas reflexões sobre a própria condição deles nessa realidade, e não discriminar [...] não desmerecendo a atuação de outros profissionais, claro, mas nossa relação com os usuários não era no espaço informal, era tranquilo, e muita coisa que, por exemplo, a assistente social não sabia, eles acabavam contando a gente, o que podia contribuir para algum trabalho com eles (Educadora social).

Com isso, pode-se perceber que o trabalho interdisciplinar, incluindo o

profissional de educador social, como outras, dentro de suas especificidades,

poderiam e podem complementar e contribuir no trabalho com a população em

situação de rua.

4.2.2 A relação situação de rua e drogadição: percepções a experiências na

atuação profissional a essas realidades.

De acordo com os relatos das profissionais entrevistadas, o uso de

drogas era uma das expressivas experiências que acompanham a vida de muitos

que estavam em situação de rua, seja antes ou depois da ida para as ruas.

83

Contudo a intervenção relativa ao uso de drogas por esse público era

relativo, ou seja, de acordo com a diversidade de interfaces, grau de uso, e de

impactos na vida dos usuários. Com isso, apresentaram-se variadas percepções e

de atuação nessa questão.

Salientamos ainda que, embora o uso de substâncias psicoativas seja

expressivo nessa população, como já explanado no primeiro capítulo, não podemos

considerar como experiência de todos que estejam na rua. Essas substâncias ainda

podem apresentar diferentes consequências na vida do ser humano, o que implica

em variadas percepções e assim, na atuação profissional.

A profissional Da Mata (Assistente social) ainda ressalta que essas

situações de formas de conviver ou não com certos tipos de drogas acontecem em

todos os espaços e diversidades da sociedade, não somente com a população em

situação de rua. Essa percepção retrata o sentido que se direciona contra o

imaginário de muitos sujeitos que assim como outras diversidades, associa

genericamente a população em situação de rua ao uso de drogas, como

observamos na fala a seguir:

Depois que entrei pra trabalhar com o povo da rua, as formas de ver as próprias drogas mudou muito. Porque tinham pessoas que conseguiam conviver muito bem com certa droga, até mesmo maconha e crack, e conseguir dar conta da vida, de conseguir algum trabalho, e tinha acompanhado pessoas que não conseguiam que se acabaram por conta de drogas, principalmente do álcool. Outras pessoas não usavam e diziam: „não me serve pra nada‟ (Da Mata, Assistente social).

No entanto, diante das falas, observamos que a percepção quanto a

população em situação de rua se apresenta em diversas faces, tanto de alguns

profissionais, como outros sujeitos sociais, como Maria Rita (Assistente social)

explana: “Tinha gente que ligava pra nós do CP, dizendo: „Olhe tem três aqui perto

da minha porta, tudo drogado e malaca42, venham já tirar, remover‟”. O que

sinalizava posição distante a outros sujeitos por conta de sua própria condição, bem

como a generalização com o uso de drogas, com o sentido de discriminação,

repúdio.

Uma outra forma de interpretação conservadora e até de discriminação

relativa ao uso de drogas pela população em situação de rua era reproduzida por

algumas pessoas que estavam nessa mesma condição (situação de rua):

42

Regionalismo cearense: o mesmo que malandro; espertalhão.

84

[...] mesmo estando na rua, numa condição também diferente de estar dentro de casa, a pessoa que está na rua também produz esse discurso conservador, do tipo: „Ah fulano usa droga todo dia, como pode ser desse jeito?‟ Esse discurso moralizador que a sociedade reproduz que está ai, independente se está ou não na rua (Rita Lee, Educadora social).

Quanto as intervenções na questão do uso de substâncias psicoativas,

observamos nas falas das entrevistadas que as ações eram empreendidas

processualmente. Quando se tomava conhecimento desse uso no atendimento com

o usuário do serviço, era explanado sobre outros serviços que podiam ser possíveis

de acordo com suas escolhas e demandas, a exemplo do Centro de Atenção

Psicossocial álcool e Drogas (CAPS AD), que se incluía na área da saúde. Porém, o

encaminhamento era direcionado primeiramente ao algum posto de saúde mais

próximo do local que o usuário se encontrava, posteriormente ao CAPS AD.

Dessa forma, percebemos que o primeiro acesso ou que devia ser era a

atenção primária, que supostamente deve haver apreensão sobre as questões

diversas de saúde. Tendo em vista ainda a consideração da Atenção Primária à

Saúde43 para atenção integral à saúde proposta pela Reforma Psiquiátrica na

política de saúde mental do Brasil.

De acordo com os relatos das entrevistadas, embora a questão das

drogas também uma das vivências presentes em parcela da população em situação

de rua, a intervenção era de acordo com a concordância voluntária dos usuários em

seguir algum acompanhamento.

[...] íamos trabalhando, colocava uma sementinha sobre o serviço de saúde, ai quando vinham, a gente explicava que o CAPS trabalha muito essa rede de fortalecer as pessoas através de grupos, não só remédios e que ia ficar esse acompanhamento entre o CAPS AD e o CP (Maria Rita, Assistente social).

A profissional relata que também encaminhava para a Coordenadoria de

Políticas sobre Drogas44, caso fosse demanda de internação, vinculado a

43

Atenção Primária à Saúde (APS) se inclui na estratégia de organização da saúde da população, apresentando ações de caráter preventivo e curativo de atenção a indivíduos e comunidades, denominada pelo Sistema único de Saúde (SUS) de Atenção Básica à Saúde (ABS), integrado no sistema universal e integrado de saúde. Disponível em: <http://www.epsjv.fiocruz.br/dicionario/ verbetes/ateprisau.html>. Acesso em 08 de julho de 2014.

44A Coordenadoria de Políticas sobre Drogas trata-se de um equipamento vinculado ao gabinete do Prefeito, com status de Secretaria Municipal, composta por equipe interdisciplinar, que objetiva garantir os direitos humanos e promover uma política intersetorial sobre drogas, por meio do planejamento, assessoramento e ação das políticas públicas sobre drogas junto com outras secretárias e regionais de Fortaleza. Disponível em:<http://www.fortaleza.ce.gov.br/cpdrogas /coordenadoria>. Acesso em: 08 de julho de 2014.

85

compreensão e vontade do usuário. “A gente do CP passava a ter contato entre

Coordenadoria e a comunidade terapêutica, onde era encaminhado o usuário,

acompanhava até sua saída para família, ou outra direção, da escolha dele” (Maria

Rita, Assistente social). Observamos assim o trabalho articulado da política de

assistência social junto com a política de saúde, o que se evidenciava como

necessidade de atuação conjunta, visto suas demandas que ultrapassavam a

demanda em saúde.

Isso leva a remeter a proposta da Reforma Psiquiátrica45 na Política de

Saúde Mental no Brasil, que investe na superação da “violência asilar”, do

tratamento em saúde de forma coercitiva, e sim pelo respeito aos direitos humanos,

à liberdade e autonomia do sujeito.

No entanto, frente ao acompanhamento em saúde, onde ainda se inclui o

uso de medicações a demanda do uso abusivo de álcool e outras drogas, Maria Rita

(Assistente Social) referiu que uma das intervenções, um usuário havia mencionado

que já teria ido ao CAPS AD, e não havia gostado pelo fato de ter que tomar

remédio e para ele isso seria uma troca de droga por outra. Frente a isso, a

profissional ressaltara sobre o trabalho dos grupos psicoterápicos que contribui para

o fortalecimento do sujeito para que possa seguir esse acompanhamento no âmbito

da comunidade.

A colocação acima referida do usuário pela fala da profissional nos

impulsiona a refletir sobre a referida colocação do usuário, levando a questionar até

que nível de contribuição realmente há no uso de remédio, que com uso abusivo

também pode ocasionar danos à saúde de quem consome.

A respeito disso, Quinderé (2013) explica que alguns serviços de saúde

por perceberem o consumo de drogas como doença, os profissionais passam a

utilizar como meio de intervenção a medicação, e determinadas terapêuticas

psicossociais, o que contribui para provocar uma percepção patológica, que acredita

45A Reforma Psiquiátrica no Brasil foi um processo político e social que se desembocou no período

contemporâneo ao “movimento sanitário”, nos anos 70, que objetivou reestruturar as formas de intervenção frente às demandas em saúde, que se configurava pelo caráter asilar, para um novo modelo que contemplasse a defesa da saúde coletiva, equidade na oferta dos serviços, e participação dos trabalhadores e usuários dos serviços de saúde nos processos de gestão e produção de tecnologias de cuidado. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes /Relatorio15_anos_Caracas.pdf>. Acesso em 28 de junho de 2014.

86

que indivíduo necessita de tratamento no viés da cura, e assim na utilização de

estratégias de proibição para o livramento da substância.

O acompanhamento em saúde para uso abusivo de drogas no âmbito

sociocomunitário referido pela entrevistada ainda diz respeito ao artigo 6º da portaria

3.088 (23 de dezembro de 2011) que aponta que os serviços dos CAPS AD‟s devem

ser abertos e de caráter comunitário.

Através dos relatos das entrevistadas, observamos como princípio

norteador de seus trabalhos a autonomia, inclusive no que se refere a questão do

uso de drogas, como coloca a profissional Da Mata (Assistente social):

A gente não atuava como tutela, e sim da autonomia. Como teve uma vê que o usuário havia solicitado acesso ao programa Bolsa Família e me disse: „Olha, eu to aqui pedindo o Bolsa Família, mas confesso que qualquer momento posso acabar gastando com o uso de alguma droga‟, e eu falava: „é uma escolha sua né?‟

Assim, a posição da profissional se direciona na perspectiva de liberdade,

da autonomia que potencializa a capacidade desse público de fazer suas escolhas,

e que a ação profissional contribui para a problematização do cotidiano dos usuários

na tentativa de que eles façam a melhor escolha possível. Nesse sentido, não

trabalhava a perspectiva da tutela, ou seja, de apenas interferir e impor. Mas em

meio a danos que com o uso abusivo e até por longa data possa ocasionar aos que

fazem uso de drogas, a atuação com base na problematização citada pode

favorecer assim para sensibilizar os usuários no sentido não da proibição, mas da

reflexão do uso e da forma desse consumo, bem como o significado atribuído ao

consumo de drogas.

Outro princípio vivenciado na atuação junto a população em situação de

rua, bem como, as que faziam uso de drogas era o respeito à diversidade, tendo em

vista que diante de sua vivência profissional se deparou com pessoas que

vivenciavam as ruas e faziam uso de drogas, havendo a existência tanto de quem

realmente sofria com uso abusivo de drogas e outras pessoas “que convivia bem

com suas drogas” (Da Mata, Assistente social).

Em consonância ao princípio da diversidade, percebemos na fala das

entrevistadas que, embora se realizasse um trabalho de articulação com a rede de

saúde, havia a consideração e respeito as várias percepções e posições de

usuários, não somente na questão de seguir ou não um acompanhamento em

87

saúde, mas na forma como seguia o trajeto para superação ou redução do

sofrimento causado pelo uso abusivo de drogas.

Umas das percepções consideradas era a espiritualidade:

Alguns diziam: „Eu vou parar porque Deus quer‟, e a gente respeitava, mas lógico que nossa intervenção não podia ser através da religião, ai falávamos: „Que bom que você acha que vai dar certo, mas como acreditamos que a questão das drogas é de saúde pública, é necessário se ter uma intervenção a nível de saúde também‟ (Maria Rita, Assistente Social).

A entrevistada acrescenta que em outro caso que envolvia problemas

decorrentes do uso de drogas, o usuário havia explanado que o motivo daquele

tempo do rompimento do consumo de drogas (02 meses) teria sido suas próprias

filhas. Pois com o uso abusivo de drogas, e outras adversidades - as quais no

momento da entrevista, não foram lembradas pela profissional – conflitos familiares

se desenvolveram, bem como a sua saída de casa e o afastamento de suas filhas,

que fez com que empreendesse esforço próprio para voltar a ter contato com as

crianças. “Ele me disse: „a minha meta é parar de usar pra voltar bem e voltar a

frequentar o convívio com minhas filhas‟ [...]” (Maria Rita, Assistente Social).

Diante disso, percebemos que o uso abusivo de drogas ainda é uma

realidade que pode incidir ao sujeito que faz uso de drogas sinônimo de perigo,

ocasionando o estranhamento às pessoas ditas como normais, que reagem com

afastamento das pessoas que fazem uso de drogas, reforçando assim o estigma e a

exclusão dentro do próprio âmbito familiar.

Consoante a essa afirmação, Goffman (1988 apud FONSECA, 2009)

afirma que a sociedade cria uma ideologia do estigma, utilizando-se de afirmações

que apontam o estigmatizado como inferior e assim, o motivo do tratamento distinto

e exclusivo a este, implicado pela percepção do perigo.

No entanto, a questão do estigma e de ações a população em situação de

rua, bem como ao uso de drogas ainda era percebido nos próprios profissionais dos

serviços acionados pelo CAPR – CP. Podemos perceber no relato da entrevistada

(Rita Lee, Educadora social) ao afirmar:

No início tinha embate até com a política de saúde. Diziam é usuário de droga! Um usuário havia me dito: „Cheguei às cindo da manhã no posto e peguei fila como todo mundo, quando cheguei lá, a mulher disse que acabou a ficha e quando viro as costas, vi ela entregando ficha pra uma mulher atrás de mim, porquê?‟ Muitos que a gente encaminhava, passavam pra gente do CP de novo, porque não entendiam que a população de rua

88

deveria receber atendimento como qualquer outra pessoa, tinha esse

mesmo direito.

Além da referida fala, a profissional Maria Rita (Assistente social) refere

que nas ocasiões de visitas realizadas aos hospitais pelo (a) profissional do serviço

social e da psicologia, e mesmo através de ligações recebidas no CAPR – CP,

alguns profissionais da saúde comunicavam sobre a existência de alguma pessoa

em situação de rua, no sentido da equipe dos referidos serviços irem remover

daquele hospital. Diante disso, um educador social juntamente com assistente social

ia ao serviço de saúde para intervir ao caso:

Alguns até recusavam receber, e uma senhora que já tava há 01 semana pela calçada do hospital era recusada a ser recebida, e a profissional de saúde disse: „O caso dela é só um banho!‟ E explicamos que não era assim, „venha buscar‟, a gente não remove ninguém, e fomos procurar a história de vida e família daquela mulher e descobrimos que fazia uso de álcool há muitos anos, era catadora de lixo e já tinha transtorno mental (Rosa, Assistente social).

Acrescenta-se que outros casos encontrados em hospitais, indicavam que

pessoas que embora tivessem uma estrutura de vida organizada e de acesso para

condições de vida, estariam perambulando pela cidade, devido ter saído de suas

casas pelo uso de álcool, agravado pela distância familiar, que havia desistindo de

acreditar e apoiar familiar com problema devido esse consumo.

Dessa forma, percebemos que ainda há falta de apreensão e

compreensão sobre as questões que se revelam em nossa sociedade, perpassando

não somente os grupos familiares, mas outros grupos sociais, como os próprios

profissionais que podem contribuir para reforçar o estigma e distanciamento da

população em situação de rua, bem como os que ainda fazem uso de algum tipo de

droga.

Nesse cenário de afastamento ou até recusa, na situação de rua, alguns

grupos que fazem uso de bebida alcoólica tomam para si o uso como forma de

substituir as relações familiares perdidas, preenchendo assim lacunas de sua vida,

ocasionadas também pela dificuldade de reintegração ou constituição de novos

laços familiares (VARANDA, 2009).

O posicionamento de alguns profissionais também evidenciava postura de

estranhamento para com a população em situação de rua. (Educadora social)

esclarece que tanto no próprio CP, e em outros equipamentos sociais, a percepção

89

conservadora de alguns trabalhadores se dava nos atendimentos, seja pelas

diferentes formações, pela falta de “preparo” e pela posição reacionária, ou caritativa

que não visualiza esse público como sujeitos de direitos.

Isso remete a necessidade de acesso a processos de capacitação dos

profissionais nos serviços públicos destinados à população em situação de rua, e

frente ao uso abusivo de drogas, Junior et al. (1998) ressalta a importância nos

serviços de saúde.

Em meio a ausência ou efetivação exitosa da participação de outras

políticas sociais para a população em situação de rua, as profissionais salientam que

no decorrer do trabalho e do equipamento CAPR – CP houve um avanço de

participação de outras políticas, mas principalmente com a participação da saúde.

Os serviços da saúde mais envolvidos eram alguns postos de saúde, principalmente do centro e alguns CAPS/CAPS AD que a gente encontrava pessoas que entendiam sobre o „povo da rua‟, até relacionada à questão das drogas, que sabíamos que ia atender receber (Rita, Assistente social).

A partir da fala de Da Mata (Assistente social), observamos que, embora

o trabalho com o CAPS/CAPS AD passou a ser relevante, ainda havia lacuna quanto

à apreensão sobre a população em situação de rua, e que poucos conseguiram

fazer acompanhamento por um significativo tempo, e de fato superaram as drogas,

porém outros recaíam.

No que concerne as substâncias psicoativas mais consumida pelos

usuários, as profissionais relataram ter observado que o álcool é expressivo nessa

realidade, que produz problemas na saúde, inclusive mental.

O uso era principalmente do álcool e cigarro, e o álcool era um dos que a gente mais via a pessoa ter dificuldade, antes mesmo de ir pra rua. Mas existe uma ideologia que paira de algumas drogas, como boas, outras ruins, principalmente do crack, com esse processo de crackolândia, associando o crack como alvo maior de perigo e até com povo da rua, mas a gente sabe que também tem uma série de problemas associados, ausência de condições humanas de vida [...] (Rita, Assistente social).

Somado a isso, a questão dos impactos das drogas ao ser humano não

se inclina a um efeito danoso genericamente associado a uma determinada droga,

como se evidencia em alguns processos sociais e até programas do Estado que

taxam alguns tipos de drogas como mais perigosa e de maior enfrentamento,

associada muitas vezes pelo caráter ilícito que é atribuído, como o crack.

90

Assim, para Merhy et al. (2010) as políticas públicas voltadas para os

usuários se vinculam a taxação de algumas drogas, como legais, de menos efeito

danoso à saúde e frente a essas drogas lícitas, se realizam ações que limitam ao

caráter de orientação, e às drogas ilícitas, vistas como alvo de perigo e doença, a

repressão, o que influencia na percepção da sociedade.

Outras posições frente a questão do uso de drogas, é revelada na fala de

Maria Rita (Assistente social): “a gente via o que realmente o povo da rua quer, e

não impondo, não posso dizer:„olha você tem que fazer isso, porque é melhor pra

você‟, só porque é pobre vou obrigar, não”.

Assim, observamos que a referida profissional reforça o princípio da

autonomia, tendo em vista em sua fala a consideração do que os sujeitos acreditam,

do que precisam, mas com a intervenção de estar problematizando sua condição e

escolhas para sua vida.

Esse trabalho direcionado ao que “o povo quer” é possível realmente

quando se conhece e reconhece que os usuários podem apresentar demandas e

aspectos semelhantes, mas diante de suas vivências e percepções quanto sua vida,

as escolhas podem sinalizar objetivos distintos, não se enquadrando apenas nas

ações que podem sinalizar como devidas àqueles sujeitos.

Acrescentamos que uma das entrevistadas explanou outra forma de

intervenção frente às demandas de uso de drogas, identificado como Redução de

Danos46, utilizada como alternativa de estratégias de intervenção e atenção, como

Da Mata (Assistente social) explana: “E ai quando a pessoa fazia uso de crack,

perguntava logo: „Você sabe como é o crack: sei não! [...] como é que você fuma

uma coisa que sabe nem como é feito e nem de onde?”.

Dessa forma, a profissional trabalhava na perspectiva de ocasionar a

reflexão mediante a problematização sobre as drogas – “ninguém dizia: „Pare de

usar drogas‟, dependia de cada um deles”.

Ai falava sobre o processo e ia criando um vínculo, diálogo e tentando reduzir. Acompanhei usuários que fumavam crack, que perdiam o controle, muito mal e que conseguiam passar pra maconha e depois para o cigarro.

46

Redução de danos é “um conjunto de políticas e práticas cujo objetivo é reduzir os danos associados ao uso de drogas psicoativas em pessoas que não podem ou não querem parar de usar drogas. Por definição, redução de danos foca na prevenção aos danos, ao invés da prevenção do uso de drogas; bem como foca em pessoas que seguem usando drogas”. Disponível em: <http://www.ihra.net/files/2010/06/01/Briefing_what_is_HR_Portuguese.pdf>. Acesso em 08 de julho de 2014.

91

Assim como usuários que só ficavam na maconha, já o álcool era mais complicado, era horrível! (Da Mata, Assistente social).

Assim, frente as diversidades da população em situação de rua, em que o

uso de drogas também se insere nesse leque de interfaces, revela a necessidade de

contemplar a diversificação das estratégias de cuidado, como aponta na Portaria

3.088 (23 de dezembro de 2011).

Contudo, Quinderé (2013) alerta sobre a redução de danos como ação

que pode aparecer deturpada por alguns profissionais que por “não veem mais jeito”,

utilizam essa estratégia como forma de intervenção. Na verdade, a redução de

danos é coerente com ações construídas entre profissionais e usuários, através das

experiências dos próprios usuários para contribuir na redução de riscos e de danos

causados pelo uso de drogas. “Tinha pessoas que mesmo depois de encaminhadas

pra rede de saúde, voltavam pro Centro e num dia que tava ressaqueada, e no outro

dia a mesma pessoa voltava tomada de vergonha dizendo „Ai fraquejei de novo!‟”

(Rita Lee, Educadora social).

Nesse sentido, observamos que as profissionais acreditavam que além da

saúde, haviam outros valores que podiam contribuir frente uso problemático de

drogas, porém alguns que regrediam com seu intuito de parar ou reduzir o uso de

drogas eram pelo insucesso em proposta de emprego, o que revela que o uso e uso

abusivo de drogas decorre de uma série de fatores, que perpassa a simples

“vontade” de consumir drogas. E embora houvesse regressões, independente das

razões, a referida entrevistada ressalta que os profissionais e os serviços devem

estar sempre disponíveis, em acesso a essa população e “não desacreditar, que não

tem mais jeito, que tá destinado ao fim [...] explicava: „não é da noite pro dia que

consegue, com o nosso apoio, dos amigos, da família se sentirá mais forte‟ é um

processo mesmo”.

Nesse sentido, ao se perceber a vida social como um processo

contraditório e complexo em que a realidade tem que ser permanentemente

negociada por diferentes atores, a possibilidade do conflito e da disfunção perde o

seu caráter catastrófico e anormal para ser encarada como mais um fenômeno

complexo a ser estudado (VELHO, 1997 apud QUINDERÉ, 2010, p. 123). E assim, a

participação de saberes profissionais e dos sujeitos, considerando suas

singularidades que podem indicar os significados sobre os usos desses usuários e

assim ações inerentes suas necessidades.

92

4.3 A inclusão de outras políticas sociais na atuação junto à população em

situação de rua: desafios e possibilidades

Diante da complexidade e diversidade dessa população em situação de

rua, a inclusão de outras políticas sociais, além da assistência social se faz

necessário, visto que a própria PNPSR estabelece a integração das políticas sociais

na atenção a esse público.

Contudo, não é bem isso que vem acontecendo de acordo com as

profissionais que explanaram sobre o desafio que vivenciaram e ainda há – que é o

reconhecimento e a legitimação dos direitos da população em situação de rua pelas

outras políticas sociais, outros serviços públicos.

Essa realidade se revelou como desafio na atuação no campo da

assistência social que, embora tenha sido uma das primeiras políticas por iniciativa

do município de Fortaleza a trabalhar com esse público, ainda haviam outras

demandas que ultrapassavam o serviço – CAPR – CP. Sobre o atendimento iniciado

com a população em situação de rua em Fortaleza, Rita Lee (Educadora social)

explana:

O atendimento que a política de assistência em Fortaleza começou a ter para a população de rua foi importante, mas não dar conta das demandas da população de rua. Não falo em defesa da gestão, mas de profissionais que se comprometeram com a causa da população de rua, mas o desafio era o fluxo com outras políticas, pra acessar outras políticas, direitos.

Relativo a colocação acima, Maria Rita (Assistente social) reforça e

explica que “por mais que tenha uma política nacional para a população em situação

de rua, ainda se tem uma ausência da participação dessas outras políticas”.

A exemplo da ausência ainda verificada de outras políticas, Maria Rira

(Assistente social) citou a educação: “Você pensa que tem uma abertura, cultura, um

projeto específico para a população de rua” (Rosa, Assistente social).

Rita Lee (Educadora social) também reforça a dificuldade da participação

da política de educação no campo de atenção à população em questão, visto que os

cursos profissionalizantes, mediante parceria com o Serviço Social do Comércio

(SESC) eram distantes de longo tempo e distante da condição urgente de acessar

condições de vida.

93

Era como a gente que não vê sentido em certos conteúdos e só faz pra passar! Teve grande evasão, muito tempo pra uma população que a vida é uma correria todo dia. Aprender a montar uma peça e tal, „eu não tenho nem dizer pra comer, tenho que fazer o corre-corre, vou comprar peça quando?‟ No começo a prefeitura dava suporte, e depois como a pessoa vai continuar pra começar um negócio próprio com os cursos que são direcionados pra isso? É difícil pra qualquer um, ainda mais quem não tem o básico. (Rita Lee, Educadora social).

A colocação da entrevista evidenciou assim que a educação não

contempla as reais vivências, necessidades e objetivos daquele público, visto que o

intuito de empreendedorismo, de negócio próprio de muitos cursos da educação

mais uma vez atende mais a lógica de mercado de formação da força de trabalho,

do que de questionamento, de participação e de orientação social.

Nesse sentido, Almeida (2012) explica que a dificuldade da população em

situação de rua em se inserir no processo de escolarização se dá pelo estigma

vivenciado no cotidiano pela situação de rua, pela falta de condições materiais

(roupas, material escolar), pela dependência química etc.

Diante das colocações da entrevista e do referido autor, gera a reflexão

sobre o impacto da educação e a formação de cunho profissional na vida da

população em situação de rua, visto que diante da falta de condições objetivas de

vida que se defronta, a complexidade de algumas configurações de educação torna-

se distante e assim, inacessível a esse público.

Relativo à questão das drogas, a prevenção, como ação socioeducativa

apontada pela própria política de assistência social47 torna-se ausente e inviável,

pelas dificuldades encontradas na aproximação do trabalho da educação com esse

público.

O que pode impossibilitar o acesso a ampliação de discussões e questões

da realidade, bem como próximas as suas vivências, como ressalta Varanda (2009)

sobre a questão das drogas, ao acreditar que visto que as ações sociopedagógicas

possibilitam o acesso ao sujeito de informações sobre a saúde e os danos das

drogas, o que pode gerar espaços de discussão e orientação sobre questões

coletivas e individuais. Contudo, as ações de explanação e discussão irão diferir

quando são realizadas no sentido de sujeição e submissão, como forma de provocar

47Ações preventivas explanadas no documento Sistema Únicas de Assistência Social – SUAS:

perspectivas para o trabalho integrado com a questão do crack e outras drogas.

94

o medo e o rompimento do uso ou na perspectiva de autonomia para seguir

decisões diante da verdadeira realidade sobre tais substâncias.

Assim, as entrevistadas concordam e reforçam que o acesso à educação

a população em situação de rua poderia romper com as barreiras de uma escola

concretamente pronta e trabalhar com a educação informal, que contribua para o

diálogo, que revele a realidade dessa população, que possuem outra dinâmica.

A educação podia chegar junto, de entender que não é preciso está numa escolinha pra fazer uma turma, romper mesmo barreiras do que é escola e sim uma educação informal, que contribua com diálogo e mais perto da realidade dessa população (Maria Rita, Assistente social).

Relativo a questão do trabalho, Da Mata (Assistente social) acredita que:

Diante da conjuntura que vivenciamos, que não há trabalho pra todos, das fragilidades das relações trabalhistas e das condições postas, a população em situação de rua deve ter seu espaço e ser respeitado suas formas de sobrevivência, como a arte, ou outros serviços diversos autônomos que se apresentam como trabalho à população em situação de rua.

Essas configurações de ocupações vão contra as condições de

fragilidades e as impostas pela esfera privada e até do Estado, como ainda

exemplifica Da Mata (Assistente social):

Tem gente que via alternativa da rua, pois não queria trabalhar 08 horas por dia pra ter que ganhar 01 salário mínimo, preferem viver na rua, da sua arte como, por exemplo, pessoa que atendi que tinha formação em artes plásticas e viviam pelo país assim.

Assim, revela que embora há inúmeras adversidades e necessidades de

condições humanas, como saúde, alimentação, educação, habitação, esta última,

por exemplo, nem sempre evidenciava como demanda genérica, visto que as

vivências nas ruas para muitos, passam a ter outro modo de vida, diferente do que

não costuma mais vivenciar, controle do tempo e custo da rotina convencional de

trabalho e de outras organizações rotineiras.

No entanto, Maria Rita (Assistente social) explica que embora há os que

escolhem permanecer nas ruas, há os que querem ter outro espaço para moradia e

outras sociabilidades. Porém mesmo quando conseguem emprego, indaga-se qual a

suficiência que há na oportunidade de um trabalho, quando não outras condições de

vida e diante disso, revela e reforça a ausência de outras políticas sociais as

demandas da população em situação de rua.

95

Dessa forma, há dificuldade do acesso a outros direitos que são básicos e

essenciais para a toda condição humana, e ainda é o que as profissionais afirmaram

como desafio tendo em vista ainda que em meio a trajetória de violações de direitos

“a população em situação de rua, como compreensivo pelas adversidades que já

passam, quer que as demandas sejam pra ontem, e infelizmente as políticas

públicas não são assim” (Maria Rita, Assistente social).

Somado a essa ausência, Da Mata (Assistente social) acrescenta que o

desafio e sugestão para essa realidade é “se despir dos falsos julgamentos, deixar

de lado preconceitos e se permitir mergulhar no mundo do outro que é bem diferente

do seu [...]”.

Assim, os julgamentos vivenciados por alguns profissionais, seja do CP,

como de outros serviços sinalizavam distintas formas de vivência e de acesso a

informações sobre esse público o que indicava a falta de reconhecimento de outros

serviços, políticas e profissionais.

Isso agrava o acesso aos direitos da população em situação de rua, que

além da participação mais presente de outras políticas sociais, há concepções que

podem resumir em preconceitos, juízos de valor e ações limitadas.

Nesse sentido, como exemplo de caso que revelava concepções

conservadoras ou sem apreensão da realidade da população em questão, Maria

Rita (Assistente social) refere que alguns profissionais de hospitais recorriam ao CP

para atender pessoa sem qualquer referência “Ligavam, „venha buscar, remover

essa pessoa daqui‟ e dizia: „não é assim remover, não é lixo, pacote pra gente ir

buscar”. Na verdade, “o que primeiro de tudo as pessoas não queriam era ir pra

casa, era o cuidado, tratamento para o uso de álcool”.

Tal afirmação revela a necessária abertura para diferenças de vivências,

visão de mundo e escolhas da população em situação de rua, como o modo de vida

e a forma de habitar, ressaltada por Rita Lee (Educadora social): “Eu vivo num lugar

que não tem porta, mas pra mim é tranquilo ficar na rua, faço um serviço, um

mandado aqui [...], do que viver numa casa fechada”.

Relativo a isso, as falas das profissionais revelam que moradia não é

sempre o problemas pra alguns, visto que se consegue um emprego, mas não tem

realmente outras condições de vida, e se com a moradia, como ia sobreviver sem

renda, saúde e outras condições mínimas de vida.

96

Acompanhei 05 pessoas, uma apenas ficou com unidade habitacional que recebeu, mas não ganharam outras condições pra mantê-la, era numa comunidade que ficava longe do centro, onde tiravam sua subsistência, como iam manter sua renda? Então venderam mesmo a casa (Da Mata, Assistente social).

Nesse contexto, percebemos que embora no processo de urbanização

„excludente‟, o qual impele a pessoas buscarem moradias distantes dos centros

urbanos e com condições precárias observadas nas periferias (OLIVEIRA, 2013),

grande parcela da população vê como forma de obtenção de renda, seja pelo

trabalho formal ou informal os centros que concentram maiores atrativos de capital,

o que muitas vezes decorrem em sujeitos a passar a morar nesses espaços em

condições adversas, como no espaço das ruas.

Em meio ao sistema que vivemos, insurgem-se algumas pessoas contra

aquela ordem (Rita Lee, Educadora social), dizendo:

„Não, não é assim, pra mim é tranquilo estar na rua, não quero viver numa casa, fechada, quero poder ocupar esse espaço da rua quando quiser e que não vou ser violentado pela polícia‟. Porque você quer institucionalizar pessoas que tem um padrão diferente de normas que a sociedade coloca como a correta, o que é padrão certo?

Porém, o sistema que a profissional citou refere-se ao atual contexto em

que as outras entrevistadas explanaram em que recentemente se apresentam ações

que deturpam a verdadeira lógica de abordagem e intervenção profissional nas

variadas demandas sociais, inclusive nos espaços das ruas.

Segundo as entrevistadas, no sistema citado – na atual conjuntura, o que

vem se evidenciando nesse tempo recente em que a sociedade assiste um dos

grandes processos de eventos no Brasil, são ações que deturpam a verdadeira

lógica de abordagem e intervenção profissional nas demandas sociais.

Tais ações se dão em favor da representação do cenário de

embelezamento brasileiro investido, “porque é uma população vista como „sujos‟,

que enfeiam a cidade” (Maria Rita, Assistente social) decorrendo na interferência

dos espaços públicos, inclusive nas vivências que daqueles espaços se situam.

Somado a isso, aos que fazem uso de drogas, que são direcionados para alguns

serviços, o que sinalizam ações de caráter higienista e até de reclusão, mediante

ações de equipamentos chamadas de plantões.

Assim, as profissionais ressaltaram a regressão quantas intervenções em

favor do acesso aos direitos da população em situação de rua, como outros

97

princípios explanados pela Reforma Psiquiátrica e pela Portaria 3.088 (23 de

dezembro de 2011) que revela a necessidade da perspectiva do respeito aos direitos

humanos, e da atenção humanizada aos usuários.

Em meio o sistema que a gente vive, insurge algumas pessoas contra aquela ordem „Não, não é assim, pra mim é tranquilo estar na rua, não quero viver numa casa, fechada, quero poder ocupar esse espaço da rua quando quiser e que não vou ser violentado pela polícia‟. Porque você quer institucionalizar pessoas que tem um padrão diferente de normas que a sociedade coloca como a correta, o que é padrão certo? (Rita Lee, Educadora social).

Dessa forma, as entrevistadas ressaltam que o respeito e a autonomia

foram valores que tentaram vivenciar na atuação e a política de assistência social,

embora com algumas lacunas para melhorias sinalizou ser a primeira política em

Fortaleza a “abrir as portas e dar visibilidade a população em situação de rua e dar

acesso. Tenho até saudosismo do trabalho que fazia lá. (Maria Rita; Da Mata,

Assistentes sociais). Porém, as entrevistadas verificam a precisão de outras políticas

frente as facetas desse público.

Tendo em vista que para a rua é percebida como espaço de vivência,

sociabilidade Rita Lee (Educadora social) relembra: “Colocávamos „Olha, nós

estamos aqui, mas vocês têm o direito a cidade, a cidade é de vocês também,

quanto é de outra pessoa‟”.

Assim, as profissionais acreditam que a população em situação de rua

rompe com alguns paradigmas sociais, o que veem como possibilidades de se

trabalharem diversas potencialidades, mas que os mesmos ainda não possuem

organização e protagonismo a fóruns e movimentos sociais, “o que poderiam

conseguir muito mais com isso” (Maria Rita, Assistente social).

Por fim, salientamos que foi explanado que o serviço CAPR, atualmente

Centro Pop foi algo já construído e que seria mais interessante a continuidade do

trabalho que já teve uma trajetória de construção à população em situação de rua,

bem como a articulação com outros serviços que se encontram distantes ainda ao

direito da população em situação de rua.

98

4.4 A população em situação de rua: perfil, aspectos e demandas

Para contribuir na compreensão sobre a população em situação de rua se

configura entendemos que, os dados dos usuários que sinalizam algumas

caracterizações podem complementar este estudo.

Na análise do perfil da população em situação de rua em Fortaleza

percebemos que alguns dados se aproximam dos que foram verificados na pesquisa

realizada pelo Instituto de Pesquisa de Opinião Meta, o qual foi solicitado pelo

Ministério de Desenvolvimento Social e Combate a Fome (MDS), no período de

agosto de 2007 a março de 2008.

De acordo com a pesquisa do Instituto Meta, no período pesquisado,

havia 31.922 pessoas adultas em situação de rua, dentre esse número, 1.701

representavam o número em Fortaleza, considerando quem se encontrava nas

praças, viadutos, parques e calçadas.

No entanto, de acordo com o noticiário “Fortaleza não sabe quantos

moradores de rua tem”, veiculado pelo jornal “O Povo”, Fernanda Gonçalves,

coordenadora da Pastoral do Povo da Rua (vinculada à Arquidiocese de Fortaleza),

refere que a percepção sobre a população em situação de rua é de um número

muito superior em relação a 2008.

Isso evidencia que além dos números terem possivelmente aumentado,

indica o aumento da precisão de atenção das políticas públicas a essa população,

considerando suas demandas de acordo com as características que apresentam,

como sinaliza na fala de Fernanda Gonçalves: “Os casos têm mais complexidade:

desemprego, vínculos familiares rompidos, drogadição”48.

De acordo com a análise dos dados levantados, observamos que dos 20

ficha de atendimentos há a predominância dos usuários do sexo masculino (75%),

como se evidencia na pesquisa do Instituto Meta, com população majoritariamente

masculina (84,5%).

48

Fortaleza não sabe quantos moradores de rua tem: A última pesquisa com moradores de rua na Capital foi divulgada em 2008. Desde então, voluntários e militantes apontam crescimento do problema e percebem mudanças no perfil de quem busca refúgio nos espaços públicos”. Disponível em:<http://www.opovo.com.br/app/opovo/cotidiano/2014/02/03/noticiasjornalcotidiano,3200632/fortaleza- nao-sabe-quantos-moradores-de-rua-tem.shtml>. Acesso em 12 de junho de 2014.

99

Porém a idade que verificamos indica que a população em situação de

rua possui entre 21 a 60 anos de idade, o que observa ter idade ampliada nas ruas

em comparação ao da pesquisa do Instituto Meta que apresentou idade entre 25 e

44 anos.

Apreendemos também que dentre os 20 prontuários verificados (08 não

concluíram o primeiro grau, 03 analfabetos, 01 concluiu ensino médio, e outros 08

não informaram sobre), o que é similar com os dados do referido Instituto que

aponta 45,4% não concluíram primeiro grau. O que nos mostra que a questão da

educação é mais uma demanda que se apresenta nesse público, e assim a

relevância da educação dentre as demais políticas sociais inerentes aos sujeitos de

direitos.

Sobre o tempo de permanência na rua, os índices sinalizaram variados,

35% entre 6 a 25 anos vivendo nas ruas ou em albergues, e os outros números

variavam entre 01 ano, 01 mês ou semanas, evidenciando assim que a vivência nas

ruas apresenta-se ainda como realidade recorrente pelo tempo relativamente desses

últimos dados que coletamos. Esses dados indicam em parte a semelhança com o

dado de 43,3% que indicam o público em questão estar há mais de 05 anos nas

ruas ou nos albergues (Instituto Meta).

Verificamos que embora a cidade apresente em si aspectos que indicam

a incidência para a situação de rua, observamos que cerca de 60% sempre viveram

em Fortaleza e 40% indicam pessoas advindas de outros municípios, sendo que há

diversas situações que decorrem na vivência das ruas, que vai além da questão do

desemprego, como a procura de familiares ou por viver perambulando pelas ruas,

realizando alguma atividade que indique trabalho, muitas vezes de caráter

autônomo.

Dessa forma, sinaliza que o movimento migratório por busca de

oportunidades de trabalho não é uma realidade hoje tão recorrente, como reforça a

pesquisa do Instituto Meta (66,7% - sempre viveram em Fortaleza; 23,4% vieram de

outros municípios do Ceará, e 9,6% de outros estados).

Observamos que dentre os vinte atendimentos verificados, 3 usuários

(15%) já passaram ou se encontrariam em albergues, o que nos faz questionar os

motivos do número pequeno de pessoas utilizarem esses equipamentos, e outros

permanecerem possivelmente mais na vivência das ruas.

100

Relativo aos motivos que ocasionaram a situação de rua, verificamos que

35% sinalizaram ser devido problemas decorrentes do uso de álcool e outras

drogas, 30% devido o desemprego, 25% por conflitos familiares e 10% afirmaram

ser por vontade própria e outros pela demolição de loca de moradia e perda de

pais.Em comparação as pesquisas do Instituto Meta, verificamos que os índices

permanecem na mesma predominância, tendo em vista que 13% referiram ser em

decorrência do uso abusivo de drogas, 12,9% ser por problemas familiares e 12,1%

devido a questão do desemprego.

Contudo, uma das substâncias psicoativas mais consumidas foi o álcool

com 60% e que, por sua vez, pode gerar e assim coexistir com outras situações,

como conflitos familiares e até na questão estrutural (trabalho, moradia).

Dessa forma, mesmo sendo droga lícita e assim legal para o consumo,

indica apresentar problemas, dissociando assim a questão do perigo somente as

ilícitas.

Os dados da Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua,

bem como o referido noticiário também evidenciam a significativa relação que há

entre a situação de rua e o uso de álcool e outras drogas, que emerge em diversas

regiões indicando assim a relevância em contemplar as adversidades e demandas

coexistentes pelas políticas sociais intersetorialmente à população que vivencia as

ruas.

Quanto as ocupações e renda, observamos que dentre as 20 fichas de

atendimentos, percebemos que 35% realizam alguma atividade laborativa (lavador

de carro, trabalhar com venda, artesão, profissional do sexo, artista), sendo que 75%

em algum período de sua vida realizou trabalho em regime informal, sem vínculos

empregatícios formais.

Diante disso, verificamos que embora a situação de rua possa indicar

carência de condições de vida e assim, a mendicância como aspecto presente

nessa situação, reforçada até pela sociedade, verificamos que há uma prática de

atividades que podem indicar formas de sobrevivência frente às formas precárias e

até da ausência de trabalho a todos que desejam e têm a força de trabalho como

meio para adquirir renda, como verificamos nesse atual cenário de transformações

socioeconômicas, inclusive no âmbito do trabalho. Assim, verificamos que a questão

101

do trabalho e sua ausência ainda se configuram como fator considerável para a

situação de rua.

No entanto, em meio a tantos motivos e situações que coexistem na vida

das pessoas que acabam vivenciando as ruas, bem com a singularidade dos

sujeitos, percebemos que esses dados contribuíram para explicar algumas situações

coexistentes nessa realidade, mas não compreendemos como únicas razões para

essa situação, tendo em vista as diversidades que permeiam as histórias de vida da

população em situação de rua e dos demais que se inserem nessa sociedade e a

relativa veracidade de alguns dados diante da postura de alguns entrevistados em

sentirem-se confiantes ou não para a declaração de suas vivências.

102

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Inicialmente, ressaltamos que o estudo realizado objetivou compreender a

experiência profissional na atuação com a população em situação de rua, e na

relação deste público com o uso de drogas. Acrescentamos que além das

experiências profissionais, proporcionou também conhecer, na medida do possível,

o universo desse segmento social que se apresenta como realidade diversa.

Diante desse processo de estudo, concluímos que compreender a

população em situação de rua nos remete ao contexto histórico em que essa

realidade de insere, permeada por construções humanas, principalmente da

conjuntura capitalista em que há apropriação de formas de produção de riquezas a

alguns sujeitos, e a desapropriação ou a inexistência de meios de produção da vida

de muitas pessoas. Nesse contexto, concluímos que as relações de trabalho são

também afetadas, evidenciadas pela reconfiguração de suas estruturas que acentua

cada vez mais o desemprego, a fragilidade dos vínculos trabalhistas e distanciam o

ser humano cada vez mais da condição digna de trabalho. Frente a isso, verificamos

que parcela da população que vivencia essas realidades contornam as adversidades

da vida por meio de estratégias de obtenção de renda e sobrevivência como

alternativas de trabalho que, por sua vez, apresentam ressignificação dessa ação

laboral através de valores atribuídos às suas vidas.

Contudo, por consideramos ainda que a população em situação de rua

seja marcada por um caráter heterogêneo, visualizamos que sua realidade também

pode ser oriunda de outras razões que vão além da questão estrutural como foi

destacado anteriormente. Mas, a priori, diante das pesquisas, concluímos e

ressaltamos que as razões e características aqui explanadas não demarcam todas

as justificativas da trajetória para as ruas.

Dentre os motivos que caracterizam a ida da trajetória para as ruas,

constatamos que a relação com uso de drogas ainda é significativa, tendo em vista

os dados apreendidos no município de Fortaleza sobre a População em Situação de

Rua (35%), que se apresenta ainda como índice acima do desemprego (30%) e de

conflitos familiares (25%).

Dessa forma, concluímos que a questão das drogas nessa população

vem sendo motivo para essa situação, observando ainda que pode ser coexistente a

103

outras problemáticas antes das ruas, ou como uso após a ida atribuído como meio

para resistir as adversidades vivenciadas nas ruas.

Em meio a apreensão sobre o uso de drogas nas ruas, constatamos que

ainda há reprodução do imaginário social, em que parte considera a população em

situação de rua pelos termos de vagabundos, perigosos, e mesmo associando-a ao

uso de drogas, na esfera da marginalização e dos desvalidos, inclusive por

profissionais de alguns serviços sociais.

Constatamos que embora a atenção a população em situação de rua

tenha sido tardia, evidenciada em período relativamente recente, ou seja, em 2005

quando a Política de Assistência Social passou a reconhecer as demandas da

população em situação de rua, bem como pela Política Nacional para a População

em Situação de Rua, criada não menos de 05 anos atrás (2009), a proposta é

necessária e relevante a esse público que já apresentava uma histórica desatenção,

quando não eram fornecidos benefícios de ações filantrópicas.

Quanto a questão da drogadição, concluímos que também podemos

perceber certo avanço na inclusão da Política de Assistência Social na intervenção

junto aos casos do uso de drogas, realizado em 2011, mediante o aspecto

intersetorial previsto pelo programa “Crack é possível vencer”, lançado pelo Governo

Federal. Contudo, compreendemos que o crack não é a única droga de maior dano

à saúde, visto que outras substâncias psicoativas foram observadas como agravos à

vida. Diante das pesquisas, observamos que em Fortaleza, as ações públicas

direcionadas ao universo da população em situação de rua se empreenderam

mediante a política de assistência social, antes mesmo do estabelecimento da

Política Nacional para a População em situação de rua, em 2009.

Dessa forma, e diante das colocações apreendidas concluímos então que

por meio dos equipamentos do CAPR, e atualmente o Centro Pop, a política de

assistência social do município possibilitou a “abrir as portas” para a população em

situação de rua, mediante acesso a condições básicas de vida que se dava através

da concessão de alguns benefícios, do trabalho do “projeto de vida” dos usuários e

da articulação com outras políticas sociais de Fortaleza. Porém, sem desconsiderar

que ainda havia posições profissionais diferentes que indicava teor conservador e

até de correção a esse público no próprio serviço CAPR – CP.

104

No entanto, considerando a relevante necessidade da participação de

outras políticas sociais e assim de outros profissionais ao acesso a outros direitos à

população em situação de rua, inclusive ressaltada pela Política Nacional para a

População em Situação de Rua, observamos que ainda há ausência da intervenção

por parte de outras políticas, e também do reconhecimento desse público,

evidenciada ainda pela não apropriação de outros trabalhadores sobre esses

usuários, visto que diante de referências no estudo, alguns reproduzem posição de

estranhamento e limitada à população em situação de rua, percepção da relação

direta - situação de rua e drogadição, considerando-a como pessoas sujas, coitadas

ou a dever ser removidas das ruas, como intervenção adequada.

Essa perspectiva de remoção retrata higienização das ruas, e que era

incoerente com o princípio do direito ao usufruto e permanência na cidade, verificada

na própria Política Nacional para a População em Situação de Rua.

Assim, acrescentamos que a população em situação de rua ainda pode

ser percebida como invisível, em meio à ausência de outras políticas que

percebemos ser essenciais à contemplação das reais necessidades dessa

população em questão.

Contudo, apreendemos também que a atuação pelo menos de alguns

profissionais se dava na perspectiva do diálogo, da sensibilização e da autonomia, o

que possibilita criar estratégias de intervenção contrárias às ações de coerção e de

única perspectiva, como a correção da situação de rua, bem como do uso de

drogas.

Dessa forma, concluímos que dentro de sua peculiaridade, a Política de

Assistência Social pode contribuir nas demandas de drogas, na identificação essa

realidade, na problematização da experiência com a situação de rua e do uso de

drogas, nas ações de prevenção e na divulgação dos serviços destinados às essas

demandas na perspectiva de contemplar a autonomia dos usuários – observado

como princípio - e não no sentido de executar o enfrentamento com base na

interdição do uso, visto as diversidades de uso e reações com relação às

substâncias psicoativas.

Frente a isso, concluímos que ainda há deficiência por parte do Estado na

sensibilização e ampliação sobre a população em situação de rua àqueles que

atuavam conjuntamente com esse público, seja pelas ações da política de

105

assistência social e de outras políticas sociais, o que pode fragmentar e correr o

risco da não efetivação das condições humanas inerentes à vida,

independentemente de sua condição.

É relevante compreendermos também a precisão de ações que ampliem

a questão das drogas aos profissionais, considerando as especificidades dos

serviços sociais, para proporcionar atenção efetiva na perspectiva da autonomia,

porém não no sentido de responsabilizar o usuário pela escolha ou não ao acesso à

saúde, e sim na sensibilização e melhores formas de intervenção.

Concluímos que, a contemplação da singularidade dos sujeitos, ou seja, a

diversidade dos usuários, dos significados e formas de uso e assim, da

problematização do uso de drogas, articulado com a unidade de saúde, bem como

com outras políticas sociais possibilita apreender suas reais necessidades, seja

mantendo-se na rua ou não, tendo em vista ainda o direito à cidade, que é um direito

coletivo, e para muitos se torna parte da identidade de suas histórias de vida.

106

REFERÊNCIAS

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111

ANEXOS

112

ANEXO A

113

ANEXO B

114

ANEXO C - D E C L A R A Ç Ã O Eu, PAULO HENRIQUE DE OLIVEIRA NUNES, CPF. 936.245.495-53, graduado em Letras

– Português/Inglês, declaro ter realizado a correção ortográfica da Monografia da Aluna:

FRANCISCA DEUZIRENE NOBRE DE LIMA, portadora do RG: 2004010339896, de

matrícula: 10002866 na instituição, tendo como título: “SITUAÇÃO DE RUA E

DROGADIÇÃO: SITUAÇÃO DE RUA E DROGADIÇÃO: UM ESTUDO SOBRE A

EXPERIÊNCIA DOS PROFISSIONAIS DO CENTRO POP NO MUNICÍPIO DE

FORTALEZA (CE).”, do curso de Graduação em Serviço Social da Faculdade Cearense

(FAC).

Por ser verdade firmamos o presente.

Fortaleza, 25 de Julho de 2014.

115

ANEXO D – DIPLOMA DO REVISOR (Anverso)

116

ANEXO E – DIPLOMA DO REVISOR (Verso)

117

APÊNDICE A

ROTEIRO DE ENTREVISTA – PROFISSIONAIS DO CENTRO POP PERFIL NOME:______________________________________________________________ FUNÇÃO QUE EXERCIA NO CENTRO POP:_________________________________PERÍODO__________ GRADUAÇÃO/FORMAÇÃO:____________________________________EM_____ PÓS-GRADUAÇÃO (LATO SENSU/STRICTO SENSU):___________________________________________________EM_____ DATA DE NASCIMENTO:______/______/_______ SEXO: ( ) MASCULINO ( )FEMININO / NATURALIDADE: ____________________ 1. EM QUE ÁREAS JÁ TRABALHOU? (Saúde, Assistência, Sociojurídico, etc.).

2. COMO VOCÊ COMPREENDE A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA?

(Já conhecia; experiências; e pela sociedade?).

3. FALE SOBRE SEU TRABALHO NO CENTRO POP?

(Importância de sua atuação profissional nesse campo e princípios que norteiam o

trabalho?).

4. EM SUA OPINIÃO, QUAIS RAZÕES E VALORES PARA QUEM VIVE NAS RUAS

E AINDA PARA QUEM FAZ USO DE DROGAS?(Percebeu o uso de drogas, antes

ou depois da ida às ruas? Fator econômico; biográfico? Outras adversidades?)

6. QUAL A POLÍTICA QUE O CENTRO POP TRABALHA PARA DEMANDA DAS

PESSOAS EMSITUAÇÃO DE RUA QUE FAZEM USO DE DROGAS?

(Que perspectiva essa população é analisada e atendida/abordada? Profissionais

envolvidos?).

7. QUAL A PARTICULARIDADE E RELEVÂNCIA DESSA POLÍTICA (ASSISTÊNCIA

SOCIAL) À POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA, INCLUSIVE AOS QUE FAZEM

USO DE DROGAS? (Sabes de onde são advindos os recursos destinados a essa

demanda?)

5. QUAIS AS POTENCIALIDADES E DESAFIOS DE SE TRABALHAR COM ESSSA

DEMANDA? (Como valores podem interferir no trabalho com estes?).

8. COMO VOCÊ COMPREENDE O DESENVOLVIMENTO DA POLÍTICA

MUNICIPAL INTERSETORIAL DE ATENÇÃO À POPULAÇÃO DE RUA?

(Há outras políticas públicas e serviços articulados na intervenção?).