Central Do Brasil - Alegoria e Realidade (Gerson Tenório Dos Santos e Paulo César CArneiro Lopes)

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CENTRAL DO BRASIL: ALEGORIA E REALIDADEGerson Tenrio dos Santos Doutor em Comunicao e Semitica (PUC-SP), Coordenador do Curso de Letras da UNICASTELO e Coordenador do Curso Lato Censu em Literatura Contempornea da UNICASTELOPaulo Csar Carneiro Lopes Doutor em Literatura Brasileira (USP), Professor do Curso de Letras da UNICASTELO, Professor do Curso Lato Censu em Literatura Contempornea da UNICASTELO e autor de Dialtica da Iluminao: estudo de Corpo de Baile, de Guimares Rosa (Nankin, 2014).RESUMOO objetivo deste artigo fazer uma anlise do filme Central do Brasil a partir da relao alegoria/smbolo discutida dentro de uma longa tradio na qual se inclui Walter Benjamin, principalmente como abordado em sua obra Origem do drama barroco alemo. A anlise alegrica dos nomes de Josu e seus irmos e da temtica da busca do pai nos mostra o processo de humanizao e a busca pelo sentido que de maneira geral atinge todos os personagens do filme, mas em especial Dora, que experiencia a partir do encontro com Josu uma verdadeira transformao que preenche de significado a sua vida at ento vazia e destituda de amor ao prximo.

ABSTRACTThe objective of this Article is to make an analysis of the movie Central do Brasil departing from the relation allegory/symbol discussed within a long tradition in which includes Walter Benjamin, mainly as approached in his work Origins of Tragic German Drama. The allegorical analysis of the names of Josu and his brothers along with the theme of the search for the father shows us the process of humanization and the search for meaning that generally affects all the characters of the movie, but in particular Dora, that experiences after meeting Josu a true transformation that fills of meaning her life until then empty and bereft of love for the neighbor.

INTRODUONeste artigo buscamos fazer uma anlise do filme Central do Brasil luz do conceito de alegoria e realidade tal como a crtica literria a tem feito dentro de uma longa tradio. A alegoria, a despeito de sua longa tradio de polmicas, sempre foi um elemento central para os estudos literrios e, recentemente, para o prprio cinema. O filme ficcional, como o caso do filme que iremos analisar, pode, evidentemente, ser classificado como literatura. Ele deve ser classificado como pertencente ao gnero dramtico. Hegel, em seu Curso de esttica onde, evidentemente, no se fala de cinema, j que este ainda no existia , apresenta o teatro como uma sntese de todas as artes, j que, para se montar uma pea, pode-se usar, e costuma se usar, elementos de todas as outras artes. Sendo a pea um texto literrio, no momento de sua montagem e execuo, usa-se as artes plsticas, a dana, a msica... Podemos pensar, com Vittorio Hsle, que hoje, o filme cumpre este papel de forma mais completa que o prprio teatro. Walter Benjamin, em sua obra Origem do drama barroco alemo, contrape-se ao conceito romntico de alegoria. Para Goethe, o poeta pode apreender e representar o particular por meio do smbolo, que tem carter de universalidade. Por esta razo, segundo o poeta alemo, o smbolo seria superior alegoria, j que por meio da forma alegrica o poeta, de forma inversa, partiria do universal para chegar ao particular. Benjamim, em contraposio a isto, ao analisar o drama barroco e sua relao com a histria, atesta que s se pode atingir o universal de forma precria, fragmentar e melanclica[footnoteRef:1]. E , pois, a alegoria que permite revelar a facies hippocratia da Histria, com sua face doente, que nos revela uma paisagem primordial petrificada (BENJAMIN, 2004, p. 180). Longe da ideia romntica de que a arte tem acesso totalidade de uma histria triunfante, Benjamin denuncia a histria moderna como sofrimento, melancolia, opresso, barbrie, cabendo justamente arte resgatar, por meio da alegoria, nas runas da histria, no fragmento, na incompletude, o desejo de eternidade. Assim, a alegoria tem um carter claramente dialtico, pois em sua negatividade reveladora das dores e da angstia do mundo histrico capaz de revelar a possibilidade de uma existncia autntica que, inclusive, no se prende ao aqui e agora, experincia esta presente na aura a que o homem da reprodutibilidade tcnica no tem mais acesso, mas que pode ser vislumbrada por meio da dialtica da alegoria. O que est em jogo na dialtica da alegoria o problema do sentido, j que para Benjamin, no domnio do simblico, que entra em crise na modernidade, h correlato entre nome e coisa, uma dimenso imanente de autenticidade que prescinde do sujeito. E isto que, ao nosso ver, Benjamin busca preservar com o conceito de aura. J no domnio do histrico, do homem aps a expulso do paraso, o nome no mais pode significar por si mesmo e necessita de um signo que represente a coisa para um intrprete. por isso que a alegoria est mergulhada na histria e possui uma dimenso subjetiva. Ou seja, o alegorista opera por meio de fragmentos descontextualizados construindo novos sentidos ao junt-los com outros fragmentos. Sem o alegorista, a coisa permaneceria transitria, muda e sem sentido. A alegoria, portanto, no uma figura ilustrativa, como a via a retrica antiga, mas um procedimento, uma metodologia que problematiza a histria e recolhe no seio da esttica um algo mais que no pode ser captado nem na coisa em si que no mais nome nem no signo lingustico que se encontra destitudo de seu carter totalizante. A alegoria ao reconfigurar o sentido, a partir de fragmentos recompostos em novos contextos, no nega a histria, mas no se torna refm dela, o que a tornaria vazia de significado. Em vez disso, traz com os novos significados as marcas dos contextos anteriores, fazendo com que haja uma espcie de redeno do sentido original: [1: - Pessoalmente, contra a tendncia predominante na atualidade, acreditamos que o sentido da vida e da histria pode ser reconhecido pelo ser humano. Acreditamos na possibilidade de um pensamento capaz de articular o sentido para alm da fragmentao; as intuies artsticas, neste sentido, podem ser, inclusive, pontos de partida para isto. Aqui, no entanto, no o lugar apropriado para entrarmos nesta discusso. cf. OLIVEIRA, Manfredo Araujo. Para alm da fragmentao. So Paulo: Loyola, 2002.]

Na esfera da inteno alegrica, a imagem fragmento, runa. Sua beleza simblica se evapora, quando tocada pelo claro do saber divino. O falso brilho da totalidade se extingue. Pois o eidos se apaga, o smile se dissolve, o cosmos interior se resseca. Nos rebus ridos, que ficam, existe uma intuio, ainda acessvel ao meditativo, por confuso que ele seja (BENJAMIN, 1984, p. 198).

O cinema, visto por Benjamin como o pice da fragmentao da cultura moderna pelo fato de ser constitudo pelos fragmentos reunidos pela montagem, pode ser tomado, par excellence, como uma arte alegrica. Muito embora esteja imerso na Indstria Cultural e tenha um carter altamente alienante e cerceador da experincia humana, como o viu Adorno, possvel destacar em alguns filmes o carter aurtico do cinema, como observa Rouanet no que ele chama de grande cinema (cf. ROANET, 1990, p. 62). No se trata aqui de mera recuperao da experincia autntica franqueada pelo smbolo, pois cinema uma arte intersemitica. Mas de permitir ao espectador uma participao mais intensa com uma certa dimenso da experincia humana que se abre por meio da alegoria, ou, dito de outra forma, o de promover um adensamento dos significados postos em jogo pelo filme, subvertendo, por instantes, nossa relao com o vazio, a misria e a violncia de nosso cotidiano social moderno e abrindo portas que nos fazem mais crticos e abertos ao poder transformador do amor, da esperana e da justia. Este o caso do filme Central do Brasil, que passaremos a analisar.

A ESTRUTURA NARRATIVA DE CENTRAL DO BRASIL Central do Brasil a estria de um encontro. E, a partir deste encontro central, ele nos fala de diversos encontros e desencontros. De desejos de encontros, de desencontros dolorosos, de frustaes e esperanas. O encontro central aquele entre Dora, uma mulher amarga e desiludida, e de Josu, um menino de nove anos que sonha encontrar seu pai. Dora, professora aposentada, para complementar seu minguado salrio, trabalha na estao de trem Central do Brasil, escrevendo cartas para pessoas que no sabem nem escrever nem ler. Ela escreve as cartas mediante pagamento e, para aqueles que o querem, cobra um pouco mais para coloc-las no correio. Cobra um pouco mais para faz-lo, mas no o faz. Leva as cartas para casa, destri a maioria e algumas poucas ela as engaveta para deciso posterior; contudo, pelo que indica o filme, o destino delas nunca o correio. O encontro entre ela e Josu comea no dia em que este vai com a me, Ana Fontenele, para que Dora lhes escreva uma carta. Trata-se de uma carta para o pai do menino, Jesus de Paiva, que mora em Bom Jesus do Norte em Pernambuco. A me dita uma carta dura, onde afirma, logo de sada, ter sido o aparecimento de Jesus a pior coisa que aconteceu em sua vida; afirma tambm estar escrevendo apenas para satisfazer o menino, que deseja muito conhec-lo. Poucos dias depois, no entanto, ela volta e, afirmando estar arrependida do que disse na primeira carta, quer troc-la por outra. Dita ento a nova, onde revela ainda amar Jesus e se dispe a ir com o Josu ate Bom Jesus do Norte, para se encontrarem com ele.No entanto, quando me e filho esto indo embora, esta atropelada e morre. Josu, com auxlio de Dora, acaba sendo entregue por um funcionrio corrupto da estao, para um grupo que, ao que parece, matava as crianas para vender os rgos. Posteriormente, no entanto, recriminada pela amiga Irene, acaba se arrependendo; vai at a casa onde entregara Josu e foge de l com ele. Acaba, atravs de uma longa jornada cheia de incidentes, indo com ele at Bom Jesus do Norte, para deix-lo com o pai. Durante este processo vai crescendo entre eles, em meio a um dilogo complexo, muitas vezes marcado por palavras duras e agressivas, uma grande ternura e solidariedade. Ao longo da viagem acontecem novos encontros e desencontros. Os dois perdem o nibus em que estavam e conseguem carona com Csar, um bondoso caminhoneiro evanglico; aos poucos cresce um clima amoroso entre ele e Dora, no entanto, assustando-se ao ver seu mundo de valores ameaados pelo que Dora parece representar para ele, Csar foge, abandonando-os em uma parada. Em troca de um relgio, Dora consegue lugar para eles em um caminho de romeiros que est indo para Bom Jesus do Norte. Chegam enfim. Antes de irem procurar o pai de Josu, h mais um dilogo entre este e Dora, onde ela, como j havia feito outras vezes, tenta preveni-lo contra o pai. Josu reage, como sempre, reafirmando as qualidades deste. Ao chegarem ao endereo da carta, so recebidos por uma senhora mais velha, que confirma ser ali a casa de Jesus; ele no estava, mas chegaria logo. Em seguida aparece a esposa, com duas crianas. Depois chega o pai. Quando Dora manifesta seu desejo de falar-lhe em particular ele pede me e esposa para sarem e escorraa um dos filhos que quis continuar por ali. Josu, algo perplexo, observa tudo. Quando Dora lhe diz do que se trata ele parece estar disposto a aceitar o filho, contudo, ao ver a carta de Ana, sorri aliviado: ele era o Jess e no o Jesus, este era o antigo morador da casa, de quem ele a comprara. Depois de pegar para eles o novo endereo, comenta com Dora, de passagem e Josu escuta entristecido , que Jesus bebera todo o dinheiro da venda. O pai havia mudado para a Vila do Joo, bem distante dali. Dora descobre que sua amiga Irene havia mandado um dinheiro que ela pedira para outro lugar, Bom Jesus da Lapa. Eles esto novamente sem dinheiro, sem comida e longe do pai. Dora est nervosa, descarrega no menino sua raiva. Este, sentindo-se ofendido, deixa-a falando sozinha e sai correndo, some no meio da multido. Dora sai atrs dele, mas no o alcana. Andando o mais rpido que pode por entre a multido, Dora grita pelo nome de Josu. Parece uma busca intil. Os romeiros rezam em voz alta. Ouvimos fragmentos de orao: agradecimentos, pedidos, esperanas... Ela entra na igreja, passa pela sacristia, chega sala dos milagres. Anda devagar. Parece meio tonta. Fotos. Velas. Pessoas. Imagens. Quadros. Ela diz: Josu. Uma mulher com os dedos nos lbios pede silncio. L fora explodem fogos. Dora desmaia. E ento, inesperadamente, surge Josu, que a acolhe com carinho. Na cena seguinte eles esto na rua, ele sentado de pernas cruzadas e ela com a cabea em seu colo. Dora olha para o menino, que faz carinho em sua cabea. Os dois ficam por um instante entregues a esta cena de ternura e amor. Depois disso, caem as ltimas barreiras entre eles. O encontro se completa. No entanto, o fato de estarem perdidos ali, sem nem um centavo, no havia mudado. At que Josu, diante de uma circunstncia favorvel, apresenta Dora como escrevedora de cartas e, por meio deste seu antigo ofcio, agora com apoio da loquaz propaganda do menino, ela consegue uma boa quantidade de dinheiro. Ela comenta, brincando: Estamos ricos, ao que o menino responde que daria at para comer. Mas d para bem mais. Ele compra um vestido de presente para ela. Os dois passam a noite em um hotel e, no dia seguinte, podem ir de nibus at o novo endereo. Neste meio tempo h uma cena bastante significativa que vale a pena ser destacada. Ao chegarem no hotel, Josu, depois de vacilar um pouco, joga as cartas no lixo. Dora, assustada, o interrompe: no fizesse aquilo! Ele, ingenuamente, pergunta se deveria rasgar primeiro, ao que ela retruca que no, que depois ver o que vai fazer com elas. E quando os dois esto no ponto, esperando o nibus, ele, comovido, a v ir at a agncia do correio para mandar as cartas. Ela, transformada por aquele profundo encontro amoroso com o menino, j no consegue manter seus pequenos deslizes antiticos.Chegam enfim ao novo endereo: uma vila com centenas de casinhas iguais, resultado de uma ocupao, como ficamos sabendo mais tarde. Mas, ao chegarem ao suposto novo endereo de Jesus, mais uma decepo. Ele j no mora ali tambm. E desta vez j nem sabem indicar um novo destino. O novo morador diz que ele sumiu no mundo e nem tem ideia se ir voltar ou no. Outro detalhe importante: de dentro da casa, enquanto eles conversam com o homem, sai um menino que sobe em uma bicicleta e afasta-se dali. Josu, cabisbaixo, tambm se afasta da casa. Dora o alcana no meio do caminho e eles travam um dilogo que, no contexto do filme, carrega-se de significaes. Josu pergunta se o pai no iria mesmo voltar. Dora diz que no, que acha que no. Ele diz que vai esper-lo. Ela diz que no adianta e, agora categrica, embora suave, reafirma que o pai no voltar e convida o menino para ficar com ela. Ele aceita. No entanto, quando os dois acabam de sair da rodoviria, com as passagens de volta para Bom Jesus da Lapa, so abordados por Isaas filho mais velho de Jesus ; o menino da bicicleta lhe avisara que havia gente de fora procurando por seu pai. Isaas extremamente simptico e faz questo de lev-los para tomarem um lanche em sua casa. L eles conhecem tambm Moiss, o segundo filho.Josu que eles pensam chamar Geraldo, por informao errada deste, e que no sabem ser seu irmo mais novo harmoniza-se muito bem com Isaas e Moiss: junto com Moiss, faz um pio como um que ele j carregava no comeo na estria e que, neste momento, percebemos ter sido presente do pai; os trs jogam bola juntos, e, noite, dormem na mesma cama, Josu entre os dois, como que protegido por eles. Dora, na tarde que precedera aquela noite, havia lido para eles uma carta que o pai mandara para Ana Fontenele, e que eles, sem saberem ler, haviam guardado at aquela data. Na carta, que completa em nossa mente mais uma estria de encontros e desencontros, a histria de amor de Ana e Jesus, este conta que foi para o Rio de Janeiro atrs dela, mas que entendera que ela havia voltado e por isto, agora, tambm estava voltando para, enfim, ficarem juntos, os dois e os filhos. Durante a leitura houve uma comoo; ao fim Isaas diz: ele vai voltar. Moiss, embora tambm comovido, retruca: volta nada, e Josu, com aprovao de Isaas, finaliza: um dia ele volta. Na manh seguinte, Dora se levanta, passa batom nos lbios, veste o vestido que Josu lhe deu, olha os trs irmos que dormem juntos e parte, deixando em um mvel, debaixo de um quadro onde esto juntos Ana e Jesus, e onde j est a carta deste ltimo, tambm a carta que Ana ditou para ela.Josu acorda de repente. Levanta-se, procura por Dora e, no achando-a, sai correndo s de short, pelas ruas da cidade, buscando-a.Ela embarca. O nibus parte. Enquanto, extremamente emocionada, escreve uma carta para o menino, ouvimos sua voz em off. Na carta ela afirma que Josu est certo, que o pai existe, tudo que o menino pensa e um dia vai voltar. Diz tambm que melhor ele ficar com os irmos que tm muito mais a lhe oferecer do que ela. Josu percebe que no vai mesmo conseguir alcan-la. Para. Pega a foto que tirou com ela junto ao Pe. Ccero, pouco depois de terem vendido as cartas. Paralelamente, Dora, j tendo terminado de escrever a carta, tambm olha saudosa uma cpia do mesmo retrato. Apesar da tristeza pela separao, h nos dois uma alegria nova: o encontro entre eles foi verdadeiro e profundo, apesar do medo dela, tambm dito na carta, ele no a esquecer, o amor os unir para sempre.

ALEGORIA E REALIDADE EM CENTRAL DO BRASILCentral do Brasil , sem dvida, um dos melhores filmes do cinema brasileiro. E, como tal, as possibilidades de anlises interpretativas que ele possibilita so muito grandes. H nele temas e questes que atravessam toda a tradio da Literatura Ocidental. H, por exemplo, a temtica da busca do pai, que vem sendo tratada por diversas e importantes obras ao longo da literatura moderna. Ele nos possibilita tambm discutirmos a controversa questo do smbolo e da alegoria, tal como o fizemos na introduo. Na verdade, no filme, estas duas questes se entrelaam. Podemos dizer que o tema central do filme a questo da busca do pai, e, por outro lado, reconhecemos, sem grande esforo, que este tema tratado evidentemente de forma simblico/realista e alegrica ao mesmo tempo. No que se refere temtica da busca do pai, parece-nos que ela to forte e constante na nossa cultura ocidental moderna exatamente pelo fato de representar um dos problemas centrais desta cultura: a questo do sentido. Como se sabe, nas chamadas talvez indevidamente sociedades tradicionais, os mitos fundadores destas, so aceitos praticamente de forma unnime e garantem, assim, a continuidade de seu sentido. Na cultura ocidental, de modo muito especfico na cultura ocidental moderna, no h esta adeso incondicional s narrativas fundantes, doadoras de sentido. A dvida, o princpio desconfiana, espalham-se poderosamente por toda parte e solapam qualquer inteno de unanimidade ideolgica. H, no nosso entender, aspectos muito positivos neste processo. graas a ele que, perdendo o medo da natureza, os homens conseguem desenvolver com uma radicalidade assombrosa as cincias particulares. Por outro lado, ele traz tambm os seus perigos. Podemos dizer, sem medo de errar, que foi ele quem possibilitou o grande desequilbrio ecolgico que hoje nos ameaa. Vivemos em um mundo onde no h as antigas seguranas mticas do passado. Mais que nunca somos obrigados a sermos responsveis por nossos atos, pois sabemos que eles, e no foras sobrenaturais, mticas, que decidiro quanto ao nosso destino. As razes mais antigas desta destruio da confiana nos mitos vm, pensamos, da tradio grega e da tradio judaica; de modo mais especfico da filosofia grega e da revelao judaica. O cristianismo, ponto de interseco destas duas tradies, potencializou os princpios crticos de ambas. Jean Pierre Vernant mostra, por meio de seus estudos, que a filosofia grega, desenvolvendo o processo de pensar radicalmente por meio de conceitos e por meio do debate pblico, dessacralizou a natureza. Na tradio judaica, por sua vez, pela prpria ideia que foi se consolidando cada vez mais de um Deus criador que cria tudo do nada, esta dessacralizao j se d desde o incio, pois o mundo, o universo inteiro, sendo criatura, no divino. No entanto, nem na tradio filosfica grega, nem na tradio judaica, e, evidentemente, nem na tradio crist, a questo do sentido eliminada. A ideia do Absoluto transcendente, que se consolidada a partir do encontro destas tradies, no elimina o sentido do mundo, pois, sem se confundir com esta realidade, o Deus transcendente o seu fundamento e a garantia de seu sentido. Podemos dizer, com Henrique de Lima Vaz, que no sculo XIII, esta concepo encontrou sua expresso mais equilibrada no pensamento de Toms de Aquino. A partir dai, no entanto e o pensamento de Duns Escoto e Guilherme de Ockham expressam esta realidade de forma complexa inicia-se um lento processo de desequilbrio que, ao longo da modernidade, vai culminar em uma forte tendncia para falta de sentido do universo e da vida. Para muitos, terica ou praticamente, a vida se torna uma paixo intil, para usarmos uma expresso famosa de Antoine de Roquentin, personagem de A nusea, de Jean Paul Sartre. Em grande medida, a temtica da busca do pai uma resposta a esta questo. Como se sabe, a tradio ocidental manteve, ao longo de sua histria, a associao entre Deus e pai, vinda do cristianismo. Jesus, radicalizando uma ideia j presente no judasmo, mesmo mantendo o carter transcendente do absoluto, o traz para perto, para a intimidade de cada um, por meio da metfora paterna. Assim, se consolida uma concepo de Deus como pessoa, pai amoroso que cuida de sua criao. O grande desafio posto pela existncia do mal se Deus existe, poderoso e bom, como se explica o mal no mundo? s pode ser posto a partir desta concepo de Deus/pai. Assim, o sentimento de ausncia do pai, a busca constante, s vezes desesperada, deste, que vemos tantas vezes em nossa literatura moderna, parece ser uma representao imagtica da questo do sentido. No filme Central do Brasil ela tratada de forma magistral. Na verdade, ele consegue apresent-la de forma complexa, articulando com preciso realismo e alegoria. O filme evidentemente realista no sentido amplo do termo , contudo, ele se utiliza tambm de forma quase evidente, de alegorias muito significativas. A estria do menino pobre, de origem nordestina, que busca ansioso por seu pai absolutamente plausvel do ponto de vista realista. Isto, no entanto, no elimina o fato de que os nomes dos personagens: Jesus, Josu, Isaas e Moiss, tornem-se, na economia interna da obra, poderosas chaves alegricas de interpretao. E, mais do que isto, o significado bsico da narrativa realista, ao invs de chocar-se com a interpretao alegrica, reforado e aprofundado por esta. Esta relao j comea desde o incio do filme. Este se abre com uma cena mostrando, pela manh, a chegada de trabalhadores na estao de trem, Central do Brasil; logo em seguida entra a imagem de uma mulher ditando uma carta que fala de seu amor e fidelidade: seu amado est preso, mas ela vai esper-lo. Em seguida, em oposio a esta relao amorosa, vem a cena de um senhor ditando uma carta para um amigo em quem confiou e que o traiu. H, como se v, uma relao antittica entre as duas cenas: a primeira afirma sua f no amor, a segunda fala de uma traio, uma resposta negativa diante de um ato de amor, confiana e amizade. A terceira carta ditada a de Ana Fontenele. Seu incio muito significativo e irnico. Jesus, afirma ela, voc foi a pior coisa que aconteceu em minha vida. Jesus, como se sabe, a referncia fundadora do cristianismo, tradio que, no Ocidente, afirmou existir um fundamento amoroso para o universo, fundamento este que garante seu sentido. Quando Ana diz em destaque, Jesus, sua fala lembra algo muito comum na cultura popular brasileira: um depoimento religioso que agradece ou pede alguma coisa a Jesus, o revelador e expresso pessoal deste Deus amoroso. No entanto, ao invs de pedir ou agradecer, ela acusa: voc foi a pior coisa que aconteceu em minha vida. Vemos, logo em seguida, que o Jesus dela no o Jesus do cristianismo, um homem com quem ela teve um caso amoroso, que lhes deu um filho: Josu. Segundo Ana, como vemos na sequncia da carta, s por causa do menino que est escrevendo para ele; havia explicado para o filho que o pai no prestava, no entanto, mesmo assim ele queria conhec-lo. Esta carta, a um primeiro olhar, parece ser do mesmo tipo da segunda, ou seja, parece falar da decepo com o amor. No entanto, se a analisarmos com um pouco mais de cuidado, veremos que no assim. Podemos dizer que ela uma espcie de sntese entre as duas primeiras. Ela fala, evidentemente, explicitamente, de uma decepo amorosa, contudo, o prprio fato de Ana estar escrevendo, mostra que esta decepo no total, que h esperana de que este amor ainda possa existir. J nesta cena mas com o avanar do filme isto fica cada vez mais claro , o fato dela afirmar estar escrevendo s para atender ao filho, no passa, de fato de desculpa. A prpria Dora, ao comentar a carta com sua amiga Irene, afirma que a mulher est apenas usando o desejo do menino conhecer o pai como desculpa para, como diz ela, ter o seu homem de volta. E isto fica absolutamente claro quando, um pouco adiante no filme, ela volta com o filho estao para ditar uma nova carta. Antes de faz-lo, afirma ter sido muito dura com Jesus na carta anterior e revela, explicitamente, que ainda o ama. Na nova carta, fala na possibilidade de ir com o filho encontrar-se com ele no ms seguinte, quando estar de frias. Faz tambm referncia a duas outras pessoas que mais tarde vamos descobrir serem dois outros filhos de Jesus com quem ela conviveu enquanto estiveram casados Isaas e Moiss. Alm do nome Jesus, j comentado, os nomes dos trs filhos tambm so evidentemente significativos. Os trs referem-se a trs nomes fundamentais da tradio judaica e, portanto, tambm tradio crist que se pe como herdeira direta desta. E, mais do que isto, referem-se a momentos fundamentais da histria do povo judeu, ou seja, do processo que este povo entende como sendo o processo de revelao libertria que Deus lhes faz para o bem de toda a humanidade. O que no comeo parecia uma predileo daquele Deus quele povo revela-se algo muito maior: o Deus nico se revelando para toda humanidade, inicialmente por meio daquele povo. As prprias escrituras judaicas mostram no um Deus dos judeus, mas sim um Deus da justia.Moiss , praticamente, o fundador histrico do povo judeu. Tendo sido criado como neto do Fara representante mximo do poder no Egito, uma espcie de rei divino , descobre, mais tarde, ser irmo dos escravos e solidariza-se com eles em sua dor. Esta sua experincia tica o leva a uma nova experincia mstica, na qual ele se encontra com o Deus no sacrificial da narrativa sobre Abrao, mito fundante de um daqueles grupos escravizados no Egito. O fato que, a partir destas experincias, Moiss no apenas rompe com sua antiga famlia, com sua classe, com o Fara e tudo o que ele representa a justificativa divinizada do sacrifcio de milhares de seres humanos, por meio da escravido, para sustentar o privilgio de outros , mas pe-se frontalmente contra eles. Todos aqueles escravos que se uniram em torno deste projeto libertador encabeado por Moiss foram os fundadores histricos do povo judeu. Josu, por sua vez, foi um grande lder judeu, que substituiu Moiss na busca da terra prometida. O Josu do filme filho de Jesus, e este um fato plenamente coerente do ponto de vista de uma lgica realista, pois, como se sabe, muito comum ao povo nordestino, o hbito dos filhos receberem nomes semelhantes ao de seus pais. No entanto, o seu lado alegrico, j dado pela simples referncia bblica, neste caso faz-se ainda mais forte se pensarmos um pouco mais sobre estes dois nomes. Olhemos mais de perto para eles, para estes dois nomes que, na verdade, um s: Josu ou Jesus[footnoteRef:2], Iehoshua em hebraico, significa Deus salva. Como podemos ver em Nmeros, quarto livro do Pentateuco, Josu foi um nome dado por Moiss ao seu discpulo Hoshea (Nm 13, 16) e, portanto, desde sua origem ele tem um significado alegrico, indicando a ao libertadora de Deus junto aos homens. [2: - Na poca das escrituras crists foi que o nome se transformou em Jesus, para os judeus de lngua grega ( Bblia traduo ecumnica, p. 323).]

O personagem bblico Josu j aparece desde o Pentateuco os cinco primeiros livros da Bblia Hebraica , contudo, logo aps este, ele surge como o personagem principal de um livro que leva o seu nome. Sua ligao com os cinco primeiros to grande que alguns preferem falar em Hexateuco. O personagem Josu tem, de fato, uma relao de continuidade e complementariedade com Moiss. Moiss foi aquele que, em nome de um Deus libertador, ops-se escravido que sustentava o imprio do Egito. Josu, antes assistente deste, torna-se, aps sua morte o livro Josu comea exatamente neste ponto o guia que ir conduzir o povo para a conquista da terra prometida, terra na qual Moiss no entrou. Antes de seguirmos com a reflexo sobre os nomes pode ser interessante pensarmos um pouco no significado da prpria ideia de terra prometida. A promessa de uma terra de plenitude de vida, terra onde jorra leite e mel, ao longo da histria vai, cada vez mais, tendo sua carga semntica ampliada e transformada na tradio judaico-crist. Aos poucos ela passa a representar no s uma terra especfica, para um determinado povo, mas a prpria paz e justia em toda a terra, para todos os povos que, superando todas as diferenas, vivero em perptua harmonia, entre si e com Deus. A expresso mais completa desta viso se encontra exatamente no livro de Isaas, que, em certo sentido, podemos dizer ser a carta programa de Jesus. Vemos assim uma profunda ligao entre os quatro personagens que do nome aos trs filhos e ao pai do filme. Os quatro falam desta f em e desta busca de um Deus que, cada vez mais, se revela como pai amoroso e justo que, apesar de todas as contradies da histria, a garantia de sentido da vida. No livro de Josu a terra prometida personagem fundamental, chegando alguns a dizer mesmo que ela o personagem principal. Algo que j estava implcito no processo de sua busca desde o comeo, agora explicita-se com total clareza: a terra prometida[footnoteRef:3], que dom de Deus, s ser alcanada com a co-laborao dos homens. O dom tem de ser tambm conquista. [3: - No filme h tambm uma referncia direta questo da terra, muito significativa. Quando Moiss est levando Josu e Dora para conhecerem a marcenaria deles, apontando para todas aquelas casas ele afirma: Isto aqui, Dona Dora, tudo invaso. Nos invadimos tudo. H, nesta cena, uma evidente referncia ao MST, movimento dos trabalhadores sem terra, que um movimento que luta pela criao de uma sociedade mais justa, tendo como ponto de partida a bandeira da reforma agrria. Como se sabe, desde o fim da escravido, esta uma das demandas principais para que o pas possa superar suas gigantescas desigualdades e injustias.]

Este ponto, parece-nos, pode ser uma chave de grande capacidade interpretativa para o filme. Por meio dos nomes, pela busca insistente do pai, Jesus metfora de Deus para a cultura ocidental , h, evidentemente, como estamos indicando, uma pergunta pela existncia ou no de um sentido da vida, ou, em linguagem religiosa, a pergunta pela existncia ou no de Deus. A busca aparentemente infrutfera do menino, todo o seu sofrimento, e o sofrimento de tantas pessoas que vai sendo mostrado, parece trazer implcitos em si a dramtica pergunta que, desde o sculo XVIII foi sendo posta de forma cada vez mais pungente diante de tanta dor: Onde est Deus agora?. A terra prometida a realizao plena dos seres humanos na justia e no amor parece no chegar nunca. A violncia parece se impor. Sua voz parece elevar-se como ltima palavra da histria. Esta pergunta, no entanto apesar da dramaticidade de sua colocao a partir da modernidade , no nova. Podemos mesmo dizer, com o pensador uruguaio, Juan Luis Segundo, que ela est presente no ncleo central do cristianismo. Para Segundo, o cristianismo pode ser resumido neste ato de f: Nenhuma forma de amor se perde na histria. Assim, o cristianismo se mostra realmente como continuidade da tradio judaica que, ao afirmar a existncia de Deus, no afirma a existncia de um Deus qualquer, mas de um Deus que exatamente a garantia de a violncia no ser a ltima palavra da histria[footnoteRef:4]. Mas, este reino, onde justia e paz se abraaro, prometido e garantido por Deus, ter tambm de ser conquistado. Pois a sua plenitude, o amor, no se pode impor. Ser sempre uma proposta a pedir dos seres humanos uma resposta. [4: - Como se sabe, Horkheimer, em uma longa entrevista que deu no fim de sua vida, afirma que, para ele, a possibilidade de acreditar em Deus nasce de um no aceitar a violncia como ltima palavra da histria. ]

Diante da pergunta impaciente sobre quando chegar esta terra prometida, este Reino de justia e liberdade, Jesus, nos Evangelhos, responde que o reino no chegar assim de uma forma ostensiva, imposta por Deus, o reino j est no meio dos homens, o reino j comea a se concretizar em todas as prticas de verdadeiro amor. E o apstolo Joo, tirando todas as consequncias desta ideia, afirma que qualquer experincia de amor j experincia de Deus. E esta a resposta que o filme nos d por meio de suas imagens poderosas, por meio de sua narrativa singular. Quando as relaes entre as pessoas vo superando os egosmos, quando por meio do amor surgindo entre elas, o pai vai deixando de ser uma realidade distante e vai se tornando algo mais prximo e palpvel. Josu, o personagem bblico, leva o povo para a terra prometida por meio da guerra, por meio, s vezes, de uma violncia injustificada, que, atualmente, s podemos aceitar como parte de um complexo processo dialtico da histria por meio do qual vai havendo um amadurecimento do povo judeu, que, s aos poucos, percebe que a verdadeira libertao no pode se dar por meio da violncia, pois esta que a raiz da opresso. Ao compararmos a terra prometida conquistada por Josu com aquela sonhada pelo profeta Isaas e talvez seja interessante observar que apesar dos trs irmos do filme serem muito simpticos e amistosos, Isaas , sem dvida o mais amoroso e acolhedor , podemos ver com toda clareza o fruto final deste amadurecimento. Perpassa por todo o livro de Isaas a ideia de um mundo ideal quando todas as naes reconhecero um Deus nico Deus de justia e perdo e, por isto, vivero em paz e harmonia. Esta ideia se amplia, inclusive, para a ideia de uma harmonia universal onde at os animais selvagens e os rpteis venenosos convivero com os animais domsticos e com os homens sem se agredirem. Estas imagens so famosas e, normalmente, quando se ouve falar do livro de Isaas so elas que primeiro surgem em nossas mentes: armas transformadas em instrumentos de agricultura, o leo e o boi comendo juntos a forragem... Tudo isto, evidentemente, tem a ver com o desejo de paz e plenitude que habita o corao humano e que aparece no filme de diversas formas. Contudo, h no filme uma relao com o livro de Isaas muito mais significativa. O que costuma se chamar o livro de Isaas, na Bblia, no um livro apenas, so trs. Na verdade, h uma redao final, que apresenta o livro como um s, que vai do captulo 1 ao 66, mas, de fato, eles parecem ser obra de trs Isaas. O primeiro apenas era, realmente, o profeta Isaas; o chamado segundo Isaas, autor dos captulos 40-55, teria sido um profeta annimo, discpulo do primeiro e que escrevera na poca em que os judeus estavam cativos na Babilnia, poca em que, por sinal, o profeta Isaas j estava morto; e o terceiro, autor dos captulos 56-66, por sua vez, teria sido outro profeta annimo, discpulo do segundo, e que escreveu seu texto logo aps o fim do exlio. H grandes divergncias entre os estudiosos sobre estas questes, mas, para o que nos interessa aqui, estas no interferem em nada. O importante que, no segundo Isaas, aparece um personagem que pode nos dar uma poderosa chave de leitura para o filme Central do Brasil: o servo sofredor. Ele est feio e desfigurado por causa de seus sofrimentos, e todos consideram-no um ser desprezvel, escria da humanidade. Todavia, ser ele quem trar, por meio de sua resistncia pacfica, a paz e a harmonia para toda a humanidade. Quem ser este personagem? Apenas uma fico messinica meio amalucada do profeta? Alguns consideram que o autor estaria representando o profeta Jeremias. A tradio crist o v como uma figura representativa de Jesus. Sem descartar estas interpretaes, h, no entanto, mais uma, bastante significativa para a leitura de nosso filme; conforme esta, o servo sofredor seria o prprio povo pobre que sofre no exlio babilnico. Conforme o filme, partindo da chave alegrica dada pelos nomes, podemos entender ento a busca de Josu pelo pai como a busca de todo este povo pobre e sofredor, exilados em sua prpria terra, pelo sentido de suas vidas e seus sofrimentos, como a esperana de uma realizao plena desta busca que o dia-a-dia de cada um. Walter Benjamin fala em uma frgil fora messinica presente em cada um de ns, de modo muito especfico nos mais pobres. E o prprio Jesus, ao que tudo indica, tomou esta passagem do segundo Isaas como seu projeto de vida; foi por isto que, para atribuir a ele o ttulo de messias cristo, em grego , a tradio crist teve de esvaziar este vocbulo de toda sua carga semntica triunfalista. Tambm Josu como representao figurativa de Jesus dentro da tradio crist indica este amadurecimento da ideia de terra prometida: ele comanda o povo, por meio de uma violncia arbitrria, para a conquista de uma terra concreta; o novo Josu, Jesus, convida cada ser humano a tornar-se lder de si mesmo, para juntos, na prtica do amor e da justia, criarem para todos, superando todas as disputas e rivalidade, uma nova Cana, que ser toda a terra, para todos os homens. Assim, Jesus aparece para a tradio crist como a realizao plena de tudo o que sonharam e representaram Moiss, Josu e Isaas, ou seja, como realizao da promessa feita ao povo judeu para toda a humanidade. Mas importante chamar a ateno para o fato de que a ideia central que se firmou principalmente a partir de Josu a ideia de que a terra dada dever ser tambm conquistada no eliminada. O que muda a forma da conquista: em Josu ela se d por meio da fora em conflito com outros povos. Com Jesus, que recebeu de Isaas uma nova concepo da terra prometida ela se d pela prtica da justia e do amor buscando a solidariedade entre todos os seres humanos. O filme mostra isto de forma muito bela: o inimigo no o outro, o egosmo que faz do outro um rival, um obstculo. No filme, Jesus no aparece. Ou melhor, aparece como meta, como aquele que buscado, como aquele que esperado, ou mesmo como aquele que negado e ridicularizado. Josu o busca com afinco, Isaas espera sua volta com confiana, j a esperana de Moiss cheia de dvidas e mgoas. Dora, que no comeo do filme uma mulher amargurada, fechada em si mesma, descrente dos seres humanos, a princpio o ridiculariza, acusa-o de ser um bbado agressivo e violento que maltratava sua mulher e esta, por sua vez, no julgamento implcito de Dora, no passava de uma idiota submissa por ainda acreditar em Jesus. interessante observar que, apesar de ser muito comum este tipo de relao em nossa sociedade machista, o julgamento de Dora sobre aquele casal especfico totalmente arbitrrio. Ela parte de pouqussimos dados um casal que brigou e se separou, uma mulher que, vacilante, busca a reconciliao para desenvolver toda uma histria negativa. No entanto, depois do seu arrependimento de um extremo ato de egosmo a entrega do menino por dinheiro e de seu esforo para reparar seu erro, esforo este que a leva, por meio de sua disponibilidade para ajudar o pequeno a achar o seu pai, a vivenciar uma histria de amor e no falamos aqui de seu curto namoro com o caminhoneiro, que tambm foi importante, que tambm aponta para a transformao que estava acontecendo em seu ser que a transformou profundamente, ela reconhece que estava errada em seu julgamento. No fim do filme, na carta que est escrevendo para o menino, ela no nega mais a existncia de seu pai afirmando ser este um bbado intil e agressivo; pelo contrrio, reconhece que o pai, Jesus, o amor, iria de fato voltar, pois j est entre eles. Voc tem razo, afirma ela literalmente, seu pai ainda vai aparecer e, com certeza, ele tudo aquilo que voc diz que ele .Comment by Gerson: Paulo, aqui acho que h um problema de coeso, pois no consegui ver a frase que preenche o sentido de depois de... e de.... Gerson, a ideia aqui a aeguinte: depois de seu arrependimento e de seu esforo para reparar o erro ela no mais negar o sentido da vida, no mais negar a existncia do pai do menino. Fiz uma mudana no final na frase para ver se esclarece.E, assim, o filme termina no com o fracasso da busca, nem com sua realizao plena por meio de um encontro feliz com o pai, mas em uma expectativa cheia de esperana de um encontro final que j vai se fazendo realidade por meio de um convvio amoroso com os irmos.

CONSIDERAES FINAISPara Walter Benjamin o cinema um instrumento revolucionrio, uma arte pedaggica capaz de levar as multides ao autoconhecimento. Isto pode parecer exagero, especialmente no que concerne a inmeros filmes construdos com o objetivo s de entreter, de impedir a reflexo ou de simplesmente vender-se como uma mercadoria, como a grande maioria dos filmes feitos em hollywood ou em bollywood. Mas no podemos e no devemos nos esquecer da dialtica da alegoria, tal como pensada por Benjamin. Nesse caso, o cinema agiria como memria involuntria. Porm, filmes como Central do Brasil so avis rara, pois o processo alegrico tem um carter intencional e evidencia ainda mais o dinamismo alegoria/simbolismo. Se o carter de realidade do filme poderia evidenciar simplesmente a triste condio social a que esto sujeitos os personagens do filme e, por extenso, ns, brasileiros, seu carter alegrico nos fala de uma busca mais ampla, da necessidade de um encontro que inerente a todo e qualquer ser humano que vive sob os escombros da histria. A alegoria, moeda bifaciada entre a histria e o smbolo, em Central do Brasil momentaneamente capaz de nos retirar da distrao e de evidenciar que o encontro de Dora e Josu, por alguns instantes, tambm nos redime de nosso egosmo e de nosso desamor, to tpicos de uma sociedade desigual e violenta como a que vivemos. Por alguns momentos tambm nos encontramos com Dora, Josu e seus irmos e somos tocados de maneira profunda pela mensagem do regresso de Jesus, que em ltima instncia a mensagem de que somente o amor pode superar todos os interesses, toda violncia e capaz de construir uma sociedade nova, justa e amorosa. Isto revolucionrio, como Benjamin o viu.

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