Celso Gitahy
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Graffiti: da transgresso ao circuito oficial de arte
No existe transgresso sem proibio. Dois aspectos inconciliveis da vida
humana, porm, inseparveis, pois, um d sentido ao outro. A proibio
instaura o fascnio de sua transgresso e no necessariamente significa a
sua absteno, mas sua prtica sob a forma de transgresso.
Invariavelmente, todos ns vivemos experincias proibitivas, tanto do ponto
de vista do mundo interior (emoes, anseios, convices) como do mundo
exterior, no que se refere lei e ordem. Em ambos os casos, a essncia da
proibio se encontra na necessidade do controle do cultural sobre o natural,
a busca da humanidade em oposio animalidade. Diante deste raciocnio,
resta-nos refletir sobre as origens e interesses contidos nas diversas
proibies, atividade destinada s conscincias crticas, formadores de
opinio, artistas etc.
A arte nas ruas sempre esteve, de uma forma ou de outra, relacionada a
esse assunto, normalmente atravs de palavras de ordem e reivindicaes
de classes minoritrias.
Durante muito tempo, e mesmo hoje, o ato de se executar um graffiti sobre
os muros privados e/ou espaos pblicos da cidade, sem prvia autorizao,
trata-se de algo ilcito tanto no que se refere a ir contra a lei de apropriao
indevida desses espaos, quanto ao fato de se propor uma arte autnoma e
descompromissada com o mercado, e o circuito oficial de arte, com isso,
carregando o estigma de arte menor e realizada por pseudo-artistas.
Quando o assunto pichao, o caso ainda pior, pois sabemos todos que,
longe da opinio pblica, jovens continuam sendo assassinados por serem
pegos em flagrante pichando, mesmo reconhecendo a pichao como uma
expresso legtima de uma poca, em que o povo sobrevive oprimido, por
um sistema falido e predatrio. No podemos deixar de lembrar que o incio
do graffiti no Brasil comea com a pichao potica no final dos anos
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setenta. Guilherme Kujawski e Sergio do Amaral, vulgo Gnha, sobrinho neto
de Tarsila do Amaral, pichavam Gnha m bru, inicialmente nas
imediaes do bairro onde moravam e logo depois por quase toda a cidade.
Essas aes foram motivadas, no caso deles, por influncia de verem a
pichao em seriados policiais americanos como Kojak e principalmente So
Francisco Urgente que, num determinado episdio, apresenta um assassino
em srie que, aps cometer seus delitos, deixava uma pichao no lugar do
crime junto vtima. Com o tempo perceberam que outras pessoas estavam
tambm se expressando da mesma maneira na cidade: X Urub por
Fernando Meirelles (Cidade de Deus) difcil e Ora H por Tadeu Jungle,
Hendrix Mandrake Mandrix por Walter Silveira, entre outros, cada qual com
suas convices ideolgicas e motivaes prprias, inclusive o profeta
urbano Jos Datrino, mais conhecido como Profeta Gentileza que, a partir
de 1980, passa a encher as cinqenta e seis pilastras do Viaduto do Caju no
Rio de Janeiro com inscries em verde-amarelo propondo sua crtica do
mundo e sua alternativa ao mal-estar da civilizao. Essa fase foi importante,
pois, desencadeou toda uma gerao de artistas se expressando nas ruas
num perodo de represso cultural, onde era gritante a postura colonizadora
imperialista norte americana visando o mercado ideolgico brasileiro, a
exemplo de muitos setores de nossa cultura, principalmente o cinema,
fortemente desarticulado nos anos sessenta e setenta, e que ainda hoje
sofre seqelas dessa poca.
O fato de a arte ir para as ruas, entretanto, no se trata de nenhuma
novidade, pois um processo que vem se dando naturalmente dentro do
contexto da histria da arte. No incio do XX, os futuristas italianos
apelidavam de cemitrios, os museus e as bibliotecas e exigiam a sua
destruio; o passado era como um cadver a ser exterminado de modo a
permitir o progresso. Cerca de trinta anos mais tarde, Marcel Duchamp
comearia a trabalhar na srie de Botes em Valises, pequenas malas
contendo miniaturas de obras do artista, como museus portteis; a arte j
no necessitava das paredes dos museus, apenas de um observador. A
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possibilidade de tomar a cidade inteira como objeto de ao/interveno, se
realiza atravs de situaes criadas pelos artistas j desde o final dos anos
cinqenta e, sobretudo, nos anos sessenta. Nos anos setenta no Brasil, em
plena realidade repressora instalada, o artista Herv Fischer monta na Praa
da Repblica em So Paulo um consultrio: a Farmcia Fischer. Ali, o
artista vestido de farmacutico atende os transeuntes. Distribui plulas de
plstico recomendadas para aliviar todo e qualquer mal: falta de amor,
tristeza, tdio, saudade. A consulta rpida para sanar os males cotidianos
com o clnico transforma-se em situao artstica. As plulas que servem
cura despertam, nesse caso, a conscincia dos desejos sufocados pelo
cotidiano condicionado e repetitivo. A rua ou, nesse caso, a praa pblica o
local privilegiado para o encontro da arte com a poltica. Segundo o artista,
trata-se de um trabalho profiltico politicamente engajado. O eixo poltico e
social nesta operao artstica chave de engendramento de sentido.
Tambm os happenings, as instalaes interativas, as obras teraputicas de
Lygia Clark, os Parangols de Hlio Oiticica (capas de tecido a serem
vestidas, sugerem o movimento do corpo que balana nos ritmos
cadenciados dos passos) nos levando a crer que a arte estava realmente
humanizando-se, ou seja, estreitando o espao entre o objeto de arte (a
obra) e o povo (o pblico). O prprio Alex Vallauri, propondo em seus
graffitis, (coraes partidos, cupidos, planetas etc...) figuras presentes no
inconsciente coletivo das pessoas, para que elas as reconheam,
apropriando-se delas com suas interpretaes, fazendo-as refletir a respeito
da espontaneidade e a poesia disponvel a todos. Com o prprio Duchamp
vai se fortalecer o conceito de que a misso da arte no se restringe busca
do belo, mas a mudana do mundo, a instigao ao pensamento e ao
encontro do homem consigo mesmo e com seu mundo.
Assim como Vallauri, muitos outros artistas do graffiti surgiram nos anos
oitenta, atentos a esse conceito, percebendo a arte como instncia de
conhecimento, exerccio de linguagem e comunicao, e no to somente o
maneirismo de formas ilustrativas de artistas iniciantes, em sua grande
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maioria embasados no padro imperialista, que necessita eleger sempre um
melhor do mundo em tudo (o homem mais bonito; a mulher mais sexy; o
salrio mais alto etc...) O valor incutido em nosso subconsciente terceiro
mundista de que a qualidade e o valor de determinada obra est atrelada
aprovao e reconhecimento do mercado estrangeiro, fruto de um
pensamento herdado da poca da colonizao, de um pensamento estreito,
que ainda no acordou para nossa prpria identidade e valores reais.
Estamos nessa primeira dcada, desse novo sculo que se abre,
acompanhando o processo de assimilao dessa arte de rua aqui no Brasil
e, portanto, menos marginal, de forma pouco criteriosa e um tanto superficial,
baseada em interesses puramente comerciais, fazendo valer a idia de uma
originalidade sem consistncia, de jovens artistas que no tiveram chance de
maturar suas propostas artsticas, no por incompetncia, pois muitos so
extremamente talentosos, mas, por falta de tempo mesmo e, sobretudo, de
experincias estticas e conceituais. Com isso ganha-se e perde-se ao
mesmo tempo. Ganha-se o foco das lentes e atenes sobre essa linguagem
de forma furtiva e festeira, devendo um reconhecimento srio dos artistas
que fizeram sedimentar as bases para o que estamos vendo hoje, em termos
de esttica e de atitude, assim como corremos o risco de nos distanciar da
busca do melhor caminho, que mesmo incompatvel em alguns casos, com
interesses pessoais de gordos lucros imediatos, nos revela o componente
divino, que existe no trabalho persistente do artista sincero, paciente e atento
importncia de se despertar o Grande Rei presente em nossos pequenos
coraes.
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Referncias bibliogrficas:
ARTE e cincia: mito e razo. Organizao Elza Ajzenberg. So Paulo:
ECA/USP. Centro Mario Schenberg de Documentao da Pesquisa em
Artes, 2001. (Srie Schenberg, 12).
BARBOSA, Gustavo Guimares. A literatura proibida dos grafitos do
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UFRJ).
FREIRE, Cristina. O mito da cidade e a arte contempornea. In:
CONGRESSO ARTE E CINCIA: Mito e Razo, 4. Anais... So Paulo:
ECA/USP. Centro Mario Schenberg de Documentao da Pesquisa em
Artes, 2001. p. 72-78.
GITAHY, Celso. Grafiteiros grafitistas rumo virada do milnio. Revista do
Patrimnio Histrico.
______. O graffiti ocupando seus primeiros espaos. In: GRAFFITI na cidade
de So Paulo e sua vertente no Brasil: estticas e estilos. So Paulo:
Instituto de Psicologia da USP, 2006. p. 48-69.
______. O que graffiti. So Paulo: Brasiliense, 1999. 83 p., il. p&b.
(Primeiros passos, 312).