Celso Gitahy

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Graffiti: da transgressão ao circuito oficial de arte Não existe transgressão sem proibição. Dois aspectos inconciliáveis da vida humana, porém, inseparáveis, pois, um dá sentido ao outro. A proibição instaura o fascínio de sua transgressão e não necessariamente significa a sua abstenção, mas sua prática – sob a forma de transgressão. Invariavelmente, todos nós vivemos experiências proibitivas, tanto do ponto de vista do mundo interior (emoções, anseios, convicções) como do mundo exterior, no que se refere à lei e à ordem. Em ambos os casos, a essência da proibição se encontra na necessidade do controle do cultural sobre o natural, a busca da humanidade em oposição à animalidade. Diante deste raciocínio, resta-nos refletir sobre as origens e interesses contidos nas diversas proibições, atividade destinada às consciências críticas, formadores de opinião, artistas etc. A arte nas ruas sempre esteve, de uma forma ou de outra, relacionada a esse assunto, normalmente através de palavras de ordem e reivindicações de classes minoritárias. Durante muito tempo, e mesmo hoje, o ato de se executar um graffiti sobre os muros privados e/ou espaços públicos da cidade, sem prévia autorização, trata-se de algo ilícito tanto no que se refere a ir contra a lei de apropriação indevida desses espaços, quanto ao fato de se propor uma arte autônoma e descompromissada com o mercado, e o circuito oficial de arte, com isso, carregando o estigma de arte menor e realizada por “pseudo-artistas”. Quando o assunto é pichação, o caso é ainda pior, pois sabemos todos que, longe da opinião pública, jovens continuam sendo assassinados por serem pegos em flagrante pichando, mesmo reconhecendo a pichação como uma expressão legítima de uma época, em que o povo sobrevive oprimido, por um sistema falido e predatório. Não podemos deixar de lembrar que o início do graffiti no Brasil começa com a pichação poética no final dos anos

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Graffiti Celso Gitahy

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  • Graffiti: da transgresso ao circuito oficial de arte

    No existe transgresso sem proibio. Dois aspectos inconciliveis da vida

    humana, porm, inseparveis, pois, um d sentido ao outro. A proibio

    instaura o fascnio de sua transgresso e no necessariamente significa a

    sua absteno, mas sua prtica sob a forma de transgresso.

    Invariavelmente, todos ns vivemos experincias proibitivas, tanto do ponto

    de vista do mundo interior (emoes, anseios, convices) como do mundo

    exterior, no que se refere lei e ordem. Em ambos os casos, a essncia da

    proibio se encontra na necessidade do controle do cultural sobre o natural,

    a busca da humanidade em oposio animalidade. Diante deste raciocnio,

    resta-nos refletir sobre as origens e interesses contidos nas diversas

    proibies, atividade destinada s conscincias crticas, formadores de

    opinio, artistas etc.

    A arte nas ruas sempre esteve, de uma forma ou de outra, relacionada a

    esse assunto, normalmente atravs de palavras de ordem e reivindicaes

    de classes minoritrias.

    Durante muito tempo, e mesmo hoje, o ato de se executar um graffiti sobre

    os muros privados e/ou espaos pblicos da cidade, sem prvia autorizao,

    trata-se de algo ilcito tanto no que se refere a ir contra a lei de apropriao

    indevida desses espaos, quanto ao fato de se propor uma arte autnoma e

    descompromissada com o mercado, e o circuito oficial de arte, com isso,

    carregando o estigma de arte menor e realizada por pseudo-artistas.

    Quando o assunto pichao, o caso ainda pior, pois sabemos todos que,

    longe da opinio pblica, jovens continuam sendo assassinados por serem

    pegos em flagrante pichando, mesmo reconhecendo a pichao como uma

    expresso legtima de uma poca, em que o povo sobrevive oprimido, por

    um sistema falido e predatrio. No podemos deixar de lembrar que o incio

    do graffiti no Brasil comea com a pichao potica no final dos anos

  • setenta. Guilherme Kujawski e Sergio do Amaral, vulgo Gnha, sobrinho neto

    de Tarsila do Amaral, pichavam Gnha m bru, inicialmente nas

    imediaes do bairro onde moravam e logo depois por quase toda a cidade.

    Essas aes foram motivadas, no caso deles, por influncia de verem a

    pichao em seriados policiais americanos como Kojak e principalmente So

    Francisco Urgente que, num determinado episdio, apresenta um assassino

    em srie que, aps cometer seus delitos, deixava uma pichao no lugar do

    crime junto vtima. Com o tempo perceberam que outras pessoas estavam

    tambm se expressando da mesma maneira na cidade: X Urub por

    Fernando Meirelles (Cidade de Deus) difcil e Ora H por Tadeu Jungle,

    Hendrix Mandrake Mandrix por Walter Silveira, entre outros, cada qual com

    suas convices ideolgicas e motivaes prprias, inclusive o profeta

    urbano Jos Datrino, mais conhecido como Profeta Gentileza que, a partir

    de 1980, passa a encher as cinqenta e seis pilastras do Viaduto do Caju no

    Rio de Janeiro com inscries em verde-amarelo propondo sua crtica do

    mundo e sua alternativa ao mal-estar da civilizao. Essa fase foi importante,

    pois, desencadeou toda uma gerao de artistas se expressando nas ruas

    num perodo de represso cultural, onde era gritante a postura colonizadora

    imperialista norte americana visando o mercado ideolgico brasileiro, a

    exemplo de muitos setores de nossa cultura, principalmente o cinema,

    fortemente desarticulado nos anos sessenta e setenta, e que ainda hoje

    sofre seqelas dessa poca.

    O fato de a arte ir para as ruas, entretanto, no se trata de nenhuma

    novidade, pois um processo que vem se dando naturalmente dentro do

    contexto da histria da arte. No incio do XX, os futuristas italianos

    apelidavam de cemitrios, os museus e as bibliotecas e exigiam a sua

    destruio; o passado era como um cadver a ser exterminado de modo a

    permitir o progresso. Cerca de trinta anos mais tarde, Marcel Duchamp

    comearia a trabalhar na srie de Botes em Valises, pequenas malas

    contendo miniaturas de obras do artista, como museus portteis; a arte j

    no necessitava das paredes dos museus, apenas de um observador. A

  • possibilidade de tomar a cidade inteira como objeto de ao/interveno, se

    realiza atravs de situaes criadas pelos artistas j desde o final dos anos

    cinqenta e, sobretudo, nos anos sessenta. Nos anos setenta no Brasil, em

    plena realidade repressora instalada, o artista Herv Fischer monta na Praa

    da Repblica em So Paulo um consultrio: a Farmcia Fischer. Ali, o

    artista vestido de farmacutico atende os transeuntes. Distribui plulas de

    plstico recomendadas para aliviar todo e qualquer mal: falta de amor,

    tristeza, tdio, saudade. A consulta rpida para sanar os males cotidianos

    com o clnico transforma-se em situao artstica. As plulas que servem

    cura despertam, nesse caso, a conscincia dos desejos sufocados pelo

    cotidiano condicionado e repetitivo. A rua ou, nesse caso, a praa pblica o

    local privilegiado para o encontro da arte com a poltica. Segundo o artista,

    trata-se de um trabalho profiltico politicamente engajado. O eixo poltico e

    social nesta operao artstica chave de engendramento de sentido.

    Tambm os happenings, as instalaes interativas, as obras teraputicas de

    Lygia Clark, os Parangols de Hlio Oiticica (capas de tecido a serem

    vestidas, sugerem o movimento do corpo que balana nos ritmos

    cadenciados dos passos) nos levando a crer que a arte estava realmente

    humanizando-se, ou seja, estreitando o espao entre o objeto de arte (a

    obra) e o povo (o pblico). O prprio Alex Vallauri, propondo em seus

    graffitis, (coraes partidos, cupidos, planetas etc...) figuras presentes no

    inconsciente coletivo das pessoas, para que elas as reconheam,

    apropriando-se delas com suas interpretaes, fazendo-as refletir a respeito

    da espontaneidade e a poesia disponvel a todos. Com o prprio Duchamp

    vai se fortalecer o conceito de que a misso da arte no se restringe busca

    do belo, mas a mudana do mundo, a instigao ao pensamento e ao

    encontro do homem consigo mesmo e com seu mundo.

    Assim como Vallauri, muitos outros artistas do graffiti surgiram nos anos

    oitenta, atentos a esse conceito, percebendo a arte como instncia de

    conhecimento, exerccio de linguagem e comunicao, e no to somente o

    maneirismo de formas ilustrativas de artistas iniciantes, em sua grande

  • maioria embasados no padro imperialista, que necessita eleger sempre um

    melhor do mundo em tudo (o homem mais bonito; a mulher mais sexy; o

    salrio mais alto etc...) O valor incutido em nosso subconsciente terceiro

    mundista de que a qualidade e o valor de determinada obra est atrelada

    aprovao e reconhecimento do mercado estrangeiro, fruto de um

    pensamento herdado da poca da colonizao, de um pensamento estreito,

    que ainda no acordou para nossa prpria identidade e valores reais.

    Estamos nessa primeira dcada, desse novo sculo que se abre,

    acompanhando o processo de assimilao dessa arte de rua aqui no Brasil

    e, portanto, menos marginal, de forma pouco criteriosa e um tanto superficial,

    baseada em interesses puramente comerciais, fazendo valer a idia de uma

    originalidade sem consistncia, de jovens artistas que no tiveram chance de

    maturar suas propostas artsticas, no por incompetncia, pois muitos so

    extremamente talentosos, mas, por falta de tempo mesmo e, sobretudo, de

    experincias estticas e conceituais. Com isso ganha-se e perde-se ao

    mesmo tempo. Ganha-se o foco das lentes e atenes sobre essa linguagem

    de forma furtiva e festeira, devendo um reconhecimento srio dos artistas

    que fizeram sedimentar as bases para o que estamos vendo hoje, em termos

    de esttica e de atitude, assim como corremos o risco de nos distanciar da

    busca do melhor caminho, que mesmo incompatvel em alguns casos, com

    interesses pessoais de gordos lucros imediatos, nos revela o componente

    divino, que existe no trabalho persistente do artista sincero, paciente e atento

    importncia de se despertar o Grande Rei presente em nossos pequenos

    coraes.

  • Referncias bibliogrficas:

    ARTE e cincia: mito e razo. Organizao Elza Ajzenberg. So Paulo:

    ECA/USP. Centro Mario Schenberg de Documentao da Pesquisa em

    Artes, 2001. (Srie Schenberg, 12).

    BARBOSA, Gustavo Guimares. A literatura proibida dos grafitos do

    banheiro. Rio de Janeiro: UFRJ/ECO, 1983. 230 f. Dissertao (Mestrado,

    UFRJ).

    FREIRE, Cristina. O mito da cidade e a arte contempornea. In:

    CONGRESSO ARTE E CINCIA: Mito e Razo, 4. Anais... So Paulo:

    ECA/USP. Centro Mario Schenberg de Documentao da Pesquisa em

    Artes, 2001. p. 72-78.

    GITAHY, Celso. Grafiteiros grafitistas rumo virada do milnio. Revista do

    Patrimnio Histrico.

    ______. O graffiti ocupando seus primeiros espaos. In: GRAFFITI na cidade

    de So Paulo e sua vertente no Brasil: estticas e estilos. So Paulo:

    Instituto de Psicologia da USP, 2006. p. 48-69.

    ______. O que graffiti. So Paulo: Brasiliense, 1999. 83 p., il. p&b.

    (Primeiros passos, 312).