CELINA CÔRTE PINHEIRO – SOBRAMES CE – ANTOLOGIA 2012

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CELINA CÔRTE PINHEIRO SOBRAMES CE ANTOLOGIA 2012, pág. 52 O VIOLINO Não havia entre nós a tradição do violino. Portanto, ele não fazia parte do nosso arsenal doméstico. O desejo de executá-lo, manifestado por um dos filhos, o Fabrício, despertou nosso interesse pelo instrumento a fim de fazermos a melhor aquisição possível. O preço era alto, mas, entre outras características, aprendemos que bons violinos se tornam melhores quanto mais envelhecida a madeira. Recorrei ao meu pai que se lembrou de um amigo violinista da juventude. O violino nos aguardava todo desmontado, em sua caixa original, jogado no fundo de uma garagem. Pertencera a uma velha tia já falecida, responsável pelos partos de nossa mãe pelos idos de 1940. Madeira seca, antigão! Meu pai pagou alguns trocados pelo instrumento que nos chegou pelo correio. O aspecto não era admirável. Em seu invólucro de madeira, revestido com uma flanela cor-de-rosa desgastada pelo tempo, manchada e nauseabunda, o violino se assemelhava a um corpo inerte em decomposição. Senti um arrepio...Contudo, não desistimos por conta da má impressão. Procuramos alguém que pudesse dar vida ao instrumento. Conseguimos e valeu à pena. Passamos a ouvir elogios de pessoas experientes em relação ao som emitido pelo instrumento. O violino tornou-se objeto de cobiça, o que despertava em nós orgulho e um cuidado extremo com ele. Entre pedras e espinhos, colhíamos flores, graças à nossa perseverança. O violino, de plebeu passou a elite. Iniciou sua nova vida na Fortaleza nordestina, tocou em orquestra nos Estados Unidos e voltou ao Brasil, viajando de norte ao sul. O violinista tornou-se engenheiro, mas não abandonou o instrumento, inseparável nas horas de lazer. Foram ambos para o Velho Mundo. Já no aeroporto, em Portugal, inicia-se uma nova saga. Imaginem, exigiram nota fiscal do instrumento! Não havia... O jovem e seu velho instrumento foram levados para análise em uma sala reservada. Pânico do proprietário, pela possibilidade de ficar detido em terras estranhas! - Não tenho nota... Nunca tive! O violino é muito antigo... - Antigo? Aí é que mora o perigo... Violinos antigos são cobiçados. Este pode ter sido roubado, coisa e tal. Você pode ser “mula”... - Não senhor! Sou só um engenheiro que toca violino... - Muito estranho, mas vamos lá... Comprove o que puder!

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CELINA CÔRTE PINHEIRO – SOBRAMES – CE – ANTOLOGIA 2012, pág. 52 O VIOLINO Não havia entre nós a tradição do violino. Portanto, ele não fazia parte do nosso arsenal doméstico. O desejo de executá-lo, manifestado por um dos filhos, o Fabrício, despertou nosso interesse pelo instrumento a fim de fazermos a melhor aquisição possível. O preço era alto, mas, entre outras características, aprendemos que bons violinos se tornam melhores quanto mais envelhecida a madeira. Recorrei ao meu pai que se lembrou de um amigo violinista da juventude. O violino nos aguardava todo desmontado, em sua caixa original, jogado no fundo de uma garagem. Pertencera a uma velha tia já falecida, responsável pelos partos de nossa mãe pelos idos de 1940. Madeira seca, antigão! Meu pai pagou alguns trocados pelo instrumento que nos chegou pelo correio. O aspecto não era admirável. Em seu invólucro de madeira, revestido com uma flanela cor-de-rosa desgastada pelo tempo, manchada e nauseabunda, o violino se assemelhava a um corpo inerte em decomposição. Senti um arrepio...Contudo, não desistimos por conta da má impressão. Procuramos alguém que pudesse dar vida ao instrumento. Conseguimos e valeu à pena. Passamos a ouvir elogios de pessoas experientes em relação ao som emitido pelo instrumento. O violino tornou-se objeto de cobiça, o que despertava em nós orgulho e um cuidado extremo com ele. Entre pedras e espinhos, colhíamos flores, graças à nossa perseverança. O violino, de plebeu passou a elite. Iniciou sua nova vida na Fortaleza nordestina, tocou em orquestra nos Estados Unidos e voltou ao Brasil, viajando de norte ao sul. O violinista tornou-se engenheiro, mas não abandonou o instrumento, inseparável nas horas de lazer. Foram ambos para o Velho Mundo. Já no aeroporto, em Portugal, inicia-se uma nova saga. Imaginem, exigiram nota fiscal do instrumento! Não havia... O jovem e seu velho instrumento foram levados para análise em uma sala reservada. Pânico do proprietário, pela possibilidade de ficar detido em terras estranhas!

- Não tenho nota... Nunca tive! O violino é muito antigo... - Antigo? Aí é que mora o perigo... Violinos antigos são

cobiçados. Este pode ter sido roubado, coisa e tal. Você pode ser “mula”...

- Não senhor! Sou só um engenheiro que toca violino... - Muito estranho, mas vamos lá... Comprove o que puder!

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Fabrício falou com sentimento no avô que lhe enviara de longe o instrumento, contou sobre a antiga dona do instrumento, parteira da avó executou um ária, provocou lágrimas em uma policial, mãe de um violinista falecido... que sorte! Acertou na grande! Foi liberado. Prosseguiu viagem à Alemanha, local onde a tradição de instrumentos de corda é muito maior do que entre nós. Fabrício empunhava o instrumento orgulhosamente. Presente do avô, restaurado com a ajuda dos pais, tornado suspeito em Portugal e valorizado por todos merecia ser bem guardado como um troféu.

Certo dia, aproveitando a estada germânica, decidiu leva-lo para avaliação de um “luthier”, especialista em instrumentos de corda, na cidade de Bremen. O “Luthier” olhou o instrumento sem qualquer admiração, até com certo asco. Avaliou a idade em torno de 100 anos, velho para nós e jovem para os parâmetros europeus. Citou um cortejo de defeitos: violino de principiante, sem muita qualidade, não valia à pena pagar por uma análise mais apurada. O homem foi um perito em matéria de humilhação. Desprestigiou o instrumento, jogou-o no lixo em palavras. Aquele que tivera tanto valor no Brasil e nos Estados Unidos, motivos de conflito lisboense, terminava seus dias sob o dedo em riste do especialista que fez questão de exibir instrumentos de alta qualidade e de valor inestimável preservados em uma sala à prova de tudo. Por pouco, o desvalido violino não foi jogado nos monturos dos campos de concentração de instrumentos considerados de má qualidade. Deve haver por lá!

Duramente destituído de seu orgulho, Fabrício demonstrou interesse em adquirir um novo estojo para guardar o instrumento. Pelo menos uma roupa decente ele iria oferecer ao fiel companheiro de tantas alegrias. Qual ele recomendaria? Mais uma vez o alemão não poupou azedume. “Para este violino? Leve esta caixa fabricada na China. Está bom demais!”

Não nos demos por vencidos. Alemão invejoso! Desdenhou o violino, empunhado por um simples brasileiro, pela impossibilidade de compra-lo. Mas, por um motivo ou por outro, sentimos que o violino perdeu seu prestígio e hoje permanece adormecido por trás de um nobre piano digital importado...