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Ceifas, malhas e desfolhadas em terras do Dão por José Manuel Azevedo e Silva in separata da revista MUNDA, nº 5 Coimbra, 1983 O povo, mesmo pobre e analfabeto, é um repositório de autêntica sageza, na riqueza da tradição que não exclui inovação e adaptação e na força criadora da poesia, da música, dos contos, das adivinhas, dos ensalmos, do fabrico de artefactos, completamente desconhecida da gente das cidades, mas que constitui o cerne da Nação. (Orlando Ribeiro, Nota Preliminar a “Vilarinho da Furna”, de Jorge Dias, 1981) Além do cultivo da vinha, é tradicional na região do rio Dão a cultura dos cereais de pragana. Desde muito cedo, talvez desde o Neolítico Peninsular, que aqui se cultiva o trigo, o centeio e a cevada, indispensável à fabricação do pão que, com a castanha, constituíram, durante muitos séculos, a base da alimentação das gentes desta região; Nos últimos dois séculos, porém, a base alimentar do beirão sofreu gradualmente significativa alteração. Assim, enquanto que os cereais de pragana cederam parte do seu papel alimentar a um outro cereal novo o milho grosso de maçaroca a castanha foi substituída pela batata. O milho grosso, introduzido em Portugal no século XVI, nos campos de Coimbra, foi-se difundindo por todo o país, mais rapidamente numas que noutras regiões. É de crer que cedo tivesse subido os vales do Mondego e do Dão, mas só a partir do século XVIII se começou a generalizar o seu cultivo. Tratando-se dum cereal de Verão, a generalização do cultivo do milho em Portugal veio complementar a produção agrícola e, até certo ponto, colmatar a tradicional carência de cereais panificáveis, atenuando a fome e as consequentes epidemias e desencadeando um apreciável surto demográfico, o que levou Orlando Ribeiro a falar duma «revolução do milho». Mas continua a cultivar-se na região bastante centeio, cevada e algum trigo. Antes da chegada das malhadeiras e ceifeiras mecânicas a estas paragens, por volta dos anos sessenta do nosso século, todo este trabalho era feito pelo braço das ceifeiras, ceifeiros e malhadores. Além dos cereais, ceifa-se também a erva de semente, deixada crescer nos lameiros para garantir a sementeira dos pastos do ano que vem e ainda a erva para a manjedoura do gado e o feno para o Inverno. A erva de semente é ceifada antes de secar completamente para que se não debulhe ao ceifar e, em seguida, é atada em molhinhos que, pela sua semelhança com uma figura de mulher sen- tada no chão, ao serem postos na vertical, são chamados «meninas» ou «bonecas». Uma vez criado o cereal, homens e mulheres, vergados sob sol ardente, empunhando seitoiras (foices) e delineando o eito de acordo com o número de ceifeiros, atacavam decididamente a seara. Nas últimas décadas, a par da seitoira, passou também a usar-se a gadanha. É uma folha de aço meio curva e muito bem afiada, munida dum cabo da altura do ceifador que permite ao gadanheiro segar de pé, agarrando com a mão esquerda na ponta do cabo e, com a direita, numa pequena mãozinha cravada transversalmente ao meio do cabo. Atrás, alguns homens iam atando com vincelhos o cereal ceifado em molhos que depois se dispunham cuidadosamente em montes, construídos de forma cónica, de modo a que o cereal fosse secando pela sua disposição ao sol e, ao mesmo tempo, ficasse protegido contra os eventuais aguaceiros da época. A estes amontoados de molhos de cereal chama-se na região rolheiros , se contêm menos de uma dúzia de molhos, e medas , se o monte é maior, comportando, por vezes, várias dezenas de molhos.

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Ceifas, malhas e desfolhadas em terras do Dão

por José Manuel Azevedo e Silva in separata da revista MUNDA, nº 5 Coimbra, 1983

O povo, mesmo pobre e analfabeto, é um repositório de autêntica sageza, na riqueza da tradição que não exclui inovação e adaptação e na força criadora da poesia, da música, dos contos, das adivinhas, dos ensalmos, do fabrico de artefactos, completamente desconhecida da gente das cidades, mas que constitui o cerne da Na ção.

(Orlando Ribeiro, Nota Preliminar a “Vilarinho da Furna”, de Jorge Dias, 1981)

Além do cultivo da vinha, é tradicional na região do rio Dão a cultura dos cereais de pragana. Desde muito cedo, talvez desde o Neolítico Peninsular, que aqui se cultiva o trigo, o centeio e a cevada, indispensável à fabricação do pão que, com a castanha, constituíram, durante muitos séculos, a base da alimentação das gentes desta região; Nos últimos dois séculos, porém, a base alimentar do beirão sofreu gradualmente significativa alteração. Assim, enquanto que os cereais de pragana cederam parte do seu papel alimentar a um outro cereal novo — o milho grosso de maçaroca — a castanha foi substituída pela batata. O milho grosso, introduzido em Portugal no século XVI, nos campos de Coimbra, foi-se difundindo por todo o país, mais rapidamente numas que noutras regiões. É de crer que cedo tivesse subido os vales do Mondego e do Dão, mas só a partir do século XVIII se começou a generalizar o seu cultivo. Tratando-se dum cereal de Verão, a generalização do cultivo do milho em Portugal veio complementar a produção agrícola e, até certo ponto, colmatar a tradicional carência de cereais panificáveis, atenuando a fome e as consequentes epidemias e desencadeando um apreciável surto demográfico, o que levou Orlando Ribeiro a falar duma «revolução do milho». Mas continua a cultivar-se na região bastante centeio, cevada e algum trigo. Antes da chegada das malhadeiras e ceifeiras mecânicas a estas paragens, por volta dos anos sessenta do nosso século, todo este trabalho era feito pelo braço das ceifeiras, ceifeiros e malhadores. Além dos cereais, ceifa-se também a erva de semente, deixada crescer nos lameiros para garantir a sementeira dos pastos do ano que vem e ainda a erva para a manjedoura do gado e o feno para o Inverno. A erva de semente é ceifada antes de secar completamente para que se não debulhe ao ceifar e, em seguida, é atada em molhinhos que, pela sua semelhança com uma figura de mulher sen-tada no chão, ao serem postos na vertical, são chamados «meninas» ou «bonecas». Uma vez criado o cereal, homens e mulheres, vergados sob sol ardente, empunhando seitoiras (foices) e delineando o eito de acordo com o número de ceifeiros, atacavam decididamente a seara. Nas últimas décadas, a par da seitoira, passou também a usar-se a gadanha. É uma folha de aço meio curva e muito bem afiada, munida dum cabo da altura do ceifador que permite ao gadanheiro segar de pé, agarrando com a mão esquerda na ponta do cabo e, com a direita, numa pequena mãozinha cravada transversalmente ao meio do cabo. Atrás, alguns homens iam atando com vincelhos o cereal ceifado em molhos que depois se dispunham cuidadosamente em montes, construídos de forma cónica, de modo a que o cereal fosse secando pela sua disposição ao sol e, ao mesmo tempo, ficasse protegido contra os eventuais aguaceiros da época. A estes amontoados de molhos de cereal chama-se na região rolheiros, se contêm menos de uma dúzia de molhos, e medas, se o monte é maior, comportando, por vezes, várias dezenas de molhos.

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Passadas algumas semanas, em Julho/Agosto, quando os trabalhos agrícolas vagam um pouco, os molhos são tirados dos rolheiros e das medas e carreados para a eira ou «lagem». Esta última designação, sem dúvida a mais vulgarizada, advém do facto de nos primórdios serem utilizados para as malhas os lajedos naturais, só depois melhorados com blocos de granito justapostos horizontal-mente. Nos tempos modernos, muitas eiras foram aumentadas ou construídas de novo em blocos graníticos e, mais recentemente, em plataformas de cimento. A malha é a operação de debulha dos cereais, quer do milho, quer dos cereais de pragana. A designação provém do objecto fundamental da debulha, o malho, nesta região conhecido por mangual, O mangual é um utensílio rudimentar, feito essencialmente de duas peças de madeira: o pírtigo, de cerca de meio metro de comprimento, feito dum pau pesado e duro, normalmente de figueira, e a mangueira, de cerca de 1,5 m, feita dum pau leve mas resistente, preferentemente de sabugueiro ou de castanho. As duas peças são ligadas uma à outra pela meã que funciona como charneira entre a casula de ferro que termina em argola, enfiada na ponta da mangueira, e a dobra do fato do pírtigo. A meã e o fato são de couro de boi, bem como as correias, as quais terminam com um dispositivo de segurança, a segurelha, cuja função é segurar e ajustar o fato ao pírtigo. Além do mangual, outras alfaias eram utilizadas na malha: ancinhos e forquilhas para manejar a palha (os ancinhos de preferência com os dentes de madeira); vassouras e vassouros de giesta para varrer a eira; o rodo para juntar o cereal, bem como para o espalhar na eira; os cestos e outro vasilhame para erguer o grão e limpá-lo das praganas e outras partículas pela acção do vento; a pá para ensacar o cereal, depois de bem limpo e bem seco, pronto para ser guardado nos arcazes, sem perigo de apanhar gorgulho. Embora a malha seja um trabalho duro e essencialmente reservado aos homens, as mulheres também têm um papel importante a desempenhar: umas chegam os molhos, seguram a beira com o ancinho, ajudam a tirar a palha e servem o vinho, outras preparam as refeições (o dejejum ou mata-bicho, o almoço, a piqueta, o jantar e a merenda) lançando mão da coelheira, da capoeira, do fumeiro e da salgadeira. O trabalho é duro e, como diz o lavrador, «da barriga puxa o boi e de casa se manda a gente».

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A malha do milho, muito embora utilize a eira e sensivelmente as mesmas alfaias, é muito diferente da do cereal de pragana, quer na técnica utilizada, quer pelo facto de ser despida de qualquer cerimonial campesino. O ritual ocorre sim, mas na desfolhada ou descasca, como veremos adiante.

A malha dos cereais de pragana, particularmente a do centeio, era acompanhada dum ritual próprio. Em tempos mais recuados, este trabalho era em grande parte feito pelo sistema de permuta ou torna. Os lavradores combinavam as suas malhas em dias diferentes, juntando-se um dia na malha de um, outro dia na de outro e assim por diante até que todos os que se agruparam tivessem a malha feita. Para fugir às inclemências do sol, o pessoal levantava-se cedo, para que, ao romper da aurora, já estivesse na eira.

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E, de imediato, lançavam mãos à obra. Começavam por dispor o cereal em camadas sobrepostas, de tal modo que as espigas ficassem na parte de cima. Então, os malhadores, mangual em punho, dispunham-se frente a frente em duas filas iguais (três, quatro, cinco, seis ou mais em cada fila) e começavam por delinear eitos paralelos ao lado da eira para o qual ficaram voltadas as espigas, batendo rítmica e alternadamente com os manguais. Depois de algumas dezenas de mangualadas e uma vez malhado o primeiro troço do eito, uma fila recuava dois pequenos paços, a outra avançava outros dois, continuando assim até ao fim desse eito. Em seguida, sem parar de malhar, retomavam novo eito paralelo ao anterior, seguindo a mesma técnica, apenas com uma diferença: a fila que dantes avançava recua agora e voltará a avançar no eito seguinte. E assim por diante até chegar ao fim da eira. Terminada esta fase, o cereal era virado na eira, novamente em camadas paralelas, mas com as espigas voltadas para o lado oposto, repetindo-se a operação anterior com os manguais. Tal como na primeira fase, os malhadores começavam a malhar do lado para onde ficaram voltadas as espigas, ou seja, do lado da eira oposto ao anterior. Tanto a ceifa como a malha eram trabalhos de colheita. Por isso, eram acompanhados de descantes, à mistura com certa algazarra e muita alegria, num verdadeiro ambiente de festa. Para o laborioso povo campesino, a festa é irmã do trabalho. Uma festa que, tendo por mordomo-mor a Natureza, nos transmite a frescura e o encanto de uma arte de viver o ciclo da vida (nascimento, crescimento, maturidade e morte) e o ciclo do trabalho campestre [lavrar, semear, tratar e colher).

Mas enquanto que na ceifa os cânticos eram os mais diversos, nomeadamente os alusivos aos santos populares, dada a proximidade das festas de Santo António, S. João e S. Pedro, a malha tinha a sua canção própria que, com algumas variantes, se cantava em toda a região. As quadras e a música que a seguir apresentamos foram recolhidas em Tibaldinho, povoação situada no coração da Beira Alta e da região do Dão. A música das malhas é lenta, dolente e cadenciada ao ritmo e ao compasso das pancadas dos manguais. É dividida em duas frases semelhantes, apenas com a diferença de que a primeira termina a duas e a segunda a três vozes.

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O movimento rítmico dos corpos desperta o desejo de cantar, sobretudo depois de aquecerem com o esforço e com o vinho. Quanto aos versos, são quadras de pura feição popular, sendo curiosamente repetidos o primeiro e o terceiro versos de cada quadra.

(i) Recolha e escrita musical do autor. 1 Nosso amo tem uma vaca, Também tem um bezerrinho; A vaca chama-se andúvia, O bezerro anduvinho. 2 P'rás bandas dalém do rio, Tem meu pai uma tapada; De dia rega-a o sol, De noite a orvalhada. 3 Lá abaixo vem a raposa, Carregada de cebolas; Vem de jurar a verdade, Qua as há-de comer todas. 4 Â porta do Santo António, Está um ramo de loureiro; Olhem a pouca vergonha, Fazem do santo vendeiro.

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5 Nosso amo anda triste, Por o Sol já ir baixinho; Não se entristeça meu amo, Que o Sol vai devagarinho. 6 Ao dar da palha, ao dar da palha, Ao dar da palha, ao dar da beira, Venha o vinho, venha o vinho, Venha o vinho à carreira. Embora o fim último do conteúdo de todas as quadras seja pedir o vinho ao patrão, achamos que vale a pena analisar cada uma delas em particular. Na primeira quadra, os malhadores aludem a uma vaca e a um bezerrinho que o patrão pode ter ou não ter, o que, para o caso, pouco interessa. O que é interessante é a forma subtil como baptizaram a vaca para, por simples derivação morfológica da palavra, baptizarem o bezerro de «anduvinho», numa clara alusão ao derivado da uva. A segunda e a terceira quadras parecem, à primeira vista, que nada se relacionam com o vinho. Porém, na linguagem campesina, assim não acontece. Tal como a tapada, a garganta dos cantadores está seca e precisa de ser regada, não com o sol e a orvalhada, mas com bom vinho. Porquê e para quê a história da raposa carregada de cebolas, jurando que as há-de comer todas? É que a cebola é enófila. Por isso, no espírito do camponês, a ideia de cebola está intimamente associada à ideia de vinho. Deste modo, recorrendo inconscientemente à pavlóvica teoria do reflexo condicionado, ao falarem na cebola estão sub-repticiamente a lembrar ao amo que mande a patroa ou o filho mais novo trazer o vinho. Na quarta quadra, os malhadores recorrem ao típico ramo de loureiro colocado, como bandeira a meia haste, à porta da venda (taberna)(1). Desta vez, não se sabe nem interessa quem (fértil imaginação poética a dos camponeses ! ...), pôs um ramo de loureiro à porta de Santo António, fazendo do santo vendeiro. Inqualificável desfaçatez! Mas isso pouco importa. A linguagem utilizada nesta quadra é eficaz nos objectivos a atingir, pelo que o garrafão, a garrafa ou a tradicional cabaça não se farão esperar. A quinta quadra também não alude explicitamente ao vinho. Porém, mais uma vez a psicologia campesina recorre a um tipo de linguagem que arranca ao subconsciente a ideia de vinho. É que o melhor antídoto para a tristeza é o vinho. Por outro lado, há ainda muito que jardar, pois o Sol, embora já baixinho, vai devagarinho. Na última quadra, os malhadores não estão com subterfúgios e vão direitos ao assunto: «ao dar da palha, ao dar da beira, venha o vinho à carreira». No final de cada uma das duas fases da eirada, as mulheres apanhavam com ancinhos as espigas que tinham saltado para fora, colocando-as em redor da eira, mas dentro desta, por cima da palha, a fim de serem também malhadas. Nesta altura, é da praxe uma rodada de vinho e os malhadores não se fazem rogados, pedindo-o descaradamente. Por isso, esta quadra, embora apresentada em último lugar, não significa que fosse a última a ser cantada. Ela era cantada tantas vezes quantas as beiras a malhar. (1) Na região de Entre Douro e Minho, mais particularmente no concelho de Ponte de Lima, é frequente ver-se por cima ou ao lado da porta de entrada para a taberna, uma imagem de Santo António esculpida, com a intenção de livrar o taberneiro dos maus olhados e dos caloteiros.

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Aliás, também não era obrigatório que as restantes quadras fossem cantadas pela ordem por nós apresentada, embora fosse o critério mais frequente. Contudo, havia que adaptá-las às circunstâncias. Dependia muito da maneira como o patrão se comportava a mandar servir o vinho. Os malhadores não cantavam sempre que malhavam. Havia o período de aquecimento até chegar o momento azado para a cantoria. E, mesmo quando cantavam, havia um certo intervalo entre as quadras. Ao iniciarem cada troço do eito, malhavam mais docemente para amaciar a palha e não quebrar as espigas, iam aumentando gradualmente a pancada e, de quando em vez, lá ia uma, duas ou mais quadras. Por vezes, antes de passarem ao troço seguinte, entravam em renhido despique, para ver a fila que mais forte malhava. Quando assim acontecia, as pancadas eram acompanhadas por uma espécie de roncos (há, há, há...), produzidos pela súbita passagem do ar na garganta ofegante, o que ainda mais lhes estimulava as forças. Ao longe, os estrondos dos malhos pareciam estoiros de morteiros. Depois, passavam ao troço seguinte com pancadas leves, aumentando a pouco e pouco o ímpeto e, a todo o momento, podia acontecer o retomar dos descantes. Este duro trabalho, iniciado de manhã cedo, era interrompido para o almoço (cerca das 8 horas), para a piqueta (cerca das 10 horas), para o jantar (cerca das 13 horas) seguido da retemperante sesta e, se o trabalho não ficou concluído, por uma substancial merenda à tardinha. Havia ainda outras curtas interrupções para empinar a cabaça. Nos últimos dois séculos, como vimos, o milho grosso de maçaroca veio reforçar substancialmente as possibilidades alimentares das gentes desta região. Com efeito, as grossas espigas de maçaroca não substituíram as esguias espigas praganosas. O milho surge, pois, como cereal em tudo complementar: é um cereal de Verão, enquanto que os cereais de pragana são de Inverno; é sachado em vez de mondado; é regado, enquanto que os cereais de Inverno o não são; prefere as terras fundas dos lameiros que forneceram as pastagens para o gado durante o Inverno, enquanto que os restantes cereais preferem as terras secas, pois nas terras muito húmidas azougam; permite ser cultivado nas terras onde foram criados os outros cereais, desde que essas terras sejam susceptíveis de serem regadas; os trabalhos da cultura do milho começam praticamente quando acabam os dos cereais de pragana. O milho é um cereal que requer muito trabalho. Além da sementeira e da sacha tem de ser regado várias vezes, consoante o rigor do estio e a qualidade da terra. Depois da utilização dos adubos químicos, leva geralmente uma adubagem com a primeira rega. Na mesma terra do milho pode ainda cultivar-se simultaneamente o feijão, o chícharo. o grão-de-bico, a abóbora, etc. Fornece também material para a alimentação e para a cama do gado. Pode, pois, dizer-se que uma boa cultura de milho enche a casa e a palheira. Quando o milho fica com a barba seca, escana-se, isto é, corta-se a cana que fica na parte superior do milheiro, acima da maçaroca. A parte inferior do milheiro chama-se toro. Antes de ser cortada a cana, flutua lá na ponta a bandeira (a flor masculina, ao passo que a barba constitui a flor feminina). As canas são postes a secar ao sol durante alguns dias e depois são juntas em camadas sobrepostas formando moreias, de modo a continuarem a apanhar sol, resguardando-se ao mesrno tempo das orvalhadas nocturnas e das chuvas, Passado algum tempo e antes das previsíveis chuvas outonais, desmancham-se as moreias e fazem-se faixas de palha para serem guardadas no palheiro. São as cha-madas faixas de palha de ponta, principal manjar do gado bovino. Cerca de um mês depois de escanado, o milho fica maduro. Então, cada milheiro é ceifado com a seitoira. Depois, é junto em grandes rimas (serras de milho) na terra do milharal ou então é levado em carros ou carroças para junto da eira. Aprazado o dia para a desfolhada (casca ou descasca como aí se diz) aparecem os familiares, vizinhos e amigos. Dispõem-se à volta da serra de milho e começa a desfolhada que consiste no

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retirar da maçaroca do folhelho que a envolve. É um trabalho alegre como todo o trabalho de colheitas. Canta-se, contam-se anedotas, contos, pilhérias ou adivinhas, conversa-se animadamente, tendo como música de fundo o «frufru» característico da palha seca em movimento. Todo este ambiente é bruscamente interrompido quando um cascador encontra o festejado milho rei o qual adquire o direito de abraçar todos os presentes. É o delírio geral. Os rapazes, por vezes, levam espigas de milho rei de casa, para apresentarem, no caso de não virem a ser bafejados pela sorte, conseguindo, assim, o direito de abraçar as raparigas. Travam-se, muitas vezes, renhidos despiques, para ver quem é melhor cascador, cascando à dúzia, ao quarteirão ou ao cesto cheio. Estes despiques aumentam naturalmente o ritmo de trabalho, aumentando logicamente as probabilidades de encontrar o desejado milho rei. Em muitos trabalhos agrícolas preside o espírito de competição que faz apelo ao natural sentido lúdico do homem, com que, de certo modo, suaviza a dureza do trabalho. Na medida em que se trata de arrecadar o produto de um ano de labor, o trabalho das colheitas é sempre feito em ambiente de grande satisfação e alegria. Se o ano foi bom, as tulhas e os arcazes ficam cheios, o que dá uma satisfação redobrada. Se foi mau, resta a esperança dum melhor ano que vem. Com a debulhadora mecânica, sem comezainas, sem cânticos, sem a alegria contagiante do numeroso grupo de pessoas que povoava a eira, a malha tornou-se um trabalho como outro qualquer e o ritual campesino que lhe estava associado, desapareceu. Daí que tenhamos empreendido a tarefa de recolha destes usos e costumes do mundo campesino e a sua publicação em letra de forma, para que, pelo menos de modo descritivo, permaneçam no nosso espírito e os possamos legar às gerações vindouras. Como escreveu Almeida Garrett («Romanceiro», 1843) «o tom e o espírito verdadeiro português esse é forçoso estudá-lo no grande livro nacional, que é o povo e as suas tradições e as suas virtudes e os seus vícios e as suas crenças e os seus erros». E J. Leite de Vasconcelos (Etnografia Portuguesa, 1933) acrescenta que «diante dos aumentos da civilização que se alastra pelas múltiplas camadas sociais, e que portanto destrói mais ou menos as tra-dições, sobretudo aquelas que estão em contraste com ela, importa indagar com urgência as que ainda restam ( . . . ) . Acudamos a tudo, enquanto é tempo!». Ontem como hoje, é patente a preocupação em preservar a riqueza das tradições culturais, verdadeiro subconsciente do povo, inesgotável fonte onde constantemente vai beber o consciente colectivo. José Manuel Azevedo e Silva Assistente da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra