CEFAI, DANIEL et al. Arenas públicas. Por uma etnografia da vida associativa

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Daniel Cefal Marco Antonio da Silva Mello, Fábio Reis Mota e Felipe Berocan Veiga (Organizadores) ARENAS PÚBLICAS: por uma etnografia da vida associativa Editora da UFF Niterói, RJ 2011

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Arenas públicas

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Daniel Cefal Marco Antonio da Silva Mello,Fábio Reis Mota e Felipe Berocan Veiga (Organizadores)

ARENAS PÚBLICAS:por uma etnografia da vida associativa

Editora da UFF

Niterói, RJ2011

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COMO UMA ASSOCIAÇÃONASCE PARA O PÚBLICO:VÍNCULOS LOCAISE ARENA PÚBLICA EMTORNO DA ASSOCIAÇÃO LABELLEVILLEUSE, EM PARIS

Daniel Cejai

llvllevilleuse é uma associação de bairro situada no território11.1 Helleville (Baixo Belleville), na XX Região Administrativa deI' 1 Bas-Belleville é a única zona que subsiste à série de políticas111hnnismo que deram origem, desde a década de 1960, aos conjun-h.ihitacionais (cités) de Nouveau Belleville, em Couronnes; à ZACIII1-PaliKa03 aos Jardins de Belleville; à ZAC Houdin-Orillon,

u.uln na XI Região Administrativa de Paris; e aos conjuntos habi-1IIIIIIisdo Boulevard de Ia Villette, na XIX Região Administrativa,111íória começa em 1989, Uma operação urbanística é lançada,mandada pela Ville de Paris," com os ingredientes habituais: es-111~'ias não declaradas de prioridade na compra (préemption) e de

I ",,',IL'lIr détudes à l'École des Hautes Études en Sciences Sociales, EHESS-Paris.II IIlll1lll'Ípio de Paris esta dividido em vinte regiões administrativas (orrondissementsi. OI·111111dL' Bclleville fica na parte leste da capital.

I \i,'llil'icaZolle dAménagement Concerté - Zona de Planejamento Urbano, prevista noJi"'IIi1 Iruncês para supostamente facilitar o "concerto" ou o "diálogo" entre os moradores\111111111'11,as entidades coletivas e os empreendedores privados.1,1/,' ri,' Paris (literalmente "Cidade de Paris") é o nome dado à Prefeitura de Paris. Estáli \1111111":1':111uma Mairie centrale (administração central) e vinte Mairies d'arrondissement, 1I111111'iL'iluraslocais, em cada uma das vinte regiões administrativas de Paris).

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cercamento com muros dos lotes do bairro; processos de deterioraçãodos edifícios com o propósito de justificar a sua maciça demolição.à custa de algumas distorções jurídicas e regulamentares; e, por fim.reconstruções levadas a cabo por uma sociedade de economia mista.no âmbito de uma ZAC, sem consulta prévia à população. Essa políticado fato consumado, contra a qual a indignação da opinião pública e oacesso ao tribunal chegam sempre demasiadamente tarde, foi a regradurante muito tempo, em matéria de planejamento urbano parisiense.Em Belleville, a suspeita de que "algo estava sendo tramado às ocul-tas" levou proprietários e locatários a procurar e a trocar informações,inicialmente em um grupo de nove pessoas; a elaborar uma leitura dasintenções da Prefeitura de Paris, e a criar uma associação, nos termosda Lei 1901.5 Um movimento de ação coletiva foi desencadeado nobairro. Foram adotadas estratégias para a mobilização e o recrutamentode ativistas, para fomentar novas adesões. La Bellevil/euse encontrourapidamente uma "base" significativa na periferia da ZAC: de, apro-ximadamente, 100 adesões no final de 1989, passou a 200 em marçode 1990, a 400 no final de 1991 e a cerca de 600 em 1997, sobre umtotal de 2.500 moradores.

Três grandes fases dessa história poderiam ser esquematicamentedistintas: 1) A primeira fase vai de 1989 a 1995: é a fase do blo-queio, marcada por confrontos extremamente intensos, como osdas reuniões de negociação em que a Prefeitura se recusava a acataras demandas da associação La Bellevilleuse. A referida associaçãoadotava uma postura marcada pela mobilização dos moradores dobairro, bem como pelo protesto e pela reivindicação por todos osmeios possíveis. 2) A segunda fase é marcada pela cooperação: éiniciada em 1996, por meio de uma ordem do prefeito de Paris paraque se colaborasse com a associação La Bellevilleuse. Uma parceriaé formada no âmbito do Desenvolvimento Social Urbano (DSU),6

; Essa lei de IU de julho de 1901 regulamentou a criação das associações voluntárias sem finslucrativos na França.

6 Desde 1984, o Développement Social des Quartiers - DSQ (Desenvolvimento Social dosBairros) operava sobre 148 localidades urbanas consideradas como "quartiers en difficulté"("bairros com dificuldades"), afetados pela degradação física, econômica e social. A açãose estruturava em cinco princípios (projeto territorial, global, transversal, em parceria ecom a participação dos habitantes) e se baseava em acordos assinados por cinco anos entreo Estado, os municípios e as regiões. A partir de 1988, os acordos Développement SocialUrbain - DSU (Desenvolvimento Sucial Urbano) os substituem, e foram eles mesmossubstituídos em 1994 pelos contratos municipais.

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IllIt xuo com o Atelier Parisiense de Urbanismo (APUR),1 Essa11il persiste mesmo diante da transferência do poder políti.co à

111 nlu progressista, tanto na Prefeitura Central quanto na PrefeituraI•~'III()Administrativa, e perdura até o final da década de 1990. A" ruçuo torna-se, então, uma protagonista central do.s projetos de11 j:llllento urbano do bairro, tendo a sua representatlvldade reco-Idll em diversas assembleias. Entretanto, paralelamente, perde

I, ti· seus integrantes, o que decorreu em função ou do excesso dentr.uiça de que a batalha estava ganha, levando à desmo?ilização,dll desânimo diante da complexidade técnica das medidas assu-

h\. I , J) A terceira fase é de especialização (expertise), a partir do111 do projeto definitivo pela câmara de vereadores, em junho deIJ.' 1.(/ 8ellevilleuse torna-se uma agência encarregada de propor111 ti 's, discutir propostas e tomar decisões dentro de parâmetros" definidos de planejamento urbano. Apesar disso, a associação[urnuu se envolvendo em projetos sociais ou pedagógicos em nívelti Em 2005, ela acaba atravessando uma crise, com a saída de

\I "membros fundadores" e com diversas tentativas de redefiniçãoI metas de ação, para além dos limites do bairro.

• (c texto, nos interessa, sobretudo, centrar na primeira fase e no1110 lI) da segunda fase - de 1989 a 1997, aproximadamente - paraI ITever o surgirnento de uma arena pública em torno do problemat I I 'construção do bairro. Insistiremos, especialmente, nas pertinên-101' de proximidade" dessa arena pública e nas tensões que ela podeIIl'l'IKlrar.9 Este artigo traz, igualmente, uma abordagem em favorI lima análise microssociológica da ação coletiva e da ação pública.I .\análise defende o uso de métodos de pesquisa qualitativa para1I111prcenderos contextos de experiência e de atividade da política

ItI. nl.I1 l/dia Parisien d'Urballisl1le-APUR (Estúdio Parisiense de Urbanismo) é uma associação.,.11 lins lucrativos entre a Prefeitura, o Departamento de Paris, o Estado. a região de J1e-

.i<' l-r.mce (que inclui Paris e adjacências), a Câmara de Comércio e de Indústria ele Pa~is.II Iunprcsa Pública Autônoma elos Transportes Parisienses (RATP). a Caixa de Alocaçoeshlllliliares de Paris (CIF) e o Estabelecimento Público de Desenvolvimento Orly-Rungis-'l'lIle Arnont (EPA ORSA). O APUR tem como missão monitorar tendências e evoluçõesurhnnus, participar da definição de políticas de planejamento e de de~envolv.mento. da,lnl1(lração de orientações da política urbana e de documentos do urhanismo. assim como01.,projetos para Paris e J1e-de-France. .() termo remete ao programa de "políticas de proximidade" coordenado por LaurentThevenot111' âmbito do Groupe :Ie Sociologie Politiqlle e/ Morale (GSPM): Thévenot, 1999 e 2006.I l'"li/amos esta pesquisa entre 1997 e 2000 e apresentamos alguns de seus resultados em('I'I:ú: Laíaye (200 l, 2002).

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VÍNCULOS DE PROXIMIDADE

A análise da constituição de um problema público ou de uma açãopública é indissociável de um emaranhado de estruturas de proximi-dade do mundo vivido. O termo "próximo" não se confunde com otermo "local", que designa uma escala espacial, nem com o termo"privado", que se opõe ao "público", e nem com o termo "particular",que se opõe ao "geral". O termo "próximo" ou "proximidade", nestetexto, remete ao que é vivido como tendo importância ou pertinênciana vida cotidiana dos atores - moradores, usuários ou cidadãos. Aexpressão remete aos modos de uso, de frequentação e de habitaçãodo "bairro" - que continuam a desempenhar um papel no engajamentopúblico, mesmo quando esses modos não são requisitados por ele.

Coisa pública e concernimentos pessoais

Primeiro ponto: a configuração da coisa pública não se faz sim-plesmente na troca de argumentos racionais em um espaço públicodescontextualizado. Ela é sempre tomada a partir dos modos de en-volvimento das pessoas naLebenswelt, e particularmente, na esfera dopróximo e do familiar. O enredamento em histórias e intrigas locais'?que evidenciam os destinos locais ou os interesses particulares é otrampolim para formas de julgamento e de denúncia, de reivindica-ção e de proposição, que trazem à tona o que diz respeito ao público.A noção de "políticas de proximidade" permite trabalhar sob outraconcepção de res publica e reabilitar as associações baseadas na pro-ximidade. A ideia de bem público, nesse caso, se articula na tensãoentre "pertencimentos", "filiações" e "alegações" de proximidade;"preocupações (concernements) pessoais" por bens ou serviçosameaçados; vínculos ou ancoragens em comunidades de território,de vizinhança, às vezes de profissão ou de religião; e preocupaçõesde interesse geral, de bem comum ou de utilidade pública, conformeos idiomas republicanos. A análise dos dispositivos de ação públicase pauta, muito rapidamente, em princípios e procedimentos que têmcurso nas agências dos poderes públicos, ou melhor, nos foros departicipação ou de deliberação. Um deslocamento do olhar permiteconsiderar as ancoragens da definição e da realização do bem públiconos contextos de experiência e de atividade dos cidadãos comuns,seguindo suas modulações de acordo com o tipo de situações proble-

10 Schapp (1992).

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nuiticas com as quais se confrontam em sua vida cotidiana.Segue-se,então, em direção a uma análise pragmatista das atividadesmicro-civicas e micropolíticas.

"orn seus vínculos sobre territórios e paisagens, comunidadese his-tórias locais, as associações de proximidade podem ser tantolugarespotenciais para desenvolver um pensar sobre si mesmo quantoumavia de acessos privilegiados à constituição de públicos. Asassociaçõesnão são vítimas de uma doença incurável, a síndromeNimby.1IO gestorctôrico de estigmatização a qualquer entidade da sociedadecivil,automaticamente suspeita de veleidades de localismo, comunitarismo()II corporativismo, é uma constante da gramática republicananat/rança. O interesse geral (intérêt général) seria incompatível comqualquer mediação entre o Estado e os indivíduos - tratadacomo"facção" da vontade geral. Entretanto, desde os anos 1970, o núme-1'0 de associações de proximidade que se impuseram como atoresprotagonistas na vida pública não para de aumentar. Envolvidasemconflitos em torno do planejamento urbano, elas podem tertambémobjetivos no campo social e cultural e, às vezes, no plano econômico(quando se transformam, por exemplo, em gestoras de bairroou criammpresas de inserção social), no plano étnico ou religioso (quandoupoiam em redes de pertencimento, de identidade e solidariedade

I visam bens ou serviços comunitários). Ou, ainda, no planoaberta-111 ente político (quando todas estas atividades são acompanhadas delima reivindicação nacionalista e quando estão acopladas a formasdl' c1ientelismo partidário). Qual é, então, o lugar das associaçõesIIIIS operações de produção de bens públicos? De acordocom queuiodalidades e com que justificativas elas concorrem a dispositivosdI' ação pública? 12

l/I Bellevilleuse é um caso paradigmático no panorama associativo,1111 que a defesa de um local, de uma paisagem ou de umbairro se1IIIIlOU um objetivo crucial. Ao mesmo tempo em que incorpora asli pcrczas do lugar, indagando sobre as situações econômicas e sociais01'1"; moradores, constituindo um verdadeiro banco de dadossobre o11,11 tiuc imobiliário do bairro e reunindo um manancial de informaçõesnhrc as condições de sua reconstrução, La Bellevilleuse se coloca

11,1 arenas públicas, formulando minutas e requerimentos, propondo

111lIi1 (I <)99) Nimby é um acrônimo inglês para a expressão Nol in My Backyard, ou seja,1111" cru meu quintal", utilizada de forma crítica por urbanistas norte-americanos./,"Iel aI. (2001).

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uma categorização dos prejuízos sofridos e potenciais e revelando,ainda, quadros duplos de denúncia da especulação imobiliária e dapolítica municipal. Mas, afinal, como essa associação circula entreformas de proximidade e formas de publicidade, de modo a parecerconfiável e compreensível junto aos habitantes do bairro, identificandonitidamente as possíveis soluções aos diferentes problemas que lhesão postos, ao mesmo tempo mantendo um discurso pertinente, eficaze aceitável diante dos diferentes organismos públicos e de Estado?Como dar conta das atividades em que os problemas e conflitos queatingem os protagonistas são reordenados, configurados e publici-zados em acontecimentos, crises, negócios ou escândalos públicos?Tentaremos responder a essas questões adotando uma perspectivapragmatista.!' Em primeiro lugar, isso implica em não lidar com ato-res já constitu ídos, dispondo de recursos e produzindo estratégias. Oobjetivo do bem público se encarna e se representa, sem dúvida, emagenciamentos de instituições públicas, de sociedades de economiamista, de organismos paramunicipais e de associações civis. Mas essacartografia reduz a análise: ela se afasta das atividades contextualiza-das ao objetivar ordens de representações, espaços de poder ou redesde governança; ela não parte dos contextos de experiência pública econsidera raramente a natureza das organizações, das interações queas ligam e dos problemas que elas revelam, em relação aos eventosou às ações em curso; ele perde de vista os processos temporais ao secentrar em cálculos racionais, em estruturas sociais ou em instituiçõespolíticas. Aqui, tentaremos ser mais minuciosos nas descrições decasos, se possível pela observação direta e pela análise de arquivosdocumentais, para revelar as figuras de realidade e de norrnatividadeque emergem no curso dessas atividades.

Várias consequências derivam dessa premissa. A pesquisa privilegiaas situações de prova. I.• Nos múltiplos momentos de disputa entreatores, a arena pública vai-se constituindo. Essas situações tomam aforma de provas de alerta, de experimentação, de medida, de testernu-

IJ Cefaí (2002).J4 Situations d'épreuve: a palavra épreuve tem vários sentidos em francês. Aqui, ela remete a uma

dimensão de "provação" - "se colocar à prova" em relação a algo (que pode ser um exame,uma relação de trabalho, ou situações no campo da amizade, diante de um público ...). Nasociologia dita pragmática, uma épreuve é um momento crucial de qualificação de situações.de ações e de rnobilização de formas de justificação, com o propósito de determinar umacordo em termos de racional idade e de legitimidade (BOLTANSKI: THÉVENOT. 1991:LEMIEUX, 2009).

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II!tO, de negociação, de estratégia, de conversação, de deliberação etc.Iilns têm como contexto específico as instruções judiciárias, controvér-ius científicas, redes de vigilância, inquéritos públicos, assembleiasd . negociação e conselhos de bairro, referendos eleitorais, polêmicasmidiãticas, manifestações de rua ou pesquisas de opinião etc. Váriasconxequências se sucedem. Primeiramente, os problemas públicos, cristalizam em muitos lugares e momentos distintos, mobilizando

numerosos atores a partir de diversos modos éi graus de engajamento.Para se tornarem questões de definição e de competência no âmbitod~ uma arena pública, são sustentadas por cadeias de operações,dispersas espacial e temporalmente, que a pesquisa deve restituir.HIll segundo lugar, os atores não têm uma identidade estabelecidaII ' forma determinada: suas motivações e objetivos estão sob umau'ometria variável, dependendo do tipo de problemas diante dosquuis se reúnem ou se confrontam, de acordo com as configuraçõesprovisórias de alianças e de inimizades nas quais se envolvem. Aunidade e a identidade são, eventualmente, um problema prático queI I 'S devem resolver, diante de certas circunstâncias. Finalmente, aqualificação dos bens desejados pelos autores como bens privados,, omuns ou públicos não está baseada em critérios objetivos: ela érudissociável das situações de debate, de controvérsia, da polêmicauu do processo no qual elementos contrários de informação, de prova,. de argumentação vão ser confrontados, no qual também decisões. (rfio consumadas. Nesse contexto, atores, causas e situações se. unfigurarn simultaneamente.

l'rovas afetivas e choques morais

( "111 a adoção dessa perspectiva pragmatista, os representantes deI ti Bellevilleuse, que se apresentam como defensores de um local emII co, devem fixar suas estratégias urbanísticas, jurídicas, midiáticas" políticas em enredos locais; devem articular traduções dos mundos, pccializados da perícia e da política com palavras do cotidiano.I',II'H convencer, mobilizar e envolver públicos leigos no conflito111 hUIlO, esses representantes explicam as questões mais complexas,II1S membros de sua associação e aos moradores do bairro e lhes.l.to li oportunidade de compreender, de deliberar e de participar das.I, ~lsõcs públicas. Mas, inversamente, sob pena de serem acusados01, punicularismo, de localismo ou de comunitarismo por jornalistas,Ili ti tt icos e especialistas, os representantes devem renunciar às com-

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petências de proximidade que são próprias deles para se valerem deuma linguagem de interesse geral. Eles valorizam suas experiênciasvividas, seus saberes locais e seus laços pessoais, próprios do bairro,mas devem reenquadrá-los em relação aos desafios públicos e, porvezes, até mesmo descartá-Ios para argumentar e fazer sentido pe-rante outras instituições, em outras esferas de ação e diante de outrascenas públicas.

As vias de acesso à arena pública passam por regimes de engajamentonão público. Gamson havia analisado os "quadros (framesi de injusti-ça" que são articulados por atores comuns para qualificar problemassociais como inadmissíveis e intoleráveis; para determinar respon-sáveis ou culpados e fazer deles o alvo de ataques; para clamar pelaconstituição de um coletivo capaz de demandar a reparação; e paraacionar as instituições suscetíveis de restaurar uma ordem aceitáveldas coisas. Porém, esses "quadros de injustiça" não são lentes cogni-tivas por meio das quais os atores constroem o mundo. São, antes detudo, experimentados em ocasiões sensíveis, em movimentos afetivosde aversão, desconforto e ansiedade, de irritação e de frustração, deraiva e de ressentimento, de cólera e de indignação. Eles são encar-nados em provas emocionais e perspectivas que não se fecham noforo íntimo de sujeitos solipsistas, mas que remetem diretamente aohorizonte de um senso comum e que visam intencionalmente certosestados do mundo. O "senso de injustiça" se expressa em descriçõesque dão conta de provas corporais, portadoras de um sentido ético,cívico ou político, que atravessa seus atores.

A revolta e o protesto encontram suas fontes, segundo alguns membrosda associação, na primeira experiência que tiveram com a insalubrida-de das habitações, superpovoadas por famílias numerosas e sublocadasem preços passíveis de anulação. Foram acometidos por toda sorte desentimentos e sensações mais insuportáveis que tinham para com suavizinhança local, como o cheiro de urina, as escadas intransitáveis,as vidraças quebradas, os apartamentos lotados e inundados etc. Aexperiência do que é injusto, mas também do que é indecente e in-conveniente, decorre do modo passivo do "ser afetado" (Stimmung)pela situação, antes dessa experiência ser formatada segundo asmodalidades práticas dos regimes da crítica e da denúncia, da com-paixão ou da indignação. As reuniões de informação e de consultaforam a ocasião para que se experimentasse outra experiência-chavena mobilização dos moradores do bairro: foram vividas como

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. ituuções de maus-tratos infligidos aos cidadãos reunidos na Prefeitu-I d. como situações de descaso (salas minúsculas, sem cadeiras e compluni lhas ilegíveis) e de condescendência dos políticos e dos técnicosdoi Prefeitura (omissão às perguntas feitas, atmosfera de ameaçasI nutra membros de associações). Essas reuniões rapidamente foramIImotivo da publicização do descontentamento, sob a forma de cartasI udcreçadas ao Prefeito e assinadas coletivamente por porta-vozesdas associações e por "notáveis de moral idade" do bairro.

I'sscs choques emocionais têm a ver com percepção, afeto e mora-lnlnde, indissociavelmente. São da ordem do sentir e do ressentir.I) .xcstabilizam o sentimento de evidência que cada um mantém comI'U ambiente natural e desfazem a modalidade do dado inquestio-nnvcl, do "tido como certo" (taken for granted) que caracteriza asrunnifestações do mundo da vida cotidiana. O sistema de coordenadasI IlIl1UnSque regula a relação de familiaridade com a vida no bairrolrcu abalado. O campo de experiências e o horizonte de expectati-,\Slí dos moradores não são mais evidentes. O senso de decência damoradia dos vizinhos de bairro e o sentido de dignidade na condutados políticos em relação a seus administrados são atingidos. Essasprovas afetivas, mais frequentemente colocadas sob o signo da humi-lhução e do desprezo do que manifestadas em linguagem diretamentepolítica, foram classificadas por Jasper como "choques morais"."Porém, estes são também choques estéticos ou cívicos, segundo os, I ltérios de apreciação e de avaliação empregados. Para alguém queunsceu no bairro e que nele viveu toda a sua infância, é a totalidadedll memória corporal que se vê ameaçada e a história de vida que serádt stroçada. Para uma pessoa idosa, são rotinas muito arraigadas queI urrem o risco de cessar, uma economia da autonomia, da afeição edil ajuda mútua que será destruída com a transferência de domicíliolU)!' lima instituição especializada. Para o comerciante, é o fim do seu, umércio ("mon affaire qui est foutue"), não somente sua fonte deu-nda, mas também o pequeno mundo que sedimentou dia após dia no~'IIpequeno botequim ou na sua lojinha. Para o "bobo" recentemen-I' instalado - para usar a rotulação vernacular criada pelos nativos".lrisienses de "burguês boêmio" ("bourgeois bohême") - além doLllo de ter seu bem desvalorizado e de ter de sair de novo à procura1ft alguns metros quadrados, é um pedaço do sonho urbano que se

I u-cllcck (2006).III'pL'r (1997).

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esvai, é "Paris que vai embora", "são os promotores que massacrama cidade".

Esses quadros de experiência, com sua materialidade corporal, seuslaços espaciais e profundidades temporais, seus jogos de sociabilidadee redes de imaginário, organizam o sentimento de indignação. A pas-sagem do distúrbio afetivo e moral à denúncia e ao protesto públicopelos moradores do bairro assume formas diversas. O discurso crítico,elaborado em termos técnicos, jurídicos ou políticos, somente é sus-tentável se baseado em sentimentos e sensações de indignação que têma densidade da Lebenswelt, ou seja, do "mundo da vida". O vizinhofica horrorizado com os buracos de ratos em que ficam amontoadasas pessoas, com quem ele compartilha o mesmo espaço público nasruas, ignorando totalmente sua intimidade; o eleitor fica consternadocom a falta de civilidade democrática e com a demonstração de in-competência e de arrogância de alguns técnicos da Prefeitura de Paris;a mãe fica abalada por imaginar seus próprios filhos no meio dessascrianças atingidas pelo saturnismo de tanto absorver pelo ar pinturascom sais de chumbo; o locatário fica escandalizado com a falta derespeito às leis e com a exploração da miséria por alguns proprietáriossem escrúpulos. Um indivíduo categorizado como cidadão não deixade ser uma pessoa de carne e osso, envolvida no mundo cotidiano,de acordo com uma multiplicidade de regimes de engajamento. Essapessoa se engaja publicamente, mas seu impulso inicial está enraiza-do em vulnerabilidades singulares, ínfimas humilhações, angústiasindizíveis que não se deixam facilmente "publicizar". A transição doschoques afetivos, sensíveis e morais aos julgamentos articulados nalinguagem da publicidade, ocorre por meio da definição da situaçãoproblemática e, concomitantemente, mediante a produção de padrõesde ação e formulação de boas razões para agir.

Alerta e pesquisa, território e memória

Segundo os relatos dos moradores do Baixo Belleville, a indig-nação limitou-se, num primeiro tempo, ao registro quase privadoda vizinhança, do familiar, do falar em casa e entre si mesmos. Ainquietação, de início difusa, foi despertada por um "detalhe suspei-to": o crescimento do número de janelas muradas dos apartamentose a progressiva degradação do bairro, dando-lhe uma aparência deabandono. Alguns proprietários, desconfiados desses índices quelhes colocaram a "pulga atrás da orelha", se envolveram numa

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pequena indagação, na acepção da inquiry de Dewey (1927), paraproblernatizar uma situação perturbadora, porque incompreensível.Verificaram no cadastro quem eram os proprietários das moradias'111 questão e descobriram que todas tinham sido, sistematicamente,objeto de preempção pela Prefeitura. Informações vazadas da admi-nistração municipal sob a forma de rumores a propósito de um projetode renovação dão, então, um contorno ao alerta. Uma operação deplanejamento tinha sido lançada sobre o perímetro do bairro e umasociedade de economia mista foi mobilizada, à revelia dos moradoresque, informados pelas vias informais da fofoca, se espantam de nãoterem sido previamente consultados. A notícia reforça o sentimentode ansiedade coletiva, acelera e intensifica o rumo da indagação,conduz à interpelação dos poderes públicos, abre a dinâmica temporallos prognósticos, das denúncias e dos protestos. Será que essa Zonade Planejamento Urbano Combinado (ZAC) é efetiva? Quem tomouessas decisões, quando, onde, como e por quê? Com que argumentostl prefeito justifica essa situação? Esse estado de coisas é legalmentesustentável sem a realização de uma enquête publique'!" Em que con-••iste o projeto de renovação? O que vai acontecer com os locatários~'proprietários do bairro?

suspeição sem um objeto preciso, somada ao alerta provocado pelovazamento das informações da administração municipal, encontrauma consistência maior por ocasião de um evento anterior. Os bul-d{lí'.ereschegam ao início de uma manhã para demolir as construçõesuulustriais desativadas da velha Forge, sem aviso prévio. O evento dáorigem a uma multidão que atrapalha a obra. Um oficial de justiça é~onvocado e constata a presença de uma ilegalidade. Com isso, esse

slígio entre os outros, geralmente pouco notado, salvo por criançasque vinham jogar e por squatters das imediações, acaba sendo va-lorizado e ganha esse caráter de individualidade e de unicidade dos1I1!'aresaos quais se tem apego, Esse evento adquire um novo sentidonn história de resistência à destruição e é reclassificado como uma dasf u-ntes de batalha. Mais tarde, a ocupação selvagem do prédio e dos.u rcdores é seguida pela criação de uma associação de artistas queIIq,!,ociaaluguéis com a Prefeitura e, por fim, pela inclusão do espaço

I '''II/I'/e publique (investigação pública) é a fase inicial da consulta pública. durante a'ItI.1I" público, ou seja. os moradores, associações. atores econômicos e cidadãos comuns.

1111 l'l .nvidados por UITIcomissário-investigador (collllllissaire·ellljllê/eur) a formular suasI'JltltlIIL·S.críticas e sugestões sobre um determinado projeto de regulação ou ele planejamento.,qlll'\l'lllaelo por uma entidade pública ou estatal.

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em um projeto de animação cultural - peça central da reabilitaçãoem curso. Outro acontecimento provoca uma verdadeira agitação:a expulsão manu militari pelos CRS18 dos moradores do prédio denúmero 42 da rua Ramponeau, que são jogados na rua sem nenhumcuidado e a quem se propõem remanejamento para locais distantes,nos subúrbios norte e leste de Paris, com a finalidade de dispersá-los.Durante vários dias, eles acampam na rua, em meio a seus pertences,recusando, temporariamente, as condições de seu remanejamento esuscitando um movimento de indignação, de compaixão e de soli-dariedade entre seus vizinhos." O sentimento de intolerância frenteao desprezo dos políticos eleitos em relação a seus administrados efrente à injustiça cometida com os vizinhos se intensifica. A ansie-dade, de início expressa nas conversas banais na soleira das portas eno balcão dos bistrôs, se desenrola coletivamente a favor da investidasobre o espaço público da rua como lugar de protesto." O fluxo livrede palavras de descontentamento e raiva torna tangível a ameaça dedestruição do bairro que, até então, só dizia respeito a algumas pessoase se restringia apenas aos prédios abandonados.

Circulam relatos. Medos são expressos em palavras. Lembrançasdespertam. Os judeus tunisianos recordam seu exílio em Hara, seu.bairro em Túnis, entre J 956 e 1967. Os velhos imigrantes, enxotadosde seus quartos, vendo seus lares destruídos, se sentem desamparados.O bairro se torna um lugar de nostalgia para aqueles que devem par-tir: se trocam promessas de retorno, de jamais cair no esquecimento.Torna-se também o campo de uma solidariedade prática: vizinhosoferecem alimentos, oferecem seus banheiros ao uso. O sentimentode apego se intensifica no meio desses fragmentos de intimidadeexibidos às claras: os colchões e as malas empilhados à la va-vite(vá depressa!) se exibem sem pudor nas calçadas da rua Ramponeau,expondo os pertences de alguém arrancado de seu lar. A prova tempor tonalidade dominante uma mistura de humilhação e amargura, deresignação para alguns, de revolta para outros. Enredos e narrativasse desdobram, nos quais os papéis de culpados e de vítimas, de bons

18 Compagnies Républicaines de Sécuriié (CRS): regimentos de polícia que intervêm em casosde revolta popular ou que regulam as manifestações de rua. As CNRS fazem parte da PoliceNationale.

19 Restam algumas imagens desse episódio no documentário de P. Baron, Babelville (França,1994,58 min.), projetado em pré-estreia no dia 5 de março de 1993, no Berry-Zêbre, Muitosmoradores de Belleville possuem esse documentário gravado em fitas de vídeo-cassete.

'o Joseph (2007).

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r ti' maus, são distribuídos entre diferentes personagens, quando os.u-nntecirnentos surgem como episódios que se encadeiam para formarinnu história. Um mundo está se perdendo, no naufrágio provocado!l1'las pérfidas decisões, a portas fechadas, da Prefeitura, cujos ex-pll entes percebidos são os CRS e seus cassetetes. Uma injustiça está. endo cometida contra pessoas de parcos recursos, que moram logo.rll, na porta ao Jado; pessoas comuns, que cumprimentamos na rua, que passam por nós no supermercado. Uma angústia toma todosI1 moradores para os quais aquilo é apenas o primeiro passo de uma, pulsão programada: todos se reconhecem nessas primeiras vítimasdI) projeto de renovação. O acontecimento tem um papel de operadorda .oncentração e da intensificação dos afetos, até então dispersos, em11111 sentimento de indignação compartilhado por todos. Faz nascer,nu auge da prova, o apego ao bairro e a urgência de protegê-Io. Dá11111 toque inicial à mobilização e à coordenação.

I'In consequência disso, o "quartier" ("bairro") torna-se o herói deumu história de múltiplas facetas: a história da resistência a umapul ít ica urbana abusiva, na qual se entrelaçam todas as pequenastustórias cotidianas das batalhas contra as expulsões vividas no bair-111, as histórias contadas pelos jornais, as histórias das audiências nou rbunal administrativo ou das reuniões de consulta popular, as his-\tll'ias dos militantes e ativistas da associação. O "bairro" começa a,. istir segundo novas modalidades, oriundas de seu enquadramentou.urativo." Parece se desenhar de forma menos vaga como território, 11' .unscrito, embora a área de ação da associação, copiada do territó-111) administrativo da ZAC e coincidindo com o espaço dos blocos equurteirôes ameaçados, seja mais reduzida do que a Belleville vivida!'1']OS moradores e transeuntes. Mas sua identidade parece ainda bem, onsolidada, menos fantasmagórica, materializada nos percursos espa-, luis de cada um, ratificada tanto pelos mapas pendurados na parede,11) local de La Bellevilleuse quanto pelos passeios organizados pelaI' ociação Belleville insolite.

1ll'Iatos escritos em outras arenas de experiência e de atividade tam-111 111 são repatriados. Belleville não é mais simplesmente o tema defi .ihulhos acadêmicos ou de empreendimentos artísticos, constituindo-

•de rato, como destinatário desses trabalhos e empreendimentos e,11111 isso, amparando-se neles e convertendo-os em fontes e recursos

j11'O)lt'lsiloda categoria "quartier", cf, Topalov (2002).

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de experiência local. É assim que teses de doutorado serão recicladase funcionarão como comprovantes dos mitos comuns. O bairro é per-cebido e exaltado como lugar de acolhimento de sucessivas ondas deimigrantes" memorial da Comuna de 187123 e da cultura popular"da antiga Paris. Diversas exposições fotográficas dão ênfase a suadimensão de bairro multicultural". Noitadas de chanson réaliste, a"canção realista" de Edith Piaf, fazem revi ver o passado nos baresao som do velho acordeom. O bairro se transforma em referência deliteratura internacional, por intermédio dos romances policiais deThierry Jonquet (1993) e da saga de Malaussêne de Daniel Pennac(1995). Esses elementos contribuem para criar elos com esse último"bastião de humanidade" e para justificar a defesa de "uma Parisque está morrendo": La Bellevillcuse aproveita esse entusiasmo deapego nostálgico, tomando cuidado, entretanto, para não transformara salvaguarda desse passado mítico em seu objetivo.

Saberes locais e relações interpessoais

Sendo a associação um coletivo, ela se desenvolve nesse contexto. Oconflito local, como "analisador", tem o poder de desvelar as coisaspúblicas da cite e, como "catalisador", de agenciar as expectativascoletivas. A mobilização de militantes ativos, o recrutamento denovos membros e a sensibilização de simpatizantes se desenvolvemnas redes de sociabilidade da La Bellevilleuse: em primeiro lugar,entre as pessoas mais próximas, nas relações de vizinhança e osfrequentadores das atividades de Iazer; depois, pelo boca a boca,seguindo os laços de confiança, de familiaridade e de solidariedadede ordem interpessoaI. A associação se ancora, inicialmente, nosgrupos de afinidade e nas redes de amizade de seus membros funda-dores. Em seguida, ela se expande pelas adesões conquistadas pormeio do arsenal das técnicas militantes: campanhas de divulgaçãoe afixação de cartazes em paredes, plantões nas ruas, distribuiçãode pantletos em caixas de correio, na saída do metrô ou na feira doBoulevard de Belleville. Fazer campanha de porta em porta é umainteressante situação de interação face a face. Os associados tentamcompartilhar sua experiência de indignação moral e cívica e propõem

" Simon (1994).'J Jacquemet (19R-'+).'" Morier (1992)." Duas exposições: Belleville, Bclleville, em maio de 1992 (Pierre Gaudin) e Visa Villes. em

março de 1993 (Jean-Michel Gourdcn),

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1 I moradores do bairro, frequentemente estrangeiros, imigrantesI. «ulares ou clandestinos não proficientes na língua francesa, ouIIlld" pessoas de baixa escolaridade sem as mesmas capacidades dentrculação política, que se unam ao coletivo. Pedem a sua adesãoI. I orrcndo ao discurso da cidadania, mas são obrigados a reivindicar1111111 posição de "vizinho" ou de "familiar" e, ainda, a se distanciard,1 categorização de representantes de comércio, de testemunhas de" uvá, de assistentes sociais ou de investigadores de polícia. Eles.I. Vl'l11 esclarecer o significado do pagamento em dinheiro de uma• 111 lzação para defender uma causa pública e para aderir à associação~'esto, às vezes, interpretado como equivalente à aquisição de umI rviço ou a um suborno para se obter um favor. O ato de cornprorne-

11111 .nto do morador não é fruto de um trabalho de "conscientização"militante: resulta, em última instância, de um trabalho de ajuste1I cíproco entre duas pessoas, que devem, primeiramente, definir oI Ini ficado de sua co-presença, el iminar mal-entendidos e equívocos

'1" ' atrapalhariam seu andamento, compreender minimamente quemI Ias são e o que elas querem, antes que um esforço de tradução dos"hjctivos da associação os torne mais ou menos acessíveis no mundorvido do morador. O entendimento recíproco é flutuante, marcado

pela desconfiança, não isento de equívocos, governado pela meta deIelicidade da interação, meta suficiente para todos os fins práticos. Amlcrossociologia goffrnaniana está aqui colocada a serviço de umamtropologia da cidadania ordinária.

"l'1ll dúvida, a associação se configura nos estratos que são os grupos,.IS redes e as organizações já estabelecidas. Arrisca-se mais facilmente,I agir quando se sabe mais ou menos onde colocar os pés; quandol' confia minimamente nos representantes a quem delegam poderes,quando se compartilha a mesma sensibilidade, quando o alinhamentolias mesmas interpretações se faz quase automaticamente. A associa-ao encontra mais adesão em meio às classes médias recentementemsialadas no bairro; encontra resistências da associação de cornercian-IL'" do Boulevard de Belleville, vencida pelas promessas do prefeitolocal; não recruta quase ninguém entre os chineses e asiáticos doiudcste da rua de Belleville, mais desconfiados e menos concernidos.Mas a associação não se conecta só em redes de sociabilidade pree-istcntes: ela também cria novas redes. Funciona C0l110 um operador

til' elos entre pessoas e entre organizações. É uma matriz de reco-nhccimento e de inter-relação, que sustenta as cooperações de ação

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coletiva. Através dela, membros de associações até então separadasumas das outras se contatam e participam de projetos comuns. Ascolaborações de La Bellevilleuse - seja com Feu Vert (Sinal Verde)para implementar programas de educação de rua, seja com Médecinsdu Monde (Médicos do Mundo) para denunciar casos de saturnismoinfantil, seja com os Ateliers Artistes de Belleville (Oficinas de Ar-tistas de Belleville) para organizar a animação cultural das JournéesPortes Ouvertes (Jornadas Portas Abertas) - ensejaram aproximaçõesque, por sua vez, permitiram impulsionar novas ações coletivas. LaBellevilleuse, ao se limitar deliberadamente ao âmbito circunscrito daZAC, possibilitou que se criassem, ao mesmo tempo, laços amigáveise trocas de experiências e de conhecimento (savoir-faire) com a as-sociação Mare-Cascades, na ladeira do monte, e, embora com maisdificuldade, também com a Ste. Marie-Ste. Marthe, do outro lado doBoulevard de Ia Villette. Esses feixes de relações, mais ou menosbem-sucedidas, mais ou menos esporádicas, com geometria variável,sustentam os engajamentos públicos dos indivíduos. E remodelam apaisagem associativa do bairro.

As redes de inter-relação em escala local são cruciais para garantiruma mobilização pública. Além disso, a definição da situação dereabilitação do bairro se apóia em saberes locais, relativos às formasde vida associativa próprias de um território, aos usos de lugaressemipúblicos e públicos, às práticas de solidariedade e de ajudamútua entre vizinhos; como também saberes referentes ao estado dedeterioração dos imóveis, às necessidades de áreas livres de jogospara as crianças e de espaços de integração para os adultos, à neces-sidade de expansão do pátio de recreio de uma escola ou de um asilopara pessoas idosas. Estes saberes locais são compartilhados pelosmoradores no seu cotidiano ou estão ligados à frequentação assíduadesses lugares. Eles desenham uma topografia de suas experiênciasindividuais e coletivas, de seus modos de uso dos espaços privados,semipúblicos e públicos, de suas valorizações dos lugares vividos epraticados no dia a dia, investidos de toda sorte de qualidades queescapam ao urbanista. Permitem conceber planejamentos do espaçofundados baseados no conhecimento sobre os lugares: daí a propostade se cavar uma passagem na parede entre o nº 18 da rua de Belle-ville, na pequena ala de ateliês "da casa de Mika" e a La Forge; daía solicitação de reforçar as fundações do "prédio do Sr. Kahloun(comerciante tunisiano) e da padaria", e de valorizar essa espécie

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dl' quinta do século XVIII, na parte baixa da rua Ramponeau; daí adiscussão áspera para trocar a disposição do pátio da escola, da qualoS diretores do estabelecimento participaram, a fim de defender comunhas e dentes seu ponto de vista. Os saberes locais fazem surgir aI pressão pública das dificuldades encontradas no local - ausência.l contratos de aluguel, famílias numerosas, problemas sociais,moradias insalubres - bem como suas inquietações, incômodos e"l' .cpções, quer se trate da regularização de situações precárias vi-Idas pelos imigrantes "sans papier" ("sem documentos"), quer se

111IIeda espera por moradias HLM26 requeridas há mais de 15 anos.(ilÍs discussões permitem imaginar, ainda, as "opérations-tiroirs"1'operações-gavetas"), destinadas a abrigar famílias no próprio bairro.Iurante a reabilitação de seus prédios. Os saberes locais sofrem uma•oulormação temática a partir de sua incorporação em vários forma-111 : nas conversas locais com os plantonistas, nas entrevistas coletadasI"-/OS jornalistas ou pelos cineastas, nas reforrnulações por ocasião""f. reuniões bimestrais do conselho da associação, nas reimpressões"11 panfletos de denúncia ou de reivindicação, nas inscrições sob uma1111111a apropriada nos documentos oficiais.

I .It'S saberes locais são codificados pela associação, que se torna111111caixa de ressonância, um "catalisador" e um "analisador", que•• , rruduz em linguagem inteligível para as agências técnicas e adrni-111írutivas, para os políticos eleitos ou para os meios de comunicação.1.- massa. Os membros permanentes da associação são vetores deIIllt 1mediação, que coletam elementos de informação e análise na pro-nuidade, mas que operam e dominam também as gramáticas políticas

"" a,'t o pública. Eles pesquisam sobre as demandas dos moradores,"11 tutarn visualmente o estado dos prédios do bairro, procedem à"h'la de informações e à constituição de dossiês, constituem uma(Hei' de bancos de dados e se apóiam sobre esse conhecimento,

li' nu SIllO tempo subjetivo e objetivo, para dar consistência às suasI 1 indicações. Eles não se contentam em pesquisar, mas com o apoioI 1I111l1instituição pública, patrocinam também uma investigação1111111111 um escritório ele consultoria independente, o que vai romperI 1111111'ira ainda mais forte com o contexto local. Essa produçãoI 11111r ilut Jrio de alta legitimidade diante dos olhos dos políticosdtl funcionários da Prefeitura de Paris os obriga a financiar uma

111I\II/I,,/II'''"rll/,)1,01"'1' /IIurl'</'t'l dc,i mn 11111lipo •li: l"olljlllllO hubituciunnl. C01ll aluguéis'I" ,li I1ll1dln'~

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contrainvestigação, o que os leva a uma guerra de informação e decontrainformação, com vistas a convencer o público. Essas diferentesindagações coexistem com o inquérito público realizado por umaoficial, encarregada de registrar em atas as queixas dos moradores - eque acabará se tornando, posteriormente, plantonista da associação.Todos esses dispositivos criam dados, com forte ancoragem local, efazem emergir representações do bairro que colocam em questão ointeresse e a legitimidade de sua reabilitação, preservando-se contraum processo muito brutal de renovação urbana.

PROCESSOS DE PUBLICIZAÇÁO

A configuração dos modos de engajamento no bairro constitui umabase sólida dos atores associativos na arena pública sob três aspectos.Eles defendem um território que Ihes é caro e ao qual eles são ape-gados, que valorizam como bem comum e do qual fazem um espaçopúblico. Agem em redes de relações de proximidade. que transformamna formação de coletividades publicamente reconhecidas. E apoiam--se em saberes locais que, uma vez reconvertidos e recompostos, sãovalidados publicamente e inseridos na concepção do projeto de reabi-litação. A associação encarna o processo de formulação de referênciasidentitárias, canaliza a energia da rejeição e converte-a em protesto, eainda contribui com a produção de repertórios de argumentação e demotivação, Alerta a população contra um risco, constituindo-a como"público" interessado ou motivado a agir; realiza uma pesquisa demaneira a esclarecer uma preocupação inicialmente confusa e a ex-plicitar os termos de um problema articulado; define um bairro, comsuas fronteiras, sua identidade e sua memória, recenseando elementosdo território e do patrimônio; ativa redes de relações interpessoaise inter-organizacionais, fazendo emergir e validar saberes locais,implicados na determinação das escolhas da ação pública.

Após ter insistido nas ancoragens de proximidade dessa mobilizaçãocoletiva, diremos algumas palavras sobre a maneira como, apesar detudo, ela não se fecha em si mesma, evitando as censuras acusatóriasde particularismo e localismo.

A técnica e o direito: comensuração,coordenação e generalização

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1'.1111se fazerem entender, os porta-vozes da associação devem falarIdlOll1aSpúblicos que sejam inteligíveis para seus protagonistas.I I\·s selecionam registros de discursos que autorizam operações de1.uucnsuração ou proporcionalidade e que delimitam um espaço dedl'/Hlle comum. A economia, a tecnologia e o direito contribuemp.tru essa mediação. Os membros mais engajados da associação se.ilcrn de uma verdadeira competência em matéria de planejamento

111hano. Aprendem a utilizar linguagens e procedimentos técnicos eII 'referir a experiências e experimentações já aprovadas em outros11111 textos. Adquirem, assim, um conhecimento técnico. Informam-serunro aos especialistas que os ajudam a imaginar e a propor soluções.dl .rnativas, inspiradas em projetos de urbanismo' realizados em11111roslugares; se articulam com outras associações na França ou1111exterior para conhecer os efeitos perversos produzidos por certas"p 'rações de urbanismo. Um engenheiro de Ponts et ChausséesPpor exemplo, é um dos militantes e conselheiros pioneiros da asso-1rução. Professores da Escola Nacional Superior de Arquitetura deI nrix-Belleville organizam concursos para projetos de reabilitaçãodI) bairro com seus estudantes. Um arquiteto, membro ativo da"••sociação, acompanha toda a fase de redação dos projetos com o\tclier Parisien d'Urbanisme desde 1995. Gradualmente, alguns dosmilitantes efetivos adquirem um verdadeiro saber sobre os materiais,.I técnicas e os custos. Eles estão no campo da expertise da adminis-II lição municipal e desafiam seu monopólio.

Prefeitura desenvolve, desde o início, o discurso em torno da moder-nízação das moradias e serviços e do bem-estar social dos moradores.h sobre esta base que a Prefeitura monta, secretamente, o dossiê da/ AC, mobiliza suas forças políticas (visitas do prefeito de direita e111[.rcessões de notáveis no bairro) e tenta se articular com clientesIpromessas de indenizações, arranjos tácitos e garantias de realocaçãoli Ira alguns comerciantes). O bairro, segundo a Prefeitura, já estáI ondenado. A única solução radical, seria destruir e reconstruir. Lativllcvilleuse contra-ataca minimizando o estado de deterioração dobairro. Com o apoio financeiro de agências públicas - o FAs (Fundod~ Ação Social) e o Plan Urbain (Plano Urbano) - a associação11I1Ic,;aum concurso público que encabeça com a ajuda de sociólogos

I'onts et Chaussées: A École des POIltS Paris'Iech, criada em 1747 com o nome de ÉcoleRovalc des Ponts et Chaussées (Escola Real de Pontes e Calçadas), é uma "grande école",rum a vocação de formar os quadros da Engenharia Civil.

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e urbanistas. O comitê que é criado decide se dirigir a uma agênciade consultoria, a ACT, para obter um parecer sobre o estado materialdos imóveis, as atividades comerciais e a vida social do bairro. Essainiciativa é original: jamais uma associação de bairro se havia centradonesse campo. Como consequência, o relatório final avaliza as posi-ções de La Bellevilleuse e evidencia a ausência de uma investigaçãoséria por parte da Prefeitura. Essa jogada força a municipalidade afinanciar um estudo por dois organismos independentes, a SOFRESea Qualiconsult. Os resultados dessas pesquisas, com a certificação da"objetividade", são tornados públicos em reuniões. São peças cruciaisna dinâmica do enquadramento tjramingí, do contraenquadramentoe do reenquadramento, por meio dos quais os campos se formam,se afinam e criticam suas respectivas posições e estabelecem ostermos de sua oposição em público. As avaliações cifradas do Esta-do, apresentadas em estatísticas sobre o estado de deterioração dasconstruções, imóvel por imóvel, e da gama de despesas necessáriaspara a sua reabilitação, são comparadas. O debate público é limitadopelos estudos de viabilidade e de orçamento dos serviços técnicosela Cidade de Paris e pelas contra-avaliações feitas pela associação eseus conselhos técnicos. Essa multiplicidade de confrontações articulapontos de conflito. Os dados, avaliações e conclusões migram dosrelatórios de especialistas para as declarações midiáticas de ativistasou de políticos, para os argumentos de utilidade pública destinadosaos cidadãos-usuários, para os projetos de estudantes da Faculdadede Arquitetura e Urbanismo de Paris-Belleville e para as defesas dosadvogados perante o Tribunal Aclministrativo. A técnica permite ob-jetivar, mensurar e comparar as situações em deliberações públicas,quando se trata de decidir quais imóveis devem ser salvaguardadosno Bas-Belleville. Fornece também cânones de coordenação e detransação em uma escala muito fina. No horizonte dessa linguagemcomum e dessa problemática compartilhada, tornam-se possíveisajustes locais entre pontos de vista - mas corre-se também o risco deconfinar a crítica em uma camisa-de-força tecnocrática, eliminando,apriori, certas potencial idades não inscritas no repertório dos hábitose das crenças profissionais dos urbanistas.

Por outro lado, os porta-vozes da Bellevil/euse se apoiam no direito.O Code de l'Urbanisme (Código de Urbanismo), o Code des Com-munes (Código Comunal dos Municípios), aLoi d'Orientation de IaVille - LOV (Lei de Orientação da Cidade) e os diversos regulamentos

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li11Iliam um arcabouço normativo, por meio do qual os atores passam arstir publicamente e a inscrever suas ações. O direito é a linguagem

d.1 publicidade por excelência. Ele possibilita uma relação de equiva-1&'11 'ia entre situações e atores sociais e fixa regras e procedimentostlll ' balizam, previamente, o campo das ações e das interações. ElaI' Iorça a lógica deôntica do obrigatório, do proibido, do tolerado, do facultativo que regulam as atividades práticas, impondo seu111«ler de coação normativa. O direito é supostamente o mesmo paraIlIdos, garantindo-lhes as mesmas liberdades e as mesmas restrições.I !L' incorpora o traço das lutas anteriores, sob a forma de princípios01"igualdade e de justiça, de responsabilidade e de publicidade, que.10 levados a cabo pelas políticas de urbanização taménagement ur-",dll). Ele prescreve as prerrogativas dos "oficiais da coisa pública", limita seus raios de ação e suas margens de manobra; ele prevê,I""alizando a transgressão da separação entre os bens privados e osI••IlS públicos. O direito desenha os horizontes da espera e articular r campos da experiência, configurando uma identidade dos atores eI' -ngajamentos em determinadas intrigas. Ele comanda as regras doI'HfO c fornece o formato de coordenação entre os atores, destinando«luções a certos tipos de disputas e litígios.

111.'~ISO do nosso conflito urbano, leis e regulamentos são constan-I, mente acionados em oposição à Prefeitura. Trata-se de uma séried, .ódigos que, por sua vez, habilitam e restringem, constituindo um1i p -rtório de recursos de protesto e são onipresentes nas correspon=110-11'ias endereçadas aos representantes oficiais onde elas exercem uml'''pL'1ele advertir (rappel à l ordrev. Fornecem, ao mesmo tempo, op.tuo de fundo da ação pública, impondo que as reuniões de consulta"!lIHdar aconteçam publicamente e que seja redigido um programadi referência que sirva de base para as operações de reestruturação11I1I111a.As consequências práticas do direito são muito fortes. Ah-liberação do Conseil de Paris (Câmara de Vereadores de Paris),IIH' tinha instituído a ZAC Ramponeau-Belleville, é anulada pelol uhunal Administrativo por violação do artigo L 121-15 do Code des.nutuunes, que estabelece que "as sessões dos conselhos municipaislI!) públicas". Segundo as narrativas recolhidas, dezenas de pessoas'"1,1111impedidas pelos agentes de segurança do Hôtel de Ville'"I. assistir a uma reunião pública da Câmara. Logo após, todo o

I I I/{I«./!I" Vi/le é o local que abriga fisicamente as instituições municipais. Nesse caso. aI'iI'I,·il 11 1":1 de Paris e a Câmara de Vereadores.

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programa implementado pela Prefeitura acabou sendo derrubado.A decisão judicial, fundada no Direito, é irrevogâvel e irretratável.De certa forma, a disputa da ZAC foi encerrada pela força da coisajulgada; porém, o conflito urbano prossegue, se desloca, se relançae se reconfigura em outras arenas públicas.

Essa situação é paradoxal. As técnicas econômicas, arquitetônicas ouurbanísticas são garantias de eficácia, de funcionalidade e de rentabili-dade; as regras do direito implementam um universo comum e permitemrealizar um mínimo de justiça social e de democracia política. O fatode que os membros de La Bellevilleuse e de muitas outras associaçõesde bairro recorrem ao direito como uma arma de luta e um quadro dereferência é coerente com uma dinâmica de multiplicação de disposi-tivos, que, por sua vez, tentam incorporar os cidadãos comuns - senãonos processos de decisão, ao menos nos processos de proposta e dediscussão. Esse movimento se intensifica após se tomar conhecimentodas esperanças suscitadas pelas ternáticas da democracia deliberativae participativa - que, por sua vez, se tornam uma espécie de gadgetnecessário (objeto engenhoso, mas de eficácia duvidosa) e que faz parte,doravante, da panóplia das técnicas de governo. Alguns representantesde associação se constituem como especialistas das leis e regulamentose apontam todos os vícios da forma nas operações do planejamentourbano, mostrando-se, às vezes, mais perfeccionistas que os própriosprofissionais e preenchendo inteiramente a sua função de "parceirosdo município" nas reuniões, por exemplo. Além dos usos do direitonesse jogo de Go (jogo chinês de estratégia) que caracteriza a políticaurbana, eles acabam criando hábitos de cooperação na produção dossaberes, na concepção das reformas, na elaboração de suas modalidadese no prosseguimento de suas realizações. Não são mais tanto as regrasdo direito, senão os usos locais e as convenções práticas que se cons-tituem, por meio dessa repartição de competências e de prerrogativasentre cidadãos, políticos e especialistas. Paradoxalmente, com o efeitode limitar o campo das probabilidades às oportunidades circunscritastécnica e juridicamente, o "realismo" também pode acabar com a imagi-nação. E neste campo, ocupado ao longo do tempo pelos especialistas, odesgaste da ação associativa corre o risco de jogar contra seus própriosinteresses. A menor redução de intensidade no engajamento conduz aum retorno às mais clássicas das soluções ...

Repertórios de argumentação: lugares comuns e táticas retóricas

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1\ ludo dos idiomas públicos da tecnologia e do direito e dos dis-I' uivos institucionais por meio dos quais eles estão encarnadosiiuplcrnentados, outros tipos de repertórios de argumentação são

1 .Idos pelos membros de La Bellevilleuse." nas situações públicas,11" intcrações face a face (face to face interactions) e nos encontros11 11 .ulos (focused gatheringsi/" Os argumentos fluem: em conversas.uuliunas, mais ou menos sofisticadas; em disputas com funcioná-

1111 municipais (garis, agendas de saúde, assistentes sociais) quepnlham boatos; durante as Jornadas Portas Abertas, em que os

IIII'Itas recebem os visitantes do bairro (anualmente, no início do1\11 de maio). Esses argumentos são aprimorados nas assembleiasI r moradores do bairro, na intenção de informá-Ios sobre o estado1.1 negociações, em correspondências enviadas aos representantes1.1 I rcfeitura ou em entrevistas concedidas aos jornalistas e aos11\ lólogos. Esses argumentos não são apenas racionais e razoáveis,udcrcçados a um tribunal da razão pública. São argumentos que seI oram sobre todas as outras formas de engajamento, inclusive nos

I urmcs de familiaridade, e que têm uma textura emocional, afetiva,1\1particular na formulação elos sentimentos morais. Tais argumentos111 direcionados tanto aos moradores, vizinhos, funcionários públi-11• representantes políticos, juizes, jornalistas, quanto aos cidadãosIll11UnSsendo, inclusive, modulados conforme o destinatário. Os

1111 mbros da associação atribuem causas para situações e motivosI ,11i! as ações; distribuem papéis de responsáveis, juízes e vítimas,nrcnando o conflito como drama público;" e fornecem de um só«lpc as razões convincentes para que as pessoas ajam e legitimemI ' I scolhas estratégicas ela associação.

111 Bellevilleuse interpela os poderes públicos e a opinião pública11Istificamuitas de suas reivindicações por princípios gerais que

u.mxccndem os limites do bairro. Defende o direito à moradia para1 mais desfavorecidos, evocando, assim, princípios de justiça

1\ rul. Critica a lógica do lucro de algumas empresas fundiárias,1111a incitam a buscar a solução mais rentável em vez de a maisI 'lI:ível. Defende um remanejamento territorial mais harmonioso,1111lugar dos projetos agressivos de destruição e reconstrução, fa-l.uulo de uma "micro-cirurgia do território". Invoca a salvaguarda

I .1111': l.aluye (2002),I 11111mnu 1 1963).I ,1I~11l'ld(1981).

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do patrimônio arquitetural ou histórico sem, no entanto, se limitara um conservadorismo museográfico. Defende a preservação decertas formas bellevilloises de apropriação do espaço e de atividadepluri-econômica e apresenta o bairro como um laboratório natural demescla social tmixité sociale) e de coabitação intercultural " - temasda ação pública com grande legitimidade. Associa o bairro ao mitoda "village dans ta ville" ("aldeia na cidade"), retomando a pesquisada consultoria que diagnosticava um lugar de "interconhecimentogeneralizado", propício à convivência, à solidariedade e à segurança- sem, no entanto, se fechar em um "entre-si comunitário". Enfim,valendo-se de um discurso democrático, a associação reivindica umamaior participação dos moradores nas decisões do poder municipal ecritica a "autocracia" de alguns especialistas e políticos - sem incorrer,entretanto, em uma oposição à racional idade técnica e administrativae à representação política. Esses argumentos de La Bellevilleuse re-forçam a legitimidade da causa defendida, delimitam o território dobairro (as fronteiras do plano administrativo acabam por circunscre-ver um lugar de investimento afetivo), conferem-lhe uma identidade(categorizando-o como popular e multicultural e como um lugaremblemático de Paris), fortalecem a unidade do coletivo associativo(dando-lhe uma identidade narrativa e agregando novos simpatizan-tes), lançam o descrédito sobre os adversários (fazendo pesar umacarga de suspeita sobre sua competência ou sua honestidade). Essesargumentos se contrapõem à intervenção da Prefeitura de Paris e dasubprefeitura local da XX Região Administrativa, que se esforça paradifundir a visão de que os militantes e os simpatizantes de La Belle-villeuse são "baba cool atrasados" ,33 "não-conformistas pós-1968",mais preocupados em "salvar as velhas pedras" do que no "bem-estardo povo", estigmatizando-os como "privilegiados de classe média"que não dão importância à "modernização" das moradias precáriasnas quais estão confinadas as pessoas carentes ("gens de peu").

Uma arena pública surge como um lugar de produção, de circulação ede troca de argumentos. Mas os atores não inventam a partir do zeroas justificações que eles dirigem ao seu público. Eles as buscam em

" o principio de "mixité sociale" ("mistura social" ou "mescla social") é central nas políticasurbanas na França. Ele é uma expressão do principio de igualdade republicana, contraos efeitos perversos de uma "discriminação espacial" ou de uma "balcanização étnica ecomunitária".

33 O termo baba ("papai", em Hindi) coa/ ("calmo", em Inglês) é uma gíria francesa e equivaleao velho hippie.

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I r'!1 .rtórios de argumentação, típicos e recorrentes, identificáveis em'1IIII'ussituações de luta urbana. Por outro lado, eles também criam, dia'1)10S dia, os seus próprios argumentos, segundo os pontos estratégicos,I . pecfficos da situação local de Belleville. Retórica, direito e técnica:1Iltlosesses dispositivos contribuem para fazer emergir o bem público,I'r'lmitindo aos atores que coordenem e se ajustem em ambientes,di' ucordo com as convenções. Esses dispositivos equipam os atores, IIIl1modos convenientes de ver, de dizer e de fazer, e configuramli situações às quais eles são confrontados. A referência à técnica.uquitetônica ou urbanística ou ao direito das coletividades locais1.11. surgir mundos cognitivos e normativos, destacando alguns traços1'~'ltinentes e atenuando outros; delimita um campo dos repertóriospossíveis e dos plausíveis e especifica relações entre querer, dever eI'llder. Em contrapartida, essa referência somente é compatível com, r lias competências de explicação e de interpretação, de julgamentoli' ação. Ela prepara um sentido de verdade e de justiça, estabelece

pontos de disputa e critérios de compromisso, formata conflitos de.lefinição das situações e fornece ferramentas para a sua resolução.

\ rena, cenas públicas e situações de prova

•.•perspectivas do pragmatismo nas Ciências Sociais rompem com.t. hipóteses fortes em matéria de determinação estrutural das ações,. Ias atividades sociais. Uma arena pública é um emaranhado dedispositivos teatrais, em que atores com competências distintas.rprcsentam performances destinadas a públicos distintos, ainda queIllHisou menos concorrentes. Essa arena pública se decompõe como11111<1 constelação de palcos que se sobrepõem uns aos outros, que se.ihrcm sobre bastidores com geometria variável, nos quais os graus deI'lIhlicidade são determinados pelo enquadramento dos atores e cujos.uulitórios mudam, dependendo das atuações. Uma arena pública nãoI 11111 espaço público centrado, isotrópico e homogêneo: ela se desen-1111u, como já dissemos, em torno de situações de prova. Encontra seus''1)(iios em cenas públicas mais ou menos institucionalizadas, algumasmuito diretamente ligadas a dispositivos materiais e convencionaisI , entes, sancionados pelo Estado e codificados pelo direito, outras

, Ili 11 contornos menos claramente definidos, apoiando-se em diversos.11. positivos institucionais sem serem redutíveis a nenhum deles. OI entro de gravidade de um caso (affaire), de um escândalo ou de uma, 1!l1lrovérsia, de um processo ou de uma eleição, estará, assim.rmais

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próximo do caso jornalístico, do debate científico, dos processosjudiciários ou das ações políticas, mesmo se outros de seus polos deação e de paixão possam ser encontrados em outras cenas. Cada cenatem suas formas institucionais, seus investimentos em capital e suasdistribuições de poder; suas regras de jogo mais ou menos restritivas,suas rotinas e seus rituais práticos; seus jogos de cena, seus estatutos,suas hierarquias de poder e de autoridade; seus tickets de entrada, suaslinguagens especializadas, suas redes de inter-relações e estruturas deoportunidade; suas intrigas próprias, seus instrumentos de objetivaçãoe seus modos de publicização, seus repertórios de categorização ede argumentação, seus modelos de raciocínio e de deliberação; seusdispositivos de administração da prova e seus circuitos de pressão ede decisão. Mas a arena pública se configura temporalmente, sem quese possa delimitar fronteiras em nenhuma de suas cenas. Ao contrário,a situação de prova coloca as cenas em relação umas com as outras.Os graus de mobilização dos múltiplos atores e de ressonância juntoa vários públicos estão à altura do sucesso da publicização de umproblema. Uma arena pública se desenvolve conquistando apoios efazendo pontes entre as diferentes cenas públicas.

Se tivéssemos de desenhar uma topologia das cenas públicas emtorno do conflito urbano do Baixo Belleville, poderíamos distinguir:

• A cena do poder local e o lugar das interações entre os prefeitosde Paris e da XX Região Administrativa, o Conselho Municipal eos representantes do Estado, particularmente o préfet - na Fran-ça, autoridade responsável por um departamento e pelos Fundosde Ação Social.

• A cena das agências administrativas e outros organismos seme-lhantes agrega o Ateliê Parisiense de Urbanismo (Arua), a Dire-ção do Desenvolvimento Urbano (Directioll de l'AménagementUrbain - DAu), a Direção da Habitação (Direction du Logementet de l'Habitat - DLH), assim como a Agência Pública de Desen-volvimento e de Construção (Office Public d'Aménagement et deConstruction - OPAC),a Agência Nacional de Melhoramento Ha-bitacional (Agence Nationale pour l'Amelioration de I'Habitat- ANAH), a Caixa dos Depósitos e Consignações (Caisse desDépôts et Consignations) que administra os Fundos de Solidarie-dade Habitational (Fonds Solidarité Habitat - FSH), e a Socieda-de de Economia Mista (Société d'Économie Mixte), empresa de

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desenvolvimento urbano presidida pelo Prefeito da XX RegiãoAli ministrativa.A cena dos meios de comunicação de massa (mass medias) con-cerne, sobretudo, à imprensa nacional: os jornais Le Parisien Li-bér«, Libération e Le Monde, mas também aos jornais locais, taiscomo a imprensa municipal e a imprensa associativa (Quartierslihres); e, igualmente, às emissoras de rádio (France Inter, Fran-c'c' Culturei e de televisão (TV Bocal), em que são apresentadosdebates contraditórios entre porta-vozes de cada grupo.A cena do tribunal administrativo, no qual os litígios são codifi-.ados em termos jurídicos e judiciários e no qual La Bellevilleu-se e a Prefeitura de Paris se confrontaram pela atuações de seusudvogados. É o lugar crucial de anulação da primeira reunião denegociação, da Zone d'Aménagement Concerté e da licença parali demolição de La Forge. A temporal idade das decisões judiciá-rias dá ritmo ao desdobramento das fases do conflito urbano.A cena da tribuna política abriga a oposição entre os represen-tantes dos partidos, que seguem uma ou outra linha argumentati-va e programática, e que tomam posições no Conselho de Paris,na mídia ou nas manifestações públicas. Certos políticos, comoos do Partido Socialista e da direita, tentaram neutralizar ou ins-trumentalizar as associações nesse espaço; outros, como os co-munistas e os ambientalistas, se mostraram mais receptivos àsreivindicações de La Bellevilleuse.A cena das redes associativas comporta instâncias como a Coor-denação e Ligação das Associações de Bairro (Cooordination etl.iaison des Associations de Quartier - CLAQ), o Comitê Cató-lico contra a Fome e pelo Desenvolvimento (Comité Catholiquecontre la Faim et pour le Développement - CCFD), a Fundação/vhbé Pierre e dezenas de associações e de sindicatos, reunidas naAção Coordenada para um Desenvolvimento Urbano Negociado(!\ction Coordonnée pour un Développement Urbain ConcertéACDUC). Ou, ainda, mais modestamente, a par desses gru-

pos, muitas vezes, virtuais ou ad hoc, La Bellevilleuse mantémrelações mais orgânicas com Belleville Pluriel (Bar Floréal, LaForge, Ateliers Artistes de Belleville) ou mais distantes com ollerry-Zêbre (cinema e teatro)." Também nesse caso, não se deveimaginar um sujeito coletivo, nem mesmo uma plataforma uni-

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ficada, mas sim descrever laços de configuração variável, maisou menos intensa, dependendo das circunstâncias. São relaçõesora bilaterais, ora multilaterais, baseadas no fluxo de associaçõesentre as pessoas e dando lugar a compromissos comuns firmadosem público ou a engajamentos comuns em eventos públicos.

• A cena da rua é, na verdade, a mais complicada de se descrever,em razão de sua multiplicidade, dispersão e fugacidade além,ocasionalmente, da experiência vivida pelos moradores. De todomodo, a rua se articula por meio de instituições locais: associa-ções de comerciantes, de esportes e de lazer; igrejas, sinagogas etemplos; escolas maternais e primárias, que são também pontosde encontro. Ela é o lugar das interações face a face - os morado-rcs interpelam o Prefeito de Paris em visita à rua Ramponeau - eo lugar de grupos focais - os moradores trazem suas cadeiras eorganizam um sit-in na frente da prefeitura antes da terceira reu-nião de negociação.

Esta topologia da~ cenas públicas não se confunde com a topologia dasarenas públicas. E apenas uma forma de identificação elos lugares emque se podem ancorar algumas situações de prova. Essas situações deprova podem ser de diferentes tipos: por exemplo, de experimentação(a reabilitação do prédio número 4 da rua Lémon, como exemplode que tal operação privada é financeiramente viável); de consultae deliberação (as reuniões públicas na sede da Prefeitura nas quaisse opõem, ele um lado, discursos de políticos e ele especialistas e, deoutro laelo, discursos de associados e de moradores); de controvérsia(a avaliação do estado dos prédios por meio dos mapas dos serviçostécnicos, dos questionários entregues de porta em porta por voluntáriose dos inquéritos realizados pelas agências de consultoriaAct e Quali-consult); ou, simplesmente, de eleição (as municipais e as lezislativas_ b

sao momentos de confrontação e de avaliação das forças presentes eseus resultados induzem mudanças de aliança e de estratégia).

Cada uma dessas situações de prova organiza a experiência dos seusprotagonistas. Encontra sua unidade nas atividades de conexão, deligação ou de junção de uma cena com outra e de uma cena com osseus bastidores, por via dos atores em seu trabalho de mobilização,de problematização, de argumentação ou de experimentação. Aí, oproblen:a público ganha impulso e alcance. Ele cresce, e conquistageneralidade, objetividade e legitimidade. Atinge frações de públicos,cada vez mais numerosas e variadas. Cada situação de prova envolve

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11 pluralidade de atores, de toda categoria e dimensão, que se cons-f 111 ti partir da circulação de toda espécie de objetos, de todo tipo1111stões, em toda espécie de contextos. Mesmo se a extensão,

I nmu e o conteúdo de suas ações são parcialmente determinadasI (li estatuto jurídico, seu potencial financeiro ou sua capacidade1111'11, esses atores não cessam de ser redefinidos e renegociadosl.muo da prova. Além disso, falar em arena pública não implica" Jld 'I"que os atores individuais, coletivos e institucionais recorramlusivumente à linguagem do interesse geral e se curvem dianteuma racionalidade deliberativa, jurídica e técnica. Determinadas»uiizações ganham um peso público obtendo acesso à mídia por111da comunicação publicitária. As empresas públicas e os serviços

lhlrcox adotam os métodos de gestão privada, alinham as técnicas"( xtão governamental municipal sobre aquelas do mercado, trans-uuundo os funcionários em vendedores e os usuários em clientes doI It.:0público. As associações conquistam sua representatividade

11 "pôs dia, retribuindo os serviços aos cidadãos comuns, difundin-, ruformações para o público-alvo e denunciando as decisões da,Ittica urbana da cidade. Os escritórios de especialistas tbureauxf vpertise) são convocados pelo poder público para produzir diag-" ucos sobre o estado dos prédios e para esboçar soluções técnicas,

.rgências administrativas estabelecem critérios de racional idade.I,' legitimidade, em que se misturam a defesa do interesse geralIIfr'/'(~1 général) e as lógicas corporativas. Sociedades de economia

111 Ia (sociétés d'économie mixtes" são investidas do projeto deuh.inização no quadro dos dispositivos técnico-jurídicos fixados11111 riorrnente. As convenções são, frequentemente, o resultado,1I,lIlIedas circunstâncias, das negociações que articulam interesses11\ ndos e conformam constelações de microdisputas, microarranjos1111 -rocompromissos, nem sempre tendo a referida universalização,.l lu»: c de validade restrita, traduzindo desnivelamentos e asperezas

I'lIlprias do ambiente local, físico e social.

vituações de prova se desenredam quando a natureza dos proble-111,1 • dos conflitos e das alianças está mais ou menos estabilizado e1'1,1I1do se estabelece uma rotinização dos procedimentos de represen-

1.11 10, de negociação, de mediação e de arbitragem c, paralelamente,

1I111'dades de economia mista (sociérés d'économie mixte; são sociedades anônimas em'1'11'o capital é majoritariamente gerido por uma ou várias pessoas públicas: o Estado. uma,1Ih'tividacie territorial ou qualquer estabelecimento público.

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uma rotinização das operações de descrição, de categorização, deavaliação e de projeto. A representatividade e a legitimidade dos pro-tagonistas são, ao final das contas, aprovadas, medidas e sancionadaspor suas confrontações sucessivas, desde as reuniões públicas aosprocessos judiciais, dos debates midiáticos aos escrutínios eleitorais.Assim, as arenas públicas operam uma transformação de todos oselementos que as compõem.

A associação como organização compósita

Ultima proposta: La Bellevilleuse é uma "organização cornpósita"."O trabalho de desintricar regimes de racional idade e de legitimidadeque orientam ações e interações pode se inspirar de modo fecundona sociologia das cités - doméstica, cívica, da opinião, mercantil,industrial e da inspiração." A "anarquia organizada" que configura oque se chamaria, no jargão técnico, de "campo inter-organizacional",caracteriza também as associações, reconhecidas como "organizaçõescornpósitas", em busca de fórmulas de coordenação entre as pessoase de ajuste com as coisas. A confrontação incerta entre vários mun-dos" conduz a "situações críticas" e requer o recurso a argumentosde justificação e a procedimentos de negociação, por meio dos quaisos atores reduzem suas diferenças, moderam seus litígios e disputas,encontram formas viáveis de articulação de suas experiências e deorganização de suas atividades. A associação pode ser analisada,então, como um "dispositivo de compromisso" destinado a tornarcompatíveis várias ordens de grandeza e a estabelecer acordos locaisem torno de princípios ou de procedimentos comuns, com o intuitode configurar uma experiência coletiva e uma ação pública.

Uma organização associativa se consolida reunindo diversos contex-tos de experiência e de atividade, pontos de perspectiva e estratos decompetências que ela coloca em sinergia. Ela se constitui por meio datroca de conhecimentos e de informações, na formulação de denúnciase de reivindicações coletivas; por intermédio da co-produção de umprojeto coletivo, ao mesmo tempo tecnicamente viável e válido doponto de vista normativo; e, ainda, por meio das atividades de circu-lação das notícias relativas ao andamento dos casos sob deliberação.Em cada uma das situações problemáticas com as quais a associação é

36 Thévenot (1993).37 Boltanski e Thévenot (1991).38 Dodier (1991).

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ourrontada, colocam-se as perguntas: o que seria mais apropriado ao111 111 público e o que se deveria fazer, estratégica e taticamente, paradCllllçá-lo? Sob a mise en scêne da associação como representaçãoIIIHIe própria, por meio de sua identidade jurídica e de sua locali-,1\<10 geográfica, por meio das performances dos seus porta-vozes

11.1 reuniões públicas, do uso do pronome nós e de seu logotipo11,1 redação de cartas e de panfletos, o personagem "associação" seI .msolida, resultante de uma série de ações conjuntas. Tipificando,poderíamos dizer que os membros de La Bellevilleuse atuam em trêsVI.lIldesdireções: a engenharia urbana e a pesquisa social em direçãoI' instâncias técnico-administrativas, a estratégia política diante dos1"II(ticoslocais e representantes do Estado, e ainda o trabalho de ajuda,d. informação e de formação dos moradores do bairro. E, partindo deIIIIIlIanálise situacional, poderíamos ver os membros de La Bellevil-lcu «: atuar segundo diversos regimes de engajamento, remetendo-se1 di lcrentes mundos, concretamente imbricados entre si.

A associação funciona como uma "agência de trabalho social".Ela realiza tarefas cotidianas de conscientização dos moradoressobre seus direitos, em sua maioria pessoas com baixo grau deiscolaridade e com parcos recursos materiais, frequentementescmianalfabetos. Ela ajuda a regularizar os pedidos de carte deséjour'? e os contratos de aluguel; redige dossiês de pedidos de/lPM - "ajuda personalizada à moradia" (aide personnalisée1/11 logement), de RMI - "renda mínima de inserção" (revenuminimum d'insertioni ou de HLM - "moradia com aluguel mo-derado" (habitation à loyer modéré). A associação também rece-be um escrivão público que cuida das correspondências pessoaise ajuda os moradores a atualizar, classificar e arrumar seus docu-mentos administrativos. Os plantonistas estabelecem relações deconfiança, se tornam confidentes de problemas pessoais e árbi-íros em conflitos interpessoais (cité doméstica). Eles proporcio-num o acesso dos moradores mais desfavorecidos a serviços dosquais estavam excluídos por não dominarem as competências deusuários das agências sociais; resolvem situações insolúveis doponto de vista da lógica administrativa, baseados nos princípioscívicos e igualitários, graças ao tratamento casuístico e personali-zudo das situações que lhes são dirigidas. Essa atividade garante

I '/11" de séjour: autorização emitida pelo governo francês para os estrangeiros morarem e1~j\hlllharel11na França.

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a maior parte de seus recursos, visto que o seu bom desempenhoé a condição do financiamento realizado pela Fundação AbbéPierre e pelo Comitê para o Desenvolvimento e Contra a Fome.

2 - A associação é, além disso, uma organização que atua no mundopolítico. Ela deve formatar seus pedidos respeitando repertóriosde categorização, de argumentação, de motivação e de justifica-ção, em consonância com certa gramática em vigor da crítica, dadenúncia e da reivindicação. Ela não pode se limitar ao registro dotestemunho vivenciado, da compaixão ou da indignação. Deve,para ser inteligível aos políticos e técnicos dos poderes públicos,produzir dados e análises com métodos de mensuração e de ava-liação aceitáveis e ser regida por princípios de eficácia, raciona-lidade e previsibilidade (cité industrial). Deve também demons-trar que aceita as regulamentações dos serviços públicos, buscaobjetivos de interesse geral, respeita os circuitos hierárquicos dedecisão e uma divisão funcional do trabalho e que não pretendesubstituir as instâncias oficiais para realizar ações públicas (citéadministrativa). Além disso, deve se submeter a procedimentosde informação, de deliberação e de decisão os mais democráti-cos possíveis, tomando conta dos debates entre os membros e ospermanentes da associação (cité cívica), sem incidir no paradoxode que "maior eficácia e credibilidade implica em maior especia-lização técnica que, por sua vez, implica em menor participaçãopopular". A exigência democrática se choca com a imposição dacxpertise. Quanto mais a associação se envolve com reivindica-ções da política urbana, mais ela deve se especializar nos deta-lhes de pontos técnicos árduos. Portanto, menos será ela mesmaque dará conta do que faz e menos a associação vai fundar sualegitimidade a partir da participação das pessoas do bairro. Ela setransforma, então, em uma agência técnica.

3 - A associação desenvolve, enfim, um verdadeiro trabalho de en-genharia urbana e de pesquisa social. Torna-se uma espécie deagência de desenvolvimento local, de cartografia dos problemasa serem resolvidos. Procura soluções técnicas, jurídicas e econô-micas para eles e, gradativamente, acumula informações, com-petências e relações que lhe permitem, ao mesmo tempo, se rela-cionar com as particularidades concretas do bairro e se abrir parahorizontes mais amplos de ação pública. Acaba por ser investidade missões de serviço público pela sociedade de economia mistado leste parisiense. Por outro lado, a associação é também uma

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"p ~Ilcia de pesquisa social, na medida em que, como entendiam.uuores pragmatistas como Mead e Dewey, reúne dados sobre ost usos de indivíduos ou de famílias em situação difícil, mobilizauulrax instâncias organizacionais e institucionais para alertá-las1111para cooperar com elas. Permanece orientada por exigênciasti justiça social que consubstanciam suas atividades cotidianas,cju em matéria de previdência social aos mais pobres, de con-II iuração do problema do saturnismo ou do remanejamento noIn .ul de inquilinos sem contratos de locação.

ONCLUSÃO

li' pequeno estudo de caso nos permite, ao final do percurso,u« trur algumas perspectivas de análise. Vimos como os padrões dau.ihilizaçâo dos recursos materiais e das estruturas de oportunida-I políticas, das organizações de ação coletiva ou dos quadros de\111ração estratégica - que são a regra na sociologia da ação coletiva(' revelam limitados para pensar a questão propriamente política

1,1'motivos do engajamento público; da emergência dos problemaspuhlicos: da constituição dos bens públicos e da configuração dasli. IIns públicas. Do mesmo modo, a arena pública que se forma emI 11110desse conflito urbano tem pouca relação com os ideais norma-I1 os da democracia deliberativa: são raros os foros eledebate em que

trocam argumentos racionais, pois, em geral, a palavra pública éI ~ssivamente irnpositiva e a discussão frequentemente desconec-

I "In da pauta de decisão. As operações de testemunho e de medida," Indagação e de experimentação, de dramatização e de narração-11111I<;õesde prova em ambientes fortemente constrangedores - têm""11'o a ver com a formação de uma vontade pública sem distorção,«uhuda pelos filósofos. É melhor partir das proposições de Dewey1ti I \ a democracia como associação, investigação e experimentação.tlt'[iva, em contextos de interação, de comunicação e de poder. Equeremos nos centrar em situações discursivas, é melhor recorrer

1II11liletnografia das conversas comuns e dos debates públicos."

111111unálise pragmatista das atividades microcívicas e micropolíticas111uma arena pública é, assim, proposta em substituição à análiseIlnté~ica num mercado político ou à análise argurnentativa numakl:t dcliberativa. A política local não se deixa compreender senão no

'lklf'\'I' (~()09); Eliasoph (1998).

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seu local concreto, com seus parâmetros sociais, espaciais e temporais.Como uma história que se desdobra em seus episódios e peripécias.seus jogos de alianças e frentes de conflito, seus golpes de teatro e seusfracassos. Somente uma abordagem qualitativa que alie observação direta, entrevista não dirigida e análise documental permite compreendercomo micropúblicos emergem e encontram lugar em conflitos urbanos.Ou seja: como associações nascem para o público.

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