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Catar feijão (João Cabral de Melo Neto) 1. Catar feijão se limita com escrever: jogam-se os grãos na água do alguidar e as palavras na da folha de papel; e depois joga-se fora o que boiar. Certo, toda palavra boiará no papel, água congelada, por chumbo seu verbo: pois para catar feijão, soprar nele, e jogar fora o leve e oco, palha e eco. 2. Ora, nesse catar feijão, entra um risco: o de entre os grãos pesados entre um grão qualquer, pedra ou indigesto, um grão imastigável, de quebrar dente. Certo não, quanto ao catar palavras: a pedra dá à frase seu grão mais vivo: obstrui a leitura fluviante, flutual, açula a atenção, isca-a com o risco. * Se limitar - Consistir unicamente; não passar; restringir-se, cingir-se, circunscrever-se (Aurélio). * Alguidar - Vaso de barro, metal, material plástico etc., cuja borda tem diâmetro muito maior que o fundo; usado em tarefas domésticas (Houaiss). A Procura da Poesia (Carlos Drummond de Andrade) Não faças versos sobre acontecimentos. Não há criação nem morte perante a poesia Diante dela, a vida é um sol estático não aquece nem ilumina

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      Catar feijão (João Cabral de Melo Neto)

      1.       Catar feijão se limita com escrever:       jogam-se os grãos na água do alguidar       e as palavras na da folha de papel;       e depois joga-se fora o que boiar.       Certo, toda palavra boiará no papel,       água congelada, por chumbo seu verbo:       pois para catar feijão, soprar nele,       e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

      2.       Ora, nesse catar feijão, entra um risco:       o de entre os grãos pesados entre       um grão qualquer, pedra ou indigesto,       um grão imastigável, de quebrar dente.       Certo não, quanto ao catar palavras:       a pedra dá à frase seu grão mais vivo:       obstrui a leitura fluviante, flutual,       açula a atenção, isca-a com o risco.

* Se limitar - Consistir unicamente; não passar; restringir-se, cingir-se, circunscrever-se (Aurélio).

* Alguidar - Vaso de barro, metal, material plástico etc., cuja borda tem diâmetro muito maior que o fundo; usado em tarefas domésticas (Houaiss).

A Procura da Poesia (Carlos Drummond de Andrade)

Não faças versos sobre acontecimentos. Não há criação nem morte perante a poesia Diante dela, a vida é um sol estático não aquece nem ilumina As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.

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Não faças poesia com o corpo, esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica. Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro. são indiferentes Nem me reveles teus sentimentos, que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem. O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz. O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.

Não é música ouvida de passagem: rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma O canto não é a natureza nem os homens em sociedade. Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam

A poesia (não tires poesia das coisas) elide sujeito e objeto

Não dramatizes, não invoques, não indagues. Não percas tempo em mentir Não te aborreças Teu iate de marfim, teu sapato de diamante, vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família. desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas tua sepultada e merencória infância Não osciles entre o espelho e a memória em dissipação Que se dissipou, não era poesia Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

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Estão paralisados, mas não há desespero há calma e frescura na superfície intata Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam. Espera que cada um se realize e consuma com seu poder de palavra e seu poder de silêncio

Não forces o poema a desprender-se do limbo. Não colhas no chão o poema que se perdeu. Não adules o poema. Aceita-o. como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta pobre ou terrível, que lhe deres: Touxeste a chave?

Repara: ermas de melodia e conceito, elas se refugiaram na noite, as palavras. Ainda úmida e impregnadas de sono, rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

Os Ombros Suportam o Mundo (Carlos Drummond de Andrade)

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. Tempo de absoluta depuração.Tempo em que não se diz mais: meu amor.Porque o amor resultou inútil.E os olhos não choram.E as mãos tecem apenas o rude trabalho.E o coração está seco.

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Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.Ficaste sozinho, a luz apagou-se,mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.És todo certeza, já não sabes sofrer.E nada esperas de teus amigos. Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?Teus ombros suportam o mundoe ele não pesa mais que a mão de uma criança.As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifíciosprovam apenas que a vida prosseguee nem todos se libertaram ainda.Alguns, achando bárbaro o espetáculoprefeririam (os delicados) morrer.Chegou um tempo em que não adianta morrer.Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.A vida apenas, sem mistificação.

Mãos Dadas (Carlos Drummond de Andrade)

Não serei o poeta de um mundo caduco.Também não cantarei o mundo futuro.Estou preso à vida e olho meus companheirosEstão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.Entre eles, considere a enorme realidade.O presente é tão grande, não nos afastemos.Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.Não serei o cantor de uma mulher, de uma história.Não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela.Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida.Não fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins.O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.

José (Carlos Drummond de Andrade)

E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou,

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e agora, José? e agora, você? você que é sem nome, que zomba dos outros, você que faz versos, que ama, protesta? e agora, José?

Está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho, já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode, a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio, não veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou, e agora, José?

E agora, José? Sua doce palavra, seu instante de febre, sua gula e jejum, sua biblioteca, sua lavra de ouro, seu terno de vidro, sua incoerência, seu ódio – e agora?

Com a chave na mão quer abrir a porta, não existe porta; quer morrer no mar, mas o mar secou; quer ir para Minas, Minas não há mais. José, e agora?

Se você gritasse,

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se você gemesse, se você tocasse a valsa vienense, se você dormisse, se você cansasse, se você morresse... Mas você não morre, você é duro, José!

Sozinho no escuro qual bicho-do-mato, sem teogonia, sem parede nua para se encostar, sem cavalo preto que fuja a galope, você marcha, José! José, para onde?