CASTRO, Eduardo Viveiros de - Posfácio de Arqueologia da violência

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O intempestivo, ainda

Os selvagens querem a multiplicação do múltiplo.P. Clastres

Reaprendendo a ler Clastres1

Arqueologia da violência, publicado originalmente em 180 sob o título Pesquisas de antropologia política, compreende textos escritos, em sua maioria, pouco antes da morte do autor, em 1. Ele forma um par na-tural com a coletânea publicada em 14, A sociedade contra o Estado. Se esta última possui uma maior unidade interna, e contém mais artigos ba-seados em experiência etnográfica direta, a presente coletânea documenta a fase intensamente criativa em que se achava Pierre Clastres quando do acidente em que perdeu a vida, aos 43 anos, em uma estrada das Céven-nes, no Maciço central francês. Os trabalhos aqui reunidos compõem, assim, um livro de transição, que projeta uma obra inacabada; transição e obra que cabe agora a seus leitores – especialmente, é claro, aos etnó-logos americanistas – completar e prolongar o melhor que soubermos.

Entre vários textos notáveis deste Arqueologia da violência, desta-cam-se, sem sombra de dúvida, os dois capítulos finais: o ensaio que dá

1. Este ensaio foi originalmente publicado como introdução à segunda edição em inglês de Archeology of Violence, dada à luz em 010 pela editora Semiotext(e), na Semiotext(e) Foreign Agent Series. Agradeço a Sylvère Lotringer não só o convite a escrevê-lo, como o entusiasmo generoso com que acolheu a proposta de tê-lo republicado em português. Entre outras diferenças, o texto ora apresentado se estende por algumas páginas a mais que a versão original. Meu objetivo continua a ser apenas o de chamar a atenção para a atualidade da obra de Clastres do ponto de vista de sua significação filosófica e política, isto é, para seu interesse geral, no melhor sentido da palavra. Por isso, as considerações feitas na longa seção final do ensaio, sobre a relação entre essa obra e os desenvolvimentos recentes da etnologia americanista, têm um valor meramente sinóptico.

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nome ao livro nesta edição e o artigo subsequente, o último que Clastres publicou em vida. Eles imprimem uma inflexão decisiva ao conceito que tornou seu autor célebre, a “sociedade-contra-o-Estado”. Retomando o problema clássico das relações entre a violência e a constituição do corpo político soberano, Clastres propõe nesses artigos uma relação funcional positiva entre a “guerra” (melhor dizendo, o estado metaestável de hos-tilidade virtual entre comunidades locais relativamente autônomas) e a intencionalidade coletiva que define ou constitui as chamadas sociedades primitivas – o espírito de suas leis, para falarmos como Montesquieu.2

* * *

A morte de Pierre Clastres foi a segunda perda precoce sofrida pela geração de antropólogos franceses formada na passagem dos anos 50 para os 60, um período de grande fermentação intelectual, na França como em outras partes do mundo, quando se lançaram as bases daquela brusca virada na sensibilidade político-cultural do Ocidente que veio a marcar os anos 60-0 com uma qualidade única – talvez as palavras “es-perança” e “alegria” sejam, ou fossem, as mais adequadas para defini-la. A neutralização dessa ruptura foi um dos objetivos principais da violenta contrarrevolução da direita que tomou de assalto o planeta desde então, imprimindo sua fisionomia ao mesmo tempo arrogante e ansiosa, brutal e desencantada, à história mundial das décadas seguintes. E assim vem sendo até hoje, mesmo que as coisas pareçam estar começando a querer mudar (aqui, toda cautela é pouca).

O primeiro da geração a partir foi Lucien Sebag, morto pelas pró-prias mãos em 165, para a imensa consternação de seus amigos (entre os quais Félix Guattari), seu professor Claude Lévi-Strauss e seu ana-lista Jacques Lacan. Os doze anos que separam a morte de Sebag e a de Clastres – nascidos no mesmo ano (134), ambos filósofos de formação, rompidos com o Partido Comunista após 156, convertidos à antropologia

2. L’Esprit des lois sauvages (Abensour [org.] 18) é o título de uma coleção de ensaios comemorativos do décimo aniversário da morte de Clastres.

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pela poderosa influência intelectual de Lévi-Strauss (que então se aproxi-mava do zênite) – talvez expliquem algo da diferença que suas respectivas obras mantêm com o estruturalismo. Sebag, originário da vibrante comu-nidade francófona de judeus tunisinos, era muito próximo do fundador da antropologia estrutural, que o tinha como seu melhor discípulo e provável sucessor. O estudo de Sebag (publicado postumamente em 11) sobre a mitologia cosmogônica dos Pueblo foi um dos materiais preparatórios para a vasta empresa de análise da mitologia ameríndia por Lévi-Strauss. O jovem etnólogo mantinha também um envolvimento intenso com a psicanálise. Um de seus raros trabalhos publicados em vida analisava os sonhos de Baipurangi, uma jovem do povo Aché-Guayaki, junto ao qual Sebag chegou a compartilhar com Clastres alguns períodos no campo,3 antes de se fixar entre os Ayoreo do Chaco, para uma pesquisa etnográ-fica que sua morte deixou por terminar. Além disso, Sebag foi um dos primeiros pensadores de sua geração a tentar aprofundar o significado filosófico e político do estruturalismo, com Marxisme et structuralisme (Sebag 164), um livro sofisticado teoricamente, que poderá voltar a sus-citar interesse à medida que a dinâmica intelectual do período começa a ser reavaliada em profundidade.4

Clastres tinha em comum com seu amigo a ambição de reler a filo-sofia social moderna à luz dos ensinamentos da antropologia de Lévi-Strauss; mas as semelhanças entre as respectivas inclinações paravam mais ou menos aí. A Sebag atraíam sobretudo o mito e o sonho, os dis-cursos da fabulação humana; já os temas preferenciais de seu colega eram o rito e o poder, os mecanismos de instituição do social, de abordagem à primeira vista mais difícil pela antropologia estrutural:

Não sou estruturalista, mas não tenho nada contra o estruturalismo; é que me ocupo, como etnólogo, de campos que, em minha opinião, não são do domínio de uma análise estrutural. (Clastres [15 ] 003: 35 )

3. Dessa convivência resultou um artigo conjunto sobre alguns costumes funerários dos Aché (Clastres & Sebag 163).4. Para um balanço da obra de Lucien Sebag, ver D’Onofrio (org.) 005.

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O autor de Arqueologia da violência se dedicou desde cedo a articular uma respeitosa mas implacável crítica interna ao estruturalismo, recusando-se a aderir à doxa positivista que começava a se acumular em volta da obra de Lévi-Strauss, e que a ia transformando, nas mãos de seus epígonos, em

“uma espécie de Juízo Final da Razão, capaz de neutralizar todas as ambigui-dades da História e do Pensamento” (Prado Jr. 18; Prefácio supra, p. 8). Ao mesmo tempo, Clastres manifestou durante toda a sua carreira uma hostilidade ainda mais implacável – e esta não exatamente respeitosa (ver o cap. 10 deste livro) – ao que chamava de “etnomarxismo” francês, isto é, os antropólogos que se empenhavam em enquadrar na dogmática do ma-terialismo histórico as “formações sociais pré-capitalistas”, em particular as sociedades de linhagem da África do Oeste.5

Assim, se Sebag escreveu um livro real intitulado Marxisme et struc-turalisme, Clastres deixou-nos, com A sociedade contra o Estado e Arqueo-logia da violência, o material para um livro possível que caberia intitular Nem marxismo, nem estruturalismo. O autor via no marxismo e no estrutu-ralismo uma mesma falha fundamental, oriunda do privilégio concedido por ambos à racionalidade econômica: a desvalorização da intencionali-dade política, que seria como que o verdadeiro princípio vital das cole-tividades humanas. A fundamentação metafísica do socius na produção,

5. Os etnomarxistas franceses eram, em sua grande maioria, africanistas de formação (além de bastante antipáticos a Lévi-Strauss). Isso é tão pouco acidental quanto a relação entre o etnoanarquismo de Clastres e sua especialização nas sociedades das Terras Baixas da América do Sul. As diferentes áreas etnogeográficas do mundo – seus diversos estilos ci-vilizacionais – possuem como que “valências” sociocosmológicas que as tornam mais ou menos afins a determinadas abordagens teóricas, sem se tornarem por isso meras hipóstases dessas teorias. Quando muito, é antes o contrário o que se passa, uma teoria antropológica geral sendo, frequentemente, pouco mais que uma redescrição abstrata e (re)estilizada de determinadas “teorias nativas”, isto é, de cosmopráticas histórica e culturalmente situadas.Observe-se, de passagem, que o fato de a sucessora designada (na prática) por Lévi-Strauss para sua posição no Collège de France ter sido Françoise Héritier, uma africanista próxima dos “etnomarxistas” – em vez de, especulemos, o Lucien Sebag de um outro mundo possí-vel –, explica em parte a trajetória algo apagada do pensamento levistraussiano dentro da antropologia francesa nas últimas duas décadas do século passado. A declarada lealdade teórica de Héritier a Lévi-Strauss nunca chegou a compensar sua invencível incompreensão do estruturalismo.

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com o marxismo, e na troca, com o estruturalismo, incapacitaria ambos a pensar o que havia de característico, ou melhor, de singular na socialidade primitiva, e que se localizava forçosamente nesse plano da intencionali-dade política. Clastres resumiu tal singularidade na fórmula “sociedade-contra-o-Estado”, expressão que designa uma forma de vida baseada na despotencialização simbólica e prática da representação coletiva, na ini-bição estrutural da tendência perene à conversão da autoridade, riqueza e prestígio em coerção, desigualdade e exploração, e em uma gestão das alianças interlocais guiada pelo imperativo estratégico de autonomia po-lítica do grupo local, que se reflete igualmente no plano do ethos pessoal, o indivíduo e o grupo primitivos sendo ambos feitos da mesma matéria múltipla e intratável, do mesmo espírito revesso e “inconstante”.6

* * *

O antimarxismo de Clastres era, pois, diverso de seu não estruturalismo. No materialismo histórico, ele não conseguia ver mais que um elogio etno cêntrico da produção como verdade da sociedade e do trabalho como essência da condição humana. Esse evolucionismo economicista se defrontaria, nas sociedades primitivas, com seu limite epistemológico abso luto, pois estas constituem “máquinas antiprodução” que contradi-zem todos os preceitos científico-metafísicos da economia política.7 Em lugar da economia política do controle – controle do trabalho produtivo dos jovens, pelos velhos; controle do trabalho reprodutivo das mulheres, pelos homens – que os etnomarxistas, na esteira de Engels, se compra-ziam em ver na raiz das sociedades rotuladas, com impecável lógica mí-tica, de “pré-capitalistas”, Clastres discernia, nas sociedades “primitivas”

6. Viveiros de Castro [13a] 00.7. Uma leitura da genial dissertação de Oswald de Andrade ([150] 10), “A crise da filo-sofia messiânica”, em paralelo com uma leitura dos artigos de Clastres constitui exercício do mais alto interesse para se pensar (n)o presente. Por essa conexão (“errática” mas nada aleatória) Oswald-Clastres passa uma corrente conceitual de imensa energia – antropoló-gica, lúdica, revolucionária – capaz de tirar do sério, e dos eixos, muito do que precisa ur-gentemente sê-lo.

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(adjetivo que remete a um outro mitema filosófico ocidental), um duplo contracontrole, ou metacontrole: o controle político da economia, por um lado – regime de suficiência subprodutiva, bloqueio da acumulação pela redistribuição forçada ou a dilapidação ritual –, e o controle social do político, por outro lado – separação entre chefia e poder, submissão do guerreiro ao imperativo suicida da glória. A sociedade primitiva como sistema imunológico: a mobilização guerreira a serviço da integridade sociológica, o controle da tentação do controle. Arqueologia da violência é um Contra Hobbes (Abensour 18b) – a guerra continua ali a se opor ao Estado, mas com essa diferença crucial que a socialidade está do lado da guerra, não do soberano, o qual aparece ao contrário como quase-na-tureza (Richir 18) –, mas é talvez mais ainda um Anti-Engels, um ma-nifesto contra o continuísmo necessitarista da História (Prado Jr., supra, p. 16).8 Clastres é o pensador da ruptura, do acidente, da contingência radical, do evento como “mau encontro”. Sob esse aspecto, ele se mostra profundamente levistraussiano.

Com efeito, é possível tomar a obra de Clastres como representando antes uma radicalização que uma rejeição do estruturalismo. É nela que um conceito fundamental de Lévi-Strauss, o de “sociedade fria” – forma da vida coletiva que, diferentemente daquela praticada pelas sociedades ditas “históricas”, tem a propriedade (ativa e positiva) de não refletir nem interiorizar sua historicidade empírica como condição transcendental –, encontra uma expressão determinada no plano da antropologia política. A sociedade primitiva de Clastres é a sociedade fria de Lévi-Strauss; a primeira é contra o Estado pelas mesmas razões que fazem a segunda ser contra a História. E em ambos os casos aquilo que elas procuram conju-rar ameaça constantemente invadi-las, do exterior, como irromper de seu próprio interior; este foi um problema que Clastres e, a seu modo, Lévi-

8. E, já que lembramos de Oswald uma vez, lembremos outra: “A ruptura histórica com o mundo matriarcal produziu-se quando o homem deixou de devorar o homem para fazê-lo seu escravo. Friedrich Engels assinala o fecundo progresso dialético que isso constitui para a humanidade ’’ (Andrade [150] 10: 104).

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Strauss jamais cessaram de se colocar.9 Além disso, se a guerra clastriana visa deslocar a troca estruturalista – este é o bordo de ataque do capítulo 11 do livro –, deve ser sublinhado que não pretende aboli-la. Ao contrá-rio, o autor reafirma a principialidade da troca enquanto vetor genérico de hominização (em sua encarnação prototípica como “proibição do in-cesto”), incapaz por isso mesmo, entretanto, de dar conta da singulari-dade dessa forma que Clastres chamou “sociedade primitiva”.

Mas eis que essa forma era, para o autor, o objeto por excelência da antropologia ou da etnologia, palavra que às vezes preferia para descre-ver sua profissão. Para ele, a antropologia, ou etnologia, é “uma ciência do homem, mas não de qualquer homem” (Clastres 168: ). O que faria dela uma ciência humana diferente das outras: arte das distâncias, saber paradoxal, sua vocação é a de tentar um diálogo com aqueles povos cujo silenciamento foi uma condição de possibilidade (prática e teórica) da civilização que gerou a antropologia. Diálogo, portanto, com os “sel-vagens” ou “primitivos”, com aqueles coletivos que escaparam, como se por uma precária tangente, ao Grande Atrator da Razão e do Estado. A relação do projeto de Clastres com o de Lévi-Strauss se torna, a partir daí, um tanto mais delicada: se o homem que é objeto dessa ciência não é qualquer sorte de homem, é porque a distância requerida não é qualquer espécie de distância, uma distância que pudesse ser percorrida dentro de um universo politicamente isotrópico. A distância clastriana é, primeiro que tudo, uma distância cosmopolítica, e só então epistêmica.

A antropologia encarna, para Clastres, um projeto de consideração do fenômeno humano como definido por uma alteridade intensiva má-xima, uma dispersão cujos limites são a priori indetermináveis. “[Q]uando o espelho não nos devolve nossa própria imagem, isso não prova que não haja nada a observar” ([14] 003: 35). Essa constatação seca10 encontra

9. Parece-me portanto em vão que Claude Lefort (18: 18-0) pretenda não haver relação entre os conceitos de Clastres e de Lévi-Strauss; a rejeição crítica que ambos enfrentaram, ex-pressa em termos praticamente idênticos, é uma prova por assim dizer a contrario dessa afinidade.10. Feita em “Copérnico e os selvagens”, o cap. 1 de A sociedade contra o Estado. O espelho etnológico de Clastres seria então um daqueles raros a seguir o judicioso conselho de Cocteau:

“Os espelhos deveriam refletir um pouco mais antes de devolver as imagens” (13: 60).

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eco em uma formulação recente de Patrice Maniglier a propósito do que este filósofo chama de “a mais alta promessa” da antropologia, a saber, a de “nos devolver uma imagem de nós mesmos em que não nos reco-nheçamos” (005: 3-4).11 O propósito de tal consideração, o espírito dessa promessa, não pode ser então o de reduzir a alteridade que baliza o percurso interno do conceito de humano, mas sim o de multiplicar as suas imagens. Alteridade e multiplicidade definem ao mesmo tempo o modo como a antropologia constitui a relação com seu objeto e o modo como seu objeto se autoconstitui. “Sociedade primitiva” ou “contra o Estado” é o nome que Clastres deu a esse objeto, e ao seu próprio encon-tro com a multiplicidade. E se o Estado existiu desde sempre, como argu-mentaram Deleuze & Guattari (180: 445), então a sociedade primitiva também existirá para sempre: como exterior imanente do Estado, força de antiprodução sempre a ameaçar as forças produtivas, multiplicidade não interiorizável pelas grandes máquinas mundiais. “Sociedade primi-tiva”, em suma, é uma das muitas encarnações conceituais da perene tese da esquerda de que um outro mundo é possível: de que há vida fora do capitalismo, como há socialidade fora do Estado. Sempre houve, e – é para isso que lutamos – continuará havendo.

* * *

“Há em Clastres uma maneira de afirmar que prefiro a todas as precauções ditadas pela prudência acadêmica.” Quem o diz é a grande helenista Ni-cole Loraux (18: 158-5), que nem por isso deixou de contrapor a cer-tas afirmações de nosso autor, que implicavam polemicamente a Grécia antiga, considerações críticas diversas, muitas delas bem fundadas, todas elas serenas. Acontece que tal serenidade é coisa assaz rara, quando se trata da recepção da obra de Clastres, cuja “maneira de afirmar” é for-temente polarizadora. Por um lado, ela provoca uma irritação de cômica

11. O ponto de Maniglier – que se situa por assim dizer no momento seguinte da “reflexão” do espelho da nota anterior – é que essa promessa é cumprida pelo estruturalismo, algo de que Clastres não poderia, pelo menos no primeiro momento de sua carreira, discordar.

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intensidade entre os zelotes da razão e da ordem, e nos temperamentos re-acionários em geral. Não é incomum que o anarquismo do autor seja alvo de juízos que pertenceriam antes à psicopatologia criminal que à história das ideias.12 Mesmo no campo da etnologia sul-americana, onde a influ-ência de Clastres foi formativa (não confundir com normativa) para toda uma geração, assiste-se hoje à retomada de um esforço de nulificação de seu trabalho, como parte de um processo de rotinização do carisma – vá lá o eufemismo – em pleno curso dentro de alguns nichos disciplinares,13 e no qual a “prudência” de que fala Loraux parece que vem servindo de pretexto para uma empresa de desvitalização metódica do pensamento. Não apenas do pensamento de Clastres, mas, o que é bem mais para se la-mentar, daquele dos povos que ele estudou. A “harmonia em toda parte” prevista pelo autor – a captura dos índios pelo regime da semelhança uni-versal: missionarização, escolarização, onguificação, patrimonialização… – ameaça agora o modo de vida indígena também no plano do conceito etnológico: etnificação, convivialização, historificação, proprietarização…

Nos espíritos mais jovens – mais generosos e inquietos –, por outro lado, a obra de Clastres pode suscitar uma adesão algo “irrefletida” (falá-vamos há pouco de espelhos) e às vezes um pouco autocomplacente, gra-ças ao poder de sedução de sua linguagem, de uma concisão e insistência quase encantatórias, à enganosa simplicidade de sua argumentação, e à paixão autêntica que transpira de praticamente cada página sua. Clastres transmite ao leitor a sensação de que este é testemunho de uma experiên-cia privilegiada; ele o faz compartilhar consigo uma mesma admiração pela dignidade existencial daquelas “imagens de nós mesmos” em que não nos reconhecemos, e que assim mantêm sua inquietante alteridade, isto é, sua autonomia. Tudo isso – aquela sensação, essa admiração, e esta autonomia –, é, como se sabe, meio perigoso. Sobretudo no bom sentido.

12. Ver, por exemplo, o diagnóstico de Moyn (004): “[Ó]dio exagerado e monomaníaco ao Estado”; “ódio vociferante ao capitalismo”; “desconfiança fanática do Estado”; “obsessão paranoica”, e por aí afora. O autor fica a um milímetro de culpar Clastres pelos atentados do Unabomber.13. Essa é uma história que fica para outra vez; dar nome aos bois, aqui, levaria um bom pedaço de nosso comentário.

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Autor difícil, então, em sua aparente facilidade. São justamente os melhores leitores de Clastres que precisam (re)aprender a lê-lo, em meio a tantos esforços para que se o ignore ou esqueça. Precisam permanecer atentos às suas virtudes como aos seus defeitos: saber apreciar suas intui-ções antropológicas fulgurantes e sua sensibilidade como etnógrafo de campo (Crônica dos índios Guayaki [1] é uma obra-prima do gênero etnográfico); mas também saber resistir à sua peremptoriedade tantas vezes excessiva, não desviando pudicamente os olhos diante de suas in-cômodas hipérboles, suas hesitações, suas impaciências e imprecisões – sem por isso deixar de preferi-las de longe à remencionada prudência, sempre pomposa, ora e vez melíflua, própria de certa gravitas acadêmica. Resistir a Clastres, mas não parar de lê-lo; resistir com Clastres, enfim: confrontar seu pensamento no que nele permanece de vivo e perturbador. François Zourabichvili faz uma reflexão sobre Gilles Deleuze que me parece identicamente pertinente para o caso de Clastres e seus leitores:

A filosofia de Deleuze não é, para mim, nem evidente nem satisfatória [satisfaisante]; a razão de meu interesse por ela é bem outra: ela não me deixa tranquilo… [U ]ma filosofia só é interessante por seus aspec-tos desorientadores, ao mesmo tempo estranhos e atraentes. Em caso contrário, ela se torna uma doutrina, um sinal de reconhecimento para uma comunidade de fiéis. Eis por que não se deve procurar esconder as aparentes contradições do filósofo que se admira. É preciso, ao contrá-rio, partir dessas contradições, e confrontá-las incessantemente; é preciso saber ver nelas não aporias definitivas, como faria um refutador, mas o signo seguro de uma perspectiva inabitual (cf. Zourabichvili 004, ms.)

* * *

Maurice Luciani, em um necrológio publicado na revista Libre, evocava a “indiferença ao espírito do tempo” como uma das características da per-sonalidade irônica e solitária de Clastres. A apreciação não deixa de ser curiosa, visto que o espírito dos tempos que correm tende a descartar seu

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pensamento justamente por seu caráter anacrônico, “datado”, como se diz: romântico, primitivista, exotizante e outras mais daquelas taras que a crítica neoliberal e neoconservadora costuma creditar a 168.14 Mas, no-tem que Luciani escrevia em 18, uma década depois do annus horribilis, quando já havia então se instalado o silêncio ou o opróbrio que iriam en-volver a obra de Clastres e de vários outros pensadores contemporâneos. Uma releitura de Arqueologia da violência a tantos anos de distância é, as-sim, uma experiência ao mesmo tempo desorientadora e iluminadora. Se ela vale a pena ser feita, é porque algo da época na qual esses textos foram escritos, ou melhor, contra a qual foram escritos – e foi nessa medida que ajudaram a defini-la –, algo dessa época permanece na nossa, algo dos problemas de então continua conosco. Ou talvez não: os problemas mu-daram radicalmente, dir-se-á. Pois tanto melhor: o que acontece quando reintroduzimos em outra época conceitos elaborados em circunstâncias muito específicas? Que efeitos eles produzem ao reaparecerem?15

O efeito de anacronismo suscitado pela leitura de Clastres é real. Tomem-se os três primeiros capítulos de Arqueologia da violência, por exemplo. Falar dos Yanomami como “o sonho de todo etnógrafo”; despe-jar um sarcasmo furioso contra os missionários evangélicos (e os turistas) sem reconhecer “autocriticamente” certa identidade com eles, como hoje é de praxe – mudaria a missão, ou mudou o antropólogo? –; manifestar sua fascinação por um modo de vida que o autor não hesita em chamar de primitivo e qualificar de feliz; deixar-se mesmerizar pela ilusão ime-diativa (e algo falóculo-cêntrica) que se exprime no elogio entusiasmado do depoimento de Elena Valero;16 incorrer no pessimismo sentimental

14. Some-se a essa crítica “neo-neo” de direita o retorno recente, ali mais para a esquerda do espectro intelectual, de um certo universalismo autoritário (Badiou, Zizek) que parece ter aprendido muito pouco e esquecido menos ainda. De uns tempos para cá, ele se pôs a louvar o cristianismo paulino, com as intenções que se pode imaginar.15. François Châtelet, citado em Barbosa 004: 53.16. “Em suma: pela primeira vez, sem dúvida – milagrosamente, pode-se dizer –, uma cul-tura primitiva se relata ela própria, o Neolítico expõe diretamente seus prestígios, uma sociedade indígena descreve-se a si mesma de dentro. Pela primeira vez, podemos entrar no ovo sem arrombá-lo, sem quebrar a casca: ocasião bastante rara e que merece ser cele-brada.” (supra, p. 56)

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do “último círculo”, da “última liberdade”, da “sombra mortal” que se estende por sobre “a última sociedade primitiva livre, na América do Sul com certeza, e provavelmente também no mundo” – tudo isso tornou-se rigorosamente inominável nos salões contemporâneos. A análise breve mas devastadora que faz Clastres do projeto da antropologia,17 ao mesmo tempo que antecipa muito da reflexividade pós-colonial que iria levar a disciplina, nas décadas subsequentes, a uma aguda crise de consciência – o que é sempre a pior maneira de suscitar uma descontinuidade criativa dentro de um projeto político ou intelectual –, formula-se em termos que nos parecem hoje desconfortavelmente aristocráticos, no sentido de Nietzsche, com certeza o personagem essencial para uma genealogia da obra clastriana. Tal viés aristocrático do “pensamento 68” (faço desse apodo uma bandeira) tornou-se quase ininteligível, com a descida do espesso nevoeiro de má consciência e boas intenções que hoje envolve a apercepção cultural do cidadão neo-ocidental globalizado. E no entanto é fácil ver que a profecia que encerra o primeiro capítulo do livro, sobre a visita do autor aos Yanomami, estava substancialmente correta:

Eles são os últimos sitiados. Uma sombra mortal se estende por toda parte… E depois? Talvez se sintam melhor, uma vez rompido o úl-timo círculo dessa última liberdade. Talvez se possa dormir sem ser despertado uma única vez… E algum dia, ao lado dos chabuno, ha-verá então perfuradoras de petróleo; no flanco das colinas, escavações de minas de diamante; policiais nas estradas, lojas à beira dos rios… Harmonia em toda parte. (supra, p. 5)

Esse “algum dia” parece de fato próximo: a mineração já está lá, espa-lhando morte e desolação; as perfuradoras de petróleo não estão muito longe, nem as lojas abarrotadas de gadgets inservíveis; o policiamento das vias públicas talvez ainda demore um pouco (vai depender do ren-dimento do ecoturismo). A grande e inesperada diferença em relação à profecia de Clastres, porém, é que agora são os Yanomami eles mesmos

17. Ver os ensaios “Copérnico e os selvagens”, de 16, e “Entre silence et dialogue” de 168.

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que chamaram a si a tarefa de articular uma crítica cosmopolítica da ci-vilização ocidental, recusando-se a contribuir para a “harmonia em toda parte” com o silêncio dos derrotados. A reflexão extensa, minuciosa-mente impiedosa do xamã-filósofo Davi Kopenawa, em uma colabora-ção intertradutiva com o antropólogo Bruce Albert construída ao longo de mais de trinta anos, materializou-se enfim em um livro, La Chute du ciel [A queda do céu], que promete mudar os termos da interlocução an-tropológica com a Amazônia indígena (Kopenawa & Albert 010). Es-tamos talvez, com essa obra excepcional a todos os títulos, começando realmente a passar “do silêncio ao diálogo”; mesmo que a conversa não possa ser senão escura e ominosa, pois vivemos em tempos sombrios. A luz, que há, está do lado dos Yanomami, com seus inumeráveis cris-tais brilhantes e suas legiões resplandecentes de espíritos infinitesimais a povoar as visões xamânicas (Viveiros de Castro 00).18

Anacronismo de Clastres, então? Intempestividade, antes (Lima & Goldman 003: ). Às vezes tem-se a sensação de que é preciso mesmo lê-lo como se ele fosse um pensador pré-socrático cuja obra, dispersa em enigmáticos fragmentos, tivesse acabado de ser descoberta. Como se ele fosse alguém que falasse não apenas sobre um outro mundo, mas a partir de um outro mundo, usando uma linguagem que seria uma ances-tral da nossa, e que, como não somos mais capazes de entendê-la a nosso contento, precisássemos “transcriar”, mudando a distribuição de seus aspectos implícitos e explícitos, literalizando o que ela tem de figurativo e reciprocamente, procedendo a uma reabstração de seu vocabulário em função das mutações de nossa retórica filosófica e política (como tam-bém de nosso conhecimento); reinventando, em suma, o conteúdo e o propósito desse discurso.19

18. O livro de Kopenawa e Albert é uma prova eloquente (há muitas outras) de que a an-tropologia tem algo de melhor a mostrar a respeito dos Yanomami do que a lista de abomi-nações de todo tamanho em que ela se viu implicada em sua atuação junto a esse povo, as quais vêm dando matéria para farto escândalo; nem todo ele, longe disso, motivado pelas mais puras das intenções.19. A analogia com os pré-socráticos é um pouco mais que uma licença poética. Clastres aproximou e contrastou, em mais de uma ocasião, o pensamento dos xamãs guarani com a >

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Da carência à endoconsistência

A questão que se põe, assim, é a de saber até que ponto a noção de so-ciedade-contra-o-Estado permanece hoje, para usarmos uma conhecida fórmula, “boa para pensar” (cf. Sztutman 011: 31), em outras palavras, se ela ainda é capaz de suportar um verdadeiro uso analítico, mais que uma simples menção histórica. E boa para pensar, acrescentemos, não apenas a paisagem sociopolítica da América indígena – região sobre a qual o conhecimento empírico aumentou várias ordens de magnitude desde a época em que Clastres escrevia – ou, como defende aqui o autor, a “sociedade primitiva em geral” (supra, pp. 188, 66), mas boa também no sentido de que ela continuaria a ser uma peça-chave dentro da má-quina desejante da esquerda libertária. Alguma dúvida sobre essa atu-alidade parece razoável, agora que o Mercado avulta como muito mais ameaçador que o Estado, e que o Capitalismo parece ter conseguido, no plano do etograma da espécie, o que a Microsoft quase conseguiu em seu ramo, a saber, tornar-se o único sistema operacional disponível. Com efeito, seu sucesso foi tamanho que, na frase atribuída a Fredric Jame-son, “hoje em dia parece ser mais fácil pensar o fim do mundo que o fim do capitalismo”.20

Parece, mesmo. Admirável época a nossa, em que o puritanismo pruriente, a hipocrisia autoflagelatória e a impotência militante conspiram

filosofia de Heráclito e Parmênides, reformulando o problema tradicional da “passagem” do mito à filosofia – correlativo, para ele, ao problema do surgimento do Estado – a partir de uma comparação do destino da oposição do Um e do Múltiplo entre os Guarani e os Gregos (Loraux 18; Prado Jr., supra). Clastres não via, portanto, a passagem do mito à filosofia como marcando a transição do despotismo teocrático “oriental” à democracia racional “protoeuropeia”. Ele opera com um conceito de mito muito diverso daquele utili-zado pelos helenistas.20. Apud Fisher 00: , um livro tão despretensioso quanto essencial. Tal facilidade com-parativa se mostra, por exemplo, nos esforços desesperados (entre os bem-intencionados) ou cínicos (entre os bem interessados) de crer ou fazer crer nessa contradição em termos que é um “capitalismo sustentável”, quando todos sabemos – ou pelo menos deveríamos desconfiar – que existe uma incompatibilidade axiomática entre a economia capitalista e qualquer noção de sustentabilidade (Fisher op. cit.: 1).

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para tornar impossível sequer “imaginar uma alternativa coerente” (Fi-sher 00: ) ao nosso inferno civilizacional – quanto mais pôr mãos à obra, buscando algum apoio, e alguma esperança, naqueles povos que nunca tiveram nada com isso, nada conosco, e que assim, havendo desde sempre sido uma alternativa a nós, podem nos estimular a criarmos al-ternativas para nós. Alternativas outras que as deles, decerto; mas outras, sobretudo, que nossa disfórica sensação de falta de alternativas. “Um pouco de possível, senão sufoco.”

Mas está difícil olhar para outros povos, outras “soluções de vida” – outras problematizações da vida –, em busca de um possível. Con-sidere-se, por exemplo, entre os diversos signos atuais de asfixia, a síndrome do pânico diante de tudo que possa soar como “othering” (in-traduzível neologismo, em sua semântica autocontraditória): como se toda diferença desembocasse em inevitável opressão, toda alteridade preparasse uma intolerável discriminação. Parece que os outros agora realmente nos devolvem uma imagem na qual, enfim!, nos reconhece-mos. Se assim é de fato, então para que ficarmos a perder tempo com as cansativas preliminares (no sentido erótico) do exotismo nostálgico, não é mesmo? Passemos todos direto ao gozo, medíocre mas garantido, do narcisismo depressivo.

O projeto de Clastres era o de transformar a antropologia “social” ou “cultural” em uma antropologia política, no duplo sentido de uma an-tropologia que tomasse o poder (não a “dominação”, a “exploração” ou o “conflito”) como imanente à vida social, e, mais importante, que fosse capaz de levar a sério a alteridade radical da experiência dos povos ditos primitivos, o que requeria, antes de mais nada, o reconhecimento de sua plena capacidade de autoinvenção e de autorreflexão. Para isso, era pre-ciso primeiro romper a relação teleológica – melhor dizendo, teológica – entre a dimensão política da vida coletiva e a forma-Estado, afirmada e justificada por virtualmente toda a filosofia ocidental. Deleuze escreveu, em uma passagem famosa: “A esquerda precisa que as pessoas pensem, e seu papel, esteja ela ou não no poder, é o de descobrir um tipo de pro-blema que a direita quer a todo custo esconder” (10a: 13). O problema que Clastres descobriu, o da coincidência fortuita entre poder e coerção,

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é um daqueles que a direita precisa esconder. A antropologia só se tor-nará realmente política, afirma Clastres, a partir do momento em que for capaz de mostrar que o Estado e tudo aquilo a que ele deu origem (em particular, as classes sociais) são uma contingência histórica, um infor-túnio acidental antes que um destino essencial, e que às sociedades que não o têm não falta nada, senão a vontade de ser tida por ele, a estranha vontade negativa de ter uma falta que o necessite. É com o Estado e pelo Estado que a necessidade se substitui à suficiência.

A esquerda precisa que as pessoas pensem… Ela precisa então fazer as pessoas pensar (ninguém pensa se não for provocado a fazê-lo); mas, para isso, é preciso fazê-las levar a sério o pensamento, a começar pelo pensamento dos outros – uma vez que todo verdadeiro pensamento já de si suscita os poderes da alteridade. O tema do “como levar enfim a sério” as escolhas filosóficas, isto é, vitais, expressas nas formações sociais pri-mitivas retorna insistentemente em Clastres. No capítulo 6 deste livro, afirmando que a etnologia das últimas décadas tinha feito muito para li-berar essas sociedades do olhar exotizante do Ocidente21 o autor escreve:

Em outras palavras, já não se projeta sobre as sociedades primitivas o olhar curioso ou divertido do amador mais ou menos esclarecido, mais ou menos humanista; elas são levadas de certo modo a sério. A questão é saber até onde vai essa seriedade. (supra, p. 13 )

Até onde, com efeito? Essa é uma questão que a antropologia decidi-damente não resolveu, talvez porque ela seja a questão que a define; resolvê-la equivaleria, para Clastres, a dissolver uma diferença indis-pensável e irredutível; seria ir mais longe do que pode almejar a disci-plina.22 Por isso, talvez, o autor associasse sempre o projeto da disciplina

21. O fato de que sua própria obra seria, mais tarde, acusada de exotizante não deixa de ser uma prova de que Clastres tinha muito mais razão do que suspeitava, e ao mesmo tempo que ele subestimava seus inimigos presentes e futuros.22. Vejam-se as melancólicas palavras finais do cap. : “Sendo as coisas o que elas são…” (supra, p. 64) – às quais o livro já mencionado de Kopenawa e Albert talvez constitua um bem-vindo começo de desmentido.

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à figura do paradoxo. O paradoxo é um operador central na antropolo-gia de Clastres: há um paradoxo da etnologia (o conhecimento não como apropriação mas como despossessão); um paradoxo próprio a cada uma das duas grandes formas sociais (na sociedade primitiva, a chefia sem poder; na nossa, a servidão voluntária); e um paradoxo da guerra e do profetismo (dispositivos de indivisão que se tornam os germes de um poder separado). Seria mesmo possível conceber esse primeiro grande tipo psicossocial identificado pelo discurso clastriano, o chefe sem poder, como uma espécie de “elemento paradoxal” do político, termo supra-numerário e casa vazia ao mesmo tempo, significante flutuante que não significa nada em particular (seu discurso é oco, redundante), existindo apenas para se opor à ausência de significação (essa vacuidade institui o plenum da sociedade). Isso tornaria o chefe clastriano, naturalmente – paradoxalmente? –, uma figura emblemática do universo estruturalista (Lévi-Strauss 150; Deleuze 1).

Seja como for, o fato é que, hoje, o paradoxo se generalizou; não são mais apenas os etnólogos que se veem diante do desafio da alteridade. A questão do “até onde?” se coloca para o Ocidente como um todo, e nela se joga o destino daquilo que chamamos orgulhosamente de nossa Civi-lização. Enfim, o problema de “como levar a sério os outros” se tornou, ele próprio, um problema que é imperativo levar a sério. Em La Sorcelle-rie capitaliste [A feitiçaria capitalista], um dos poucos livros publicados na França de hoje que prolonga o espírito da indagação clastriana (pela mediação da voz de Deleuze e Guattari), os autores observam:

Temos por exemplo o costume de deplorar os estragos feitos pela coloni-zação, e as confissões de culpa tornaram-se rotina. Mas falta-nos ainda o devido sentimento de horror [effroi] diante dessa ideia de que não apenas nos consideramos um dia a cabeça pensante da humanidade, como, e isso com as melhores intenções do mundo, continuamos a fazê-lo. […] O horror começa quando nos damos conta de que, malgrado nossa tolerância, nossos remorsos, nossa culpa, nós afinal não muda-mos tanto assim. (Pignarre & Stengers 005: 88 )

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E eles concluem a reflexão com uma pergunta que é uma versão do “até onde?” de Clastres: “Como abrir espaço para os outros?” (id. ibid.: 8).

Abrir espaço para os outros certamente não significa tomá-los como modelos, fazendo-os passar de “nossas” vítimas (id. ibid.) a “nossos” re-dentores. O projeto de Clastres se inclui entre aqueles que concebem o trabalho da antropologia como sendo o de elucidar as condições de au-todeterminação ontológica do Outro,23 o que significa, entre outras coi-sas, reconhecer-lhe uma consistência sociopolítica própria, e, enquanto tal, não transferível para nosso mundo como se fosse a receita há muito perdida da felicidade eterna universal. O “primitivismo” clastriano não era uma plataforma política para o Ocidente. Em seu debate com Birn-baum (cap. ), ele contesta:

Assim como o astrônomo não convida outrem a invejar a sorte dos astros, não milito em favor do mundo dos selvagens. Birnbaum confunde-me com os promotores de uma empresa da qual não sou acionista (R. Jaulin e seus acólitos). […] Analista de um certo tipo de sociedade, tento des-cobrir modos de funcionamento e não elaborar programa. (supra, p. 18)

A comparação com o astrônomo evoca, é claro, o “olhar distanciado” de Lévi-Strauss, mas dando-lhe uma explícita interpretação política. Vendo-se a si próprio como astrônomo mais que como astronauta – ao contrário do que alguém poderia imaginar –, Clastres sobretudo não pretendia pos-suir os planos do veículo que faria a viagem até esses mundos distantes, esse “outro planeta sociológico” (Richir 18: 6) que são as sociedades primitivas. De fato, ele acreditava que um limite absoluto, equivalente à velocidade da luz para a física, impedia as sociedades modernas de cru-zar o imenso espaço intersocietário – a barreira populacional. Embora sempre recusando a imputação de determinismo demográfico ([14]

003: , ou aqui mesmo, pp. 1-3), Clastres sustentava que a pequena dimensão populacional e territorial das sociedades primitivas era uma condição básica para a não emergência de um poder separado, assim

23. Ver Viveiros de Castro 00, para um desenvolvimento desse ponto de vista.

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como via uma relação intrínseca entre o Estado e o crescimento demo-gráfico: “Todos os Estados são natalistas” ([15] 003: 6). A perda de controle da sociedade primitiva sobre seu “fluxo demográfico” era uma das preocupações frequentemente expressas pelo autor. A multiplicidade primitiva é subtrativa antes que aditiva, é molecular antes que molar, é minoritária no sentido quantitativo e qualitativo: o múltiplo só se faz com poucos, e com pouco. O igualitarismo selvagem de Clastres é, mais uma vez, “aristocrático”, como é aristocrática toda verdadeira minoria.24

Sem dúvida que a análise da questão do poder nas sociedades pri-mitivas deve alimentar uma reflexão política sobre nossas próprias so-ciedades (Clastres [15] 003), mas de um modo que se poderia dizer principalmente comparativo e especulativo. Por que o Estado, sendo uma contingência antropológica, tornou-se uma fatalidade histórica para tan-tos povos, e sobretudo para a nossa tradição? Em que condições a linha flexível da segmentaridade primitiva, com seus códigos e territorialidades, dá lugar à linha rígida da sobrecodificação generalizada, à emergência de um aparelho de captura que separa a sociedade de si mesma, criando a necessidade de uma instância exterior ao corpo social que o totalize e unifique? E mais, como pensar a nova face do Estado no mundo das “so-ciedades de controle” (Deleuze 10b), em que a transcendência se ima-nentiza e moleculariza, o socius tende a se identificar totalmente com a ins-tância que o unifica, o indivíduo interioriza o Estado e é perpetuamente

24. Uma das hipóteses que Clastres aventou para o que entendia serem sinais de emergên-cia do Estado nas sociedades tupi-guarani foi justamente uma explosão demográfica. Re-ciprocamente, como lemos no cap. 1 deste livro, o autor via na atitude antinatalista das sociedades do Chaco a contrapartida feminina – era às mulheres que repugnava a ideia de ter filhos – da sede suicida de glória que impelia os guerreiros. Ambos os movimentos mani-festariam uma espécie de pulsão de morte coletiva, latente em todas as sociedades primitivas (mas apenas nelas?), fazendo com que, em certas circunstâncias históricas, elas voltassem a máquina de guerra antiestatal contra si mesmas. Resta que no caso tupi-guarani, pelo menos, Clastres pode ter confundido (não estou certo de que o tenha feito) o tamanho absoluto da população de uma categoria étnica, os “Tupi-Guarani”, com as dimensões demográficas e sociopolíticas efetivas das várias sociedades ou redes de comunidades que pertenciam – mas de um ponto de vista meramente linguístico-cultural – a essa categoria. O múltiplo só se faz com poucos, mas esses poucos podem ser (ou serão sempre?) alguns entre muitos.

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monitorado e modulado por ele? Quais as novas formas de resistência que se impõem, isto é, que surgem inevitavelmente?25

* * *

A resposta a essas questões depende do tipo de economia da diferença que está em jogo na comparação antropológica.

Há duas maneiras muito distintas pelas quais a antropologia univer-saliza, isto é, estabelece uma troca de imagens através do espelho (“atra-vés” também no sentido do impróprio de “por meio de”). Por um lado, ela pode fazer funcionar a imagem dos “outros” de modo que esta revele algo sobre “nós”, certos aspectos de nossa própria humanidade que não somos capazes de reconhecer como nossos, por múltiplas razões. Este é o projeto antropológico que, iniciado na fase heroica de Boas, Malinowski e Mauss, consolidou-se na época em que Clastres escrevia, e que veio se prolongando até hoje, de Claude Lévi-Strauss a Marshall Sahlins, de Roy Wagner a Marilyn Strathern: a lenta transformação de uma imagem do Outro definida pela falta ou carência, por sua distância privativa em re-lação ao Eu, em uma figura da alteridade dotada de endoconsistência, de autonomia em relação à imagem de nós mesmos, e, nessa medida, dotada de valor crítico e heurístico para nós. O que Lévi-Strauss fez para a razão classificatória, com sua noção de pensamento selvagem, Sahlins para a racionalidade econômica, com sua “primeira sociedade de afluência” (ver o cap. 8 deste livro), Wagner para o par natureza-cultura, com sua me-tassemiótica da invenção e da convenção, Strathern para o par indivíduo-sociedade, com a elucidação das práticas melanésias de análise social e de conhecimento relacional, Clastres fez para o poder e a autoridade, com sua ideia da sociedade-contra-o-Estado enquanto positividade política plena – esses antropólogos construíram, por via da imagem do outro, uma outra imagem do mundo: uma imagem do mundo que incorpora a

25. E digo “inevitavelmente” porque trata-se, aqui também, de “descobrir modos de fun-cionamento e não [de] elaborar programas” – ou antes, talvez de descobrir aqueles para melhor elaborar estes.

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imagem que o outro faz do mundo, a imagem com a qual o outro faz um mundo; um mundo que nada deve, porque nada fica a dever, ao nosso. Uma nova imagem, então, do pensamento, da economia, da cultura, da socialidade, da política. E do mundo.

Em qualquer desses casos, jamais se tratou de estabelecer uma dico-tomia substantiva, erguendo uma Grande Muralha antropológica, mas sim de indicar uma bifurcação que, mesmo decisiva, não é por isso menos fortuita: uma outra distribuição cosmossemiótica entre forma e fundo, a integração parcial de uma série de pequenas diferenças no modo de fa-zer a diferença. É preciso insistir ao máximo sobre a contingência des-sas metadiferenças, ou recriam-se, por um mau paradoxo, outros tantos Estados na esfera do pensamento, traçando-se um grande divisor, uma linha rígida ou “maior” no plano do conceito – atualizando aquilo que Deleuze & Guattari (180: 446-ss) chamam de “ciência de Estado”, a ciência teoremática que extrai constantes das variáveis, por oposição à “ciência menor”, a ciência nômade e problemática das variações contínuas, associada à máquina de guerra antes que ao Estado. E a antropologia, ou pelo menos a “etnologia”, a ciência paradoxal de Clastres, é uma ciência menor por vocação. Fazê-la em modo maior é trair sua vocação. À antro-pologia interessam as macrodualidades e as grandes oposições sociocos-mológicas do mesmo modo como elas interessam à mitologia indígena (como demonstrado por Lévi-Strauss): ambas começam justamente por elas, mas para mediá-las e diferenciá-las, multiplicá-las e fractalizá-las, internalizá-las e molecularizá-las até um limiar de discernibilidade – sem prejuízo de que elas se vejam, ao cabo do trabalho analítico (do mitema ou do conceito), reconstituídas como que pelo avesso em algum outro e inesperado plano. Que, por sua vez…

Assim, essa diferença tão imensa como instável entre Eu e Outro não impede, ao contrário, incita à percepção dos elementos de alteridade no coração de nossa “própria” identidade. O pensamento selvagem não é o pensamento dos selvagens, mas a potência selvagem de todo pen-samento enquanto/onde este não é “domesticado em vista de um rendi-mento” (Lévi-Strauss 16: 8). O princípio de subprodução (a lógica da suficiência) e a propensão constitucional ao ócio criativo pulsam por

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baixo de todo o moralismo necessitarista da economia e da pretensa in-saciabilidade pós-edênica do desejo humano (Sahlins 1, 16). Nossa sociedade também é capaz de gerar momentos – em nosso caso, sempre excepcionais e “revolucionários” – em que a vida é vivida como uma

“sequência inventiva” (Wagner 181), assim como compartilha com todas as outras – mesmo que de modo paradoxal, semiclandestino – a condição de interpenetração relacional das pessoas que chamamos “parentesco” (Edwards & Strathern 000; Strathern 005, Sahlins 011). E por fim, no caso de Clastres, a constatação de nossa dependência constitutiva, no plano do pensamento mesmo, perante a forma-Estado não deve impe-dir a percepção de todas as intensidades contrárias, as fendas, frestas e linhas de fuga por onde nossa sociedade está constantemente resistindo à sua captura pela transcendência sobrecodificadora do Estado. É nesse sentido que a “sociedade-contra-o-Estado” permanece válida como con-ceito universal – não como tipo ideal ou como designador rígido de uma espécie sociológica, mas como analisador de toda e qualquer experiência de vida coletiva.

A segunda forma de universalização parte, ao contrário, do postu-lado de que os primitivos são mais parecidos conosco do que nós com eles. E, como são parecidos conosco – mas apenas parecidos –, aspiram a ser exatamente como nós, ou seja, a viver felizes sob o signo da santíssima trindade do Homem Moderno: o Estado, o Mercado e a Razão, que são como o Pai, o Filho e o Espírito Santo da teologia capitalista. Em outras palavras, eles também, nossos primitivos (estes são realmente nossos), exprimindo instintivamente a racionalidade infusa do Capital, são maxi-mizadores genéticos e individualistas possessivos; eles também otimizam a relação custo-benefício e fazem escolhas racionais (o que inclui serem

“irresponsáveis” quando se trata da relação com o ambiente – extermi-naram a megafauna na América! incendiaram a Austrália!); eles são su-jeitos pragmáticos e sensatos como nós, que não confundem capitães de longo curso da Marinha Real britânica com divindades bárbaras,26 nem

26. Refiro-me ao conhecido debate de Obeyesekere com Sahlins sobre a morte do capitão Cook pelos havaianos.

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experimentam sua consciência íntima, o recesso sacrossanto da própria subjetividade, sob o modo esdrúxulo da “dividualidade” relacional;27 eles também instituem desigualdades sociais à menor oportunidade para tanto, cobiçam o poder e a riqueza, oprimem e escravizam seus se-melhantes mais fracos, admiram e divinizam seus semelhantes mais for-tes, e, como aqueles críticos evocados por Courbet, de vez em quando também acordam gritando: “Quero julgar! Devo julgar!”. Em suma, nossos pobres primitivos estão – ou estavam, até que se lhes passou o trator por cima – no caminho certo. A prova de que eles são humanos (e de que estamos sendo cientificamente antietnocêntricos ao insistir so-bre isso, contra aquele anarcorromantismo fanático de Clastres, aquele relativismo cultural implausível de Sahlins, Wagner ou Strathern) é que compartilham conosco todos os nossos defeitos naturais, defeitos que se foram pouco a pouco transformando, é claro, em virtudes sociais, du-rante as décadas gloriosas que nos brindaram com Thatcher, Reagan, o Patriot Act, a Fortaleza Europa, o neoliberalismo e outras maravilhas inauditas – e, de quebra, com a psicologia evolucionária, sempre pronta a justificar tudo o que precede com alguma Just-so story. A sociedade primitiva agora é uma ilusão, uma “invenção” da sociedade moderna (Kuper 188). Esta última, ao que parece, não é uma ilusão e jamais foi inventada por quem quer que seja: sempre fomos modernos. Talvez porque só o Capitalismo seja real, inato e espontâneo, o vero Dado en-carnado. Walter Benjamin estava mais que certo ao defini-lo como uma estrutura diretamente religiosa.

É contra essa segunda forma de universalização, reacionária, mío pe e, sobretudo, reprodutiva da figura do Estado como modelo do Universal, que a obra de Clastres se construiu, preventivamente por assim dizer. Pois ele sabia muito bem que o Estado não pode admitir as sociedades primitivas, aquelas, justamente, que não querem ser ad-mitidas. A imanência e a multiplicidade são sempre escandalosas aos olhos do Um.

27. Este é um clichê argumentativo muito usado pelos “cognitivistas” contra a análise me-lanésia da pessoa tal como reconstruída no trabalho clássico de Marilyn Strathern.

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O diferente e o semblante

A tese da sociedade contra o Estado é às vezes confundida com um elogio do libertarianismo no sentido americano (estadunidense) do termo, isto é, interpretada como se seu conteúdo lógico implicasse uma oposição à interferência do governo central na vida dos indivíduos, um elogio do

“livre mercado”, uma defesa das milícias de cidadãos, a liberação do porte de arma para todos, o convite para algum Tea Party e por aí afora. Em suma: Pierre Clastres e Ayn Rand, farinha do mesmo saco.

Naturalmente, tomar a despressuposição teórica do conceito de Es-tado por uma recusa da organização política enquanto tal por um elogio do individualismo à americana ou por um incentivo ao autocapitalismo (o nome certo parece que é “empreendedorismo”) é um engano grotesco. O capítulo deste livro é instrutivo a esse respeito, na medida em que dis-cute o erro inverso. Pierre Birnbaum, cujas críticas o autor rebate ali, faz uma leitura durkheimiana da sociedade contra o Estado, identificando-a, antes que a um elogio do indivíduo, a uma “sociedade de coerção total”. Clastres glosa assim seu oponente:

Em outras palavras, se a sociedade primitiva ignora a divisão social, é ao preço de uma alienação bem mais terrível, a que submete a comu-nidade ao sistema esmagador das normas às quais não é permitido a ninguém alterar. O “controle social” se exerce de maneira absoluta: não é mais a sociedade contra o Estado, é a sociedade contra o indivíduo. (supra, p. 18)

A resposta de Clastres consiste mais ou menos em dizer que o “controle social”, ou antes, o poder político, não se exerce sobre “o indivíduo”, mas sobre um indivíduo, o chefe, que é individualizado justamente para que o corpo social continue indiviso, “em relação consigo mesmo”. Em seguida, o autor esboça a tese (também mencionada no cap. 5) de que a sociedade primitiva inibe o Estado mediante a extrusão metafísica de sua própria causa e origem, ao remeter ambas à esfera do mundo mítico primordial, àquilo que está totalmente fora do controle humano e, nessa

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medida, não pode ser apropriado por uma fração da sociedade de modo a convencionalizar desigualdades. Ao colocar seu fundamento fora de

“si mesma”, a sociedade se torna natureza, isto é, torna-se o que Wagner (186) chamaria de um “símbolo que representa a si mesmo”, impedindo a projeção de uma Convenção totalizadora, uma figura do Um que a en-carnasse e sobrecodificasse. A transcendência heteronômica da origem serve então como garantia da imanência e autonomia do poder social. O mito contra o Estado, em suma.

Clastres credita essa miniteoria política da religião primitiva a Mar-cel Gauchet, que anos mais tarde iria desenvolvê-la em um sentido que o primeiro autor talvez não pudesse prever. Mas aqui há um significativo ponto de hesitação de Clastres. Desde o começo, na verdade, Gauchet associava tal exteriorização da origem justamente à origem do Estado – que surgiria com a captura, por uma figura humana, desse lugar da trans-cendência impessoal –, e não à sua inibição. Clastres estava ciente disso; ele acreditava que seu jovem colega havia descoberto a falha congênita no plano de composição do socius primitivo que o tornava uma presa potencial para o monstro Estado. Como se sabe, Gauchet acabou por derivar daí (para encurtarmos uma longa história) uma reflexão sobre as virtudes do Estado constitucional liberal, regime no qual a sociedade se aproximaria de uma situação ideal de autonomia ou imanência, por via de uma interiorização das fontes simbólicas da socialidade que seria, essa interiorização, engenhosa o suficiente para não destruir a exterioridade instituinte do socius enquanto tal. O Estado contra o Estado, digamos, em uma autêntica Aufhebung do anarquismo clastriano, que se veria enfim transformado em um programa político defensável.28

A resposta de Clastres a Birnbaum, parece-me, poderia ter ido mais longe. A sociedade-contra-o-Estado é efetivamente contra-o-indivíduo, porque o indivíduo, enquanto sujeito, é um produto e um correlato do

28. Em Moyn 005 acha-se uma descrição da trajetória de Gauchet, a quem o comentador parece perdoar (ou louvar) tudo, menos seu pecado original, a saber, sua adesão “juvenil” à visão maligna de Clastres. Ver também, em sentido contrário, uma cortante passagem onde Lefort (18: 0-03) desautoriza, mas sem mencionar nomes, o raciocínio de Gauchet so-bre a condensação da alteridade exterior primitiva na figura do Estado.

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Estado. O Estado precisa do indivíduo e o indivíduo requer o Estado; a autosseparação criadora do Estado cria-separa igualmente os sujeitos ou indivíduos (singulares ou plurais), ao mesmo tempo que o Estado se oferece a si mesmo como Modelo para estes: l’État c’est le Moi. É assim importante que estabeleçamos um contraste inequívoco entre a sociedade clastriana e seu homônimo durkheimiano, uma fonte de mal-entendidos nem sempre esclarecida por Clastres, que tendeu ocasionalmente a hi-postasiar a sociedade primitiva – no mínimo, deu tal impressão –, conce-bendo-a como um Sujeito coletivo, um Super-Indivíduo realmente, e não apenas formalmente, exterior e anterior ao Estado (Deleuze & Guattari 180: 443-ss), e assim, ontologicamente homogêneo a ele. Neste caso, estaríamos de fato navegando em águas durkheimianas.29 A Sociedade de Durkheim é a forma-Estado em sua tradução sociológica: pense-se na coercividade constitutiva do fato social, na transcendência inaugural do Todo em relação às Partes, em sua função de Entendimento universal, em seu poder de unificação inteligível e moral do diverso sensível e sensual. Por isso a relevância estratégica que tem para Durkheim a “oposição” entre indivíduo e sociedade: um é uma versão do outro, os membros da sociedade enquanto corpo espiritual coletivo são como minúsculos sub-Estados individuais subsumidos pelo Estado enquanto Super-Indivíduo.30

29. Lefort (18: 18) também imputa a Clastres uma “tentação” durkheimiana, ao co-mentar a análise do rito de iniciação apresentada no ensaio “Da tortura nas sociedades pri-mitivas” (cap. 10 de A sociedade contra o Estado). O ponto de Lefort é que Clastres faz do religioso um instrumento da “lei social”, expressão de uma vontade coletiva que é interio-rizada ritualmente.30. Em uma “legítima” sociedade-contra-o-Estado, ao contrário, cada indivíduo aparece,

“como tal”, isto é, tal como aparece para um não parente, para o antropólogo, digamos – en-quanto, portanto, não tomado como (um) parente, em toda a sua reticularidade relacional (o que, naturalmente, mudaria bastante as coisas) –, cada indivíduo aparece, dizíamos, como um micro-“Estado” insubsumível, insubmisso, uma entidade plenamente soberana, que não se deixa substituir por nenhuma outra entidade. Qualquer antropólogo que já passou por uma sociedade desse tipo poderá atestar que “negociar” o que quer que seja com as pessoas ali é um trabalho diplomático maravilhosamente exasperante. Pois cada um é o representan-te de si mesmo, embaixador de sua própria mônada; nada que foi “acertado” com alguém pode ser considerado como válido, indutiva ou dedutivamente, para o que se negociará com outrem. No final das contas, não é então que em uma sociedade-contra-o-Estado cada >

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A sociedade primitiva de Clastres, ao contrário, é contra o Estado, e por-tanto contra a “sociedade” concebida à sua imagem. Ela tem a forma de uma multiplicidade assubjetiva, seus componentes ou associados não são individualidades ou subjetividades, mas singularidades – ela desconhece a máquina abstrata produtora de sujeitos, rostos ou semblantes (bela pa-lavra) que exprimem uma interioridade subjetiva:

[D]eterminados agenciamentos de poder exigem a produção de um rosto, outros não. Se consideramos as sociedades primitivas, poucas coisas passam pelo rosto: sua semiótica é não significante, não subje-tiva, essencialmente coletiva, polívoca e corporal, apresentando formas e substâncias de expressão bastante diversas. A polivocidade passa pe-los corpos, seus volumes, suas cavidades internas, suas conexões e coor-denadas exteriores variáveis (territorialidades). […] Os “primitivos” podem ter as cabeças mais humanas, as mais belas e mais espirituais; eles não têm rosto e não precisam dele. A razão disso é simples. O rosto não é um universal, nem mesmo o do homem branco; é o próprio Homem branco, com suas grandes bochechas e o buraco negro dos olhos. O rosto é o Cristo. (Deleuze & Guattari [180] 16, v. 3: 4-43)

Uma interpretação do anarquismo de Clastres em termos individualis-tas ou liberais, subjetivistas e “rostificantes”, seria, portanto, um erro simétrico àquele que imaginaria sua sociedade primitiva como uma or-dem totalitária ou mesmo simplesmente “totalizante”. Na fórmula fe-liz de Bento Prado Jr. (supra), o pensamento de Clastres era, mais que simplesmente anarquista, “anarcôntico” – uma palavra-valise que inclui não apenas uma referência ao arconte ateniense, mas o “falso” sufixo /-ôntico/, como que para marcar o significado metafísico ou ontológico do anarquismo de Clastres, sua oposição ao que este via como o princípio

indivíduo já seja um Estado em si mesmo, mas sim que cada um “já” é, dividualmente, fractalmente, molecularmente, uma sociedade-contra-o-Estado à part entière. A sociedade-contra-o-Estado se apresenta como um ente distributivo, ainda que possa ocasionalmente (ou deva ritualmente) se representar como um ente coletivo. (Esta nota remete às muitas conversas havidas com José Antonio Kelly, etnógrafo dos Yanomami.)

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fundador da filosofia e do Estado ocidental, a saber, a ideia de que o Ser é Um e o Um é o Bem.

Por isso, é da maior importância observar que o regime da exterio-rização da origem intrínseco à sociedade-contra-o-Estado não significa, como Gauchet e outros sustentaram, nem uma exteriorização “instituinte” do Um, nem uma unificação “projetiva” do Exterior.31 Pois é preciso in-cluir decisivamente a máquina de guerra entre os mecanismos principais de conjuração do Estado mobilizados pelas sociedades primitivas, e, com isso, tirar todas as consequências do fato de que a exterioridade primitiva é inseparável da figura do Inimigo como determinação transcendental do pensamento.32 A exteriorização está a serviço de uma dispersão. Os selvagens querem a multiplicação do múltiplo.

* * *

Há hoje um sentimento amplamente difundido na Esquerda de que o neo liberalismo efetivamente enfraqueceu o poder do Estado nas socie-dades ocidentais modernas, e que é chegada a hora de abandonarmos a postura antiestatista e antitotalitarista associada à crítica do stalinismo e ao autonomismo utópico dos anos 60 e 0. Enfim, é tempo de constatar-mos, com não pequeno constrangimento, que talvez tenhamos sido cúm-plices do Mercado em sua luta para diminuir e subjugar o Estado, última barreira protetora dos direitos do povo contra a sanha do Capital. Essa é uma discussão complexa, que não tenho espaço nem realmente com-petência para aprofundar. Mas não posso deixar de dizer que não acre-dito nem um pouquinho nisso. A ideia de que o capitalismo globalizado acarretou uma diminuição do poder do Estado parece-me inverossímil.

31. Este é um ponto que não escapou a Lefort. Comentando a ideia de Clastres-lido-por-Gauchet segundo a qual a instituição do social é concebida, nas sociedades primitivas, como se engendrando em um lugar outro, o autor observa, com absoluta precisão: “[N]ão deve-mos perder de vista que, se a noção de alteridade é onipresente, ela permanece entretanto não localizável, sem remeter a uma instância definida, jamais se fazendo signo da presença de um ‘grande outro’. Para falar como Clastres, o outro não é o Um” (Lefort 18: 01).32. Ver Viveiros de Castro 00, cap. 1.

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À parte o fato de que foi e continua a ser preciso um gigantesco aparelho regulador e interventor, administrado pelo Estado, para produzir a “des-regulação” da economia, bem como para sustentar política e militarmente um mercado livre que não é nem uma coisa nem outra, não é preciso ser um fanático anarcoautonomista para perceber que jamais o Estado esteve tão presente, tão perto da vida cotidiana. A Grã-Bretanha, por exemplo, com suas câmeras de vigilância penduradas por toda parte, seus agentes secretos infiltrados nos movimentos civis, sua polícia neo-orwelliana, transformou-se em um espaço de autoespionagem universal e perpétua; nos Estados Unidos, a Guerra contra o Terror justificou uma invasão dos espaços privados e uma violação das liberdades públicas como jamais se viu na história das democracias modernas, gerando, de resto – ou fortale-cendo –, um microfascismo “cidadão” que tornou a paranoia o modo de produção dominante da subjetividade nativa. E no mundo inteiro, vemos o aparelho jurídico-policial dos Estados nacionais prestando seu apoio solícito aos esforços das corporações transnacionais para cercar defini-tivamente os commons da noosfera e esmagar com a máxima violência qualquer resistência à bioeconomia política do Capital.33

Enfim, não é preciso recorrer a Agamben e à sua tese sobre o es-tado de exceção (o Estado como “in-fundado” no estado de exceção), ou reencaminhar o leitor ao utilíssimo manual de antifeitiçaria de Pignarre e Stengers, para manter que se deve levar perfeitamente a sério uma ob-servação feita por Clastres em 14, e apresentada por um historiador como evidência cristalina da “fixação” do antropólogo gascão34 no fan-tasma do totalitarismo:

33. Veja-se o caso exemplar de Marie Mason e o “Green Scare” (< migre.me/3PxMN >), entre outros. O ativista ecológico se vê promovido a terrorista, e o “pirata” que baixa músi-cas na internet é aproximado da figura terrível do “inimigo de todos” (Heller-Roazen 00), a tal ponto que hoje a situação se inverteu, e todos nos tornamos os inimigos do Um; todos nós fomos transformados em terroristas virtuais diante do Estado.34. Prado Jr. (supra) lembra que Clastres, nascido na Gasconha (“como D’Artagnan”), só foi aprender o francês, arquétipo moderno de toda língua maior ou de Estado, na escola. Esse detalhe biográfico ilumina particularmente a leitura do cap. 4 deste livro, “Do etnocí-dio”, ajudando a perceber algo do substrato existencial do discurso clastriano.

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Nada, senão uma fixação no totalitarismo, pode explicar essa recomenda-ção feita por Clastres em uma entrevista: “E não devemos nos deixar le-var pelas aparências […] Em todas as sociedades ocidentais, a máquina do Estado está se tornando cada vez mais estatista, o que quer dizer, cada vez mais autoritária […] com o amplo apoio da maioria”. Ele acrescen-tava: “A máquina do Estado está se encaminhando para uma espécie de fascismo, não o fascismo de um partido, mas um fascismo interior”. To-dos procuram a autoridade para mandar, mesmo aqueles que prometem usar o Estado em nome da liberdade. (Moyn 004: )35

Se lembrarmos do que se passava em 004, quando Moyn escrevia estas linhas, nos Estados Unidos e em tantos outros lugares santos da democra-cia no Ocidente, até que o juízo de Clastres não soa tão paranoico assim. E ele não difere muito, no frigir dos ovos, do que já previa o sagacíssimo Tocqueville (Moyn 005: 1). Por fim, se os leitores preferirem a opinião de outro especialista inconteste na cultura política francesa, e que não pode ser considerado um anarquista hidrófobo, recordemos então Tony Judt (010; cito a versão on-line):

O Estado, longe de desaparecer, pode estar às vésperas de alcançar seu triunfo total: as prerrogativas da cidadania, a proteção fornecida pelos documentos que consignam os direitos de residência, todas essas coisas vão ser utilizadas como trunfos políticos. Demagogos intolerantes, surgidos de dentro de nossas democracias estabelecidas, irão, muito em breve, começar a exigir “testes” – de conhecimentos, de linguagem, de atitude – para decidir se todos esses imigrantes desesperados, acabados de desembarcar, merecem ou não a “identidade” britânica, ou holandesa, ou francesa. Já se está fazendo isso. Neste admirável novo século, vamos sentir saudade dos tolerantes, dos marginais – do povo da borda [the edge people ].

Bem, talvez Pierre Clastres não fosse especialmente tolerante. Mas ele pertencia sem dúvida ao povo da borda, em mais de um sentido. Pois o

35. A citação de Clastres provém da entrevista a L’Anti-Mythes, in Clastres [15] 003: 0.

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caso é que todos nós precisamos em algum momento, na verdade, a cada momento, escolher entre “tornar-se índio” – habitar a margem e viver nas bordas (não é preciso passar a dormir debaixo da ponte; estamos fa-lando de outra coisa) – ou permanecer no centro fortificado, confortavel-mente identificado ao colonizador. Uma questão de, como direi?, “gosto”.

Entre a filosofia e a etnologia

A crítica de Clastres à antropologia levistraussiana, fundada na convicção de que haveria dimensões importantes da vida humana que escapavam tanto à metodologia do estruturalismo como à sua ontologia do social, foi um dos primeiros sinais da virada pós-estruturalista do pensamento francês nas cercanias de 168, que trouxe a filosofia política (e a política da filosofia) para o centro da cena. Clastres e Sebag, de fato, eram os dois candidatos naturais ao papel de mediadores entre o projeto cientí-fico de Lévi-Strauss e o horizonte filosófico mais amplo em que esse pro-jeto, nolens volens, estava situado.36 A morte de ambos interrompeu essa comunicação incipiente, induzindo uma fase de dormência filosófica da antropologia francesa de que esta só recentemente começou a despertar, e isso graças mais à iniciativa de uma nova geração de filósofos (onde cabe destacar a estratégica intervenção inicial de Jean Petitot, e, nos úl-timos anos, a reflexão de Patrice Maniglier) que aos herdeiros discipli-nares de Lévi-Strauss.37

36. Lévi-Strauss sempre marcou, com ênfase não destituída de altivez, a distância entre suas preocupações e as da filosofia “do seu tempo”. Como se ele não percebesse (ou fingisse não perceber) que sua própria obra ia contribuindo de maneira decisiva para modificar a filosofia do seu tempo, e que além disso, para além das diferenças de estilo, de objeto, ou de ascendência teórica, era evidente a emergência de um campo problemático transdisciplinar, comum aos diversos “estruturalismos”, inclusive aqueles em que Lévi-Strauss não se reco-nhecia (Deleuze 1; Maniglier 011).37. Dentre estes últimos, a parcela mais dinâmica dedicou-se, de início, a cultivar um cognitivismo de inspiração chomskyana; mais tarde, parece ter aderido ao catecismo da psicologia evolucionária. A maioria dos herdeiros, porém, refugiou-se em uma prática et-nográfica tendendo ao burocrático, marcada por um grande rigor descritivo e uma modesta >

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Recoloca-se, portanto, a questão da utilidade da obra de Clastres no cenário político e filosófico contemporâneo. Neste momento, em que pensar se tornou tarefa da mais profunda urgência e da mais extrema gra-vidade – quem ainda não se deu conta de que “nossa civilização”, com toda a certeza, e nossa espécie, com forte probabilidade, entraram em uma crise de dimensões absolutamente inauditas? e que essa crise está destruindo boa parte da vida não humana no planeta? – neste momento, perguntávamos, o excêntrico etnólogo gascão e sua estranha sociedade primitiva continuam bons para pensar?

* * *

É sem dúvida por via da filosofia que a obra de Clastres se inscreve na história intelectual e pode aspirar a uma atualidade no presente. Mas essa obra consiste, primeiro que tudo, em uma intervenção no campo da antropologia social ameríndia, intervenção esta que veio fecundar a filosofia ocidental com o aporte do pensamento dos selvagens, abrindo a possibilidade de um autêntico devir-índio do conceito (e aqui, outra vez, Clastres prolonga Lévi-Strauss).

Costuma-se considerar Pierre Clastres como antropólogo de uma nota só, defensor de uma tese monolítica, a “sociedade-contra-o-Estado”. Note-se, de saída, que essa forma de organização da vida coletiva é, na verdade, definida pelo autor por uma dupla relação inibitória: uma inibi-ção interna ou intracomunitária, a chefia sem poder, e outra externa ou intercomunitária, o dispositivo centrífugo da guerra. Tal distinção, em si mesma, sugere a possibilidade de interpretações filosóficas distintas, se não divergentes, da obra de Clastres. Como toda possibilidade aspira à realidade, isso foi naturalmente o que aconteceu. Há de fato duas lei-turas principais dessa obra: a fenomenológica e a deleuzo-guattariana.

imaginação teórica – com as exceções de praxe, escusado dizer. Nos últimos cinco anos, a obra de Philippe Descola (005) aparece sem dúvida como a primeira tentativa de fôlego da antropologia francesa de retomar a trajetória interrompida do pensamento estruturalista, em bases próximas à inspiração levistraussiana.

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Sua coabitação um tanto problemática não foi até agora, tanto quanto eu saiba, objeto de nenhuma menção mais explícita pelos comentadores, e menos ainda de uma reflexão aprofundada. As linhas abaixo, por isso, têm apenas um valor sugestivo e preliminar.

A primeira leitura da obra de Clastres põe a ênfase na determina-ção que ali teria sido feita de uma “função política” invariante através de todas as sociedades. O propósito ou resultado dessa função seria “consti-tuir um lugar onde a sociedade aparece para si mesma” (Richir 18: 6). A sociedade-contra-o-Estado é definida, nesses termos, por um certo modo de representação política, e a política ela própria é concebida essencialmente como um modo de representação (antes que um modo de funcionamento ou um exercício – Lima & Goldman 003: 15), um dispositivo de projeção de um duplo molar do corpo social no qual este se reconhece (“aparece”) como tal. A figura do chefe sem poder – a inibição interna, objeto dos primeiros trabalhos de Clastres – avulta aqui como o aporte decisivo do autor, que teria descoberto uma nova ilusão transcendental (Richir op. cit.: 66), um novo modo de instituição (necessariamente imaginária, no sentido de Castoriadis) do social. Digo novo, mas tratar-se-ia de fato do modo arcaico ou originário da socialidade humana; o modo, a pa-lavra se impõe, natural. Ele consistiria na retroprojeção de um Exterior, uma “Natureza” que é preciso negar para que a Cultura ou Sociedade se instituam, mas que é preciso ao mesmo tempo (e para isso mesmo) re-presentar dentro do socius por um simulacro que é, justamente, o lugar destinado à figura do poder. Surge assim o chefe como quase-natureza, o elemento excluído do circuito socializante da troca, a imagem invertida da coletividade: o líder, espelho do grupo, reflete para este sua face una e indivisa. É da natureza da sociedade (primitiva ou natural) separar-se de uma natureza não social que lhe sirva de Outro, e representá-la no interior.

Essa interpretação efetua o que se poderia chamar, com licença do trocadilho, uma verdadeira “redução fenomenológica” da sociedade-con-tra-o-Estado. Redução feita com a complacência do inventor do conceito, diga-se de passagem. Refiro-me com isso à proximidade entre Clastres e os intelectuais reunidos à volta de Claude Lefort na concepção da revista Textures e em seguida da Libre, onde foram publicados os três últimos

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capítulos do presente livro. Lefort, aluno de Merleau-Ponty, egresso do movimento trotskista, com o qual rompeu em 148, cofundou com Cor-nelius Castoriadis o legendário Socialismo ou Barbárie, grupo que teve um papel de destaque na história do pensamento libertário na França. A marca registrada desse agenciamento fenomenológico-socialista (que incluía Marcel Gauchet até sua conversão ao liberalismo, a partir dos anos 80) era a combinação de um radical antitotalitarismo político com um não menos radical humanismo metafísico, que já se revelava, por exemplo, no tipo de crítica “antitroquista” cedo dirigida por Lefort (151) contra o estruturalismo, bem como em sua tentativa de trazer os primitivos para o regaço da História, ao propor – supostamente contra Hegel e o materia-lismo histórico – a existência de “modos de historicidade” próprios, os quais exprimiram posições intencionais características de cada sociedade, reflexos de suas maneiras singulares de habitarem o tempo.

A rejeição por Lefort da teoria levistraussiana da troca e da busca estruturalista das regras formais subjacentes à prática, em favor de um entendimento da “conformação [mise en forme] das relações vividas en-tre os homens” (Lefort 18: 18), pode ter tido alguma influência sobre Clastres, ainda que este deva mais, no que respeita ao seu antitroquismo, à Genealogia da Moral, tendo tomado sua inspiração do Anti-Édipo, isto é, do Nietzsche deleuziano. De qualquer modo, a formação de nosso etnólogo gascão mostra uma óbvia dívida para com o universo de temas e problemas da fenomenologia (lato sensu). Ele sempre reconheceu, por exemplo, a im-portância formativa de Heidegger sobre seu pensamento, que transparece em sua interpretação das concepções indígenas sobre a linguagem, ou na ideia (melhor dizendo, neste caso, na fórmula) de um “ser-para-a-morte” do guerreiro selvagem, avançada em seu último texto publicado.38 Recipro-camente, é muito mais no ambiente filosófico-fenomenológico do que no

38. É interessante observar, nesse sentido, como Clastres recorre ao tópico de uma oposição fundamental entre linguagem e violência em seu artigo inaugural de 16 sobre a chefia (Sebag diria o mesmo, mas sobre seu próprio projeto teórico-político, na primeira linha de Marxisme et structuralisme). Inversamente, a última teoria da sociedade primitiva (o cap. 11 do presente livro), que recupera a “violência” como instrumento de liberdade antes que de dominação, permanece muda sobre a linguagem e seus funcionamentos possíveis nessa outra direção.

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antropológico-estruturalista que a obra de Clastres continua a repercutir na França, como dá testemunho a coletânea L’Esprit des lois sauvages, onde se destacam, pela profundidade do engajamento com o pensamento do ho-menageado, as contribuições de Miguel Abensour, Marc Richir e Claude Lefort, três filósofos desta persuasão. Abensour (18a: 11), por exemplo, é explícito em sua generosidade cooptativa: “A obra de Clastres faz parte de uma abordagem fenomenológica […]”.39

O que vai sobretudo caracterizar a “leitura Libre” da obra de Clas-tres é uma interpretação canonicamente metafísica da ideia de uma an-tropologia política. Segundo essa concepção, a essência do humano é política; a dimensão do político arranca o homem do domínio da na-tureza, fazendo o “animal político” deixar de ser apenas um animal, e tornando-o um ser dividido, simbólico e autotranscendente; carente e capaz, ao mesmo tempo, de representar para ser. A novidade do gesto de Clastres teria consistido, conforme essa leitura, em redefinir a extensão referencial do conceito do político, ao incluir aquelas sociedades tradi-cionalmente tidas por “pré-políticas”, mas também em reformular sua compreensão, dissociando o político da necessidade estatal. Indo mais longe, poder-se-ia talvez dizer que Clastres, a rigor, inverteu o sentido, a referência e a “vetorização histórica” do conceito de sociedade polí-tica. As verdadeiras sociedades políticas – porque verdadeira ou mais integralmente humanas – são as sociedades primitivas, aquelas contra o Estado.40 Semelhante inversão, naturalmente, não rompe com a meta-física antropológica: a política permanece antropogenética e antropoté-lica. Em uma palavra, antro pocêntrica. Na reveladora palavra de Lefort,

“somente o homem pode revelar ao homem que ele é um homem […]”.41

39. Ou “está incluída em uma perspectiva fenomenológica” [fait partie d’une approche phénoménologique].40. É nesse sentido, em particular, que Clastres “permanecia um evolucionista, e supunha um estado de natureza, com a diferença de que esse estado de natureza era, para ele, uma realidade plenamente social…” (Deleuze & Guattari 180: 445).41. Citado por Abensour (18b: 141). A forte ênfase de Clastres na determinação do eco-nômico pelo político (ver os caps. 8 e 10 supra) pode ter uma de suas raízes – haverá decerto outras – em tal humanismo.

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O extra-humano, mesmo ali onde ele é um elemento integral à consti-tuição (especular) da humanidade, pertence ao domínio da crença, é um conteú do espiritual do humano; a exterioridade é, precisamente, uma ilusão transcendental. Revelação, ilusão; revelação…42

* * *

A segunda apropriação filosófica da etnologia de Clastres põe a ênfase na inscrição de fluxos antes que na instituição de imagens, nos códigos semiótico-materiais antes que na Lei simbólica, na segmentaridade flexí-vel e molecular antes que na macropolítica binária do interior e exterior, na máquina de guerra centrífuga antes que na chefia centrípeta. Estou me referindo, bem entendido, à leitura livre feita por Deleuze e Guattari no díptico Capitalismo e esquizofrenia, os “famigerados” (no duplo sentido, o rosiano e o dicionarizado) o Anti-Édipo (1) e Mil platôs (180), onde as ideias de Clastres são utilizadas como um dos principais elementos para a montagem de uma antropologia radicalmente materialista, isto é, não hu-manista e não representacionalista, muito diversa do espiritualismo polí-tico que transpira das interpretações fenomenológicas da obra clastriana.43

42. Isso dito, deve-se registrar que a reflexão de Lefort seguiu adiante, e que, por exemplo, suas ideias sobre a relação entre o ritual, a religião e a política (inspiradas no trabalho de Hocart) constituem uma alternativa estimulante ao caminho que leva de Clastres a Gauchet. O artigo de Lefort em L’Esprit des lois sauvages merece ser lido pelos antropólogos com toda a atenção.43. Para a leitura fenomenológica ou representacionalista de Clastres, a “guerra” primi-tiva − o segundo dispositivo inibitório − não deixará de constituir um desafio e um enig-ma. Nota-se assim, em alguns dos comentários reunidos em L’Esprit des lois sauvages, uma dificuldade de pensar a violência guerreira em toda a sua positividade, em vista da pres-suposição de que o laço social é primordialmente determinado como philia (como Amity, diria Meyer Fortes). “Como pensar juntas a guerra e a amizade?” (Abensour 18b: 13). A exclusão violenta do inimigo aparece, por assim dizer lamentavelmente, como condição da unidade intracomunitária; a Amity se define primeiro que tudo como não-Inimizade, an-tes que o inverso. Isso é um paradoxo quase intolerável para um pensamento que identifica a socialidade à koinonia cristã (id. ibid.: 141). Outra formulação do paradoxo clastriano: a guerra como “relação que separa, que opõe os homens entre si e […] ao mesmo tempo os conecta sob o signo de uma multiplicidade refratária à totalização” (loc. cit.). Relação que separa… a fórmula só parecerá paradoxal a quem não leu Wagner, Strathern – ou Deleuze.

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O Anti-Édipo foi um livro essencial para Clastres, que assistiu aos cursos onde ele foi ensaiado (Prado Jr., supra, p. 16), ao mesmo tempo em que sua própria obra ia sendo incorporada ao argumento de Deleuze e Guattari. Mil platôs, por sua vez, publicado após a morte de Clastres, critica e desenvolve em uma direção inteiramente nova as intuições do autor. Deleuze e Guattari completaram o trabalho de Clastres, liberando-o de sua “ganga mística” e atualizando uma riqueza conceitual que nele permanecera em um estado até certo ponto incoativo. O silêncio em-baraçado com que a disciplina antropológica acolheu os dois livros de Deleuze & Guattari, nos quais tem lugar um dos diálogos mais inspira-dores já travados entre a filosofia e a antropologia, talvez explique (e/ou se explique por) o mal-estar análogo que a obra de Clastres provoca no prudente e pundonoroso meio acadêmico. “Parece-me que os etnólogos deveriam se sentir em casa no Anti-Édipo”, saudava Clastres (citado in Guattari 00: 85). Pode ser, mas a grande maioria deles não se sentiu nem um pouco assim.44

No Anti-Édipo, a sociedade-contra-o-Estado se tornou a “máquina territorial primitiva”, perdendo suas conotações parasitas de Sujeito cole-tivo e transformando-se em um puro modo ou regime de funcionamento, orientado para a codificação exaustiva dos fluxos materiais e semióticos que constituem a produção desejante humana. Essa máquina territorial enquadra os fluxos, investe os órgãos, marca os corpos: ela é uma má-quina de inscrição. Seu funcionamento supõe a unidade imanente do desejo e da produção que é a Terra. A questão clastriana da chefia sem poder se vê ressituada em um contexto geofilosófico mais amplo: a von-tade de não divisão que o etnólogo via no socius primitivo se torna aqui impulso de codificação absoluta dos fluxos e de preservação da coexten-sividade entre o corpo social e o corpo da Terra. A conjuração “anteci-patória” de um poder separado é a resistência dos códigos primitivos à

44. O silêncio quase geral do estabelecimento antropológico sobre esses dois livros de Deleuze & Guattari, especialmente notável no caso da própria França, é objeto de um dis-creto protesto em Viveiros de Castro 00. Para uma avaliação muito perceptiva do compo-nente antropológico do Anti-Édipo, ver Hermano Vianna 10.

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sobrecodificação despótica, a luta da Terra contra o Estado desterrito-rializador. A intencionalidade coletiva que se exprime na recusa da uni-ficação por uma instância sobrecodificante perde, portanto, sua máscara demasiado antropomórfica, tornando-se – e aqui já estamos usando a linguagem de Mil Platôs – um dos efeitos de um certo regime de signos (a “semiótica pré-significante”) e da dominância de uma segmentaridade primitiva marcada por uma “linha relativamente flexível de códigos e ter-ritorialidades entrelaçados” (Deleuze & Guattari 180: 1).45

A conexão principal entre o Anti-Édipo e a reflexão de Clastres está em uma comum, embora não exatamente idêntica, rejeição da troca en-quanto “princípio” fundador da socialidade. O Anti-Édipo sustentava (este é um antigo tema de Deleuze) que a noção nietzschiana de dívida deveria estar no lugar eminente ocupado pela reciprocidade de Mauss e Lévi-Strauss. Clastres, em seu primeiro artigo (de 16) sobre a filosofia da chefia indígena – uma crítica cuidadosamente sinuosa a um texto de Lévi-Strauss que pensava a chefia como resultado de uma troca recíproca entre o líder e o grupo –, já havia sugerido que a concepção indígena do poder implicava ao mesmo tempo uma afirmação da reciprocidade e sua negação, ao colocar o lugar do chefe fora de sua esfera – na posição, pre-cisamente, de devedor unilateral perpétuo do grupo. Sem retirar da troca seu valor sociológico fundante, Clastres introduzia a necessidade política instituinte de uma não troca.46 Em seus últimos artigos sobre a guerra, a disjunção entre troca e poder se transforma, entretanto, em uma curiosa ressonância. Ao deslocar-se da relação intracomunitária para a relação intercomunitária, a negação da troca se converte na essência mesma do socius primitivo. A sociedade primitiva é “contra a troca” pelas mesmas razões que é contra o Estado: porque ela deseja a autarquia e a autono-mia – porque ela “sabe” que toda troca é uma forma de dívida, isto é, de dependência, mesmo que recíproca. No artigo sobre a chefia, em outras

45. Sobre a semiótica pré-significante, id. ibid.: 14-ss.46. Essa negatividade, em Lévi-Strauss, permaneceria na esfera do imaginário; recorde-se o célebre parágrafo final das Estruturas elementares do parentesco, que remete à desneces-sidade da troca para o Além. A passagem, aliás, é retomada literalmente por Clastres na conclusão de seu artigo sobre a filosofia da chefia ([14] 003: 63).

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palavras, a crítica – antropológica e indígena – da troca é simbólica; a troca é afirmada em sua negação, ela se desdobra, por assim dizer, para dentro de si mesma. No ensaio sobre a “violência”, em contrapartida, a troca efetivamente se divide ou lamina em dois planos distintos: no plano

“antropológico” ou “sociológico” ela é primeira e fundante (a proibição do incesto), no plano “etnológico” ou “político” ela é um mero instru-mento (a aliança intercomunitária com fins guerreiros) de uma não troca que se torna o fim supremo do socius primitivo, a saber, a autonomia.

Mil platôs desenvolve as teses de Clastres em dois longos capítulos: um sobre a “máquina de guerra”47 enquanto forma pura de exterioridade (em termos da qual a guerra propriamente dita tem um papel secundário), por oposição ao Estado enquanto forma de interioridade (em termos da qual suas expressões institucionais, administrativas por exemplo, têm um papel talvez igualmente secundário); e o outro sobre o “aparelho de cap-tura”, que expõe uma teoria do Estado como um modo de funcionamento copresente aos das máquinas de guerra e dos mecanismos de inibição-conjuração característicos (não exclusivos) das sociedades primitivas. Esses desenvolvimentos modificam não só alguns aspectos das proposi-ções de Clastres, como algumas categorizações axiais do Anti-Édipo. As-sim, por um lado, o esquema linear Selvagens-Bárbaros-Civilizados deste primeiro livro se desdobra lateralmente, passando a incluir a figura que se poderia chamar “suprassegmental” do Nômade, ao qual a máquina de guerra passa a estar definicionalmente associada. Por outro lado, no Mil platôs surge uma nova tripartição, derivada do importante (e ausente do livro anterior) conceito de segmentaridade: (1) a linha flexível e polívoca dos códigos e territorialidades (as sociedades primitivas); () a linha rí-gida de sobrecodificação e de ressonância generalizada (o aparelho de Estado); (3) as linhas de fuga definidas pela decodificação e desterrito-rialização (a máquina de guerra). A sociedade primitiva de Clastres, que corresponde aos “Selvagens” do Anti-Édipo, deixa de ser a “inventora” da máquina de guerra e assim de ser definida por ela; ela apenas lançaria

47. Onde uma seção tem a dedicatória: “Homenagem à memória de Pierre Clastres”.

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mão da máquina como uma forma de exterioridade, a fim de conjurar as tendências de sobrecodificação que estão sempre prestes a investir os códigos e territorialidades primitivas. Estas e estes funcionam segundo um regime de inibição da ressonância dos centros de poder (dispersão, molecularidade, multiplicidade): o regime primitivo é essencialmente a antecipação-conjuração do Estado por inibição da ressonância segmen-tar.48 Do mesmo modo, o Estado pode capturar a máquina de guerra – que é, não obstante, sua nêmesis – e pô-la a seu serviço, não sem correr o risco de ser destruído por ela (caso do nazismo). Por fim, as sociedades contemporâneas continuam “imersas em um meio [tissu] flexível fora do qual seus segmentos rígidos não se sustentariam” (Deleuze & Guattari

180: 5-60). Com isso, a dicotomia exaustiva e mutuamente exclusiva entre dois macrotipos de sociedade (“com” e “contra” o Estado) se di-versifica e complexifica. As linhas coexistem, se entrelaçam e se transfor-mam umas nas outras; o Estado, a máquina de guerra, a segmentaridade primitiva perdem suas conotações tipológicas e se tornam formas ou mo-delos abstratos, atualizando-se em procedimentos e substratos materiais múltiplos: em estilos científicos, filos tecnológicos, atitudes estéticas e sistemas filosóficos tanto quanto em formas de organização macropolí-tica ou modos de representação-instituição do socius.

Finalmente, ao mesmo tempo que eles incorporam uma tese fun-damental de nosso autor, quando afirmam que não é o Estado que se explica por um desenvolvimento das forças produtivas, pois, antes que supondo um modo de produção, é o próprio Estado que faz da produ-ção um “modo” (op. cit.: 534), Deleuze e Guattari esbatem o contraste radical e intransigente entre o político e o econômico característico de Clastres. Como se sabe, a posição dos dois volumes de Capitalismo e esquizofrenia face ao materialismo histórico – ao etnomarxismo francês inclusive – é bastante diferente daquela do autor de “Os marxistas e sua antropologia” (cap. 10). Por outro lado, e este é um ganho decisivo, no Mil platôs a questão da origem do Estado deixa de ser o mistério que,

48. Essa ideia de uma inibição de ressonância dos centros tem uma implicação importante para a concepção da chefia primitiva.

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no fundo, ela sempre foi para Clastres (o mau encontro… a demogra-fia… a exteriorização da origem…), e se torna o exemplo mesmo de uma não questão. O Estado deixa de ter uma origem “histórica”, pois o tempo ele próprio é o sítio de causalidades reversas, não evolucionárias (op. cit.: 53); e o Estado existiu “desde sempre”, sob forma de virtua-lidade imanente, inclusive nas sociedades primitivas. Não apenas há uma muito antiga presença atual do Estado “fora” das sociedades pri-mitivas – atesta-o a arqueologia, ciência assaz louvada no Mil platôs –, mas sua perpétua presença virtual “dentro” dessas sociedades, sob a forma dos maus desejos que é preciso conjurar e dos focos de resso-nância segmentar que estão sempre a se formar.49 A desterritorialização bárbaro-estatal não é historicamente segunda em relação ao território selvagem-primitivo, os códigos não são separáveis do movimento de decodificação (op. cit.: 1).

Criticadas e requalificadas, as teses expostas nos textos curtos e la-pidares de Pierre Clastres têm, em suma, um peso decisivo na dinâmica conceitual de Capitalismo e esquizofrenia. Em particular, a teoria clastriana da “guerra” enquanto máquina abstrata de geração de multiplicidade, oposta, em sua essência, ao Estado sobrecodificador – a guerra como inimiga número um do Um –, desempenha um papel-chave nesse que é um dos maiores sistemas filosóficos do século xx.

* * *

“Por que voltar aos primitivos, pois que se trata da nossa vida?”, per-guntam-se filosoficamente, a certa altura, Deleuze e Guattari (180:

54). Às vezes gosto de imaginar que Clastres jamais teria aceito essa pergunta. Como bom etnólogo que era, penso que ele a teria refor-mulado de modo a conter sua própria resposta: “Por que voltar aos

49. Ver o comentário aprovativo de Clastres à noção de “Urstaat” in Guattari 00: 86. Sobre o “fora” e o “dentro”, atente-se para a observação absolutamente crucial de Deleuze e Guattari: “A lei do Estado não é a lei do Tudo ou Nada (sociedades com Estado ou contra o Estado), mas a lei do interior e do exterior” (180: 445).

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primitivos? Porque se trata de nossa vida”. Talvez essa diferença, que, repito, meramente imagino, sirva para considerarmos a distância que (ainda ou sempre) separa essas duas artes da distância, a filosofia e a etnologia.

Entre a antropologia e a etnologia

As diversas descobertas arqueológicas recentes que trouxeram à luz vestígios, na Amazônia, de formações sociais semelhantes às chefatu-ras circum-caribenhas – senão mesmo, talvez, às velhas civilizações do planalto dos Andes e da costa do Pacífico –, bem como o progresso dos estudos históricos sobre as zonas de contato e os processos de inter-câmbio entre os entes sociopolíticos andinos e os coletivos das Terras Baixas do continente, vêm dar razão a uma observação crítica com que Clastres abre um de seus primeiros artigos, o importante “Independên-cia e exogamia”:

A oposição tão contrastante entre as culturas dos planaltos andinos e culturas da Floresta Tropical, salientada por narrativas e relatos dos missionários, soldados, viajantes dos séculos xvi e xvii, foi mais tarde acentuada até o exagero: pouco a pouco, desenhou-se a imagem popu-lar de uma América pré-colombiana inteiramente entregue à selvageria, com exceção da região andina, onde os Incas tinham conseguido fazer triunfar a civilização. ([163] 003: 6 )

O artigo, por suposto, empenha-se em desfazer tal estereótipo. O objetivo é tanto mais interessante quanto se recorda que o autor, mais tarde, será acusado de avançar uma imagem genericamente selvagem ou “simples” da Floresta Tropical, com sua monolítica sociedade-contra-o-Estado. Os acusadores esquecem de que não há nada de selvagem nem de simples, no sentido de rudimentar ou de deficiente, na sociedade primitiva de Clas-tres. Há algo de natural, talvez, como já observamos: mas no sentido de mais conveniente, mais apropriado à constituição humana; algo de mais

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sofisticado, em suma. Ou alguém duvida que Clastres admirasse profun-damente a invenção política indígena?

Os progressos da arqueologia e da ecologia histórica amazônicas têm desmentido (em larga mas ainda um pouco controversa medida) a tese que afirmava a existência de limitações ambientais − climáticas, pedológicas, faunísticas −, para explicar o que seria uma condição de

“simplicidade” sociopolítica e modéstia demográfica das formações das Terras Baixas do continente. Clastres certamente subscreveria essa contestação da ideia de um condicionamento ecológico negativo para a morfologia social amazônica; a sociedade contra o Estado é uma socie-dade de afluência, estando a um só tempo aquém e além da necessidade − suficiência e extravagância se reforçam mutuamente. O determinismo demográfico do autor, se este é realmente o termo adequado, não se as-sentava em qualquer outro determinismo material, sendo mais bem uma questão do controle político que a sociedade exerce sobre seu efetivo populacional; é a perda de tal controle que, entre outras coisas, estaria associada ao nascimento do monstro Estado,50 o que, bem entendido, nada tinha a ver com variáveis ambientais.51

Mas, longe de irem na direção de Clastres, as tendências atualmente dominantes na arqueologia amazônica parecem, por vezes, apenas inver-ter a tese da limitação ambiental e transformá-la em um determinismo positivo: o meio amazônico não só permitiria, como teria induzido a formação de morfologias protoestatais ou mesmo miniestatais. A inten-cionalidade política, seja ela concebida em termos subjetivistas ou como objetivamente imanente ao funcionamento da máquina social, continua fora da cena. Para a perspectiva da “ecologia cultural” ou do “materia-lismo cultural”, profundamente enraizada no conceituário da arqueologia amazônica (verdade que não de toda ela), uma sociedade apenas reage ao

50. E a própria direção da causalidade é problemática: “Todos os Estados são natalistas” (cf. supra, p. 315), mas nem todo crescimento demográfico seria estatista, ou só ocorre quando o Estado já se introduziu no tecido social e afrouxou os controles populacionais “primitivos”.51. Ver cap. 4 de A sociedade contra o Estado, “Elementos de demografia ameríndia”.

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que lhe é imposto – se não como restrição, então como incitação – pelos parâmetros termodinâmicos do ambiente.

Assim, a descoberta ou redescoberta de evidências históricas e arqueológicas de “grandes trabalhos” (ou pelo menos, de médios tra-balhos), de antigas morfologias “galácticas”, multilocais, de centros regionais, de funções e ofícios rituais hierarquizados, de institutos mais ou menos rígidos de estratificação social – fenômenos amplamente dis-seminados, mas de modo muito desigual, por toda a Amazônia – tem levado alguns estudiosos, alguns etnólogos em especial, fortes do saber alheio, a desqualificar cabalmente o conceito da “sociedade-contra-o-Estado”.52 Segundo eles, a ideia clastriana não passaria de um puro ar-tefato, e um artefato duplamente europeu – entenda-se, etnocêntrico. Primeiro, e mais geralmente, ela seria a projeção ideológica de algu-mas velhas utopias ocidentais que haviam recuperado liquidez durante a fatídica década de 160; segundo, e mais especificamente, ela tomaria por um estado de coisas originário o que é, na verdade, o resultado de uma dramática involução – demográfica, tecnológica, sociopolítica – das sociedades das Terras Baixas a partir do século xvi, pelas razões que se conhece.

O fato de que esses dois argumentos invalidantes, em que pese a sua independência mútua (senão contradição interna), tenham sido mo-bilizados ao mesmo tempo por certas correntes da etnologia atual sugere que estas não estão livres de sua própria carga de preconceitos e proje-ções. Começando pelas utopias “anarcônticas” ocidentais: seria ocioso lembrar o quanto elas devem, precisamente, ao encontro com as socie-dades do Novo Mundo no início da era moderna. Os equívocos foram sem dúvida legião – mas eles não foram arbitrários. Tampouco foi arbi-trário que esse encontro tenha recuperado sua força de utopia (contra)cultural nos anos 60, quando a era moderna, em certo sentido, começou a perceber que terminara. Como, por fim, não é nada arbitrário que a

52. Ver Figueiredo (011) para a conexão (e a desconexão) entre a crítica à tese dos impedi-tivos ecológicos à “complexidade” na Amazônia e a crítica à tese clastriana de um princípio antiestatal operativo nas sociedades da região. Voltaremos a esse artigo.

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revolução conservadora contemporânea tenha alcançado a antropologia sob essa forma, entre outras, de um descrédito lançado sobre as ideias de Clastres. A cada um a projeção que lhe caia melhor.

Sobre o caráter histórico (causado pelos brancos) antes que pré-histórico (causado pelos índios) da primitividade amazônica, observe-se que a focalização estratégica nas forças centrífugas que inibiam o surgi-mento da forma-Estado – a descoberta do significado antropológico e filosófico dessas forças – jamais impediu Clastres de registrar as tendên-cias contrárias no continente sul-americano. Voltemos ao recém-citado

“Independência e exogamia”. Descontando-se a pobreza do material en-tão disponível para a síntese ali tentada,53 bem como alguns escorregões factuais, esse trabalho pioneiro, que pode ser visto como estabelecendo o essencial do programa seguido pela etnologia amazônica das décadas posteriores (Lima & Goldman 003: 1),54 atacava de frente um tema que o acompanharia durante toda a sua carreira, o da determinação das condições que levaram tantas sociedades primitivas do continente a gerar, em algum momento de sua história, “a mais mortal das inovações”, o Estado e a desigualdade social.55

O ensaio destaca “o lento trabalho das forças unificantes [a] solapar o pseudoatomismo” das organizações multicomunitárias das Terras Baixas,56

53. A revisão de Clastres se restringe ao Handbook of South American Indians, com rápidas alusões ao compêndio de Murdock e a alguns trabalhos tipológicos de Kirchoff e Oberg. O ensaio é uma tentativa de reconceituação da organização social da floresta tropical com base nos dados e categorias do HSAI, que ele mais ou menos aceita empiricamente e contesta teoricamente.54. Nesse sentido – inclusive em seus equívocos fecundos – seu papel é análogo ao dos artigos de Lévi-Strauss sobre as estruturas sociais do Brasil Central, que estão na origem do movimento de reestudo dos povos Jê e Bororo, na década de 160, por Maybury-Lewis e seus associados. O papel renovador desses artigos e desse movimento para toda a etnologia sul-americana é bem conhecido; o papel dos trabalhos de Clastres, em troca, é-o menos.55. Tanto quanto me é dado saber, Clastres, curiosamente, jamais mencionou uma das mais célebres hipóteses gerais para a origem do Estado, a “teoria da circunscrição” de Robert Carneiro (10), eminente sul-americanista que concede um lugar de destaque em sua teo-ria aos fatos do continente. A teoria foi desenvolvida (e parcialmente publicada) ao longo da década de 150, até atingir sua forma canônica no artigo de 10.56. A noção de “conjunto multicomunitário”, que será usada com enorme rendimento por >

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bem como a presença de formas de estratificação social e de centralização política na região, sobretudo no norte e noroeste amazônicos, na área cha-mada “Circum-caribe” no Handbook, onde vicejaram aristocracias e pe-quenos “estados” (as aspas são de Clastres). Clastres contrasta de modo perspicaz a dinâmica verticalizante e centrípeta – a diferenciação por cis-mogênese complementar, diria Bateson – dos povos Chibcha, Aruaque e Caribe daquela área com a dinâmica horizontalizante e centrífuga − por cis-mogênese simétrica, então – que deslocava os povos Tupi-Guarani, avessos à estratificação social, igualmente para longe da configuração amazônica de base, mas mantendo uma maior afinidade estrutural com ela do que era o caso das derivas verticalizantes do noroeste. A dicotomia simplista entre as formações do Altiplano e as sociedades das Terras Baixas se vê, assim, dis-solvida, ou antes, diferenciada em um continuum polarizado, onde abundam as formas transicionais, no duplo sentido tipológico e cronológico (o ar-tigo ainda mostra um ligeiro ressaibo evolucionista), ao mesmo tempo que se evidencia a coexistência de dinâmicas contrárias, se não contraditórias, dentro das Terras Baixas. Em poucas palavras, a “sociedade primitiva” de Clastres não é um conceito coextensivo à categoria das sociedades amerín-dias, nem mesmo àquelas das sociedades das Terras Baixas, ou amazônicas.

Por fim, observe-se que a regressão demográfica pós-colombiana, catastrófica como efetivamente foi, não pode explicar tudo da presente paisagem sociopolítica da América indígena. Assim como qualquer outra trajetória evolucionária, a “involução” exprime necessariamente mais, e outra coisa, do que apenas as exigências e limitações adaptativas. É sobre esse excedente crucial de sentido – de morfologia, estrutura, cultura ou his-tória, como se queira – que a pertinência etnológica da tese da “sociedade-contra-o-Estado” está apoiada, e em função do qual ela deve ser avaliada.57

Albert (185) na descrição da estrutura social yanomami, aparece pela primeira vez nesse ensaio de Clastres.57. A melhor ilustração disso é a monografia de Philippe Descola (186) sobre as determi-nações estruturais, isto é, cosmopolíticas, que mantêm a populosa e belicosa sociedade dos Jívaro Achuar – a qual mostra muito poucos estigmas da Conquista – em um estado homeos-tático, ao mesmo tempo economicamente subprodutivo (mas nutricionalmente luxuoso) e politicamente descentralizado.

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A sociedade primitiva talvez fosse, para Clastres, algo como uma essência; mas não era uma essência estática. O autor sempre a conce-beu como um modo de funcionamento profundamente instável, em sua busca mesma de estabilidade a-histórica. Seja como for, o fato de que a sociedade-contra-o-Estado não seja um tipo empírico universal nas Terras Baixas não quer dizer que não existam, como já observamos, afi-nidades eletivas entre as cosmopolíticas amazônicas e o conceito clas-triano: não se trata de coextensividade, e sim de cointensividade – ou de cointensidade. Pois existe, sim, um “modo de ser” muito caracterís-tico do que ele chamou “sociedade primitiva”, e que nenhum etnógrafo que tenha convivido com uma cultura amazônica, mesmo uma daque-las que mostra elementos importantes de hierarquia e de centralização, pode ter deixado de experimentar em toda sua evidência, tão inconfun-dível como elusiva. Esse modo de ser é “essencialmente” uma política da multiplicidade; Clastres pode ter se enganado ao interpretá-la (não é claro que o tenha feito) como se ela devesse se exprimir, em toda parte, como multiplicidade “política”, isto é, como uma forma instituciona-lizada de autorrepresentação coletiva. A política da multiplicidade é um modo de devir antes que um modo de ser (donde sua elusividade); ela é efetivamente instituída ou institucionalizada em certos contextos etno-históricos, mas não depende dessa passagem a um estado molar para funcionar – muito pelo contrário. Esse modo precede sua própria instituição, e permanece em seu estado molecular original (ou retorna a ele) em muitos outros contextos, não primitivos inclusive e sobretudo.

“Sociedade-contra-o-Estado”, em suma, é um conceito que designa um modo intensivo de existência ou um funcionamento virtual onipresente, cujas condições variáveis de extensivização e de atualização compete à antropologia determinar empiricamente. Não basta apontar com o dedo para um déspota faccional xavante, um clã tukano de alta hierarquia ou um “dono de aldeia” alto-xinguano para estourar a ideia da sociedade-contra-o-Estado como se ela fosse uma bolha de sabão – mais uma vez, muito pelo contrário.

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A posteridade de Clastres na etnologia sul-americana tomou dois rumos principais. O primeiro consistiu na elaboração de uma teoria sobre a lógica social amazônica, conhecida por nomes como “economia simbó-lica da alteridade” ou “metafísica da predação” (Lévi-Strauss 000: 0; Viveiros de Castro [13b] 00), que prolonga as teses sobre a guerra primitiva; o segundo foi a descrição do correlato cosmológico da socie-dade-contra-o-Estado, os assim chamados “perspectivismo ameríndio” e/ ou “multinaturalismo” (Lima 16, 005; Viveiros de Castro 16a,

00). Os dois rumos, ou eixos, exploram a hesitação criativa entre ten-dências estruturalistas e pós-estruturalistas que marca a obra de Clastres; ambos privilegiam a leitura deleuzo-guattariana sobre a leitura fenome-nológica dessa obra.58 Juntos, eles definem uma cosmopolítica indígena da multiplicidade perspectiva, que pode ser vista como constituindo uma contra-antropologia, uma potencial antropologia reversa (no sentido de Wagner 181), instalada no intervalo precário “entre silêncio e diálogo”.

Na verdade – a verdade sempre se conta no fim –, os presentes comentários ao trabalho de Clastres têm também esta intenção: assumir claramente, ou, se preferirem, começar a reconstruir polemicamente,

58. Na etnologia brasileira, que responde por uma boa parcela desses desenvolvimentos, Clastres nunca deixou de ser um interlocutor de primeira ordem (Lima & Goldman 001, Barbosa 004). A tese em via de publicação de Sztutman ([005] 011) é a tentativa mais completa de submeter suas ideias a uma atualização etnográfica. Ver também Sztutman

00a, 00b; Perrone-Moisés & Sztutman 010 e Perrone-Moisés [011], para análises e aplicações inovadoras das ideias clastrianas, bem como o artigo de M.V. Figueiredo (011) Não posso fazer mais que registrar, aqui, por fim, o fato de que a presença de Clastres na filosofia brasileira também não é nada desprezível, como atestam os trabalhos de J.A. Giannotti, Bento Prado Jr. ou, mais recente e muito mais focadamente, de Sérgio Cardoso.No mundo anglófono, uma tendência ou escola etnológica sob a liderança de Joanna Ove-ring mostra uma certa inspiração clastriana, inclinando-se entretanto por uma leitura que realça os aspectos supostamente convivialistas e comunitaristas das sociedades amazônicas, ignorando (para dizer o mínimo) o que Clastres chamaria de seu ser-para-a-guerra. (A mo-nografia recente de Rupert Stasch sobre os Korowai da Melanésia traz uma avaliação curta e fina [Stasch 00: -11] dessa concepção gemeinschaftlich da socialidade.) Entre os ama-zonistas franceses, a influência de Clastres é sistêmica, mas quase sempre autorreprimida ou denegada, quando mais não seja porque a anarquia ontológica não está exatamente na ordem do dia na academia local.

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a aliança epistemopolítica do perspectivismo e da metafísica da preda-ção com a leitura clastriana do estruturalismo. E com efeito esta não é uma má maneira de situar os motivos do perspectivismo interespecífico, do multinaturalismo ontológico e da alteridade canibal, que formam como a trama temática e a urdidura metateórica da etnologia amazô-nica (de “uma certa” etnologia, bem entendido) a partir dos anos 80 – não é uma má maneira de fazê-lo mostrando sua derivação a partir da obra clastriana.

* * *

A teoria da guerra de Clastres, embora pareça, à primeira vista, reforçar uma oposição binária massiva entre o Dentro e o Fora, o Nós humano e o Outro menos-que-humano, termina de fato por desdobrar e relativizar a posição de alteridade – e portanto qualquer posição de identidade –, so-lapando o subtexto narcísico ou “etnocêntrico” (ver o cap. 4) que acom-panha por vezes sua caracterização da sociedade primitiva, ou melhor, dissipando a impressão de que é disso que se trata.

Imaginemos a etnologia clastriana como um drama conceitual onde se defrontam um pequeno número de personagens ou tipos: o chefe, o inimigo, o profeta, o guerreiro.59 Todos constituem figuras de alteridade, operadores paradoxais que definem o socius por meio de alguma forma de negação (a sociedade primitiva de Clastres parece sempre projetar uma antropologia negativa, ou talvez contra-afirmativa: contra o Estado, contra a história, contra a economia, contra a troca). Assim, o chefe en-carna o exterior da Troca fundadora da sociedade, e representa o grupo na medida em que tal exterioridade é interiorizada e domesticada: ao tornar-se “o prisioneiro do grupo”, ele permite sua unidade e indivisão. O inimigo nega o Nós coletivo, permitindo que este se afirme contra ele, por sua exclusão violenta; o inimigo morre para assegurar a persistência

59. A discussão da antropologia de Clastres em termos de “personagens” é feita com brio por Sztutman (011), inspirado nas noções de “tipo psicossocial” e de “personagem concei-tual” de Deleuze & Guattari (11).

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do múltiplo, a lógica da separação. O profeta, por sua vez, é o “inimigo” do chefe, ele afirma a sociedade contra a chefia quando esta ameaça escapar do controle do grupo e se afirmar como poder transcendente; ao mesmo tempo, o profeta arrasta a sociedade para uma saída impossível, a auto-dissolução. O guerreiro, por fim, é o inimigo de si mesmo, destruindo-se na demanda da imortalidade gloriosa, impedido pela sociedade que ele defende de transformar seu valor no combate em valor de poder. O chefe é uma espécie de inimigo, o profeta uma sorte de guerreiro, e assim por diante. O destino trágico de Fusiwe, o esposo de Elena Valero, analisado no cap. deste livro, é um exemplo vívido (e vivido) da relação transfor-macional que une as posições de chefe, guerreiro e inimigo.

Essas quatro personagens formam então um círculo de alteridade que contraefetua ou contrainventa a sociedade primitiva.60 Mas no inte-rior do círculo não está o Sujeito, o Eu-Nós, a forma reflexiva da Iden-tidade. O quinto elemento, que pode ser dito o elemento dinâmico cen-tral precisamente por sua excentricidade, é o personagem sobre o qual se apoia toda política da multiplicidade: o aliado político, interposto entre os polos de interioridade e exterioridade ocupados pela comunidade de referência e as comunidades inimigas. Nunca há apenas duas posições no socius primitivo, tudo gira em torno do aliado, o terceiro termo que permite converter a indivisão interna na fragmentação externa e reci-procamente, modulando a guerra indígena e a transformando em uma relação social plena, ou mesmo, como sustenta Clastres, no nexo funda-mental, “arqueológico”, da socialidade primitiva.

60. Ao que caberia acrescentar uma outra personagem que Clastres apenas esboçou, em seu último artigo (o cap. 1 do livro): a mulher, a posição feminina, que completaria dia-leticamente o círculo, ao negar a autonegatividade (o ser-para-a-morte) do guerreiro e se constituir no gênero que controla a reprodução (a vida) da sociedade primitiva. Contra a repisada tese da “dominação das mulheres pelos homens” nas sociedades indígenas (ou dos genros pelos sogros, i.e. dos jovens pelos velhos, por via das mulheres, que já viriam por assim dizer pré-dominadas), Clastres afirma, de modo um tanto surpreendente, que as mu-lheres são as senhoras da sociedade primitiva, enquanto os homens são os servidores desta mesma sociedade. Os homens talvez controlem imediatamente as mulheres; mas estas con-trolam, em última análise, a sociedade que, por sua vez, controla os homens. Metacontrole.

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Os aliados políticos, aqueles grupos locais que formam uma cintura de segurança (e de incerteza) em torno de cada grupo local, são sem-pre concebidos, na Amazônia, sob a guisa da afinidade potencial, isto é, como uma forma qualificada de alteridade (a afinidade), mas uma alteri-dade que permanece alteridade (afinidade potencial), marcada por cono-tações agressivas e predatórias muito mais produtivas ritualmente – isto é, realmente – que a mera inimizade genérica e anônima, ou que a reiteração despotencializante das trocas matrimoniais, criadoras da interioridade social. É a figura instável e indispensável do aliado político que impede tanto uma “reciprocidade generalizada” (a fusão das comunidades em uma unidade sociológica superior) quanto uma guerra generalizada (a atomização suicida do socius). O verdadeiro centro da sociedade, esse conjunto fluido de grupos locais ciosos de sua autonomia, é sempre extra-local, estando situado em todo ponto onde a conversão entre interior e exterior é possível ou pensável. Por isso a “totalidade” e a “indivisão” da comunidade primitiva, sobre que tanto insiste Clastres, não contradi-zem a dispersão e a multiplicidade da sociedade primitiva, antes o con-trário. O caráter de totalidade significa que a comunidade não é parte de nenhum outro Todo hierarquicamente superior; o caráter de indivisão significa que ela tampouco está hierarquizada internamente, dividida em partes que formassem um Todo interior. Totalidade subtrativa, indivisão negativa. Ausência de distinção localizável entre um dentro e um fora. Multiplicação do múltiplo.

É sabido o quanto a teoria clastriana da guerra, em particular como ela se apresenta no ensaio “Arqueologia da violência”, deve ao contato direto e indireto do autor com os Yanomami. A referência mais abali-zada aqui continua a ser a tese hoje clássica – e inexplicavelmente ainda inédita – de Bruce Albert (185). Esse etnógrafo mostrou com perfeita clareza como, na sociocosmologia yanomami, é a morte enquanto evento biocósmico que produz a violência como evento sociopolítico e não o contrário. Isso, que é uma inversão completa da lógica de Clastres, não deixa entretanto de validá-la por um outro caminho. São os pressupos-tos cosmológicos yanomami – sua teoria e prática da morte – que se mostram “contra o Estado”, e não sua teoria da sociedade enquanto

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tal.61 A demonstração de Albert admite, no meu entender, uma conclu-são importante. Assim, quando Sztutman (011: 35) discerne pertinen-temente uma conversão da negatividade em positividade na evolução teórica de Clastres, na medida em que a “sociedade-contra-o-Estado” se reformula em “sociedade-para-a-guerra”, penso que haveria que ir mais longe. Deve-se poder ver (ou seja, defender) algo mais que uma troca de sinal. É preciso inverter a ordem das razões, liberando a teoria clastriana de qualquer interpretação funcionalista (no sentido de Radcliffe-Brown). A guerra primitiva não tem necessariamente uma “função social”, mas ela terá sempre um efeito político. A negação do Estado seria neste caso uma consequência da afirmação da guerra e não sua causa final. A guerra não teria, assim, qualquer função ou razão (isto é, uma representação que comanda a instituição) para além daquelas dadas transparentemente pelas cosmologias indígenas, mas nada mais, nem menos, que consequências ou efeitos. Talvez não haja, a rigor, uma função política, apenas funcio-namentos políticos. O que não é a mesma coisa que dizer que a política está em toda parte.62 Talvez ela esteja, privilegiadamente, em certas par-tes – em certas dimensões da vida coletiva que não têm por que ser as mesmas em toda parte (como justamente mostrou Clastres, ao distin-guir o político da divisão estatal). Ela pode estar, por exemplo, no caso amazônico, exatamente nas relações intercomunitárias, como mostram a

61. Albert inscreve a guerra yanomami em um gradiente concêntrico de formas de agressão diretamente projetável sobre o espaço social, que se estrutura, para dentro como para fora, a partir da relação mediana e ambivalente entre grupos na posição recíproca de “aliados não corresidentes”. Essa figura sociológica yanomami, determinada originalmente por Albert, tornou-se o exemplar-tipo da teoria da afinidade potencial ou “economia simbólica da alte-ridade” (Viveiros de Castro 16b). Recorde-se por fim, proporções guardadas, uma obser-vação de passagem de Bento Prado Jr. (supra, p. 4): “[S]egundo Clastres, o coeficiente de violência envolvido na guerra [yanomami] era quase igual a zero. […] A violência eclodia, por assim dizer, fora da Guerra. E ela ocorria nas festas em que uma tribo recebia outra, sua aliada, para uma confraternização; sobretudo quando os convidados eram aliados distantes. Como se o aliado mais distante fosse, mais que o inimigo, o verdadeiro objeto da violência social ” (eu sublinho). Ternarismo e cromatismo do Outro, antes que binarismo massivo do Eu e do não-Eu.62. Ou, o que dá na mesma, em lugar nenhum; ver, sobre essa dupla não-alternativa, o primeiro e o último ensaio de A sociedade contra o Estado.

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etno grafia dos Yanomami ou dos Jívaro,63 para os quais a guerra e a polí-tica estão não apenas em “continuação”, mas em estrita cointensividade. O que seria um modo de dizer que a política não é o lugar de produção de identidades, mas a zona de circulação de alteridades.

A política, ou o político, pode assim “estar” privilegiadamente nas relações intercomunitárias – mas pode não estar, ou não apenas, ou não simplesmente. A política pode produzir a multiplicidade comunitária, na medida em que ela opera, empírica e historicamente, “antes” dela, no coração mesmo da comunidade una e indivisa; mas só será assim por-que ela existe, já lá, como guerra – o que faz com que, por seu turno, o horizonte multicomunitário esteja desde o início incluído na definição da comunidade. Mas antecipo.

A distinção entre a perspectiva da comunidade primitiva, ou grupo local, e a da sociedade primitiva, ou conjunto multicomunitário, é ao mesmo tempo absolutamente fundamental e fortemente ambígua, nos escritos de Clastres: seja porque a “comunidade” é tomada como o ponto de vista subjetivo privilegiado da socialidade contra-o-Estado, seja por-que o termo “sociedade” designa tanto o conjunto multicomunitário em-pírico como a lógica social abstrata (a “socialidade”, cf. Barbosa 004) que articula as relações intracomunitárias com as intercomunitárias. Os trabalhos do autor sobre a chefia (e a leitura que os privilegia) adotam a perspectiva da comunidade e da “indivisão”, uma vez que a sociedade-contra-o-Estado tem justamente como uma de suas características a au-sência ou insubstancialidade de chefes supracomunitários. Os trabalhos sobre a guerra (que registram a excepcionalidade dos poderes supraco-munitários dos “chefes de guerra”) privilegiam, como seria de se esperar, a perspectiva da “sociedade”, da dispersão e da alteridade. A questão da relação entre as duas perspectivas, os dois mecanismos-chave de funcio-namento da sociedade-contra-o-Estado, permanece mais ou menos em

63. Sobre os Jívaro, ver sobretudo os trabalhos de Anne Christine Taylor e Philippe Des-cola, que demonstram com grande riqueza de detalhes como a problemática da “chefia sem poder” está, no caso desse povo, inteiramente subordinada à problemática da máquina de guerra antiestatal.

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aberto. Em síntese, ela diz respeito à conexão sociológica e à hierarquia lógica entre a guerra externa, a dinâmica separativa que define a socie-dade primitiva, e a composição interna dos grupos locais constituídos com base nos princípios da “unidade e indivisão”. Alguns avanços recentes na etnologia amazônica permitem divisar as linhas gerais de uma solução.64

A indivisão sobre a qual insiste Clastres significa uma ausência de diferenças “verticais”, isto é, entre dominantes e dominados. Mas tal indivisão, longe de inibir, permite, engendra ou mesmo requer a proliferação de divisões “horizontais” dentro da comunidade, por ou-tras palavras, a existência, já de um faccionalismo endêmico, onde as famílias extensas e seus líderes competem (historicamente) pela posse da perspectiva “total” da comunidade, já de sistemas de multissegmen-tação cerimonial, onde as lealdades, líderes e poderes se veem (estru-turalmente) distribuídos entre diversos segmentos não ressoantes. Os exemplos canônicos dessas duas formas de horizontalização antiverti-calizante (com perdão do barbarismo) – que podem coexistir em pro-porções variáveis dentro de cada sociedade – são, respectivamente, os povos alto-xinguanos (Basso 13; Figueiredo 011) e os Timbira (Ni-muendaju 146, para citar só ele).

Ao analisar a dinâmica da chefia entre os Aweti, uma sociedade pertencente a um dos conjuntos multiétnicos que mais têm servido de exemplo para questionar a teoria clastriana (em seu duplo aspecto de che-fia-sem-poder e de ser-para-a-guerra), a saber, o Alto Xingu,65 Marina Vanzolini Figueiredo destaca a instabilidade crônica da posição de chefia,

64. A (re)leitura, logo após ter terminado uma primeira versão deste posfácio, de um artigo ainda no prelo de Marina Vanzolini Figueiredo sobre a chefia entre os Aweti do Alto Xingu (Figueiredo 011), fez-me voltar ao computador para acrescentar diversos parágrafos à pre-sente seção. À parte as referências pontuais, quero deixar registrada a importância desse trabalho (derivado de uma tese de doutorado de 010) para tudo o que se segue, e, por via dele, do livro também ainda no prelo (e também derivado de uma tese de doutorado de

005) de Renato Sztutman.65. O Alto Xingu se caracterizaria pela presença de uma aristocracia de famílias de chefes, uma autoridade aldeã (e talvez mesmo étnica) hereditária importante, e um regime gene-ralizado de paz, intercomunitária como interétnica, altamente ritualizado e reflexivamente distintivo da “humanidade” alto-xinguana.

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perpetuamente em disputa entre diferentes famílias que se compõem e recompõem ao longo da história dessas disputas, as quais são invariavel-mente codificadas no idioma da feitiçaria, isto é, da guerra in visível entre parentes dentro do grupo local ou da parentela translocal.66 A partir de uma releitura cruzada de “Independência e exogamia” e “Arqueologia da violência”, artigos em que, como se sabe, a imagem da relação entre as relações intracomunitárias e intercomunitárias é tematizada de modos algo distintos (e quase contraditórios), a autora mostra como, em pri-meira e em última análise, a lógica da guerra determina univocamente a lógica da chefia. Os antagonismos internos, aquilo que Clastres chamaria de “horizonte de contestação” intrínseco à composição multifamiliar do grupo local (Clastres [163] 003: ), são os responsáveis pela produ-ção do “externo”, e são ao mesmo tempo produzidos pela vontade de afirmação da unidade e da indivisão:

[O ] ser para a guerra não se limita [como em “Arqueologia da vio-lência” ] às relações entre grupos locais, mas os atravessa, justamente porque os antagonismos (antes que a guerra) provocam a constante destruição e recriação de fronteiras; mais do que isso, a afirmação de um “Nós coletivo” parece ser não apenas a condição da “oposição ex-terna”, mas poderia ter também como efeito a criação de oposições internas – que por sua vez podem dar novo impulso à dissolução das diferenças em nível horizontal. (Figueiredo 011: ms.)

Assim se articulam, assimetricamente, os dois lados da máquina anties-tatal clastriana. A política se reintroduz dentro da comunidade una e indivisa, dividindo-a incessantemente (na horizontal) e assim funcio-nando como a causa empírica daquele “exterior” – como motor da fissão

66. Essa instabilidade foi igualmente registrada por Ellen Basso (13) para os Kalapalo, não podendo ser posta na conta da posição “marginal” dos Aweti dentro do sistema xingua-no atual. Ela talvez seja mais acentuada nas condições presentes dos Aweti (ou nas condi-ções demograficamente deprimidas à época da pesquisa de Basso), mas Figueiredo avança argumentos convincentes em favor de sua natureza sistêmica e generalizada no Alto Xingu, tal como o conhecemos pela etnografia e a etno-história.

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geradora da multiplicidade de grupos locais, que passam de ex-parentes a inimigos a aliados e back again –, o qual, por sua vez, funciona como causa transcendental de toda interioridade social possível. Com isso, entretanto, dissolvem-se definitivamente quaisquer fronteiras outras que contingentes entre o interno e o externo. Pois não estamos, este é o ponto, sob a lei do Estado, “a lei do interior e do exterior” (Deleuze & Guattari 180: 445). Não é mais o caso de se opor a paz interna à guerra externa, o convivialismo dos semelhantes à exclusão dos diferentes:

“A ausência de uma estabilização maior do poder político não resulta do consenso em torno de um desejo comum de liberdade, mas de um constante dissenso e da ausência da noção de ‘bem comum’” (Figuei-redo loc. cit.). O chefe sem poder é um chefe não representativo – pois estamos fora do mundo da representação. Falece toda leitura convivia-lista da sociedade-contra-o-Estado. Uma imagem de nós mesmos onde não nos reconhecemos. Sequer no ideal.

* * *

Por fim, se há uma dimensão onde a obra de Clastres se mostra presa ao passado, é em sua concepção bastante exclusivista do socius. A sociedade primitiva é um projeto constitutivamente humano; a política de Clastres é uma política estritamente intraespecífica. A monografia do autor sobre os Aché-Guayaki é rica em informações sobre a caça, a floresta, os animais, os espíritos, as estações, os ritos e os ritmos vitais; mas sua concepção da sociedade primitiva possui poucos, se alguns, componentes ou mesmo correlatos cosmológicos. Não se tem uma ideia de que tipo de mundo é habitado pelas sociedades contra o Estado; não se sabe grande coisa sobre as outras espécies de cidadãos, para além dos humanos “imediatos”, que integram (ou antes, diferenciam) as cosmopolíticas primitivas.

As abordagens ecológico-materialistas naturalizavam a política, ne-gativa ou positivamente, ao determinarem as configurações sociopolí-ticas indígenas estritamente em termos das restrições ou dos estímulos ambientais à “complexidade”. Clastres, por sua vez, separava a polí-tica da natureza, ao pensar a “função política” como um movimento

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de separação autoinstituinte que projetava e ressimbolizava uma exte-rioridade natural. Restava politizar a natureza, ou o cosmos – pensar a dimensão cosmopolítica da sociedade-contra-o-Estado. Foi por aí que seguiu a segunda linha de derivação da teoria clastriana. A limitação algo paradoxal da etnologia clastriana ao anthropos talvez não esteja to-talmente desvinculada de suas simpatias fenomenológicas. É aqui que a etnologia americanista mais avançou, extraindo as ideias do autor de sua moldura antropocêntrica e mostrando como sua decisão de levar a sério o pensamento indígena requer que se passe da descrição de uma (outra) forma de instituição do (mesmo) social para uma outra ideia de

“antropologia” – uma outra prática da humanidade – e para uma outra noção de “política” – uma outra experiência da socialidade.

O capítulo 5, “Mitos e ritos dos índios da América do Sul”, é um texto fundamental a esse respeito. O autor escreve ali:

De fato, uma estadia um pouco prolongada no seio de uma sociedade amazônica, por exemplo, permite constatar não apenas a devoção dos sel-vagens, mas o investimento da vida social na preocupação religiosa, a ponto de parecer dissolver-se a distinção do leigo e do religioso, de apa-gar-se o limite entre o domínio do profano e a esfera do sagrado: em suma, a natureza é, como a sociedade, atravessada de uma ponta à outra pelo sobrenatural. Assim animais ou plantas podem ser ao mesmo tempo seres da natureza e agentes sobrenaturais: uma queda de árvore que causa o ferimento de alguém, ou uma mordida de cobra, ou um ataque de fera, a passagem de uma estrela cadente serão interpretados não como aciden-tes mas como efeitos de uma agressão deliberada de forças sobrenaturais, como espíritos da floresta, almas dos mortos ou mesmo xamãs inimigos. Essa recusa decidida do acaso e da descontinuidade entre profano e sa-grado deveria logicamente levar a abolir a autonomia do campo religioso, identificável desde então em todos os acontecimentos individuais e cole-tivos da vida cotidiana do grupo. Na realidade, mesmo que nunca esteja totalmente ausente dos múltiplos aspectos nos quais se manifesta uma cultura primitiva, a dimensão do religioso encontra um meio de se afir-mar como tal em algumas circunstâncias rituais específicas. (supra, p. 6)

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A insistência em determinar uma dimensão do “religioso como tal” – a recusa, em outras palavras, de tirar todas as consequências do que é sugerido pela cosmológica geral das sociedades amazônicas – talvez exprima uma influência de Gauchet.67 Ela fez Clastres pouco sensível ao fato de que a comum “sobrenaturalização” da natureza e da sociedade tornava a distinção entre esses dois domínios altamente problemática, visto que a natureza se revela como social e a sociedade, como natural. É tal não separação cosmológica, muito mais do que a exteriorização do poder como “natureza”, que deveria ser posta em paralelo com a não separação política definidora da sociedade contra o Estado.

E apesar disso Clastres nos põe na pista certa. Ele esboça nesse ca-pítulo um contraste, que viria a ter grande rendimento na etnologia ame-ricanista, entre as cosmologias dos povos dos Andes e das Terras Baixas, cuja dimensão diacrítica é a relação entre os vivos e os mortos. Nas Ter-ras Altas agrárias, dominadas pela máquina estatal dos Inca, a religião se apoia em um complexo funerário (túmulos, sacrifícios) que conecta os vivos ao mundo mítico originário – povoado pelo que o autor chama de ancestrais – por meio dos mortos. Nas Terras Baixas, todo o esforço ritual consiste, ao contrário, em separar maximamente os mortos e os vivos. A relação da sociedade com suas fundações “imemoriais” se faz ali, digamos assim, por sobre o cadáver dos mortos, que devem ser des-memorializados, isto é, esquecidos e aniquilados (comidos, por exemplo) como se fossem inimigos mortais dos vivos. Yvonne Verdier (18: 31), em seu tão belo comentário à Crônica dos índios Guayaki, observava que a grande divisão entre os vivos e os mortos era a garantia da indivisão entre os vivos. A sociedade contra o Estado é uma sociedade contra a memória; a primeira e mais constante guerra da sociedade-para-a-guerra é aquela que ela move contra seus desertores mortos. “E, cada vez que se come um morto, pode-se dizer: mais um que o Estado não vai pegar” (Deleuze & Guattari 180: 148).68

67. Ela também resulta da “obsessão” do autor pelo profetismo tupi-guarani, o qual mani-festaria uma autonomização do discurso religioso.68. Não poderia deixar de remeter o leitor aqui, como já o fiz tantas vezes em outros >

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Mais uma vez, há um passo adicional a ser dado. O contraste entre Andes e Terras Baixas sugere que a distinção variável entre vivos e mor-tos (identificação versus diferenciação) tem uma relação variável com uma outra distinção, ela própria variável: aquela entre humanos e não-huma-nos – animais, plantas, artefatos, corpos celestes, toda a vasta mobília do cosmos. Nos mundos andinos, a continuidade diacrônica entre mortos e vivos opõe estes globalmente como humanos aos seres não-humanos, submetendo o cosmos à lei do Estado, a lei antropológica do interior e do exterior, ao mesmo tempo que permite a estabilização de descontinuida-des sincrônicas entre os vivos, que eram bloqueadas nas sociedades con-tra o Estado graças à aniquilação dos mortos (ausência de culto de ances-trais = ausência de hierarquia). Nas Terras Baixas, a alteridade radical entre vivos e mortos aproxima os humanos mortos dos não-humanos;69 ao mesmo tempo, porém, essa aproximação faz da não-humanidade um modo ou modulação da humanidade – todos os não-humanos (inclusive os mortos) possuem uma essência ou potência antropomorfa formalmente idêntica, a alma, oculta sob os diversos “hábitos” corporais. Isso, como se sabe, é o que os etnólogos da Amazônia chamam de “perspectivismo”: a ideia de que todos os habitantes do cosmos são gente em seu próprio de-partamento, ocupantes potenciais da posição deítica de “primeira pessoa” ou “sujeito” do discurso cosmológico. Nada mais distante de um mundo edênico, diga-se de passagem: as relações interespécies são marcadas por uma disputa perpétua em torno dessa posição pronominal de sujeito, que não pode ser ocupada simultaneamente por duas espécies distintas; por isso, ela é comumente esquematizada em termos da polaridade predador/ presa. A “agência”, no sentido de agency ou autodeterminação, é, acima de tudo, essa capacidade de predação, a “intencionalidade predatória”, como escrevem alguns etnógrafos. A vida é roubo, e o ser é devoração.70

trabalhos, à monografia paradigmática de M. Carneiro da Cunha (18) sobre a relação disjuntiva entre vivos e mortos em uma sociedade das Terras Baixas.69. Dos animais em particular, uma vez que é comum na Amazônia que as almas dos mor-tos se transformem em animais, ao mesmo tempo que uma das principais causas de morte é a vingança dos espíritos ou almas animais contra os humanos.70. Mas naturalmente, se o que comemos se torna parte do que somos, terminamos por ser >

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Essa ideia transforma a humanidade em algo nas antípodas de uma substância com contornos fixos e extensão ostensiva: ela se torna uma po-sição e uma relação, marcadas pela relatividade, pela incerteza e pela alteridade. Tudo pode ser humano, porque tudo é humano para si mesmo: todos os seres do cosmos se percebem a si mesmos como humanos e veem os que chamamos, nós, de humanos como não-humanos. O efeito glo-bal dessa inexistência de um ponto de vista cosmológico transcendente é a disseminação molecular da agência “subjetiva” pelo universo. Isso é um correlato óbvio da rejeição de um ponto de vista político unificante, ocupado por um Agente (o agente do Um) que conteria em si o princípio da humanidade e da socialidade.71

O perspectivismo, enfim, é a cosmologia contra o Estado. Essa cos-mologia se radica na composição ontológica do mundo mítico, aquela

“exterioridade” originária para onde estariam projetados os fundamen-tos da sociedade. Este mundo mítico, contudo, não é realmente exterior, nem interior, nem presente nem passado, porque ele é ambos. Da mesma forma, como seus habitantes não são nem humanos nem não-humanos, pois são ambos. O mundo das origens é, precisamente, tudo: ele é o plano de imanência amazônico. A questão crucial das relações entre o político e o religioso nas socialidades ameríndias se reabre integralmente por essa via, como mostram tantos trabalhos recentes. Pois é na zona de intercâm-bio maximamente intenso com a alteridade – nos planos mítico, xamânico, onírico, metamórfico de articulação entre humanos e não-humanos – que o conceito de sociedade-contra-o-Estado ganha sua verdadeira endocon-sistência, ou diferença, etnográfica. Clastres nos levou quase lá. Ninguém poderia ter feito melhor; estaremos sempre quase em algum outro lugar.

Eduardo Viveiros de Castro, maio de 2011

em grande parte o que comemos. Como a “preensão” ontológica de Whitehead (Debaise 008: 453), a predação amazônica modifica o predador tanto ou mais que a presa, pois ela é um dispositivo genético de individuação e não uma mera relação de “poder” (dominação proprietarial).71. José Antonio Kelly vem trabalhando sobre essa conexão. Agradeço a ele pelas discussões.

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