CASSACOS TRABALHADORES NA LIDA CONTRA A FOME E … Lara... · em História - Faculdade de Filosofia...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL LARA VANESSA DE CASTRO FERREIRA CASSACOS. TRABALHADORES NA LIDA CONTRA A FOME E A DEGRADAÇÃO NAS OBRAS PÚBLICAS EM TEMPOS DE SECAS. (CEARÁ, ANOS 1950) Salvador 2016

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL

LARA VANESSA DE CASTRO FERREIRA

CASSACOS. TRABALHADORES NA LIDA CONTRA A FOME E A

DEGRADAO NAS OBRAS PBLICAS EM TEMPOS DE SECAS.

(CEAR, ANOS 1950)

Salvador

2016

LARA VANESSA DE CASTRO FERREIRA

CASSACOS. TRABALHADORES NA LIDA CONTRA A FOME E A

DEGRADAO NAS OBRAS PBLICAS EM TEMPOS DE SECAS.

(CEAR, ANOS 1950)

Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao

em Histria - Faculdade de Filosofia e Cincias

Humanas, Universidade Federal da Bahia

(UFBA), como requisito para a obteno do grau

de doutora em histria.

Orientador: Antonio Luigi Negro.

Salvador

2016

_____________________________________________________________________________

Ferreira, Lara Vanessa de Castro

F383 Cassacos. Trabalhadores na lida contra a fome e a degradao nas obras pblicas em

tempos de secas. (Cear, anos 1950) / Lara Vanessa de Castro Ferreira. Salvador, 2016. 230 f.

Orientador: Prof. Dr. Antonio Luigi Negro

Tese (doutorado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e

Cincias Humanas. Salvador, 2016.

1. Secas Poltica governamental - Cear. 2. Trabalho. 3. Fome. 4. Obras pblicas Fora de trabalho. 5. Trabalhadores Poltica e governo. I. Negro, Antonio Luigi. II.

Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas. III. Ttulo.

CDD 338.98131

____________________________________________________________________________

minha mame, companheira inseparvel de

todas as lutas dessa vida. s minhas queridas tias

Marias e tambm s vovs Rita e Rosa, esta que

partiu antes do fim desta tese.

AGRADECIMENTOS

A escrita desta tese somente foi possvel pelo encorajamento, auxlio e amor de pessoas

muito queridas. Inicio essa mensagem certa de que no alcanarei com as palavras toda a minha

gratido. Acredito que Deus me acompanhou em todos os momentos, dando-me sabedoria,

fora e fazendo-me crer, desde criana, que eu poderia escrever minha histria. Em meu

caminho, Deus colocou uma famlia amorosa, colegas, amigos, verdadeiros irmos por escolha,

para tornar meus dias muito melhores.

Na minha trajetria acadmica, tive apoio de muitos professores. Na graduao, na

Universidade Federal do Cear (UFC), fui acompanhada por Frederico de Castro Neves, com

reforo de Almir Leal de Oliveira. Sou grata pelos ensinamentos e carinho da professora

Adelaide Gonalves, pelas orientaes ainda presentes dos professores Luigi Biondi, Norberto

Ferreras e Vernica Secreto, e pela presena carismtica da querida e amiga Edilene Toledo,

que me encorajou com energia positiva durante a graduao, acreditando no meu empenho.

Na Universidade Federal da Bahia (UFBA), cursei mestrado e doutorado, ampliando

meus campos de anlises. Agradeo a colaborao de Gabriela Sampaio, Lgia Belini, Maria

Hilda e a presteza sempre presente de Lina Brando. Durante meu intercmbio doutoral na

Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), aproveitei a excelncia de professores como

Fernando Teixeira da Silva, Cludio Batalha e Slvia Lara. A estes tambm meu

reconhecimento.

As proposies de Vincius Rezende e Robrio Souza durante a qualificao do

doutorado foram relevantes para a escrita deste trabalho. De igual importncia foram as

orientaes que recebi dos professores Paulo Fontes, Larissa Correa e Alexandre Fortes,

especialmente durante a discusso do meu estudo no Grupo de Pesquisa sobre Histria Global

do Trabalho do IM-UFRRJ, uma segunda qualificao. Alis, o Prof. Alexandre Fortes

acompanha minha pesquisa desde o mestrado, com mensagens de ensinamento e entusiasmo

em diversas oportunidades, sempre com ateno e carinho. Agradecimentos tambm dos

demais colegas do GT Mundos do Trabalho, que nutrem recorrentemente as pesquisas em torno

desta temtica nos congressos, simpsios, debates e reunies.

Os amigos Sidney, Emi, Davi, Alessandra, Isabel, Bruna, Adilson, Gisele, Phelipe e o

grande Jonas, querido irmo caula de orientao, fizeram-se presentes, alm da academia,

em diversos momentos. Entre eles destaco Alexandre e Ana Cristina, uma herana da

graduao, companheiros de debates, de lutas, enrascadas, festas, prosas, risos e choros, uma

ligao para toda a vida.

Agradeo tambm aos colegas do DNOCS, Kleiton Csar, Margarida e Elsa, pelo

continuo auxlio, pelo material disponibilizado, pelo incentivo, distribuio dos meus livros,

por me direcionarem nos caminhos que levaram aos acervos de fontes do DNOCS e tambm

CAPES que financiou esta pesquisa.

Este trabalho, contudo, no teria caminhado sem a onipresente orientao do meu

mestre, Luigi Negro. Nos anos de mestrado e doutorado, recebi de Gino extraordinrios

ensinamentos sobre a pesquisa e a escrita em histria. Paralelamente formao curricular, fui

instruda com sua excelncia mpar. Sou muito grata por toda a orientao, apoio, injees de

nimo, confiana, alm da compreenso dos impasses naturais do processo de doutoramento,

como tambm de outras dificuldades do meu cotidiano. Minha enorme estima e admirao.

Agradeo imensamente a minha famlia, sempre amorosa. Aos meus avs, Rita, Rosa

(em memria), Messias e Jos. Vovs Z e Messias, Vovs Rita e Rosa dividiram comigo suas

lembranas sobre a vida em tempos de secas. Descobri durante o doutorado que Vov Z foi

trabalhador-cassaco, nos anos 1950, ele e vov Rosa foram fontes nesta pesquisa, ela

descortinando muito do que ele queria silenciar.

Meus tios e tias me embalaram com muito carinho durante todos esses anos,

principalmente as tias Marias (Oneida, Alcioneida e Lucineida) foram presena constante em

minha formao. Tia Maria Oneida, altrusta e benevolente, socorreu-me diversas vezes. Fora

isso, deu-me alento e carinho, com toda sua serenidade. Tia Maria Lucineida cuidou de mim

com muito amor e dedicao. Entusiastas da minha carreira, ela e tio Rinaldo me ensinaram

lies valorosas de amor e solidariedade. Os queridos primos, em especial, Virgnia, Guilherme,

meu pequeno, agora grande, Derec e Gabriela ajudaram a reforar minhas bases, diariamente.

Gabi, com toda sua pacincia e bondade, cada vez mais presente. Todos longe, mas bem

guardados.

Minha famlia, por escolha, tia Nlia, tio Neto, irmos Tina, Babim e Jos, tambm

Ftima e Tiago, e os pequenos Lucas e Valentina, muito obrigada por todo apoio, pelo

constante abrigo em Fortaleza, pelo gratuito amor e zelo. Marclio, Glria, Vielka, Helder,

Svio e famlia, tia Lourdes e as meninas, meus sinceros reconhecimentos.

Meu pai que viveu a triste experincia de pobreza na terra semirida me inspirou a no

ceder nas primeiras dificuldades. Agradeo aos meus irmos por toda doura. Tiago e Jarbas,

especialmente, so parte da minha motivao diria na tentativa de ser melhor, vocs esto entre

as coisas mais importantes da minha vida. Meu padrasto Ivo, sou grata por olhar por minha

famlia. Minha me, a maior razo da minha luta, maior exemplo de honestidade, caridade e

determinao. Agradeo pelo esforo exaustivo e incondicional que fez para que eu pudesse

sair de Cana e seguir estudando. Nunca conseguirei agradec-la o suficiente.

Por fim, sou grata ao meu amado esposo Adalberto, por todo o companheirismo,

compreenso e amor, por dividir a experincia do nosso ofcio, sendo um constante colaborador

desta tese. Com voc j aprendi muito sobre a histria e sobre a vida. Obrigada por ser presente

com tanta serenidade em momentos difceis, sem voc meus dias seriam tristes e sem o mesmo

sentido. Nossa pequena e doce Alice est a caminho, fez-nos reorganizar alguns planos,

motivo de alegria e vai aumentar nossa felicidade.

No me pea que lhe faa uma cano como se deve,

Correta, branca, suave, muito limpa, muito leve,

Sons, palavras, so navalhas e eu no posso cantar como convm,

Sem querer ferir ningum.

Belchior, apenas um rapaz latino americano.

RESUMO

Durante as estiagens na dcada de 1950, diversas frentes de servios foram organizadas

no Nordeste pelo Poder Executivo, via Ministrio da Viao e Obras Pblicas (MVOP), sob a

justificativa de empregar os pobres das secas e controlar tambm as migraes para os estados

de outras regies. No Cear, milhares de trabalhadores foram alistados em obras de audagem,

estradas de rodagem, redes de irrigao, eletricidade, prdios pblicos, entre outras,

protagonizando a edificao de uma volumosa estrutura em todo o estado. Embora muitos j

soubessem da dura lida nas obras pblicas, uma labuta em situaes sociais e culturais distintas

das habituais fora dos anos secos, os trabalhadores procuravam os alistamentos para garantir a

sobrevivncia. Ocupados nas frentes, labutando em troca de comida, os trabalhadores chamados

de cassacos ficavam frente a frente a um cotidiano de convivncia com o cenrio das mquinas,

servio pesado e mal pago, acampamentos precrios, escassez de gua at para beber e fome.

Tudo isso, somado s condies insalubres nas obras, originava uma equao perigosa que

resultava na disseminao de doenas, acidentes de trabalho e at morte. Sendo assim, esta

tese tem como finalidade estudar as obras pblicas em tempos de secas articulada a uma

complexa teia de interesses que envolvia autoridades polticas locais e nacionais, donos de

terras, comerciantes, engenheiros e outros agentes dos rgos pblicos envolvidos. Fora isso,

primordialmente, deseja-se analisar a experincia dos trabalhadores-cassacos e suas famlias no

universo das frentes de servios das secas, o cotidiano, alistamentos, moradia, lida, alimentao,

sade-doena, acidentes, enfim, a luta pela garantia da vida.

Palavras-chave: secas, trabalho, fome e poltica

ABSTRACT

During the droughts happened in the 50s of the 20th century many work fronts were

organized in the Brazilian Northeast by Executive Powers through Ministrio da Viao e

Obras Pblicas, whose goals were hire poor refugees and control the migrations to other

Brazilian regions. Such actions were based on public constructions ruled by some official

agencies. In the State of Cear thousands of workers were enlisted in constructions of weirs,

roads, irrigations canals, electricity lines, public buildings, among others, playing fundamental

role into the edification of a huge physical infrastructure throughout the State. Albeit many of

them were aware of the hard routine of labor in the public works - which had also social and

cultural important differences whether compared with works during of the regular rainy seasons

the workers remained seeking the enlistments to ensure survival. Employed in the work

fronts they received food as salary and were called cassacos (a kind of rat), facing a daily work

full of machines, heavy toil, precarious lodging, absence of water (even to drink) and famines.

These problems fomented unhealthy conditions of labor and induced dangerous dissemination

of diseases, labor accidents and even deaths. Therefore, in sum, this dissertation aims to study

the work fronts during drought periods, which were connected with complex webs of interests

linked with local and national concerns of authorities, owners, traders, engineers and other civil

servants. Furthermore, primordially, this dissertation aims to problematize the experiences of

workers-cassacos, analyzing the aspects of their enlistments, lodging, labor, feeding, health

conditions, accidents, at long last, their struggles of daily life.

Keywords: dry , work, hunger and political

LISTA DE TABELAS

Tabela 1. Quadro de Movimento das escolas do ano de 1950..................................................149

Tabela 2. Servio mdico de puericultura do Servio Agroindustrial......................................180

Tabela 3. Ocorrncia de doenas infectocontagiosas...............................................................189

LISTA DE FIGURAS

Figura 1. Presidente Juscelino Kubistchek na inaugurao do aude Pentecostes.....................99

Figura 2. Modelo padro de residncia para engenheiros........................................................103

Figura 3. Famlias num alojamento na seca de 1958...............................................................104

Figura 4. Estrutura do acampamento do Ors..........................................................................107

Figura 5. Alojamento de trabalhadores na seca de 1958. ........................................................110

Figura 6. Trabalhadores na construo da estrada de acesso ao aude pblico Araras............124

Figura 7. Trabalhador na fabricao de tijolos................. .......................................................127

Figura 8. Capela do aude Curema-RN. ..................................................................................145

Figura 9. Cinema do aude Ors. ............................................................................................147

Figura 10. Modelo de escola de alvenaria do DNOCS. (Aude Curema) ................................150

Figura 11. Tipo de moradia de operrios de postos agrcolas. ................................................152

Figura 12. Utenslios utilizados no preparo das comidas. .......................................................166

Figura 13. Servio de Assistncia mdica do DNOCS. ..........................................................176

Figura 14. Parte do hospital do acampamento do Ors. .........................................................179

Figura 15. Trabalhadores na Instalao de Redes de Eletricidade. .........................................193

Figura 16. Resumo dos servios de sade e assistncia social (1956-1959). .........................198

SUMRIO

INTRODUO..........................................................................................................................14

1.AS POLTICAS ANTIMIGRATRIAS E OS TRABALHADORES-CASSACOS...............................27

1.1 Aspectos da conjuntura.....................................................................................................31

1.2. Frentes de trabalho: ocupar e Fixar..................................................................................36

1.3 Barreiras nas fronteiras: vigiar e controlar........................................................................40

1.4 Trabalhadores das frentes de servios das secas...............................................................46

1.5 Migrantes, retirantes: as costuras em torno do apelido cassaco .......................................51

2. NO RASTRO DAS OBRAS PBLICAS: ALISTAMENTOS, TRABALHO E VOTO.........................60

2.1 Em busca de trabalho........................................................................................................62

2.2 Dinmica dos alistamentos ...............................................................................................77

2.3 Alistamentos e as eleies de 1958...................................................................................91

3.DE RETIRANTES A TRABALHADORES-CASSACOS: MORADIA, LIDA E FAMLIA................101

3.1 Estrutura dos acampamentos: entre o bem provido e o precrio.....................................102

3.2 Lida..................................................................................................................................118

3.2.1 Servios.........................................................................................................................119

3.2.2 Escolas para o trabalho ou aprender na prtica? ......................................................126

3.3 Regimes de Trabalho e Hierarquia.................................................................................130

3.4 Trabalho, descanso, rezas e festas...................................................................................139

3.5 Os trabalhadores-cassacos, a presena e a ausncia de suas famlias .............................148

4. JORNADAS DA FOME: ALIMENTAO E SADE................................................................155

4.1 O fornecimento, os altos preos e os pequenos ordenados.............................................155

4.2 As Agruras da fome: arranjos cotidianos e aes conjuntas...........................................164

4.3 O servio de assistncia Sade do DNOCS.................................................................174

4.4 Aglomeraes e doenas contagiosas.............................................................................184

4.5 Acidentes no trabalho......................................................................................................193

4.6 Dispensa de operrios ....................................................................................................200

CONSIDERAES FINAIS.......................................................................................................208

REFERNCIAS........................................................................................................................214

ARQUIVOS E FONTES.............................................................................................................214

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS...........................................................................................219

ANEXOS.................................................................................................................................229

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INTRODUO

Flagelado ou retirante aquele sertanejo que, se no

chove no devido tempo, sai pela estrada em busca de

um meio de sobrevivncia... cassaco a alcunha

lanada ao flagelado da seca que se emprega nos

servios do governo.1

Era um fim de tarde em Irauuba, outubro de 2014, em um ano de grave seca, quando

assisti perplexa minha anfitri comprar dos carros-pipas gua para abastecer os tanques e

garantir o preparo da comida e os banhos da semana. Cena como essa, mesmo cearense, ao

contrrio do que se possa imaginar, nunca tinha vivenciado. Primeiro, por ser natural de Cana

(municpio de Trair), terra de muitas fontes de gua, segundo, porque as centenas de audes

construdos no Cear, embora no tenham resolvido o problema da pobreza e da seca, como

prometido, garantiram uma certa reserva de gua a alguns municpios. Ocorre que j estvamos

atravessando o terceiro ano de estiagem e, decerto, as fontes naturais e a audagem j estavam

fracassando em diversas localidades.

Nas minhas andanas pelo interior do Cear, correndo as rodovias, observando os

audes, as pontes, a infra-estrutura das cidades, no consegui esquecer que grande parte de tudo

aquilo foi construdo com mo de obra de migrantes que tinham sentido dramaticamente em

suas vidas os efeitos de outros tempos de secas. Cada estrada que eu percorria me lembrava as

trilhas que outrora os trabalhadores tinham pisado na esperana de garantir a sobrevivncia.

Muitos dos caminhos que fiz, durante os meus estudos em busca de fontes ou para conhecer os

lugares da minha pesquisa, foram abertos por sertanejos em tempos de secas. Era difcil me

desvencilhar dos rastros que eles deixaram custa de muito suor, fome e at sangue.

O emprego em obras pblicas foi a principal medida adotada pelas autoridades, que

agenciavam o Estado, no intento de justificarem sua precria assistncia populao

depauperada nas pocas de secas da dcada de 1950. Meu anseio demonstrar, atravs desta

tese, que milhares de trabalhadores solicitando remediao para os seus problemas acabaram

por modificar os cenrios das ruas, das reparties pblicas e dos arredores das frentes de

servios. Nas obras, continuavam intervindo amplamente com sua mo de obra, atuando em

1 GUERRA, Paulo de Brito. Flashes das secas: coletnea de fatos e histrias reais. Fortaleza: Minter-DNOCS,

1977, p.3.

15

construes de audes, em estradas, em perfurao de poos, em instalao de canais de

irrigao, redes de energia, postos de piscicultura, escolas, igrejas, entre outros.

Afastando-se de explicaes monocausais, so estudadas as polticas de Estado e a

ampla teia de relacionamentos entre autoridades pblicas diversas, religiosos, comerciantes,

donos de terras, que envolviam as obras e a arregimentao de obreiros durante as secas dos

anos 1950, observando especialmente o Cear. Os protagonistas, com efeito, so os empregados

apelidados de cassacos que, com suas famlias, vivenciaram um cotidiano de novos

aprendizados, muita lida, saudade, fome, doenas e pouca comida. Com sentimentos de

angstia, compromisso e felicidade, principio esta tese desejando que ela informe que foram

estes trabalhadores que erigiram uma importante estrutura, presente em nosso cotidiano, nos

mais diversos lugares do Nordeste brasileiro.

TRABALHADORES-CASSACOS: DILUINDO FRONTEIRAS

A ocupao de trabalhadores em obras durante as estiagens bem anterior dcada de

1950. Antes mesmo da seca de 1877, apontada como um divisor de guas nas polticas pblicas

durante estas intempries, autoridades, com o aval da corte imperial, pensaram na

racionalizao dos socorros aos pobres por meio da ocupao destes em audes e construes

de estradas para prevenir os perniciosos efeitos da ociosidade.2 Nas estiagens ocorridas no

final do sculo XIX, embora a principal ao do Estado tivesse foco no subsdio da migrao3,

diversas construes foram organizadas arregimentando muitos trabalhadores. No entanto, essa

tradio se solidificou como poltica pblica oficial durante a primeira metade do sculo XX,

especialmente nas secas ocorridas aps a criao do atual Departamento Nacional de Obras

Contra as Secas (DNOCS)4, em 1908.

Na dcada de 1950, agricultores, vaqueiros, empregados sem posses de terras ou

pequenos proprietrios, artesos, donas de casa e comerciantes falidos, fora outros ocupados de

2 O Cearense, 8/10/1836. Apud: CARDOSO, Antnio Alexandre Isidio. Nem sina, Nem acaso: a tessitura das

migraes entre a Provncia do Cear e o territrio amaznico. Fortaleza, Mestrado em Histria Social -

Universidade Federal do Cear, 2011, pp.149-150.

3 Cf: CARDOSO, Op.Cit.; SECRETO. Mara Vernica. Cear, a fbrica de trabalhadores: Emigrao subsidiada

no final do Sculo XIX. IN: Trajetos. V.IV. Dossi: trabalho, trabalhadores. Fortaleza: Departamento de Histria

da UFC, 2003; MORAIS, Viviane Lima de. As Razes e Destinos da Migrao: trabalhadores e emigrantes

cearenses pelo Brasil no final do sculo XIX. Dissertao de Mestrado, PUC/SP, 2003; BARBOZA, E. H. L. A

hidra cearense. Rotas de retirantes e escravizados entre o Cear e as fronteiras do Norte (1877-1884). Tese de

doutorado em Cincias Sociais, PUC-SP, 2013.

4 Em 1909, foi criada a Inspetoria de Obras Contra as Secas - IOCS, que organizou a delimitao dos espaos

sujeitos s estiagens peridicas. Em 1919, a IOCS passa a IFOCS Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas.

Por fim, em dezembro de 1945, foi promovida a reformulao da IFOCS, transformando-a em autarquia, o

DNOCS, dando maior autonomia ao rgo.

16

diversas profisses regulares que eram tambm alcanados pelos problemas sociais das secas,

largaram suas casas, seus afazeres, seus animais e rumaram em direo aos locais de

alistamentos em centenas de obras criadas com o intento de ocupar os braos dispersos pelas

secas.

As frentes de trabalho obedeciam mais a decises polticas que econmicas, sendo o

Governo Federal o representante delas. Estavam localizadas em lugares relativamente isolados,

guardando o objetivo de ocupar e fixar trabalhadores dentro dos seus estados. No plano local,

isso agradava as autoridades polticas e donos de terras, no nacional, atendia ao projeto de

interiorizao do Brasil assim como ocorreu com a construo de Braslia, por isso, as

comparaes durante a redao deste trabalho.

Ademais, se o incio de grandes empreendimentos e a sbita oferta de empregos

funcionavam como fator de atrao para a mobilizao de um expressivo volume de braos, as

obras de emergncia eram criadas para atender a uma demanda j existente. Isto resultou num

universo de labuta diferente que impactou num processo de explorao distinto de

trabalhadores. As facetas mais problemticas desses espaos no eram refletidas em lutas por

melhores salrios ou condies de trabalho, por exemplo, mas em nome da garantia do

alimento, da sobrevivncia.

A pobreza, fome ou perspectiva de passar fome e a migrao eram as caractersticas

comuns aos que compartilhavam o mundo das frentes de trabalho nas secas. De outro modo,

so explcitas as diferentes origens, ocupaes, condies materiais, idade e famlia. Essa

miscelnea um dos aspectos mais importantes para pensar no servio nas frentes de

emergncia como uma experincia que esses sujeitos adicionaram aos seus universos de vida e

trabalho, o que contribui igualmente para afastar esses trabalhadores de qualquer caracterizao

homognea e permanente.

A noo de trabalhador rural ou do interior como comunidade camponesa harmnica

e homognea coopera para que o trabalhador-cassaco seja analisado como um grupo coeso. Por

outro lado, a migrao pode ser vista como um elemento diluidor dessa coeso ou a necessidade

de reproduo social em tempos de secas nas construes, o que pode ser argumento para

engess-los num processo de proletarizao. Portanto as compreenses podem enveredar por

caminhos excludentes.

O trabalhador-cassaco um sujeito que tinha um vnculo regular na sua comunidade

e, em pocas de secas, obtinha sua renda principal nas frentes de servios. Embora durante esse

recorte o trabalhador-cassaco no tivesse mais sua renda garantida na agricultura, pecuria ou

outros servios no seu lugar de origem, ele se difere do campons-trabalhador que, em alguns

17

casos, passa por um processo de proletarizao a longo prazo por sazonalmente ter seu emprego

e renda fora de sua comunidade rural.

Diferente daqueles, os migrantes das secas que buscavam emprego nas construes,

apenas esporadicamente, em estiagens que tm temporalidade incerta, por isso, no

necessariamente de forma cclica, vivenciavam uma experincia nos moldes prximos ao

trabalho urbano, da construo civil, fabril-industrial. Durante suas vidas, os seis entrevistados

desta pesquisa que trabalharam em obras contra as secas estiveram em no mximo duas

campanhas, agregando em mdia dois anos de trabalho como cassaco s suas largas vivncias

em outras funes.

Distintas perspectivas conceituais que pensam na preservao ou desintegrao dos

camponeses5, ao estabelecerem experincias como operrios, podem nos ajudar a

compreender, em termos mais tericos, os trabalhadores-cassacos. Alguns concluem que a

dependncia do trabalho assalariado ocasiona uma total proletarizao, o caso de Breman, ao

analisar migrantes que sazonalmente lidam com a cana-de acar em Gujarat do Sul, ndia.

Para o autor, a mobilidade regular representa uma consolidao total da proletarizao desses

trabalhadores.6 De outro modo, First, ao estudar labutadores do campo de Moambique que

dependem dos salrios das minas de ouro e carvo na frica do Sul, entende que mesmo quando

os migrantes so quase totalmente dependentes do assalariamento, eles utilizam este para

manter a reproduo da vida e trabalho no campo e, portanto, no podem ser analisados com

sujeitos dissolvidos do modo de vida habitual rumo a uma transio total para a proletarizao.7

Dessa forma, a ideia desse estudo, em harmonia com o que Jos Srgio Leite Lopes e

Paulo Fontes8 propem, romper com interpretaes que polarizam as anlises sobre

trabalhadores migrantes em termos de rural atrasado e urbano desenvolvido, como se qualquer

experincia aproximada ao citadino fabril representasse um inegvel avano existencial. E,

alm disso, uma vez que as migraes tendo como destino as obras eram essencialmente

5 MENESES, Maria Aparecida. Redes e enredos nas trilhas dos migrantes: um estudo de famlias de camponeses-

migrantes. Rio de Janeiro: Relume Dumar, EDUFPB, 2002, p.49.

6 BREMAN, J. Of pesantes migrants and pauper: rural labour circulation and capitalist production in west ndia.

Delhi: Oxford University Press, 1985.

7 FIRST, R. Black Gold: The mazambican miner, proletarian and peasant (work-songs and interviews recorded by

alpheus Manguesi). Sussex: Haverster Press, Nova York: St. Martinss Press. Apud: MENESES, Maria Aparecida.

Redes e enredos nas trilhas dos migrantes, op. cit.., p.50.

8 LEITE LOPES, Jos Srgio. A tecelagem dos conflitos de classe na cidade das chamins. So Paulo: Marco Zero

& Braslia: Editora da UnB, 1988; FONTES, Paulo. Um Nordeste em So Paulo: Trabalhadores migrantes em So

Miguel Paulista. (1945-1966). Rio de Janeiro: FGV, 2008.

18

pendulares, de curta durao e distncia, tornar-se-ia controverso e problemtico entend-las

como movimentos irreversveis para o urbano e proletrio.

Essa experincia de difcil explicao nos afasta de anlises dualistas que

problematizam o universo de trabalho dessas pessoas em termos excludentes, contribuindo

igualmente para nos distanciar de elucidaes lineares em que o modo de vida rural sempre

seguido de uma experincia posterior mais avanada. A tentativa superar compreenses para

as quais a migrao uma etapa, uma transio, para um processo de proletarizao, atravs do

pensamento de que algumas fronteiras no podem conviver: campo e cidade, trabalhador do

mundo rural e operrio.

Possivelmente, o que torna a natureza do trabalhador-cassaco ambgua e de difcil

compreenso a dificuldade na demarcao dessas fronteiras como campo e cidade; rural e

urbano; labuta familiar para a subsistncia e assalariamento, trabalho livre e escravo, limites

que vm sendo discutidos vigorosamente, nos ltimos anos, pelos pesquisadores da histria

social do trabalho.9 Como veremos, embora imersos num regime de lida que se aproximava do

trabalho urbano, os trabalhadores-cassacos reelaboraram caractersticas do trabalho familiar

rural para as frentes de servios. Desempenhando atividades assalariadas, recebiam atravs do

sistema de vales que eram trocados por alimentos. Forados pela misria, labutando apenas em

troca de comida, acuados, s vezes, pelas dvidas, no se pode pens-los como trabalhadores

livres, nem tampouco como escravizados, nos moldes existentes antes do ps-abolio.

Certamente, viviam num contexto de trabalho degradante, aproximando-se de ocorrncias de

trabalho anlogo escravido ou escravido contempornea.10

Desse modo, a complexidade marca tais experincias. Os trabalhadores-cassacos

vivenciavam um cotidiano com particularidades diferentes das costumeiras fora dos anos de

secas. Tinham como principal arma de sobrevivncia um ir e vir, muitas vezes com carter

circular. Se a fome e a busca pela sobrevivncia eram condies comuns queles obreiros,

somavam-se a estas outra caracterstica singular a estes trabalhadores: a intensa circulao nos

caminhos das obras, majoritariamente dentro do Cear, mas ocorridas algumas vezes tambm

ultrapassando as fronteiras para outros estados como Piau, Bahia, Rio Grande do Norte,

Pernambuco.

9 Cf: FORTES, Alexandre, LIMA, Henrique Espada Filho, XAVIER, Regina, PETERSEN, Silvia, orgs., Cruzando

fronteiras: novos olhares sobre a histria do trabalho. So Paulo: Editora Fundao Perseu Abramo, 2013.

10 Cf: FERRERAS, Norberto Osvaldo de; SECRETO, Maria Vernica. Trabalho decente, trabalho escravo,

trabalho forado, trabalho degradante, trabalho anlogo a escravido e outras categorias do mundo do trabalho

contemporneo. In: Os pobres e a Poltica. Rio de Janeiro: Mauad x: Faperj, 2013.

19

Certamente, as pessoas no se deslocavam somente durante as secas, mas eram nestes

anos que o infortnio era agravado, avolumando a migrao de pobres em direo aos outros

estados e aos locais das obras pblicas. No obstante, no caso das frentes, grande tenha sido o

nmero dos que morreram longe de casa, no tiveram meios de retornar, ou simplesmente

ocuparam os arredores dos audes depois de prontos, transformando cenrios, antes desertos,

em vilas e at municpios, os deslocamentos em direo s frentes de emergncia no eram

compostas apenas por pessoas que partiam e permaneciam pois, muitos retornaram s suas

moradas de origem, logo que as chuvas desciam.

Os planos dos migrantes eram desenhados e redesenhados diversas vezes. Muitos

saam de casa com um destino, mas acabavam trilhando outros caminhos, fosse pela

inexistncia de vagas em obras mais prximas, pela comum transferncia de trabalhadores para

outras frentes, ou at pelo desejo prprio de sair de uma obra, aproveitando alguma vaga

existente em outra. Era comum, ento, de incio, os trabalhadores se moverem em vrias

direes at conseguirem emprego ou, aps a concluso de uma obra, deslocarem-se para mais

adiante, depois para outra e assim sucessivamente at findar o perodo de estiagem. Alguns

conseguiam emprego no muito longe de casa, outros eram alistados em obras fora das

fronteiras do seu estado, uns partiam sem desejo inicial de ficar e permaneciam no destino,

outros se deslocavam querendo fixar-se no lugar, mas desistiam e retornavam.

A caracterstica principal dessa migrao, portanto, era a intensa circulao, um ir e

vir em diversas direes, dentro dos seus estados de origem e em fronteiras prximas. Aqui o

ato de migrar no entendido nos termos clssicos que opem de forma exclusiva origem e

destino, que no levam em considerao os movimentos sazonais, de curta distncia e durao,

e que pensam os migrantes apenas como viajantes de longa distncia e sem volta, ou como

nmades, ou aventureiros. Ou seja, migrao no algo definido por fronteira geogrfica,

distncia percorrida ou permanncia de quem se desloca. um fenmeno que vai muito alm

disso, mais complexo. A experincia explica o movimento. O sujeito torna-se migrante. Algo

que definido no desejo, na necessidade, mas tambm no processo. Essa afirmativa se torna

mais compreensvel quando se observam a incerteza e a imprevisibilidade que acompanhavam

os trabalhadores deslocados rumo s obras pblicas durante as secas.

De qualquer modo, os migrantes das secas foram protagonistas na produo de

variadas obras por todo o Nordeste, na dcada de 1950. Ambiguamente, justificada por

autoridades pblicas e particulares como forma de auxlio e fixao dos sertanejos, toda essa

estrutura erguida pelos trabalhadores combinava tambm com a relativamente acentuada

acelerao urbana e industrial que, concentrada especialmente nas grandes capitais do pas,

20

seria levada s demais regies brasileiras, rumo integrao nacional (de acordo com o iderio

nacional-desenvolvimentista).

Os audes e estradas iniciados durante as secas como frentes de emergncia e as

construes pblicas, que j estavam em andamento e foram aproveitadas como obra de

socorros, passaram de cem somente no estado do Cear e deixaram uma farta documentao

que, somada a outras, possibilitou observar as experincias dos trabalhadores das obras contra

as secas.

A PESQUISA

Secas, trabalho e obras pblicas so temas intimamente relacionados em minhas

pesquisas desde a graduao na Universidade Federal do Cear UFC (2002-2006). Aps a

concluso do curso, ingressei no mestrado em Histria Social, na Universidade Federal da

Bahia, em 2007. Minha dissertao discutiu a poltica e a atuao de uma comisso criada na

seca, de 1915, intitulada Obras Novas Contra as Secas (1915-1919), tendo como foco principal

de anlise dois grupos especficos de atores: de um lado, retirantes buscando garantir a

sobrevivncia, agregando experincias de trabalho, dentro das frentes de servios, de outro,

engenheiros crentes na sua racionalidade cientfica, mas diante de uma luta a que no estavam

acostumados: a calamidade da seca e os seus problemas sociais. Meu primeiro contato com as

fontes que possibilitaram este estudo, ocorreu ainda na graduao, como bolsista de um projeto

de pesquisa11 que inventariou parte da documentao do atual Departamento Nacional de Obras

Contra as Secas (DNOCS).

J no doutorado, o foco principal passou a ser os trabalhadores-retirantes mobilizados

pelos projetos pblicos de obras contra as secas, mas na dcada de 1950. A inteno analisar

a experincia dos migrantes pobres das secas enquanto trabalhadores nas frentes de servios

estabelecidas nos anos de 1951-1953 e na grande seca de 1958. Desse modo, foram estudados

desde a dinmica dos alistamentos, esmiuando posteriormente o cotidiano desses sujeitos nas

obras (moradia, pagamentos, alimentao, tarefas, doenas, acidentes, famlia, relaes

hierrquicas) at o momento da dispensa. Em acrscimo, as redes de relacionamentos e poder

construdas atravs das autoridades pblicas em diversas instancias, donos de terra,

comerciantes, religiosos e outras autoridades particulares. Para dar conta disso, aprofundei a

anlise nas fontes oficiais do DNOCS, tais como relatrios anuais, boletins, relatrios de

11 O projeto de pesquisa intitulado Memria Cientfica e Tecnolgica do Semirido Brasileiro (MECTSAB)

recebia recursos do Cnpq e do DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas) e era coordenado pelo

Prof. Dr. Almir Leal e pela Prof. Dr. Ivone Cordeiro.

21

servios, telegramas, ofcios, tabelas e outros documentos tcnicos, alm de uma ampla

variedade de jornais, obras literrias, memrias, legislao e fontes orais.

O DNOCS foi o rgo que concentrou a maior parte da organizao dos servios de

emergncia, nas secas de 1951-1953 e na seca de 1958, arregimentando em suas frentes de

servio os atores principais desta pesquisa. A documentao oriunda das atividades do DNOCS

aqui analisadas est depositada na sua biblioteca, com sede em Fortaleza (CE), e num galpo

na mesma cidade. Na biblioteca, encontrei com fcil acesso e em bom estado livros de

instrues, memrias das obras, boletins e relatrios anuais. Atravs de tais documentos

tcnicos e burocrticos, pude entender no geral uma srie de regulamentos da instituio,

inclusive alguns tangenciando o trato com os trabalhadores. Fora isso, especialmente nos

relatrios anuais, esto reunidos dados sobre os servios realizados nas obras, possibilitando

enxergar por brechas a histria dos operrios daquelas construes.

No entanto, enquanto nas fontes citadas acima os trabalhadores aparecem, na maioria

das vezes, em forma de nmeros, nas pastas referentes aos processos de construes dos audes

pblicos, possvel encontr-los em forma de notcia. Estas sries contm diversos documentos

do processo de realizao das obras: memrias justificativas do estudo preparatrio para as

construes, relatrios de servios trimestrais, semestrais, documentos de engenharia,

economia, geologia, geografia, pluviometria, tabelas e grficos, ofcios, telegramas e outros.

Vale ressaltar que encontrei essas pastas em degradante estado de conservao, localizadas em

um galpo sem estrutura para pesquisa, em Fortaleza.

Ao passo que a pesquisa foi seguindo, entendi que a prpria forma de organizao das

sries dos audes pblicos fornecia indcios de como foi se organizando o cotidiano no espao

social das frentes de servios, desde os estudos preparatrios finalizao da obra. Nestes

documentos, pude perceber de forma mais clara o cotidiano e as ebulies nas obras, desde as

confuses em busca de trabalho at as desordens que envolviam comida, especialmente

analisando as correspondncias trocadas entre engenheiros, diretor do DNOCS, governadores,

deputados e vereadores.

Primeiramente, investiguei os relatrios anuais (que esto na biblioteca do rgo),

documentos que eram elaborados pelos seus diretores gerais e que davam conta dos servios

executados pelo DNOCS ao Ministrio da Viao e Obras Pblicas e ao Poder Executivo. Esses

documentos eram construdos a partir de informaes registradas em outros materiais diversos

elaborados por engenheiros e sua equipe tcnica.

Entretanto, medida que ia desfiando os relatrios oficiais do DNOCS, constatei que

esses documentos buscavam imprimir no texto uma atuao eficiente, evidenciando de maneira

22

muito rasa os acontecimentos mais problemticos que o rgo enfrentava nas lidas em suas

mais diversas instncias envolvendo os trabalhadores. Para aumentar o grau de viso e enxergar

as ebulies daqueles espaos, a alternativa mais vivel considerada foi inverter a ordem do

caminho, percebendo essa fonte como acontecimento e investigando os documentos

administrativos que constituam o relatrio oficial. Assim, fui avaliar as correspondncias que

apresentavam mais claramente os principais problemas do cotidiano das obras. Entre elas

podemos citar os relatrios de servios peridicos, os telegramas e os ofcios.12

Atravs dos relatrios de atividades, entendi aspectos do cotidiano de labuta dos

trabalhadores-retirantes. Redigidos pelos engenheiros chefes de obras a partir de suas

avaliaes e das que seus auxiliares coletavam em campo, esses documentos eram enviados

para a sede administrativa durante o decorrer da obra. Mesmo dentro de um modelo e numa

linguagem tcnica, com essas fontes, entendi os variados tipos de ofcios nas construes,

informaes sobre o meio, relaes da equipe com os trabalhadores e outros.

Os telegramas e ofcios so correspondncias que atendiam aos problemas mais

imediatos, sendo trocados entre variados setores administrativos. No entanto, mesmo com

reduzidas linhas, os telegramas e ofcios, volumosos em quantidade, trouxeram-me os mais

ricos dados sobre os conflitos nas frentes de servios aglomeraes, alojamento, dirias,

dispensas, alimentao. Fora isso, percebi os jogos polticos que se estabeleciam entre

autoridades pblicas, religiosas e particulares.

A partir da pesquisa realizada at o momento, posso afirmar que boa parte do acervo

que o DNOCS guardou ao longo de sua histria no desejava falar diretamente dos

trabalhadores e seus problemas. Estes sujeitos aparecem muito mais como coadjuvante no

processo de erguimento das obras. No por acaso a documentao que se encontra em bom

estado de conservao e disponvel para pesquisa so relatrios e boletins que tratam muito

mais do prprio DNOCS e seus feitos. O grosso volume de papis que trata dos processos de

construo das obras e que mais facilmente deixa transparecer os conflitos estava a caminho da

putrefao, abandonado em galpes em diferentes prdios da instituio. Atualmente, parte

12 Para entender melhor o fluxo e a movimentao de informaes institucionais, identificamos e investigamos

diferentes carimbos, datas e assinaturas presentes nas fontes. No caso do (a) IOCS/DNOCS, essas

correspondncias circulavam entre distritos regionais, administrao central (diretoria geral, seco tcnica, seco

administrativa, seco de estudos e projetos), Ministrio da Viao e Obras Pblicas, esferas do Legislativo e

Executivo, fora os particulares padres, coronis, comerciantes. Esse procedimento de pesquisa interessante

para entender o que era considerado imediato, o organograma do rgo, as formas de hierarquia, as instncias por

onde transitavam, a que alada pertencia cada questo e a durabilidade dos conflitos. Informaes necessrias

como ponto de partida para uma leitura das variadas fontes e re-elaborao de interpretaes.

23

deles est em processo de digitalizao, mas sem atentar para as normas de higienizao e

organizao de acervos.

As potencialidades desse acervo so imensas, vislumbrando possibilidades de

investigao para diversas cincias alm de ricos problemas para investigao histrica, mas

que urge de cuidado. Verdadeiramente devo alertar que muitas fontes produzidas pelo DNOCS

necessitam de uma poltica adequada de conservao. Avalanches de documentos que

descortinam a histria de muitos sujeitos no semirido brasileiro encontram-se literalmente

entregue s traas e baratas.

Certamente, mesmo tratando-se de fontes que aparentemente serviriam para fazer uma

histria mais tradicional, do ponto de vista de grandes feitos de bacharis, ou claramente uma

Histria institucional ou da cincia, elas tambm podem ser utilizadas na elaborao de

importantes trabalhos de Histria Social. Entretanto, mesmo tendo consultado significativa

quantidade de relatrios anuais, boletins e inditos relatrios de servios, telegramas e ofcios,

alm de uma farta documentao tcnica, entendi que precisava avanar rumo ao encontro de

fontes que desenhassem outros problemas e possibilitassem novas reflexes.

As notcias veiculadas na imprensa, por exemplo, foram fundamentais para entender

principalmente os movimentos dos retirantes em busca de trabalho nas frentes de servios. Os

jornais informam o drama das migraes, as aes dos retirantes saques, invases e alguns

aspectos do dia a dia dos trabalhadores nas frentes de servio. Fora isso, os jornais deram

consistncia para entender as polticas vinculadas s obras das secas e ao retirante, levantando

questes sobre como autoridades polticas e civis se posicionavam diante desses problemas e

como utilizavam esse momento de instabilidade para conquistar ganhos: envio de obras, verbas

para socorros pblicos, alianas polticas, ganhos econmicos e votos.

Paralelo a isso, foi realizada uma apreciao crtica de trabalhos cientficos e literatura

produzida no perodo, fontes relevantes para entender o contexto histrico, mas ir alm. O

romance Os Cassacos foi uma surpreendente fonte na escrita do meu trabalho. Guardando

sensibilidade histrica em relao s questes que levanto em minha pesquisa, essa literatura

relata o cotidiano dos retirantes que foram alocados em duas obras no Cear no fim da dcada

de 1950, a estrada de rodagem Pitangui e o aude Banabui. O escritor Luciano Barreira

escrevia matrias para a imprensa cearense e decidiu viver no meio dos cassacos, assim, ao

coletar informaes para as suas reportagens, guardou tambm material para escrever o

romance. As narraes vo desde episdios sobre as migraes at problemas sobre o binmio

fome-doena.

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Posteriormente, coletei entrevistas de sujeitos que trabalharam nas obras pblicas, na

dcada de 1950. Em todos os lugares que andei, encontrei possveis depoimentos, era rara a

famlia que no tinha um parente ou conhecido que trabalhou nas obras, nos anos 1950. No

entanto, a maioria decidiu silenciar, alguns declaravam no ter fala importante aos propsitos

da pesquisa, mas entendo que muitos vivenciaram perodos dramticos de fome, incerteza e at

perda de familiares, especialmente filhos pequenos. Decidi no insistir. Persisti um pouco mais

com Geraldo Rodrigues (av, falecido dos primos Gabriela, Guilherme e Felipe), mesmo sendo

uma pessoa muito prxima, calou-se todas as vezes, ento, pensei que o melhor seria respeitar

a memria e a vontade de cada um, sem importunar. Essas fontes orais me ofereceram

ferramentas para entender, em contraposio ao discurso oficial das fontes do DNOCS, os

servios realizados nas frentes, a moradia, alimentao, sade, famlia, formas de solidariedade,

entre outros aspectos do universo de trabalho nas obras. Nessa pesquisa, a fala dos cassacos foi

to importante quanto o discurso de bacharis, tcnicos e polticos encontrados na

documentao oficial, na verdade, as experincias de ambos permitem elaborar um desenho

menos rascunhado dos acontecimentos, do cotidiano, das formas de sociabilidades e

relacionamentos.

DIVISO DOS CAPTULOS

A secular obsesso por integrao nacional ganhou flego nos projetos polticos

executados na dcada de 1950, com reforo mpar durante o governo de Juscelino Kubistchek.

O Nordeste, especialmente a rea do polgono das secas como tambm o Centro-Oeste e a

Amaznia eram entendidos como um Brasil miservel, iletrado e atrasado. Espalhar

construes pelo Interior do pas, atravs das obras de emergncia nas secas da dcada de 1950,

foi uma das polticas desempenhadas pelo Estado atravs do Ministrio da Viao e Obras

Pblicas. Esse era um modo agregar aquela regio ao restante do pas. No primeiro captulo

da tese, intitulado as polticas antimigratrias e os trabalhadores-cassacos, so analisadas

as obras pblicas em tempos de secas dentro dessa conjuntura de sede por integrao, mas com

peculiar objetivo antimigratrio, atravs da ocupao e fixao do trabalhador do interior (do

Nordeste seco) em seus locais de origem. Ainda que a mobilidade intraestadual pudesse

incomodar as autoridades pblicas e particulares, a migrao interestadual era a grande

preocupao do Estado. No entanto, se de um lado buscava-se evitar as migraes em massa

para outros estados, ocupando pobres nas frentes de emergncia, evitando perda de braos e

votos, de outro, a populao esforava-se diuturnamente para seguir suas vontades, entrave que

teve como resposta o policiamento das principais fronteiras rumo ao Sudeste do pas. Em

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acrscimo, ainda neste captulo, tenta-se aproximar de quem eram esses trabalhadores-cassacos,

suas possveis configuraes sociais. Alm disso, busca-se entender porque esses sujeitos so

chamados de cassacos, tomando esse apelido emprestado de uma espcie de gamb, e os

possveis desdobramentos dessa alcunha.

O servio em obras pblicas ao mesmo tempo em que servia para evitar os indesejados

deslocamentos de pessoas para fora do estado de origem, era um modo de justificar, ainda que

precrio, o auxlio aos pobres em tempos de secas. Ou seja, foi pensado para racionalizar os

socorros aos pobres no momento da estiagem. Do mesmo modo, as frentes de emergncia

podem ser entendidas como alternativas pensadas pela prpria populao que no desejava sair

das suas localidades originais, mas que precisava garantir a sobrevivncia enquanto a crise

durasse. O segundo captulo da tese, intitulado no rastro das obras pblicas, alistamento,

trabalho e voto, analisa os pobres em movimento na busca de trabalho nas frentes de

emergncia, assim como a dinmica, os imbrglios e todas as relaes que eram articuladas

durante os alistamentos. Os sujeitos aglomeravam-se nas ruas dos ncleos urbanos do interior

cearense, nos entornos das reparties pblicas, comrcios e tambm nas obras pblicas.

Motivados pelo desejo de melhorar suas vidas, s vezes insatisfeitos com a demora da

assistncia pblica, saqueavam comrcios, armazns das obras, invadiam prefeituras,

construes e at trens. Conseguia-se, muitas vezes, garantir algo, fosse em forma de alimento,

trabalho ou abrigo. Um nmero dos que procuravam alcanavam alistamento nos primeiros

meses de seca, outros, porm, continuavam circulando na trilha das frentes de emergncia. Os

alistamentos eram um amplo cenrio de negociao. Antes mesmo de observar os trabalhadores

no cotidiano das construes, necessrio esmiuar a dinmica dos alistamentos, como eram

realizados, que trabalhadores eram priorizados. Fora isso, relevante entender as articulaes

polticas vinculadas aos alistamentos, de que forma o controle das vagas nas frentes de servios

era utilizado como meio de barganha de prestgio, ganhos econmicos, poder local e voto.

Depois de lotados nas obras, os trabalhadores-cassacos vivenciariam um universo de

labuta diferente do habitual com moradias precrias, servios diversos, horrios, disciplina,

hierarquia. Ficavam frente a frente a um mundo com aspectos diferentes do que estavam

acostumados, mas guardando algumas caractersticas do trabalho e do dia a dia de suas

atividades pregressas. O terceiro captulo, com ttulo de: De Retirantes a Trabalhadores-

cassacos: moradia, lida e famlia, estuda justamente a experincia desses pobres enquanto

trabalhadores-cassacos, esforando-se para imergir o mximo possvel no cotidiano vivenciado

nas frentes. De incio, so examinados os acampamentos que reuniam desde moradias para

operrios at maternidades, observando o aspecto mais geral dessas diversas instalaes, como

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tambm questes sobre o bem provido campo de construo que abarcava a minoria de

trabalhadores e a precariedade das moradias dos cassacos. A lida outro aspecto analisado neste

captulo, ressaltando a diversidade e diviso de tarefas, o aprender fazendo, a disciplina,

horrios e hierarquia, a presena e ausncia das famlias, fora o tempo do descanso, brincadeiras

e rezas.

A lida nas obras representava para o trabalhador-cassaco a garantia da sobrevivncia

sua e de sua famlia. Estes obreiros labutavam em troca de vales que eram trocados por comida

nos estabelecimentos dos fornecedores habilitados pelo DNOCS e outros rgos. Este

pagamento estava longe de ser suficiente para suprimir as necessidades mais bsicas, o que

tornava a fome uma companheira daquelas pessoas. No ltimo captulo da tese, intitulado

jornadas da fome: alimentao e sade, so estudados os problemas nos fornecimentos de

gneros aos trabalhadores, pagamentos, alimentao, servios de sade, fome, doenas e

acidentes. Em acrscimo, a dispensa dos trabalhadores. Ocorre que o deficiente vencimento,

por sua vez a precria alimentao, piorava as condies pregressas de depauperamento pela

fome que, por sua vez, somado s condies insalubres nas obras, resultava na disseminao de

doenas e acidentes no trabalho. Mesmo diante de tenebroso quadro, as pessoas tinham no

emprego das obras a possibilidade de garantir a vida. Dessa forma, quando as obras eram findas

e as verbas de emergncia se esgotavam, muitos engenheiros executavam as ordens de dispensa

de operrios, o que era motivo de muita celeuma. Nesse cenrio, os trabalhadores escusados

reclamavam o retorno labuta, s vezes eram transferidos para outras obras, outras vezes, no

conseguiam recolocao, retomando, assim, a migrao em busca de servios na rota das obras

pblicas.

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1. AS POLTICAS ANTIMIGRATRIAS E OS TRABALHADORES-CASSACOS

Em 1915, pela primeira vez, o governo federal articulou-se com autoridades pblicas

e particulares da regio, atualmente conhecida como Nordeste, para organizar e coordenar um

volumoso programa de frentes de emergncia de combate s secas, no intuito de mitigar os

problemas sociais avaliados como efeito da estiagem daquele ano. Tais obras, criadas

urgentemente aps a declarao daquela seca e conduzidas pela Comisso de Obras Novas

Contra as Secas, visavam deliberadamente evitar o xodo da mo de obra dispersa pelas

estiagens, proporcionando ocupao aos trabalhadores, mas tambm havia a inteno de

impedir os tumultos provocados pela chegada de aglomeraes de retirantes aos ncleos

urbanos.13

O emprego de trabalhadores pobres em obras pblicas de grande porte, ou em servios

organizados localmente durante as secas, no era novidade desde a metade do sculo XIX.

Afinal, desde esse perodo, as autoridades passaram a entender que as construes pblicas

ordinariamente conduzidas independentemente das secas poderiam servir ao propsito de

aplacar as agitaes feitas pelos retirantes nas cidades, quando as estiagens ocorriam. Nesse

sentido, pode-se dizer que as vagas em obras passam tambm gradativamente a ser consideradas

entre as respostas dadas s multides de retirantes que solicitavam emprego e alimento.14

A novidade das polticas ativadas para combater a seca de 1915 foi a interveno

organizada e diretiva do governo federal que, atravs da criao de uma comisso, tomou para

si a responsabilidade na execuo de frentes emergenciais de trabalho. Chamada de Obras

Novas Contra as Secas, essa comisso atuou paralela e autonomamente em relao Inspetoria

de Obras Contra as Secas (IOCS), at 1919, utilizando regulamentos e at mesmo alguns

funcionrios desta instituio, agindo em todos os estados do polgono das secas, dando incio

13 Essas observaes so resultantes da minha pesquisa de mestrado, realizada na Universidade Federal da Bahia,

entre 2007 e 2009. A comisso em questo, Obras Novas Contra as Secas, ainda no havia sido objeto de estudo.

Por isso, a historiografia menciona o ano de 1932 como marco para a instaurao de frentes de emergncia em

pocas secas, ou seja, a organizao de um conjunto de obras, centralizadas federalmente, com o objetivo de

empregar retirantes. FERREIRA, Lara V. de Castro. Enxadas e Compassos: Seca, cincia e trabalho no serto

cearense (1915-1919), op. cit..

14 NEVES, Frederico de Castro. A Multido e a Histria: saques e outras aes de massas no Cear. Rio de Janeiro:

Relume Dumar, 2002. Em sua pesquisa, Neves estudou acontecimentos de 1877 at a dcada de 1950, visando

demonstrar a consolidao de uma tradio de protestos em tempos de secas. Na concepo do autor, as obras, a

doao de alimentos, passagens, etc. esto entre as respostas do poder pblico aos movimentos e saques dos

retirantes durante as estiagens.

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a vrias obras com o objetivo declarado de ocupar retirantes e conter a migrao. Tratava-se,

entre outras coisas, de dar maior celeridade liberao dos recursos vindos do Ministrio de

Viao e Obras Pblicas (MVOP) para o combate s estiagens, garantindo exclusividade e

independncia na gesto dos recursos.

A partir desse momento, alm de aproveitar as construes j existentes para empregar

os retirantes, conforme era feito eventualmente, passou-se a estabelecer um plano sistematizado

de obras que era acionado no momento das secas, cuja execuo era centralizada pelo governo

federal e que associava os socorros dados aos pobres em tempos de estiagem ao trabalho nas

frentes emergenciais. Agora, caberia ao Estado no somente dotar os sertes semiridos de uma

infraestrutura hdrica capaz de suportar as estiagens, como dele seria tambm recorrentemente

cobrado o dever de criar obras especialmente com a finalidade de ocupar e fixar em seus locais

de origem milhares de obreiros. Assim sendo, esse momento concretizou uma mudana nas

polticas de Estado em tempos de secas.

Essa iniciativa de atacar obras com claros objetivos de evitar o xodo foi fortalecendo-

se ao longo da primeira metade do sculo XX. Ao lado disso, a poltica de incentivo e subsdio

da migrao,15 to cara aos representantes polticos e donos de propriedades no XIX, perdeu

espao nos planos governamentais durante as secas. No entanto, bom lembrar que um

proposital hiato nesses projetos de Estado, depois de 1915, foi a Batalha da Borracha16 na

Amaznia do incio dos anos 1940, quando diversos rgos pblicos instituram uma forte

propaganda para impulsionar a ida de trabalhadores nordestinos rumo extrao de ltex.

Embora se saiba que os trabalhadores no seguiam resignados os projetos do Estado,

15 Cf: .SECRETO. Mara Vernica. Cear, a fbrica de trabalhadores: Emigrao subsidiada no final do Sculo

XIX. IN: Trajetos. V.IV. Dossi: trabalho, trabalhadores. Fortaleza: Departamento de Histria da UFC, 2003. A

instalao da comisso de Obras Novas, assim como outras frentes de trabalho nas secas posteriores, no cessou

absolutamente a migrao. Certamente, numerosas pessoas, em diferentes momentos, cruzaram as fronteiras dos

estados semiridos, fosse via passagens subsidiadas, com recursos obtidos pela venda de seus pertences, ou atravs

dos paroaras e redes de parentesco. Sobre o ofcio dos paroaras: Cf. CARDOSO, Antonio Alexandre Isidio.

Nem sina, Nem acaso: a tessitura das migraes entre a Provncia do Cear e o territrio amaznico. Fortaleza,

Mestrado em Histria Social - Universidade Federal do Cear, 2011.Outras polticas antimigratrias foram os

campos de concentrao das secas. Sobre isso: RIOS, Knia Sousa. Campos de concentrao no

Cear: isolamento e poder na Seca de 1932. 2 edio. Fortaleza: Museu do Cear, 2006. NEVES, Frederico.

Curral de brbaros: Os campos de concentrao no Ceara (1915 e 1932). Revista Brasileira de Histria 15, n. 29,

1995.

16 Batalha da Borracha foi um programa de emergncia, que ocorreu durante a Segunda Guerra Mundial, para

tentar suprir o dficit da borracha nos Estados Unidos. Nesse contexto, muitos trabalhadores, especialmente

nordestinos, foram arregimentados para labutar nos seringais da Amaznia. Estima-se que cerca de 50.000

indivduos migraram para o Norte e, destes, quase metade desapareceu ou morreu. Cf: SECRETO, Mara Vernica.

Soldados da Borracha. Trabalhadores entre o serto e a Amaznia no governo Vargas. So Paulo: Editora

Fundao Perseu Abramo, 2007; COSTA, Pedro Eymar Barbosa; GONALVES, Adelaide (Orgs.). Mais

borracha para a vitria. Fortaleza: MAUC/NUDOC; Braslia: Ideal Grfica, 2008.

29

existiam planos cuidadosamente arquitetados para os trabalhadores do no-litoral que

precisam ser mencionados. Com as polticas antimigratrias, pretendia-se mant-los

exatamente em seus locais de origem e, caso resolvessem financiar a migrao, que fosse

preferencialmente para outras reas consideradas do Interior brasileiro, como aconteceu na

Batalha da Borracha. At porque a temida inverso do fluxo de correntes de povoamento

poderia causar um esvaziamento da reserva de mo de obra do campo, algo que prejudicava a

ambicionada integrao, num plano geral, e o abastecimento de alimentos nas cidades, os

interesses de grupos polticos, donos de propriedades fundirias e de outros negcios, no plano

local.

Cerca de dez anos depois da Batalha da Borracha, autoridades pblicas e particulares

organizaram um plano de obras, durante as secas de 1951-1953 e 1958, objetivando novamente

controlar a mo de obra dispersa. fundamental sempre lembrar, alis, que as frentes estreadas

em perodos de estiagem devem ser consideradas tambm como estratgias de sobrevivncia

elaboradas pelos prprios trabalhadores, j que os pobres no esperavam mais esgotar-se na

misria, antecipavam-se e muito cedo procuravam os ncleos urbanos na tentativa de garantir

comida e emprego. 17

17 Peo licena aos leitores para a longa, mas necessria nota. Citarei alguns trabalhos que, de alguma forma,

versam sobre a utilizao da mo de obra de retirantes em obras pblicas em tempos de secas, situando as obras

contra as secas entre as obras de socorros pblicos. Primeiro, temos uma relevante dissertao desenvolvida entre

os anos 2000 a 2003, que estuda o emprego de retirantes em construes organizadas localmente no estado do

Cear, no sculo XIX, com o objetivo de evitar a mendicncia e tambm como forma de educar para o trabalho

SILVA, Jeovah Lucas da. As Bnos de Deus: a seca como elemento educador para o trabalho (1877-1880).

Dissertao de Mestrado, Universidade Federal do Cear, Fortaleza, 2003. Posteriormente, temos a pesquisa de

Candido, publicada em 2005. Um trabalho interessante centrado na construo da estrada de ferro de Baturit e no

cenrio de confrontos, que lotou, em seus servios, operrios, retirantes e engenheiros: CNDIDO, Tyrone Apollo

Pontes. Trem da Seca: Sertanejos, Retirantes e Operrios (1877-1880). Fortaleza: Museu do Cear. Secretaria da

Cultura do Estado do Cear, 2005. Em seguida, temos outro grupo de trabalhos que se concentram nos estudos

sobre a presena dos trabalhadores retirantes nas ditas obras contra as secas, entre elas, obras permanentes e de

emergncia. O meu prprio trabalho, desenvolvido no mestrado entre os anos 2007-2009, estuda a lida de

retirantes-operrios e engenheiros, com a presena da sociedade local, em frentes de emergncias, centralizadas

no governo federal, organizadas pela comisso de Obras Novas Contra as Secas (1915-1919), FERREIRA, Lara

V. de Castro. Enxadas e Compassos: Seca, cincia e trabalho no serto cearense (1915-1919). Dissertao de

mestrado em histria, Universidade Federal da Bahia UFBA, Salvador, 2009; publicado pelo DNOCS/BNB em

2010. Temos ainda a dissertao que estuda a implantao do projeto de combate s secas da Inspetoria de Obras

Contra as Secas (IOCS) atravs das relaes entre engenheiros civis e sociedade local, nas obras de audagem:

LIMA, Aline Silva. Um projeto de combate s secas, os engenheiros civis e as obras pblicas: Inspetoria de

Obras Contra as Secas (IOCS) e a construo do aude Tucunduba. Dissertao de mestrado em histria,

Universidade Federal do Cear UFC, Fortaleza, 2010. Outro trabalho que trata dos embates e expectativas em

torno da construo do aude Cedro, primeiro grande projeto de combate s secas no Brasil, discutindo tambm,

entre outros, a irregularidade do trabalhador nas obras como entrave a sua concluso MONTEIRO, Renata Felipe.

Um monumento ao Serto: cincia, poltica e trabalho na construo do aude Cedro (1884-1906). Dissertao de

mestrado em histria, Universidade Federal do Cear UFC, Fortaleza, 2012. Recentemente defendida, a tese de

Candido retoma seu estudo sobre os retirantes nas obras da estrada de ferro de Baturit, incluindo dessa vez o

trabalho em obras de combate s secas, entre elas, a do aude Cedro: CANDIDO, Tyrone. Proletrios das secas:

30

Assim, diversos trabalhadores foram arregimentados na dcada de 1950 para labutar

na edificao, restaurao e conservao de obras organizadas por rgos como o Departamento

Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) e Departamento Nacional de Estradas de

Rodagem (DNER). As frentes de trabalho foram organizadas em obras j em andamento, ditas

permanentes, mas especialmente nas acionadas durante as estiagens, chamadas de emergncia.

Estas, conforme boletim do DNOCS,18 diferente daquelas, se destinavam a eliminar o

desemprego nos perodos de estiagem, tendo em vista manter a populao no seu prprio

ecmeno, evitando concentraes humanas improvisadas e os inconvenientes do trabalho

a grandes distncias. Da a necessria elaborao antecipada de projetos para serem

executados logo que a seca fosse alarmada.

Fora a expressa finalidade de ocupar e fixar trabalhadores, admitindo tambm o

incmodo que os agrupamentos de pessoas causavam, as frentes de emergncia carregavam

caractersticas diferentes das demais obras pblicas regulares. Mesmo ativadas com crditos

especiais, sustentadas com o discurso do amparo, seus rarefeitos oramentos no davam conta

de empregar os numerosos pobres das secas. O excesso de braos, por sua vez, tambm reduzia

a receita que resultava em parcos provimentos aos operrios. Eram obras geralmente pequenas,

pensadas para durar o ano de estiagem, por isso, ofereciam terrveis condies de alojamento,

insalubres e improvisados, faltando gua at para beber.

Diversos documentos do DNOCS, fontes literrias, entrevistas e jornais atestam que

as condies de existncia dos trabalhadores eram piores nas frentes de emergncias, mesmo

se comparada s outras obras pblicas regulares que recebiam obreiros em tempos de secas.

Longe de se pretender fazer uma espcie de comparao da desgraa o que seria

problemtico e objetivamente muito difcil deve-se considerar que havia diferentes tipos de

construes que serviam de socorro pblico durante as secas, cujas distines implicavam

tambm em peculiaridades no universo do trabalho que nelas se organizava. Ao reuni-las numa

mesma esteira, deve-se cuidar para no sintetizar e homogeneizar tambm as experincias dos

obreiros, nos perodos de secas.

arranjos e desarranjos na fronteira do trabalho (1877-1919). Tese de Doutorado em histria, Universidade Federal

do Cear UFC, Fortaleza, 2014. As estiagens e o enfraquecimento dos servios na lavoura tambm foram

motivaes para trabalhadores livres pobres procurarem as obras da construo de estrada de ferro de So

Francisco na Bahia no incio da segunda metade do sculo XIX, antes mesmo da seca de 1877. SOUZA, Robrio

dos Santos. Se eles so livres ou escravos: escravido e trabalho livre nos Canteiros da Estrada de So Francisco:

Bahia, 1858-1863. Tese (Doutorado em Histria), Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2013.

18 DNOCS. Boletim. Rio de Janeiro: DNOCS/MVOP, v. 19, n. 3, fevereiro de 1959, p.42

.

31

De qualquer modo, na dcada de 1950, diversos retirantes foram ocupados nas obras

pblicas durante as secas, tendo como motivao evitar a disperso de braos. Se a instalao

dessas frentes de trabalho nas construes foi o principal recurso acionado pelo Estado como

parte das polticas migratrias, o armamento de barreiras nas sadas rumo ao Sudeste tambm

funcionou como estratgia para tentar impedir os deslocamentos. Ainda assim, muitos

migraram para longe revelia do desejo do Estado, outros, por diversos motivos, permaneceram

nos seus locais de origem e tornaram-se trabalhadores-cassacos nas obras.

Um estudo das polticas antimigratrias, das quais faziam parte as frentes de trabalho

que empregou os sujeitos desta pesquisa e as medidas de conteno de migrantes nas fronteiras,

e uma anlise sobre o trabalhador nominado de cassaco e a representao em torno desse

apelido so os assuntos deste captulo. Antes disso, levando em considerao as mudanas

ocorridas com a redemocratizao de 1945, que influenciaram as polticas de combate s secas,

e os socorros aos retirantes, faz-se uma apreciao geral sobre o cenrio em que se assentou o

universo de trabalho das obras pblicas durante as secas de 1950.

1.1.ASPECTOS DA CONJUNTURA

No intuito de diminuir certos desnveis socioeconmicos entre os centros mais

dinmicos e reas tidas como subdesenvolvidas, como o Nordeste tambm a Amaznia , o

Estado brasileiro promoveu a criao de uma srie de agncias de desenvolvimento e

infraestrutura. Assim, novos rgos regionais surgiram j no fim da dcada de 1940, como a

Companhia Hidreltrica do So Francisco (CHESF), Comisso do Vale do So Francisco

(CVSF), em seguida, a Superintendncia de Desenvolvimento do Vale do So Francisco

(SUVALE) e a atual Companhia de Desenvolvimento dos Vales do So Francisco e do Parnaba

(CODEVASF). Da mesma forma, na dcada de 1950, visando facilitar linhas de crdito,

emprstimos e outras questes financeiras, criou-se o Banco do Nordeste do Brasil (BNB),

tendo como principal aporte de recursos o Fundo das Secas.

Depois do Decreto-Lei 8.486, de 28 de dezembro de 1945, que reorganizou a

Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), que passou a denominar-se

Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), essa instituio retomou alguns

trabalhos, saindo de uma morosidade que se prolongava h alguns anos. O principal rgo

empregador durante as secas tambm fortaleceu seus projetos atravs do estreitamento de laos

com outras instituies durante o segundo governo Vargas, com o BNB, por exemplo. O banco

32

colaboraria, atravs do escritrio tcnico de estudos econmicos, no exame dos problemas

da regio a cargo do DNOCS. Este, por sua vez, prestaria ao banco a assistncia tcnica,

algo previsto na Lei 1.649. O DNOCS tambm operou juntamente CHESF na eletrificao de

cidades do serto nordestino.

No plano internacional o DNOCS manteve suas relaes com o United States Bureau

of Reclamation (USBR). As duas instituies concordavam com a poltica de combate s

estiagens com foco no acmulo de gua em reservatrios. Importa dizer que destacados

profissionais do USBR deram assistncia tcnica aos projetos do DNOCS. Alm disso,

engenheiros desta e de outras instituies receberam treinamento da agncia estadunidense.

Ainda mais, diversas construes do USBR tambm igualmente serviram como frentes de

trabalho nos EUA.19

No segundo governo Vargas a construo de barragens voltou a ter flego, mas se

acreditava que o atraso do Nordeste seria superado tambm pela irrigao e outras benfeitorias

que viriam atravs da gua acumulada em audes. Fora isso, as rodovias tambm tiveram amplo

papel nessa gesto. Com Sousa Lima frente do Ministrio da Viao e Obras Pblicas e

Vincius Berredo, integrante da comisso mista Brasil-EUA, dirigindo o DNOCS, muitas

estradas foram construdas, especialmente durante as secas do primeiro trinio da dcada de

1950. Durante a administrao de Jos Amrico de Almeida, no Ministrio da Viao e Obras

Pblicas (MVOP), projetos de rodovias j passavam de 100 no primeiro trimestre de 1953,

19 Na verdade, em 1902, sete anos antes do atual DNOCS ser designado para operar no semirido brasileiro, a USBR foi criada como agncia de recursos hdricos, implantando centenas de barragens ao longo do sculo XX.

Durante a grande depresso, com o programa Civilian Conservation Corps Legacy (CCCL) inaugurado por

Roosevelt, foram autorizados projetos com a dupla finalidade de desenvolver a infraestrutura e fornecer ocupao

em obras pblicas aos desempregados. Outras construes tambm foram implantadas posteriormente, nos anos

1940 e 1950. Canais, estradas, audes, como a grande barragem do Rio Colorado (1956), arregimentaram centenas

de jovens desempregados, especialmente de reas rurais. Em anlise comparativa, nota-se que tanto os projetos

brasileiros como os estadunidenses tinham foco na soluo hidrulica para reparar os problemas dos seus

semiridos. Alm disso, ambos utilizaram o emprego de pobres em diversas obras organizadas por agncias

federais em perodos de crise como justificativa de assistncia aos necessitados. Entretanto, uma comparao entre

as polticas das agncias de recursos hdricos no Brasil e nos EUA e, especialmente, uma investigao que

aproxime o cotidiano dos operrios nas diversas frentes de trabalho, numa perspectiva transnacional, s ser

possvel em outro momento. Cf: PFAFF, Christine. The Bureau of Reclamations: Civilian Conservation Corps

Legacy. US Departament Of Interior. Bureau of Reclamation, Denver, Colorado, 2010; PFAFF, Christine.

Happy Days of the Depression: The Civilian Conservation Corps in Colorado. In Colorado Heritage, Spring

2001:31-39; SALMOND. John A. The Civilian Conservation Corps and the Negro. The Journal of American

History, Vol. 52, No. 1 (Jun., 1965), pp. 75-88. URL: http://www.jstor.org/stable/1901125. Accessed: 21/1/2015

06:34; SOURCE, Eric Gorham. The Ambiguous Practices of the Civilian Conservation Corps. Social History, Vol.

17, No. 2 (May, 1992), pp. 229-249. URL http://www.jstor.org/stable/4286017. Accessed: 21/01/2015 07:21.

http://www.jstor.org/stable/1901125http://www.jstor.org/stable/4286017

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obras que seriam realizadas pelo Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER) e

pelo DNOCS.20

A partir de 1956, com o presidente Juscelino Kubistchek, as iniciativas

desenvolvimentistas fortaleceram-se. No Sudeste, o Plano de Metas priorizou a indstria com

foco na implantao do parque automobilstico, em So Paulo. Enquanto isso, no Nordeste,

discutia-se a desigualdade regional como entrave ao desenvolvimento do pas, elencando como

principais medidas a industrializao autnoma, a transformao da economia agrcola das

faixas midas e das zonas semiridas. Estes debates foram promovidos especialmente pelo

Grupo Nacional de Desenvolvimento do Nordeste (GTDN), sob a coordenao de Celso

Furtado, e resultaram na criao da Superintendncia do Desenvolvimento do Nordeste

(SUDENE), em fins da dcada de 1950.21

Nesse segundo momento, alis, ocorreu uma reorientao na poltica em torno das

secas. Se at meados da dcada de 1950 ainda persistia a ideia de combater as secas

(mediante a modificao do meio natural), tendo o acmulo de gua como mola-mestra

fundamental, no segundo momento, em vez de combater as estiagens, comeava-se a se

pensar em conviver (atravs da modernizao tcnica e econmica das atividades) com o

semirido.22 Acreditava-se que no bastava reter gua era necessrio investir na qualidade do

solo e dar maior flego construo de estradas. De modo geral, portanto, acreditava-se que o

20 Departamento Nacional de Obras Contra as Secas. Relatrio de obras executadas em 1951 (apresentado pelo

diretor Eng. Vincius Berredo). Rio de Janeiro: MVOP/DNOCS, 1952; Departamento Nacional de Obras Contra

as Secas. Relatrio de obras executadas em 1954 (apresentado pelo diretor Eng. Luiz Mendes). Rio de Janeiro:

MVOP/DNOCS, 1955.

DNOCS. Relatrio das atividades de 1951 (Apresentado ao Presidente da Repblica pelo Eng. lvaro de Souza

Lima - ministro da Viao e Obras Pblicas). Rio de Janeiro: MVOP/Servio de Documentao, 1951; DNOCS.

Relatrio das atividades de 1952 (Apresentado ao Presidente da Repblica pelo Eng. lvaro de Souza Lima -

ministro da Viao e Obras Pblicas). Rio de Janeiro: MVOP/Servio de Documentao, 1953. Os relatrios

ministeriais e as mensagens presidenciais utilizadas nesta pesquisa esto disponibilizados no site:

http://www.crl.edu/brasil.

21 LIMA, Claudio Ferreira. A Questo Regional. Revista Conviver Nordeste Semirido, v.1, n.6. Fortaleza:

DNOCS/BNB-ETENE, 2009, pp.113-114.

22 A ideia de combater as secas que solidificou as polticas em torno delas, at metade do sculo XX, defendia a

mudana das condies naturais do serto rido. Mesmo que as solues para o problema das estiagens tivessem

como eixo o florestamento, a abertura de estradas, o uso de tcnicas e mtodos apropriados a baixa umidade (dry-

farming), a principal delas era a soluo hidrulica, com foco na audagem. Contudo, no fim da dcada de 1950,

as aes em torno das secas comearam a ser orientadas pela busca da convivncia com o semirido atravs da

modernizao econmica e tcnica das atividades produtivas, sem necessariamente ter a pretenso de superar o

problema naturalmente. bom que se diga que no obstante algumas aes tenham realmente caminhado no

sentido de conviver com a seca e no propriamente combater, a primeira concepo no foi aderida piamente, at

hoje, permanece a ideia de combate s estiagens atravs de grandes obras hdricas.

http://www.crl.edu/brasil

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desenvolvimento econmico nacional seria o resultado do fortalecimento da indstria e de

alguma transferncia de capital para regies perifricas.23

Portanto, na segunda metade da dezena de 1950, aps a eleio de JK, o discurso j

era que solues paliativas, como emprego de retirantes em frentes de trabalho, tornavam o

sertanejo um indigente remunerado. A ideia agora era criar meios para assalariar os

trabalhadores do campo, pensamento que era fruto de algumas propostas de reorientaes nas

polticas em torno das secas. O principal rgo envolvido historicamente nas aes de combate

s secas era o DNOCS e, embora ele tenha feito aparente oposio criao de uma nova

instituio (SUDENE que tinha frente Celso Furtado), esse departamento expandiu alguns

projetos que se aproximavam das discusses realizadas por Celso Furtado e o GTDN na

gestao da SUDENE.

Dessa forma, um dos principais engenheiros e intelectuais do DNOCS, nesse perodo,

Paulo Brito Guerra, defendia uma poltica que se concentrasse no somente no acmulo de gua

e no trabalho como assistncia paternalista , mas tambm no investimento em rodovias,

gerao de energia, canais de irrigao, postos de piscicultura, colnias agrcolas, estudos

fitogeogrficos, geofsicos, topgrafos e mudas vegetais/frutferas adequadas regio

semirida, algo que ele alega que j eram aes do rgo desde sua fundao, mas que

precisavam de maior fomento. Todo esse investimento garantiria que a populao, educada e

amparada tecnicamente, pudesse dispor de atividades econmicas capazes de fazer frente aos

problemas das estiagens.24

Por outro lado, se com Juscelino Kubistchek defendia-se que a resoluo dos

problemas nordestinos perderia peso na tica da engenharia hidrulica para ganhar fora no

plano econmico e do desenvolvimento, pode-se dizer que o plano de preveno contra as

estiagens no superou a soluo hidrulica. Defendida e celebrada nos anteriores cinquenta anos

de combate s secas, a prtica da construo de grandes obras de acmulo de gua permaneceu

consideravelmente enrgica, no governo JK, com a edificao dos maiores reservatrios at

ento levantados no Brasil: Ors e Banabui. Mantinha-se, ento, a ideia de que a seca causava

a pobreza e que tal obstculo seria sobrepujado atravs do acmulo dgua. A soluo

hidrulica materializada nas grandes obras seria o instrumento salvacionista, situao que

23ALMEIDA, Beto. O sculo do DNOCS. Revista Conviver Nordeste Semirido, v.1,n.6. Fortaleza:

DNOCS/BNB-ETENE, 2009, p.73. De acordo com Beto Almeida, as relaes com os norte-americanos, na

comisso mista Brasil - Estados Unidos, tiveram forte influncia no desempenho do DNOCS, uma vez que o

prprio Vincius Berredo, diretor-geral do DNOCS, integrou a comisso mista.

24 CAMPOS, Eduardo. A ao do DNOCS. IN: DNOCS e o Novo Nordeste: uma perspectiva histrica, 1909-1984.

Fortaleza: DNOCS, 1985, pp.65-67.

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permanece forte nas polticas em torno das secas at hoje a exemplo da famigerada

transposio do rio So Francisco.

Algumas prticas clientelistas histricas tambm foram mantidas. Se o DNOCS

manteve a ao de construo de audes e obras complementares especialmente dentro de

propriedades particulares, beneficiando-as25, a SUDENE reforou o exerccio do favorecimento

em proveito dos fazendeiros. Emprstimos bancrios, financiamentos de projetos, continuariam

a dotar muitas terras de uma infraestrutura que a valorizava economicamente, servindo, do

mesmo modo, como atrao e fixao de trabalhadores.26 Isto, pode-se pensar, contribui para

pr em questo todo o discurso, reforado por estudiosos, de mudana abrupta nas polticas em

torno da seca a partir da inaugurao de um novo cenrio em fins da dcada de 1950, que teve

como principal medida a organizao do GTDN e a criao da SUDENE.27

Em suma, a poltica em torno das estiagens, que tinha a SUDENE e o DNOCS como

principais rgos executores, apesar de sofrer mudanas a partir da segunda metade da dezena

de 1950, no enfraqueceu, do modo como foi projetado, prticas que eram associadas aos

projetos anteriores em torno das secas. No obstante sejam visveis os primeiros passos rumo

ao pensamento de conviver com a seca e no mais combat-la, as antigas aes da soluo

hidrulica, do clientelismo e das frentes de trabalho (como meio de ocupar trabalhadores rurais

nas secas) continuaram a existir, demostrando, portanto, que as polticas em torno das secas no

obedecem a um antes e depois da SUDENE.28

Na regio Nordeste do Brasil, de se entender que essas polticas continuavam a ter

como umas das motivaes principais o problema histrico da disperso migratria de

trabalhadores, ganhando celeridade em anos de secas. Em 1956, a preocupao com homem

do campo e seu deslocamento teve o reforo da presso da igreja catlica num encontro de

bispos, em Campina Grande, que discutiu no somente o amparo aos retirantes, pobres de

25 MEDEIROS FILHO, Joo e SOUSA, Itamar de. Os degredados filhos da seca. 2. ed. Petrpolis: Vozes, 1983,

p.76.

26 CARVALHO, Rejane V. Aciole. O Estado, a Terra e o Coronelismo. Rio de Janeiro: Coleo Mossoroense.

Srie C. Volume DCCI, 1991, p. 20.

27 rgos como o DNOCS e a SUDENE reforaram, atravs dos deveres assumidos pelo Estado, a assistncia aos

retirantes em tempos de secas. No havendo mais a proteo dos coronis aos seus trabalhadores em perodos de

estiagem, com a quebra do pacto paternalista, sob a poltica desenvolvida pelo DNOCS e pela SUDENE, as

prticas baseadas nos termos da reciprocidade ainda permaneceram fortes. O Estado auxilia os sertanejos e ao

mesmo tempo tambm no deixa de garantir outras formas de proteo aos donos de terra.

28 At o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, as frentes de emergncia das secas existiram e eram

chamadas de bolses das secas. Somente na primeira administrao do governo do presidente Luiz Incio Lula

da Silva estas frentes foram extintas. Com Lula, durante as secas, as pessoas no precisaram mais trabalhar num

regime anlogo escravido para garantir a comida. Ao meu entender isso se tornou vivel pela ampla poltica de

combate fome, com destaque especial ao programa do bolsa famlia.

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cristo, mas tambm a possvel influncia que comunistas e outros ativistas polticos pudessem

exercer sobre a populao de migrantes. Era enfatizada pelos bispos uma mudana na estrutura

agrria, para que propostas de comunistas no pudessem empolgar trabalhadores rurais, a

exemplo do que estava ocorrendo com as ligas camponesas.29

Para isso, volumosos crditos foram liberados para construir obras que se

constitussem em investimento no mbito da poltica desenvolvimentista. Espalhar construes

pelo Interior do pas,