Casos Clínicos Da Conf. 17 (Voulme 13)

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CASOS CLÍNICOS DA CONFERÊNCIA: O SENTIDO DOS SINTOMAS Por Samara Fernandes FREUD, S. Conferências Introdutórias à Psicanálise.Cia. Das Letras, v. 13, p.284- 1916-1917/2014.

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Dois casos clínicos relatados por Freud na Conferência "O sentido dos sintomas" (n.17) do volume 13, Conferências introdutórias à Psicanálise.

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Casos Clnicos da conferncia: O sentido dos sintomas

Casos Clnicos da conferncia: O sentido dos sintomasPor Samara FernandesFREUD, S. Conferncias Introdutrias Psicanlise.Cia. Das Letras, v. 13, p.284- 1916-1917/2014.

O caso da mancha na toalhaUma senhora de quase trinta anos de idade, que sofria de severa manifestao obsessiva e a quem eu talvez tivesse podido ajudar, se um maldoso acaso no houvesse arruinado meu trabalho talvez eu ainda lhes conte o que se passou , realizava, entre outras, a seguinte e curiosa ao obsessiva, muitas vezes ao dia. Ela ia de seu quarto ao quarto vizinho, postava-se ali em local determinado, junto da mesa que se erguia no centro do cmodo, tocava a sineta para chamar a criada, confiava-lhe uma tarefa qualquer, ou mesmo a dispensava sem nada solicitar, e voltava, por fim, a seu quarto. No se tratava de sintoma patolgico grave, verdade, mas por certo suficiente para atiar a curiosidade.

O caso da mancha na toalhaA explicao foi encontrada da maneira mais irreparvel e irrepreensvel, sem nenhuma contribuio por parte do mdico. De resto, nem sei como poderia ter chegado a uma suposio qualquer sobre o sentido daquela ao obsessiva ou a uma indicao de como interpret-la. Toda vez que perguntava enferma: Por que a senhora faz isso? Que sentido tem?, ela me respondia: No sei. Um dia, porm, depois de eu ter conseguido resolver uma grande questo de princpios com que ela lutava, a resposta lhe veio de sbito, e ela me relatou o que havia de pertinente quela ao obsessiva.

O caso da mancha na toalhaMais de dez anos antes, havia se casado com um homem muito mais velho, o qual, na noite de npcias, se revelara impotente. Naquela noite, ele caminhara inmeras vezes de seu quarto ao dela, a fim de repetir a tentativa, mas sempre sem sucesso. Pela manh, ele dissera irritado: Vou sentir vergonha da criada, quando ela vier arrumar a cama. Em seguida, apanhou um frasco de tinta vermelha, que por acaso se encontrava no quarto, e verteu seu contedo no lenol, mas no em um ponto em que seria de se esperar encontrar semelhante mancha. De incio, no entendi o que aquela lembrana podia ter a ver com a ao obsessiva em questo, porque s identifiquei coincidncias nas idas e vindas de um quarto a outro e na presena da criada.

O caso da mancha na toalhaEnto a paciente me conduziu at a mesa do quarto ao lado e me fez ver uma grande mancha na toalha que revestia o tampo. Explicou-me tambm que se posicionava em relao mesa de tal maneira que a criada, uma vez convocada, no tivesse como no ver a tal mancha. Agora a relao ntima entre a cena posterior noite de npcias e a presente ao obsessiva no deixava dvidas, mas restavam outras coisas a serem compreendidas. Fica claro, acima de tudo, que a paciente se identifica com seu marido; afinal, ela o representa, na medida em que seu caminhar de um quarto a outro o imita.

O caso da mancha na toalhaDevemos ento admitir, a fim de manter essa equivalncia, que ela substitui cama e lenol por mesa e toalha. Isso pareceria arbitrrio, mas no foi em vo que estudamos o simbolismo dos sonhos. Nesses, tambm muito frequente encontrarmos uma mesa que deve ser interpretada como cama. Mesa e cama, juntas, representam o casamento; fcil, pois, que uma seja substituda pela outra. A prova de que a ao obsessiva possui um sentido j estaria dada; ela parece uma representao, uma repetio daquela cena significativa.

O caso da mancha na toalhaMas no precisamos nos deter nessa aparncia. Se examinarmos as duas situaes em maior profundidade, provvel que encontremos a chave para algo mais: para a inteno da ao obsessiva. Seu cerne est, evidentemente, na convocao da criada, a quem a mulher exibe a mancha, em contradio com aquela afirmao do marido: Vou sentir vergonha da criada. Ele, portanto em cujo papel se encontra a esposa , no sente vergonha da criada: a mancha est, assim, no lugar correto.

O caso da mancha na toalhaVemos, portanto, que a mulher no apenas repete a cena, mas tambm lhe d continuidade e a corrige, torna-a certa. Com isso, corrige tambm aquilo que, na noite de npcias, lhe foi to penoso, tornando necessrio o recurso ao frasco de tinta: a impotncia. Assim, a ao obsessiva diz: No, no verdade. Ele no precisou sentir vergonha da criada, no era impotente. maneira de um sonho, a ao obsessiva apresenta, em uma ao presente, esse desejo como realizado. Ela serve ao propsito de elevar o homem acima de seu infortnio de ento (...) p. 284-287.

O caso do cerimonial para dormirUma moa de dezenove anos, bem constituda e inteligente, filha nica de pais que ela supera em cultura e vivacidade intelectual, foi uma criana travessa e petulante, tendo se transformado no curso de anos mais recentes, sem nenhuma interferncia externa visvel, em uma doente dos nervos. Bastante suscetvel a se irritar com a me, est sempre insatisfeita, deprimida, tende indeciso e dvida e, por fim, confessa j no ser capaz de ir sozinha a praas e ruas maiores. No vamos nos ocupar grandemente de seu complicado estado patolgico,

O caso do cerimonial para dormirque reclama no mnimo dois diagnsticos agorafobia e neurose obsessiva , e sim nos deter no fato de que essa moa desenvolveu tambm todo um cerimonial a ser cumprido na hora de ir dormir, um cerimonial que acarreta sofrimento a seus pais. Em certo sentido, pode-se dizer que toda pessoa normal realiza seu cerimonial na hora de dormir, ou que conta com o estabelecimento de certas condies cuja ausncia a impede de adormecer; impomos transio do estado de viglia para o sono certas formas que repetimos toda noite da mesma maneira. Mas tudo que condiciona o sono de uma pessoa saudvel possui explicao racional; se as circunstncias externas tornam necessria alguma mudana, a adaptao a ela se d com facilidade e sem perda de tempo.

O caso do cerimonial para dormirO cerimonial patolgico, no entanto, inflexvel; ele capaz de se impor a um custo altssimo, de se revestir de uma justificativa perfeitamente racional e, a um exame superficial, parece afastar-se da normalidade apenas por certo cuidado exagerado. Visto mais de perto, porm, d a perceber que esse seu revestimento no convence, que suas demandas abrangem medidas muito alm da justificativa racional, bem como outras que a contrariam diretamente. Nossa paciente alega, como motivo para seus cuidados noturnos, o fato de precisar de silncio para poder dormir e de, portanto, ter de eliminar todas as fontes de rudo.

O caso do cerimonial para dormirCom essa inteno, ela faz duas coisas: interrompe o funcionamento do grande relgio que tem em seu quarto, retira todos os demais relgios, no suportando nem mesmo seu minsculo relgio de pulso sobre o criado-mudo; rene sobre a escrivaninha vasos com flores e casos em geral, de maneira que no possam cair e se quebrar durante a noite, perturbando-lhe o sono. Ela sabe que tais medidas encontram justificativa apenas aparente em sua lei do silncio. O tique-taque do relgio de pulso seria inaudvel, ainda que ele permanecesse sobre o criado-mudo,

O caso do cerimonial para dormire ns todos sabemos por experincia prpria que o tique-taque constante dos pndulos de um relgio de parede no perturba o sono, mas produz, antes, o efeito de um sonfero. Ela admite tambm que o receio de que, deixados em seus devidos lugares, vasos de flores e de plantas poderiam cair e se quebrar durante a noite algo sem probabilidade. Outras medidas pertinentes ao cerimonial de nossa paciente no se apoiam nessa lei do silncio. A exigncia, por exemplo, de que a porta que separa seu quarto do quarto dos pais permanea semiaberta, do que ela se assegura inserindo objetos diversos no vo da referida porta, parece, pelo contrrio, ativar uma fonte de rudos perturbadores.

O caso do cerimonial para dormirAs principais medidas, porm, dizem respeito a sua prpria cama. O travesseiro maior no pode tocar a madeira do espaldar da cama; o menor, sobre o qual ela pousa a cabea, precisa ser disposto sobre o maior de modo a formar um losango; ento ela deita a cabea, exatamente sobre a diagonal maior do losango. O edredom de penas (a que chamamos Duchent na ustria) precisa ser sacudido de forma a ficar bem alto nos ps, uma elevao que, depois, ela jamais deixa de afofar para melhor distribu-la. Permitam-me ignorar os demais pormenores, com frequncia detalhes minsculos, desse cerimonial; eles no nos ensinariam nada de novo e nos afastariam demasiado de nosso propsito. Atentem os senhores, porm, para o fato de que nada disso se realiza perfeitamente.

O caso do cerimonial para dormir constante a preocupao com possveis imperfeies; tudo precisa ser verificado, repetido; a dvida marca ora uma, ora outra das medidas de verificao, e o resultado que uma ou duas horas se passam ao longo das quais a moa no consegue dormir nem permite que os pais, intimidados, o faam. A anlise desses tormentos no transcorreu com a mesma facilidade encontrada na ao obsessiva da paciente anterior. Precisei sugerir moa aluses e interpretaes, a cada vez refutadas com um decidido no, ou ento recebidas com dvida desdenhosa. Mas a essa primeira reao negativa seguiu-se um perodo no qual a paciente se ocupou de considerar ela prpria as possibilidades apresentadas, estabelecendo um conjunto de associaes com elas, recuperando lembranas, fazendo conexes, at aceitar todas as interpretaes como resultado de seu prprio trabalho.

O caso do cerimonial para dormirEnquanto fazia isso, ela foi deixando de tomar suas medidas obsessivas e, antes ainda do final do tratamento, j abrira mo por completo de executar todo aquele cerimonial. preciso que os senhores saibam tambm que o trabalho analtico, da forma como ns o realizamos hoje, no contempla o trabalho continuado em um sintoma isolado at que o tenhamos esclarecido. Somos, antes, obrigados a volta e meia abandonar um tema, na certeza de que outras conexes nos conduziro de volta a ele. A interpretao de um sintoma que vou agora comunicar aos senhores constituir-se, portanto, de uma sntese de resultados cuja obteno, interrompida por outros trabalhos, estendeu-se por semanas e meses.

O caso do cerimonial para dormirPouco a pouco, nossa paciente compreende que foi na qualidade de smbolo da genitlia feminina que ela baniu o relgio de seus preparativos para a noite. O relgio, ao qual em geral atribumos tambm outros significados simblicos, adquiriu aqui o papel genital graas a sua relao com processos peridicos e intervalos regulares. Mulheres se gabam da regularidade de sua menstruao comparando-a a um relgio. A angstia de nossa paciente, todavia, se voltava com particular nfase contra o tique-taque do relgio, que poderia perturbar seu sono. O tique-taque do relgio deve ser equiparado ao pulsar do clitris quando da excitao sexual. De fato, essa sensao, que ento lhe embaraosa, j a acordara repetidas vezes, e agora esse medo da ereo se manifesta na regra de que todo relgio em funcionamento deve ser afastado durante a noite.

O caso do cerimonial para dormirVasos de flores e de plantas em geral so tambm, como todo recipiente, smbolos femininos. O cuidado para que no caiam e se quebrem durante a noite no deixa, portanto, de ter um sentido. Ns conhecemos o costume bastante disseminado da quebra de recipientes ou pratos por ocasio de noivados. Cada um dos homens presentes se apropria de um fragmento, o que pode ser entendido como renncia a suas pretenses noiva, numa regulao matrimonial anterior monogamia. No tocante a essa parte do seu cerimonial,a paciente contribuiu tambm com uma lembrana e vrias associaes. Quando criana, ela certa vez cara com um recipiente de vidro ou barro na mo, cortara um dedo e sangrara profusamente. Ao crescer e tomar conhecimento dos fatos da vida sexual, estabeleceu-se nela o temor ante a ideia de no sangrar na noite de npcias e, portanto, de no se mostrar virgem.

O caso do cerimonial para dormirSuas precaues relativas possvel quebra dos vasos significam, pois, um repdio de todo o complexo relacionado virgindade e ao sangramento quando da primeira relao sexual ou seja, um repdio tanto da angstia de sangrar como daquela contrria, a de no sangrar. Com a preveno de eventuais rudos, como alegava ela, tais medidas guardavam apenas uma relao longnqua. O sentido central de todo esse seu cerimonial, a paciente acabou por revelar certo dia em que, de sbito, compreendeu a norma segundo a qual seu travesseiro no podia tocar a cabeceira da cama. O travesseiro sempre fora para ela, segundo ela prpria admitiu, uma mulher, ao passo que a cabeceira ereta de madeira era um homem.

O caso do cerimonial para dormirO que ela queria, portanto e de forma mgica, permitimo-nos acrescentar , era separar homem de mulher, isto , apartar os pais, no deixar que consumassem sua relao conjugal. Em anos passados, anteriores instituio de seu cerimonial, ela buscara atingir esse mesmo objetivo de maneira mais direta. Fingindo sentir medo ou explorando uma tendncia ao medo, ela no permitia que a porta que ligava o quarto dos pais ao seu fosse fechada. Era uma regra que ainda vigorava em seu cerimonial atual. Dessa forma, ela criava uma oportunidade para se pr escuta dos pais, expediente que lhe rendeu uma insnia que durou meses. No satisfeita com tal perturbao impingida aos pais, ela vez por outra conseguia tambm permisso para dormir na cama deles, entre o pai e a me.

O caso do cerimonial para dormirTravesseiro e cabeceira de madeira efetivamente no podiam ento se encontrar. Se o travesseiro era uma mulher, sacudir o edredom at que todas as penas se acumulassem nos ps, criando ali um inchao, tinha tambm um sentido: significava engravidar a mulher. Mas ela no perdia a oportunidade de acabar com aquela gravidez, porque vivera durante anos com receio de que a atividade sexual dos pais tivesse por consequncia outro filho, presenteando-a com um concorrente. Por outro lado, se o travesseiro maior era uma mulher, a me, o menor s podia representar a filha. Por que esse travesseiro precisava formar um losango com o maior, e por que a cabea da paciente tinha de repousar precisamente sobre a linha da diagonal maior?

O caso do cerimonial para dormirNo foi difcil lembrar a ela que o losango era o emblema, encontrado nos muros, simbolizando o rgo sexual feminino aberto. Assim, ela prpria representava o papel do homem, do pai, com sua cabea a substituir o membro masculino (cf. o simbolismo da cabea na castrao). (...) No podemos ignorar que, mais uma vez, a anlise de um sintoma nos levou vida sexual da enferma. Talvez nos espantemos cada vez menos com isso, medida que adquirimos compreenso cada vez maior do sentido e da inteno dos sintomas neurticos. p. 287- 293

Obrigada!