Casas-museu Em Portugal, museologiaporto, teses, dissertações

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UNIVERSIDADE DO PORTO FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS E TÉCNICAS DO PATRIMÓNIO CASAS-MUSEU EM PORTUGAL TEORIAS E PRÁTICAS António Manuel Torres da Ponte Dissertação apresentada na FLUP, no âmbito do Mestrado em Museologia, no dia 8 de Outubro de 2007, com a classificação de Muito Bom, pelo Júri constituído por: Prof. Doutor Armando Coelho Prof. Doutor João Brigola Prof. Doutor Rui Centeno Porto 2007

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Tese de Mestrado de António Ponte

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UNIVERSIDADE DO PORTO FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE CINCIAS E TCNICAS DO PATRIMNIO

CASAS-MUSEU EM PORTUGAL TEORIAS E PRTICASAntnio Manuel Torres da Ponte

Dissertao apresentada na FLUP, no mbito do Mestrado em Museologia, no dia 8 de Outubro de 2007, com a classificao de Muito Bom, pelo Jri constitudo por: Prof. Doutor Armando Coelho Prof. Doutor Joo Brigola Prof. Doutor Rui Centeno

Porto 2007

Anabela, Alexandra e ao Francisco Aos meus pais

AGRADECIMENTOS O interesse pela temtica das Casas-Museu advm do nosso desempenho profissional, nomeadamente na Casa de Jos Rgio, iniciado na dcada de 90 do sculo passado e culminando com a presente dissertao, para a qual contmos com a preciosa colaborao de inmeras pessoas e entidades a quem nos cumpre agradecer de forma especial. Ao Professor Doutor Rui Centeno, sob cuja orientao foi desenvolvido este trabalho. Recordam-se os dilogos estimulantes e frutuosos, os importantes conselhos, revelando-se um exemplo de saber e preciosa exigncia crtica. Aos Professores e Colegas de Mestrado, pela disponibilidade e camaradagem. s Instituies que prontamente connosco colaboraram. Rede Portuguesa de Museus, sempre disponvel para todas as solicitaes apresentadas. Ao DEMHIST, comit das casas histricas do ICOM, que nos enviou toda a informao solicitada. Cmara Municipal de Vila do Conde por nos ter disponibilizado a Casa de Jos Rgio e as informaes inerentes. s Casas-Museu Portuguesas que prontamente colaboraram, preenchendo e enviando o questionrio que tantas e to teis informaes produziu para esta dissertao. Aos Amigos que colaboraram neste trabalho. Sabem quem so. Foi imprescindvel a sua disponibilidade. Aos meus Pais, que desde sempre foram um exemplo de dedicao e estmulo para a concretizao desta etapa. Anabela, pelo seu amor, acompanhamento, pacincia, pela sua serenidade, por tudo o que me deu alm do que podia, por todas as outras coisas que nunca lhe poderei agradecer. Alexandra e ao Francisco, por me darem tudo aquilo que um pai deseja, por saberem amar e, acima de tudo, esperar.

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CASAS-MUSEU EM PORTUGAL TEORIAS E PRTICAS

SumrioIntroduo 13

Captulo 1 CASA-MUSEU Definio |Conceitos e Tipologias 19

1.1- Contributos para um conceito de Casa-Museu 1.2- O que apresentam as Casas-Museu 1.3- Fundadores e Sustentabilidade da Instituio no mbito das Polticas Culturais Contemporneas 1.4- Motivos para a criao de Casas-Museu 1.5- Tipologias de Casas-Museu As Propostas de Classificao 1.6- A Casa-Museu Um Discurso em Directo O Poder Evocativo nas Casas-Museu 1.7- Relao Espao | Objecto | Personalidade 1.8- Relao Casa-Museu | Visitante 1.9- A Casa-Museu como Estrutura Museolgica 1.9.1- A Misso e Objectivos da Casa-Museu 1.9.2- A Histria do Espao da Casa-Museu 1.9.3- Estudo e Gesto de Coleces 1.9.4- A definio dos Contedos 1.9.5- Suportes Informativos 1.9.6- Servios Educativos 1.9.7- Conservao Preventiva 1.9.8- Segurana 1.9.9- Recursos Humanos

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Captulo 2 As Casas-Museu em Portugal 2.1- Fontes Documentais utilizadas 2.2- O Inqurito AP (Antnio Ponte) 71 75 767

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2.3- Caracterizao das Casas-Museu em Portugal 2.3.1- Tutelas 2.3.2- Integrao na Rede Portuguesa de Museus 2.3.3- Tipos de Designao das Casas-Museu 2.3.4- Distribuio Geogrfica das Casas-Museu 2.3.5- Perodos de Fundao e Abertura ao Pblico das Casas-Museu 2.3.6- Misses e Objectivos 2.3.7- Iniciativa de criao das Casas-Museu 2.3.8- As Coleces 2.3.9- Clusulas de Salvaguarda 2.3.10- A Prtica Museolgica 2.3.11- Recursos Humanos e Financeiros 2.4- Anlise Tipolgica das Casas-Museu Portuguesas 2.4.1- Anlise do cumprimento dos requisitos para ser considerada Casa-Museu 2.4.2- Tabelas de integrao das Casas-Museu Portuguesas nas Propostas de Classificao das Casas-Museu 2.4.3 - Apresentao da Proposta de classificao das Casas-Museu portuguesas 2.4.4- Unidades Museolgicas que se inserem noutras tipologias de Museus

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Captulo 3 A Casa de Jos Rgio de Vila do Conde - Um Exemplo Paradigmtico de Casa-Museu 3.1- A Criao da Casa de Jos Rgio | Casa-Museu Jos Rgio 3.2- Os Objectivos da Casa de Jos Rgio 3.3- A Histria da Casa de Jos Rgio 3.4- A Casa e as Coleces de Jos Rgio 3.4.1- A Casa 3.4.2- As Coleces 3.5- Diagnstico da Situao em 1994 3.5.1- A Casa de Jos Rgio de Vila do Conde em 1994 3.5.2- A planificao do processo de interveno 3.6- A Casa-Museu Jos Rgio de Vila do Conde O Novo Programa 153 137 140 143 143 147 147 149 150 151 152

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3.6.1- O Novo Equipamento O Centro de Documentao Jos Rgio | O Caminho para o cumprimento dos objectivos definidos 3.6.2- Uma nova informao 3.6.3- O Servio Museolgico na Casa-Museu Jos Rgio de Vila do Conde 3.6.4- Os Recursos Humanos 3.6.5- A Divulgao 3.6.6- A Sustentabilidade Financeira 155 162 162 163 153 154

Concluso Bibliografia Anexos

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Lista de Abreviaturas

OAC IPM RPM ICOM

Observatrio das Actividades Culturais Instituto Portugus de Museus Rede Portuguesa de Museus International Council of Museums Conselho Internacional dos Museus DEMHIST Demeures Historiques Comit das Casas Histricas Museu do ICOM Inqurito AP Inqurito desenvolvido no mbito desta dissertao Inqurito OAC|IPM Inqurito desenvolvido pelo OAC para o IPM, no sentido de se aferir a realidade museolgica portuguesa, apresentado em 1999 Doc. RPM Listagem enviada pela RPM onde constam as casas-museu cadastrada no mbito da Rede Portuguesa de Museus CM Casa-Museu C Casa Ctrad. Casa Tradicional C.dor Comendador11

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INTRODUO

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INTRODUO Nos ltimos anos, tem-se assistido a uma forte expanso do tecido museolgico portugus. De entre as muitas unidades museolgicas criadas, as casas-museu assumem um papel fundamental, uma vez que, o seu nmero tem aumentado, a sua funo se tem mostrado fundamental na preservao de parcelas considerveis do patrimnio nacional. Destinadas celebrao de uma determinada personalidade ou grupo que se destaca no seu tempo atravs de actos, trabalhos ou criaes, estes espaos do quotidiano, considerados por muitos, instituies de menor importncia, permitem a percepo directa da forma de viver, dos gostos, da educao, assim como do enquadramento sociocultural de um determinado indivduo. A Casa de Jos Rgio de Vila do Conde, onde, desde 1994, desenvolvemos a actividade profissional no mbito da aco museolgica, foi-nos levantando ao longo dos anos um conjunto de questes e reflexes sobre a forma como uma instituio deste tipo deveria evoluir e desenvolver-se, que designao deveria assumir, quais as reas tcnicas necessrias para o cumprimento cabal dos seus objectivos. Todas estas questes foram suscitando pesquisas, contactos com instituies museolgicas do mesmo tipo, participao em encontros sobre este tema. Face s inmeras ideias que foram surgindo, e observando o panorama das casas-museu em Portugal, sentiu-se a necessidade de desenvolver um estudo que permitisse um conhecimento objectivo, consubstanciado em elementos slidos destas unidades museolgicas. O conceito de casa-museu bastante abrangente, servindo de designao a um conjunto de unidades museolgicas que, em nosso entender, no se enquadraro nos pressupostos internacionalmente utilizados para definir unidades deste tipo. Empiricamente, estamos conscientes de que a realidade portuguesa, no que concerne a este assunto, bastante complexa, uma vez que a proliferao de museus com esta terminologia imensa. Celebrando personalidades, homenageando grupos, apresentando realidades quotidianas regionais ou meras coleces etnogrficas, o panorama das casas-museu em Portugal tem vindo a sofrer da falta de regulamentao apropriada, evoluindo ao sabor de vontades pessoais ou de grupos que decidem criar museus sob denominao de casas-museu.15

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Esta dissertao pretende contribuir para a definio do que uma casa-museu, apresentar os diferentes elementos que a constituem: casa, indivduo, acervo, vivncia, todos envolvidos e estudados em correlao permitiro ao pblico ter acesso a realidades museolgicas de alto valor simblico e determinantes, muitas vezes, para o estudo de correntes, teorias, formas de vida, e para o conhecimento de pocas histricas. As verdadeiras casas-museu s podero demonstrar o seu verdadeiro valor desenvolvendo actividades com interesse, respondendo s exigncias de um trabalho museolgico de alta qualidade, com estudos efectuados por especialistas materializados em exposies e catlogos bem estruturados e de alto valor cientfico e didctico. Este nosso contributo ao estudo das casas-museu desenvolve-se ao longo de trs captulos. No primeiro apresenta-se uma abordagem terica ao conceito e seus constituintes, forma de organizao, modo de criao, comunicao, propostas internacionais de classificao destas unidades museolgicas, para alm de abordar as casas-museu, enquanto instituies que devem desenvolver um conjunto de actividades expressas na definio de museu do ICOM. O segundo captulo d uma imagem da realidade das casas-museu em Portugal, qual o seu nmero, de que forma se organizam, como funcionam, as suas reais carncias, quais as suas verdadeiras capacidades perante um pblico cada vez mais exigente. Para o efeito, sero apresentadas diferentes anlises da realidade nacional, atravs de dois estudos, um realizado pelo Observatrio das Actividades Culturais (OAC) e pelo Instituto Portugus de Museus (IPM) e outro desenvolvido por ns especialmente para esta dissertao. Neste captulo procurar-se- apresentar uma proposta de definio de casa-museu, tendo em conta a realidade nacional, assim como uma proposta de classificao das instituies museolgicas que integram a amostra do presente estudo. Finalmente, o terceiro captulo apresentar um estudo sobre a Casa de Jos Rgio de Vila do Conde, face ao pressuposto terico desenvolvido nos captulos anteriores. Ser apresentado o patrono, a evoluo da Casa, o seu processo de restauro, as suas coleces e o seu novo modo de funcionamento aps a interveno que sofreu. Depois de cerca de 30 anos em funcionamento, a Casa de Jos Rgio foi alvo de uma grande interveno, pensada e estruturada com vista a dar resposta s necessidades de um museu actual, sem, contudo, perder o seu carcter intimista, onde se consegue percepcionar a presena de uma individualidade de carcter complexo, mas reveladora de uma sensibilidade extrema. Para a realizao deste trabalho foi fundamental realizar uma pesquisa bibliogrfica sobre a temtica das casas-museu, procurando-se recolher informao que permitisse o estabelecimento de uma definio correspondente a uma instituio museolgica com este carcter, quais as16

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suas componentes essenciais, como se processa o seu estudo e conhecimento, qual a melhor forma de planificao do trabalho numa instituio deste gnero. Face escassez de bibliografia especfica e actualizada em Portugal, recorreu-se ao Comit das Casas-Museu do ICOM (International Council of Museums), o DEMHIST (Demeures Historiques), a quem se solicitaram as actas dos encontros realizados sobre este tema, onde se encontram os estudos mais recentes. Simultaneamente, foi desenvolvido um levantamento em revistas e outras obras da especialidade, que permitiram um conhecimento mais aprofundado deste tipo de museu. A anlise bibliogrfica permitiu recolher informaes sobre este universo em diferentes pases, sendo a partir da possvel estabelecer linhas de paralelo realidade portuguesa. A par das pesquisas bibliogrficas foi realizada uma busca na Internet sobre o tema das casas-museu, no sentido de levantar o maior nmero possvel de documentao sobre o assunto. Foi realizada, tambm na Internet, uma busca para acesso s casas-museu existentes em Portugal que, posteriormente, permitisse conhecimentos especficos sobre cada uma das unidades. Leituras, pesquisas, inquritos e visitas a muitas casas-museu forneceram os elementos em que assenta este estudo. Como j foi referido, ao nvel das fontes de informao foram fundamentais para o nosso estudo o inqurito desenvolvido pelo Observatrio das Actividade Culturais para o Instituto Portugus de Museus, uma lista recebida da Rede Portuguesa de Museus (RPM) onde constam as instituies museolgicas enquadradas nesta categoria museolgica, a par do inqurito por ns realizado especialmente para esta dissertao, que permitiu o acesso a uma informao mais actualizada do que aquela que consta no inqurito OAC|IPM, realizado em 1998. Estas fontes primrias e secundrias foram absolutamente essenciais para se proceder caracterizao destas unidades museolgicas, tanto a nvel internacional como nacional. A bibliografia apresentada no final desta dissertao ser, certamente, uma lista de fontes que traduz o que de mais importante sobre este tema se produziu nos ltimos anos. Por fim espera-se que este trabalho contribua para a compreenso da realidade das casas-museu em Portugal, suprindo, dentro do possvel, a falta de informao existente, sugerindo novos caminhos a investigadores e outros interessados por este tema que conduzam a um melhor conhecimento desta realidade. Espera-se tambm que este estudo possa ser uma fonte inspiradora para quem, no futuro, pretenda constituir ou requalificar uma casa-museu, alertando para as diferentes componentes a equacionar. s entidades competentes cabe criar mecanismos de regulamentao desta realidade, complexa, muito diversificada e que, neste momento, no alvo de qualquer cuidado especfico na sua aco.17

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1. CASA-MUSEU DEFINIO | CONCEITOS | TIPOLOGIAS

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1. CASA-MUSEU DEFINIO | CONCEITOS | TIPOLOGIAS

No, por Dios! Mi casa es mi casa, nada ms, una casa en la que he procurado que se vean cosas bellas! Pero un museo, no!...(LOPEZ REDONDO 2001: 40)

Life is not reproduced in a house museum, But it is just represented(CABRAL 2000: 37)

Ao longo dos ltimos anos e no decurso de inmeras actividades, entre elas as profissionais, face a tantas questes que tm sido levantadas, sentiu-se muitas vezes a necessidade de perceber claramente o que de facto uma casa-museu. Muitas unidades museolgicas, de diferentes caractersticas, assumem a terminologia de casa-museu. Se ao nvel tcnico diversas dvidas se levantam, este problema deve suscitar inmeras questes a pessoas que gostam de visitar museus, sentindo-se expectantes relativamente percepo do que podero observar quando visitam uma casa-museu. O estudo das casas-museu, nomeadamente no que concerne sua definio e classificao tipolgica, um exerccio complexo. Ao longo do desenvolvimento deste trabalho de investigao, muitas foram as definies encontradas, as quais sero apresentadas nesta dissertao. O que uma casa-museu? O que a caracteriza? Como se processa a sua compreenso e estudo? Que valncias deve abranger? Qual o contedo destas unidades museolgicas? Como foram institudas e que implicaes tem a sua criao? Como deve comportar-se a casa e o acervo perante os visitantes? Qual a sensao colhida por quem efectua uma visita a uma casa-museu? Estas e outras questes devem ser equacionadas, analisadas e compreendidas, no sentido de se evoluir no estudo da definio de casas-museu.21

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Muitos conceitos so apresentados: uns colocando a tnica no edifcio; outros, no ambiente; aqueloutros nas coleces e ainda alguns na vivncia de uma determinada pessoa ou grupo social. Provavelmente, ou certamente, perante as muitas ideias a apresentar, a simbiose entre mltiplos factores dar a resposta necessidade de chegar a um conceito com o mximo de objectividade, assim como definio das funes, importncia e eficcia destes museus que comeam a ser frequentes desde o sculo XIX, como nos refere Pedro Lorente (LORENTE LORENTE1998: 31), eventualmente substituindo os gabinetes de curiosidades, vindo nos ltimos anos a ser

questionados no que concerne sua funo e eficcia junto do pblico, face transmisso de conhecimentos e valorizao das coleces e informaes intrnsecas que possuem. Todavia, antes de avanar para a definio daquilo que se nos afigura poder vir a considerar-se uma casa-museu, fundamental reter a nossa ateno na expresso casa-museu, composta por duas palavras em justaposio, dois conceitos com dimenses completamente opostas quanto sua abrangncia, em relao sua extenso pblica e privada. Estamos perante o conceito casa que tem um sentido privado, pessoal, de refgio e intimidade, ao qual se junta o conceito museu com toda a sua carga e dimenso pblica. Um museu criado para receber pessoas, transmitir conhecimentos e interagir com o pblico, a que se associa a funo de conservar, estudar e divulgar as coleces. No mbito das casas-museu, a prpria casa , tambm, uma importante e imponente pea do museu a preservar e estudar. Estando perante terminologias conceptualmente opostas, aumenta a complexidade desta abordagem, levantando um sem nmero de questes a quem trabalha nestas instituies. Assim, igualmente importante, antes de avanar para o conceito de casa-museu, apresentar algumas definies daquilo que uma casa e, paralelamente, o conceito de casa histrica. A anlise da bibliografia consultada, permite observar, muitas vezes, que os conceitos casa-museu e casa histrica no esto perfeitamente definidos e separados1. Na nossa perspectiva, estes no se reportam mesma realidade. Uma casa-museu pode ser, simultaneamente, uma casa histrica, mas sendo histrica no significa que seja museu. Sem pretender atingir posies demasiado puristas, deve-se caminhar no sentido de estabelecer as diferenas entre todos os conceitos

1 Na ltima edio do Encontro Anual do DemHist, que decorreu entre 10 e 14 de Outubro de 2006, em Valleta - Malta, esta questo foi levantada e minimizada. Entendeu-se que a percepo anglo-saxnica e latino-americana diferente no que concerne ao conceito em questo. Se para o latinos os conceitos de casa-museu e casa histrica so distintos, por sua vez, para os anglo-saxonicos, uma casa-museu pode assumir o conceito de casa histrica. Como exemplo desta afirmao est o prprio nome do comit do ICOM, direccionado para o estudo das casas-museu - DEMHIST (Demeures Historiques). 22

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e assim clarificar a realidade. Considera-se que a casa histrica, historic house, est relacionada com o imvel que apresenta histrias e leituras de um determinado local, de uma poca definida ou estrato social, tal como se pode depreender da leitura de inmeros textos (DAIX 1997: 47). Por exemplo, nos Estados Unidos da Amrica, este conceito , tambm, amplamente utilizado face crescente instituio de casas que se reportam histria do pas, dos seus habitantes, das minorias e, simultaneamente, das classes dominantes. Estas casas ganham tanto mais importncia e valor quanto mais os cidados de um pas se interessam pela sua Histria, pela evoluo da sociedade, transformando estes espaos simblicos em pontos de passagem, quase de peregrinao, que merecem ser salvaguardados para perpetuar o seu passado (PINA2001: 7). Esta forma de pensar e de valorizar o passado vem abrir um novo campo de aco

para a museologia contempornea. Todavia, estas casas s passam a ser casas-museu quando a funo museolgica de facto aplicada, quando se comeam a verificar alteraes na forma como o imvel tratado, no momento em que se comea a ter preocupaes ao nvel da exposio, conservao, estudo das coleces e de outra documentao de interesse museolgico. Em Portugal, considera-se a casa histrica como uma estrutura relacionada com alguma figura pblica de relevncia nacional, regional ou local, ou com algum acontecimento da histria do pas ou de um determinado local, sem que, contudo, tenha implcito o trabalho e a funo museolgica. No tem inclusivamente de estar aberta ao pblico. A casa histrica pode evoluir no sentido da casa-museu, pois que ainda no o . Recentemente, foi possvel verificar esta situao, quando se levantou a questo da demolio da casa de Almeida Garrett, em Lisboa. Este imvel tem interesse histrico, uma vez que esteve, de facto, relacionado com uma das maiores figuras da literatura portuguesa, no sendo, contudo, uma casa-museu, uma vez que nele no se cumprem os requisitos para tal. Partindo da definio bsica da palavra casa, apresentada pelo Grande Dicionrio da Lngua Portuguesa: Todos os edifcios especialmente destinados habitao (MACHADO 1981: 11), passa-se, depois, para noes mais complexas, tais como: Casa: il termine appare straordinariamente ampio, tanto da giustificare una gamma assai vasta di accezioni e manifestazioni differenti; cos come evoca altrettanto differenti immagini e ambienti, legati allesperienza personale, tali dunque da generare aspettative (di conoscenza, emozionali, visive) modulate su un registro ricchissimo di sentimenti. (PAVONNI e SELVAFOLTA 1997: 32). Ana Margarida Martins (MARTINS 1996: 87) refere a casa como um espao com uma identidade particular, reflectindo a actividade quotidiana de um indivduo ou famlia. este indivduo ou famlia que determinam aquilo que a sua casa, com reas sociais, reas privadas e mais ntimas,23

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reflectindo valores scio-culturais, econmicos, religiosos ou polticos. A casa tem a marca do indivduo ou famlia, integrando a sua vivncia, gostos e enquadramento. As trs definies apresentadas, umas mais complexas do que outras, fundamentam e suportam o entendimento da casa como o universo de habitao com a marca pessoal dos seus habitantes, os quais so fruto de uma educao, poca e enquadramento social. Este domnio privado, onde existe memria de quem l habitou2, porque o organizou de acordo com o seu gosto e modo de vida, aquilo que se deve reflectir numa casa-museu, quando o imvel se relaciona com uma pessoa ou acontecimento que justifiquem a sua musealizao3. Partindo para outras dimenses, e considerando o universo artstico, os artistas simbolistas entendem a casa como algo mais do que o lugar de habitao. A sua casa o santurio inspirador e protector das suas teorias estticas (HIRSH 2003: 70). Por seu turno, Ruy Belo refere a casa como a coisa mais importante da vida, formulando conceitos de habitao, sendo este o espao escolhido para a circulao do corpo (RIBEIRO e VILHENA 1997: 8). Uma vez abordados os conceitos anteriores e apresentadas as respectivas diferenas e abrangncias, momento de tentar chegar definio de uma casa-museu. Pretende-se, no entanto, antes de avanar, referir que, no presente estudo, no se abordar a temtica dos palcios, uma vez que se entende que em termos de classificao esto perfeitamente definidos enquanto tipologia. Contudo, a realidade dos palcios reais, de soberania, pode levantar questes quanto2 Marta Rocha Moreira (MOREIRA 2006: 305) na sua Dissertao de Mestrado apresenta uma citao de Gaston Bachelard de uma definio de Casa que exprime a essncia destes lugares e a sua atribuio ao nvel psicolgico de quem a habita. a casa , evidentemente, um ser privilegiado; isso desde que a consideramos ao mesmo tempo na sua unidade e na sua complexidade, tentando integrar todos os seus valores particulares num valor fundamental. A casa fornecer-nos- simultaneamente imagens dispersas de um corpo de imagens. Em ambos os casos, provaremos que a imaginao aumenta os valores da realidade [...] Nessas condies, se nos perguntassem qual o benefcio mais precioso da casa, diramos: a casa obriga ao devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em paz. S os pensamentos e as experincias sancionam os valores humanos. Ao devaneio pertencem os valores que marcam o homem na sua profundidade. [...]Ento, os lugares onde se viveu o devaneio reconstituem-se por si mesmos num novo devaneio. exactamente porque as lembranas das antigas moradas so revividas como devaneios que as moradas do passado so imperecveis dentro de ns. O nosso objectivo agora est claro: pretendemos mostrar que a casa uma das maiores foras de integrao para os pensamentos, as lembranas e os sonhos do homem. [...] O passado, o presente e o futuro do casa dinamismos diferentes, dinamismos que no raro interferem, s vezes opondo-se, s vezes excitando-se mutuamente. Na vida do homem, a casa, afasta contingncias, multiplica os seus conselhos de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso. 3 Del siglo XIX a nuestros das no dejaran de proliferar las casas-museo de todo o tipo. No serian pocos los casos en que este homenaje monogrfico haba de estar dedicado a algn gran literato, pero por ser mucho ms fcilmente atractiva una instalacin musestica tradicional hecha con obras de arte , fueron si cabe todava ms exitosas las casas de escultores o pintores abiertas como museo. (LORENTE LORENTE 1998 : 31) 24

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ao seu enquadramento nos conceitos de casa histrica e casa-museu. Considera-se que, eventualmente, todos os palcios sero casas histricas pela importncia que assumem na Histria de um povo, de uma nacionalidade, mas nem todos so considerados casas-museu, uma vez que ainda no sofreram a transformao necessria para assumir essa designao4. 1.1. CONTRIBUTOS PARA UM CONCEITO DE CASA-MUSEU A casa-museu dever reflectir a vivncia de determinada pessoa que, de alguma forma, se distinguiu dos seus contemporneos, devendo este espao preservar, o mais fielmente possvel, a forma original da casa, os objectos e o ambiente em que o patrono viveu5 (PINA 2001: 4), ou no qual decorreu qualquer acontecimento de relevncia, nacional, regional ou local, e que justificou a criao desta unidade museolgica. Temos, nesta primeira definio, algumas condicionantes fundamentais, tais como a originalidade, residncia do patrono e a funo anterior da casa. Outras especificidades se nos apresentaro no decurso desta dissertao. Ao reproduzir estes ambientes e, estando aberta como se de uma casa se tratasse, estas unidades museolgicas vo musealizar o dia-a-dia destes espaos (PAVONNI 2001: 6). este ambiente domstico representando a maneira como algum viveu, que reflectir aspectos to pessoais, como, por exemplo, a forma de se situar no mundo, transportando os visitantes para os tempos desse quotidiano que suscita interesse e curiosidade. Estas casas, verdadeiros teatros

4 Stephan Bann apresenta as diferenas que considera existirem entre casas-museu e casas histricas, assim como as especificidades de alguns tipos de casas-museu: The house Museum is not the same as a country house, or palazzo; but a country house, such as Sir Walter Scotts Abbotsford, or a palazzo, such as the Bagatti Valsecchi, can be a House Museum. The House Museum is not the same as a Historical Museum. But some Historical Museums are also, or at least began as, House Museums The House Museum is not the same as an artists House. But certain artistshouses were certainly conceived as House Museums, such the Soane Museum, or the Maison Pierre Loti. The House Museum is not the same as a collectors house. But a collectors House, like Kettles Yard, can become a House Museum. (BANN 2000: 20) 5 A investigao desenvolvida no mbito da presente dissertao permitiu a compilao de um conjunto de definies de casa-museu, as quais permitiro, certamente, apresentar um enunciado que agrupe os principais conceitos por forma a determinar-se o que de facto uma casa-museu: The historic house is certainly an incomparable and unique museum in that it is used to conserve, exhibit or reconstruct real atmospheres which are difficult to manipulate [] The historic house museum is unlike other museum categories because it can grow only by bringing together original furnishings and collections from one or other of the historic periods in which the house was used. (PINNA 2001: 4) More than a monument that celebrates a lost past, a historic house is seen as a place where people have lived out their life. (GORGAS 2001: 10) Una casa-museo es un mbito domstico abierto al pblico como testimonio ejemplar de la decoracin de interiores de una poca o como homenaje a alguien que por alguna razn est relacionado con ella. (LORENTE LORENTE 1998 : 30) Les muses consacrs un artiste distinguent luvre dun crateur, ils en retracent la gense, ils voquent le contexte dans lequel elle a t cre. (WHITTINGHAM 1996: 4) 25

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da memria, permitem o encontro com algum, realizar visitas casa desse escritor, daquele pintor, do Homem que se admira pela sua actividade poltica, da personalidade que se distinguiu numa determinada poca (GORGAS 2001: 14; GORGAS 2002: 32; LORENTE LORENTE 1998: 31)6. A proximidade com o espao domstico e privado determinante na organizao da casa-museu, assim como na motivao do pblico para a visitar. Ao chegar casa-museu, o visitante deparar-se- com o quotidiano da pessoa que d nome instituio, percebendo determinada maneira de pensar, de agir, inteirar-se- do seu ambiente familiar, da sua poca, da sua economia, da sua envolvncia social e educativa. Todas estas variantes que formam a personalidade dos indivduos estaro presentes no seu espao habitacional e domstico. Este ser uma criao de autor, verdadeiro teatro da vida, de quem nessas casas habitou, e a criou o seu cenrio dirio (BANN 2001: 20). Assim, quando se entra numa casa-museu, para alm dos sistemas de vida domstica, observando os objectos na sua forma original ou prxima dela, penetra-se directamente na intimidade de algum, uma pessoa muitas vezes introvertida e que nunca pensou nesse espao para ser frudo por estranhos. esta intromisso, a vontade de olhar a forma como algum ali viveu, que suscita o interesse de uma substancial parte do pblico. A memria pessoal, reflectida no espao privado, transforma-se em memria colectiva, o espao pessoal torna-se espao pblico, procurado por quem pretender chegar ao ntimo de uma certa personalidade. Como refere Sherry Butcher-Younghans (BUTCHER-YOUNGHANS 1993: 205), se a casa foi palco de vivncias domsticas alegres, com crianas circulando pelo espao, o visitante dever conseguir percepcionar a actividade da decorrente. fundamental perceber, pelo espao que visitmos, a dimenso espiritual da personalidade que homenageada, devendo, simultaneamente, reflectir a vida e a obra desenvolvida. A casa-museu dever ser comparada sua biografia(CABRAL 2002: 28), dependendo a sua dimenso e natureza da personalidade que a retratada.

Face s condicionantes apresentadas at ao presente momento, pode-se observar que muitas estruturas museolgicas enquadradas nesta tipologia no tm qualquer sentido. Inmeras casas-museu no reflectem personalidades, no apresentam realidades domsticas e/ou quotidianas relacionadas com o patrono. Concomitantemente, muitos dos homenageados nem sequer habitaram esses espaos, outras so criaes posteriores, sem qualquer relao com os patronos.

6 O exemplo apresentado materializa a perspectiva de que a casa e, posteriormente, a casa-museu fruto da personalidade que a criou e habitou, pois as peas apresentadas e com as quais conviveu quotidianamente demonstram os seus gostos e preferncias. The house contains some very beautiful objects, but also reflects the sometimes unusual taste of its founders. It shows how a wealthy couple of Swiss collectors lived in Switzerland during the twentieth century, and preferred mainly Italian furniture and objects of the eighteenth century for the noble and visited portions of the house, while witnesses of the local Swiss taste were relegated to secret chambers. (ACKERMANN 2003: 49) 26

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Certas casas-museu, embora apresentem realidades e espaos domsticos, no passam de museus regionais, outras deveriam ser museus de arte, podendo ter o nome do homenageado, uma vez que este teve o mrito de desenvolver uma certa coleco, no devendo, contudo, assumir a denominao de casa-museu, pois no se apresentando como cenrios de vida, no configuram uma casa-museu, mas podem assumir-se como um meio de manuteno de uma coleco intacta. A observao dos conceitos mencionados permite a definio do conjunto dos requisitos necessrios para que o edifcio possa merecer a classificao de casa-museu. Assim, refere-se como essencial a existncia do espao, a casa, local onde tenha habitado a personalidade que, pelos seus mritos, se distinguiu dos seus contemporneos. Este pressuposto remete, de imediato, para as demais condies a observar: a vivncia do patrono ou homenageado no espao, e os bens mveis com os quais conviveu. Espao, homem e objectos tm de ser correlativos, para que seja possvel um ambiente de vivncia, frudo por algum que criou um universo reflector das suas necessidades, dos seus gostos. Adiante, neste trabalho, desenvolver-se-o as questes relacionadas com as coleces existentes nas casas-museu, a forma como se devem apresentar, de que maneira deve ser aferido o seu valor. As questes colocadas pelo acervo existente fazem equacionar outros assuntos: o patrono, o doador, o fundador ou organizador da casa-museu. necessrio averiguar onde estas figuras se podero fundir, ou qual a razo da sua diferenciao. Para que a casa se transforme numa casa-museu, esta ter de sofrer um processo de transformao, processo este que dar a dimenso pblica a um espao eminentemente privado. No sendo uma condio bsica, mas provavelmente uma das referidas em primeiro lugar, a casa de habitao passa a estar aberta ao pblico. Todavia, no este o nico pressuposto implicado nesta transformao. Devero ser observados todos os pressupostos do trabalho museolgico, o estudo, a conservao, a comunicao, a educao, entre outros. A transformao destes imveis em equipamentos pblicos, implicar a necessidade de equacionar uma programao a diversos nveis: museolgico, financeiro, cultural, social, de modo a que possam ser considerados estruturas de sucesso. A planificao de uma casa-museu, trabalho que deve ser encarado de primordial importncia, amiudadamente descurado e remetido para segundo plano. Hodiernamente, o grande desafio que se coloca s casas-museu, enquanto estruturas museolgicas, abertas ao pblico e ao servio deste, relaciona-se com o facto de se tratar de pontos de interesse cultural, locais onde o pblico possa ver modos de vida, ambientes de determinada27

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poca, e a se consiga refugiar aprendendo com a experincia sensorial resultante da visita efectuada. Face globalizao da informao que se verifica actualmente, importante que as casas-museu sejam associadas a centros de documentao ou reas de servios museolgicos complementares, possibilitando aos visitantes a percepo e entendimento do enquadramento de determinada personalidade numa sociedade, poca, regio, corrente poltica ou intelectual. Assim, se o imvel tem dimenso que permita a criao de espaos interpretativos, a soluo para as necessidades de ampliao da estrutura museolgica est encontrada. Caso contrrio, deve procurar-se na envolvncia geogrfica, edifcios onde seja possvel instalar a recepo, salas de exposies, auditrios entre outras infra-estruturas que abordaremos com mais detalhe. So fundamentais as referidas estruturas para a afirmao do servio das casas-museu na sociedade actual, credibilizando e valorizando estas unidades museolgicas como instituies essenciais para a transmisso de um conjunto de informaes que museus generalistas no conseguem passar aos seus visitantes. 1.2. O QUE APRESENTAM AS CASAS-MUSEU Uma observao atenta da realidade das casas-museu, analisadas a partir de visitas, inquritos e estudos cientficos efectuados, mostra que estas instituies retratam o quotidiano da pessoa homenageada. Neste sentido, a coleco da casa-museu ser o conjunto dos objectos do quotidiano domstico existente em qualquer habitao, mas ligados ao gosto pessoal do patrono, e peas de artes decorativas, sendo possvel determinar acervos mais ou menos valiosos, mais ou menos eruditos, de acordo com o gosto, interesses e situao financeira do patrono7. Outros objectos tambm podero estar presentes nestas instituies, mesmo nada tendo a ver com o quotidiano domstico, nem com o universo artstico. No entanto, fazem parte da definio do gosto pessoal e tero motivado a curiosidade dessa personalidade. Para alm dos potenciais

7 Os textos que se seguem fundamentam a perspectiva de que apesar da grande diversidade e tipologias de objectos, para alm do seu valor intrnseco fundamental conhecer o seu relacionamento com o patrono da instituio. when instead the objects greatest interpretative contribution is as a piece of the puzzle that, when assembled, presents settings and suggest meanings. Objects, taken collectively, give context and structure to the realities of domestic living. [] The object collection is neither the sole nor the supreme element, but a coequal component of historic house interpretation. It is integral. (DONNELLY 2002: 2) The object per se has no intrinsic value. The object is defined instead by its relationships with humankind, which attributes different values to it. [] In the context of the house museum, an objects significance depends not on its stylistic, artistic or technological values, but on its capacity to be consistent with the narrative or discourse, and to transmit a message. (GORGAS 2001: 14) Dans le contexte de la maison-muse, la signification des objectes ne dpend pas de leur valeur stylistique ou technologique, mais de leur harmonie avec une histoire ou une prsentation et du message quils peuvent transmettre. (PAVONNI 2001: 17) 28

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acervos referenciados, provvel, e de certa forma coerente, a presena de objectos relacionados com a vida profissional das pessoas que do o seu nome casa-museu. As tipologias apresentadas permitem definir algumas coleces: os objectos de uso domstico quotidiano, as alfaias domsticas, objectos de utilizao profissional, objectos de arte, coleces etnogrficas que podem resultar de uma certa organizao social local ou de uma recolha efectuada, conjuntos bibliogrficos especializados ou de bibliofilia. Os objectos numa casa-museu tm mais do que o seu valor artstico ou utilitrio, valem pelo contacto que estabeleceram com determinada personalidade, no devendo ser estudados desenquadrados da vivncia da pessoa que os possuiu. Assim, entende-se que no momento em que se programa a visita a uma casa-museu, deve, sempre que possvel, tentar estabelecer-se a relao do objecto com a funo desempenhada, tendo em conta o respectivo contexto (LPEZREDONDO 2002: 42; BOGAARD 2002:17)8.

No ser errado pensar que, ao visitar uma casa-museu, se possa estar perante uma casa em funcionamento, podendo-se chegar ao ponto de recriar actividades com o objectivo de dinamizar esse espao (LEONCINI 2001: 50). Contacta-se a casa e uma determinada poca, perodo em que certa personalidade viveu9. Poder observar-se como se organizava o espao, a vida domstica em determinada sociedade ou cultura, a poca em que se integra a vivncia do homem que d nome casa-museu. (BUTCHER-YOUNGHANS 1993: 204; LORENTE LORENTE 1998: 30; LPEZREDONDO 2001: 41). Nestas estruturas museolgicas apresentam-se Histrias dinmicas, faz-se

da histria da casa e das suas vivncias um puzzle que o visitante vai construindo medida que vai evoluindo pelo espao (ELLIS 2002: 67). Luca Leoncini (LEONCINI 1997: 10) refere que o edifcio da casa-museu o local onde se habitou ou onde se habita, conserva a nossa presena na casa, fornecendo aos visitantes a possibilidade imediata de decifrar qualidade e quantidade. muito comum encontrar em casas de escritores ou8 Luca Leoncini apresenta-nos, tambm, a sua perspectiva na anlise das casas-museu. The heritage handed down by stately home museum is not limited to the collections shown there. It includes, as part of a consistent system, a system of signs, its paitings, sculptures, decorations, decorative arts and items of artistic craftsmanship such as doors, handles, bolts [] This is why people visiting a stately home museum find a vast offering of interpretations, narratives, symbols, suggestions and opportunities for striking um an immediate and personal relationship with the place and with the many genies who still inhabit it. (LEONCINI 2000: 48) 9 A forma como se organiza uma casa-museu, nomeadamente o seu discurso expositivo, deve aproximar-se do seu estado original, no sentido de testemunhar uma vivncia em concreto. Este pressuposto encontra fundamento na citao seguinte: Now these buildings are furnished to represent an evocative moment in time, infused with things that can help interpret the variety of characters who lived within, their important relationships, and their activities. (BRYK 2002: 144) 29

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de polticos os seus escritrios, locais de criao de teorias polticas ou de obras literrias e, em casas de artistas plsticos, os seus ateliers. A casa-museu vai oferecer um conjunto de interpretaes, narrativas, smbolos e relaes do local com a pessoa que o habitou. O aliciante de uma casa-museu reside na intrnseca relao entre os objectos presentes e as pessoas a quem pertenceram e a habitaram. As coleces tm um valor sentimental, o qual percepcionado atravs da observncia da relao do objecto com o indivduo. A casa-museu assim o teatro da vida, a viso do mundo, necessariamente fragmentria, de algum que se transmite pelo seu espao e pelos objectos que possuiu, numa simbiose de aces e funes desenvolvidas e que esto presentes no ambiente em causa. Os visitantes so colocados perante realidades cheias de detalhes, que daro a verdadeira dimenso da personalidade que a habitou ou do acontecimento que a teve lugar (BRYK 2002: 146). Quando a casa-museu organizada aps a morte do seu patrono, algumas situaes podem ser observadas: o muselogo pode transformar a casa numa casa-museu, respeitando a integridade domstica, assim como a forma de vida do patrono. Porm, isto s poder ser aceite quando existe uma casa com uma organizao bem definida, devidamente salvaguardada e documentada10. 1.3. FUNDADORES E SUSTENTABILIDADE DA INSTITUIO NO MBITO DAS POLTICAS CULTURAIS CONTEMPORNEAS Tendo detido ateno, at este momento, na figura do patrono, do homenageado na casa-museu, deve-se introduzir neste processo de criao a figura do doador e do fundador, os quais, em certas situaes, so o prprio homenageado, mas que noutros casos so outras pessoas ou entidades. Assim, vrias questes se levantam quando se abordam estas temticas: o fundador da casa o seu patrono? O patrono activo ou passivo na organizao da casa-museu? Como se faz sentir a sua presena no espao? Qual o papel dos doadores e dos fundadores? Como se gerem no futuro estas instituies? Qual a sua importncia no mbito das polticas culturais?

10 Magaly Cabral afirma que nas casas-museu nem sempre encontramos exposies muito espectaculares pois estas sofrem de limitaes muito prprias de uma estrutura deste gnero.There may be few historic house museums that can be included in the group of museums that operate with spectacular exhibitions, big productions, and so forth, because this type of museums does not lend itself to this kind of exhibitions. This is because the historic house museum is generally organized respecting the layout of its interiors as they were at a particular time in history. (CABRAL 2001: 27) Luca Leoncini apresenta, de igual forma, a sua viso de uma casa-museu perspectivando aquilo que estas instituies podem apresentar. La dimora resta un museo particolare[] Non il museo di tutti o di tutto, mas solo di uno o di una parte. ancora la casa della famiglia, della dinasta, del collezionista, del succedersi dei proprietari, del sovrapporsi e mescolarsi di identit storiche non sempre omogenee. (LEONCINI 1997: 10) 30

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Os patronos podem ser provenientes das mais diferentes reas da vida pblica. Nos Estados Unidos da Amrica11, temos referncias s casas dos seus Presidentes, o mesmo podendo acontecer em alguns pases da Europa. Pode-se estar perante um patrono que se distinguiu na luta pela igualdade ou liberdade como o caso de Anne Frank, um escritor, tal como Vtor Hugo, um pintor ou outra qualquer individualidade. A figura que se homenageia na instituio museolgica, aquele que oferece o seu nome instituio, poder assumir-se como interventivo e activo na organizao da casa-museu12, uma vez que ao longo da sua vida programou o seu espao, que posteriormente se converter num equipamento pblico, permitindo que os visitantes possam fruir esse espao de quotidiano, observando os seus objectos e assim compreender a sua forma de viver, os seus gostos, e apreender a sua individualidade (SCAON 2001: 49)13 garantindo-se desta forma a imortalidade da personalidade em causa (PAVONNI e SELVAFOLTA 1997: 32). Deve-se mostrar aquilo que o prprio patrono quer que se conhea da sua personalidade, uma vez que foi ele que deu corpo a toda a exposio, apresentando-se o que de melhor conseguiu reunir ao longo da sua existncia, aquilo que pretende revelar da sua personalidade14 (LPEZ REDONDO 2002: 41). O patrono pode ainda ser algum que coleccionou obras de arte ou objectos etnogrficos, que o distinguem pela sua aco, mas no fundamentam a existncia de uma casa-museu. Muitas vezes, as pessoas, para manterem a unidade das suas coleces, porque tm nelas grande valor sentimental, criam casas-museu. Como diz Jesus Pedro Lorente: todos tenemos cerca algn caso de individuos que han construido un museo o han encargado de ello a las instituciones financieras o a los poderes pblicos a quienes han legado su coleccin con tal de que dicho museo llevase su nombre. (LORENTE LORENTE 1998 : 30). importante a viso que muitos destes fundadores tiveram, uma vez que uma casa-museu precisa de sustentabilidade,11 As casas-museu americanas, que comeam a surgir em 1853, procuram valorizar a aco feminina na salvaguarda do patrimnio, nomeadamente das casas-museu, seguindo trs linhas principais: exaltao da identidade nacional atravs do culto de personalidades polticas, participao activa em lutas e reformas sociais e educao da populao atravs da transmisso de valores. (WEST 1999: 1) 12 Marta Rocha Moreira (MOREIRA 2006: 301) refere que ao nvel da exteriorizao simblica esta pode ter uma de duas origens. A casa-museu pode ter uma exibio ou criao voluntria, quando esta determinada pela vontade do prprio homenageado, ou uma exibio involuntria se resulta da vontade de familiares ou amigos. 13 Pierre Loti foi ao longo da sua vida organizando a casa que posteriormente viria a ser convertida em casa-museu com o seu nome. The house in which he was born mirrors his individuality which was, at the same time, very much in tune with the tastes of intellectuals today. Loti wanted his house to be a display case, where the treasures gathered during his exotic adventures could be exhibited, and where his historical fantasies, along with the memories of his childhood, could be shown. (SCAON 2001: 49) 14 A criao da casa-museu reflecte a viso do mundo do seu patrono, ou aquilo que este pretende dar a conhecer da sua personalidade.Out of a rather modest middle-class house, he managed to create a fantastic universe in which one finds side by side historical references [...] and the more intimate universe of his own life. (Idem, Ibidem). 31

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quando ainda em vida, se preocuparam em garantir o equilbrio financeiro da sua casa-museu, entregando-a a instituies financeiras ou entidades pblicas que se responsabilizaram pela sua manuteno e viabilidade. Todavia, outras realidades podem acontecer. O patrono poder no organizar a sua casa no momento da sua transformao em casa-museu, podendo esta passagem operar-se aps a sua morte, por vontade de um familiar ou atravs de um grupo de amigos que lhe so prximos, existindo assim um acto de doao ou de venda a favor da instituio a tutelar a casa-museu. Estamos assim perante um patrono passivo. Os doadores podem, de alguma forma, ter um relacionamento directo com o patrono, ser um parente prximo, tais como esposas, filhos ou outros familiares de quem se pretende evocar, trazendo o seu espao privado para o pblico, com o nome daquele que a habitou ou trabalhou15 (SOUSA 2005: 2). Est presente neste acto uma certa noo de imortalizao, de homenagem. Vrias so as instituies em Portugal, assim como na Europa, que se enquadram nesta tipologia de criao. Apesar de em certas situaes o patrono ser passivo no que respeita fundao da casa-museu, esta poder reflectir, de igual forma, o quotidiano da personalidade que se distingue, mormente em alguns compartimentos da casa, que reflectem o seu gosto, modo de vida ou profisso (SOUSA 2005: 2). Porm, a criao das casas-museu, independentemente do seu fundador (activo ou passivo), em inmeras situaes, apresenta clusulas de salvaguarda16, que vo desde a reserva de reas de habitao (MAGNIFICO 1997: 50) para familiares, ou mesmo criados que foram determinantes na vida do dono da casa, at s limitaes de alterao dos espaos ou objectos existentes na casa(BOGAARD 2001:17). As escrituras e/ou documentos de fundao das casas-museu inibem, nou-

tros casos, a incorporao de acervo, uma vez que se pretende que a casa s exponha aquilo que contemporneo existncia do patrono. Uma outra figura deve ser tida em conta neste processo: o organizador, algum que estar relacionado com a actividade museolgica do ponto de vista profissional e que ir materializar a passagem da casa a casa-museu ou promover a abertura de um museu monogrfico de homenagem a uma personalidade, aquele que dever planificar toda a actividade museolgica inerente casa-museu. Todavia, em determinadas situaes, ao organizar estes museus no se est a15 Diego Rivera criou a Casa-Museu Frida Khalo, sua esposa, no edifcio onde esta viveu, recriou alguns dos espaos que se manifestaram importantes na vida da artista, musealizando inclusivamente o seu atelier, expondo a, nomeadamente, os seus pincis e tintas. Preocupou-se ainda em doar esta instituio ao povo mexicano, atravs do Banco do Mxico, entidade que ficou responsvel pela tutela desta unidade museolgica (OLMEDO PATIO 1996: 21). 16 Este autor questiona o que poder ser feito numa casa-museu quando as clusulas de salvaguarda so limitativas da sua aco. What can one do when the founder has put in his, or her, last will that nothing in the house should be changed, or that no objects should be bought, sold, or lent? (BOGAARD 2001:17) 32

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transmitir vivncia, no se estando, por isso, perante a criao de casas-museu, mas de museus que se podero integrar noutra classificao. Apresentam-se objectos do quotidiano, objectos de valor profissional e artstico, todavia, desenraizados do ambiente de vivncia, de utilizao pelo prprio patrono. Nestas casas, estaremos, essencialmente, perante um museu dedicado a uma personalidade, onde se apresentam objectos relacionados com a sua vivncia. Entende-se que a casa-museu deve apresentar os objectos da coleco existentes data do patrono, como prova de vivncia. Porm, tambm j se defendeu a existncia de centros de documentao associados, os quais permitiriam a realizao de exposies temporrias de enquadramento da vida do homenageado, onde muitos objectos considerados fundamentais podessem ser, desta forma, visionados, para a compreenso da sua vida e obra. Doador, patrono ou criador, todos devem ser considerados benfeitores face quilo que deixam ao pblico (JERVIS 1997: 43), na medida em que permitem ao visitante o conhecimento da intimidade de algum importante. No mbito das polticas contemporneas que se debruam sobre a validade das indstrias e polticas culturais, os socilogos consideram duas dimenses fundamentais das relaes sociais: a cultura e o poder (COSTA 1997: 1). necessrio, por isso, aferir at que ponto as casasmuseu podem dar uma resposta positiva no campo da rentabilidade econmica e ser motores de desenvolvimento das reas geogrficas onde se inserem. A questo da sustentabilidade cada vez mais um pormenor que no se deve deixar imponderado. Ser que as casas-museu acrescentam algo realidade cultural do seu meio? Sero elas um capricho de quem as instituiu por mero interesse de imortalizar um familiar, ou uma coleco? No sentido de obter alguns esclarecimentos e respostas foi desenvolvida uma pesquisa sobre estes temas, com vista a perceber as perspectivas, e de que forma se podem potenciar as casas-museu. Os museus so unidades de actividade cultural integrados numa rede mais vasta de instituies, podendo incrementar o desenvolvimento local atravs daquilo que actualmente designado por indstria cultural. Esta resulta do facto de indivduos ou empresas produzirem bens ou servios para vender, trocar, ou mesmo, simplesmente, para seu prazer. O seu sentido econmico assume cada vez maior dimenso, na medida em que cria postos de trabalho e responde s necessidades do consumidor (THROSBY 2001: 111). O termo indstria cultural tem origem na dcada de 40 do sculo XX, resultado do trabalho de dois filsofos judeus, Theodor Adorno e Max Horkheimer, no sentido de criarem um choque entre dois conceitos, sendo a palavra cultura utilizada para designar as formas excepcionais da criati33

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vidade humana. Cultura e indstria, termos supostamente opostos, levaram desvalorizao da primeira, mas na democracia do capitalismo moderno as duas acabam por se fundir. Na dcada de 60, tornou-se claro que cultura, sociedade e negcios comearam a andar cada vez mais relacionados, com investimentos transnacionais, ao nvel do cinema, da televiso ou outros, ganhando cada vez maior importncia social e poltica. Nos anos 70, o termo indstria cultural foi retomado por socilogos franceses, activistas e polticos, sendo convertido no plural indstrias culturais, no sentido de demonstrar a complexidade e a diversidade das estruturas no domnio da cultura (HESMONDHALGH 2005: 15 -16). Esta variedade resulta da evoluo da prpria definio de cultura, que, nomeadamente, desde o sculo XVI at actualidade vem evoluindo no sentido da sua complexidade17. Hoje, a cultura18 deve ser encarada como qualquer outro bem produzido para garantir o bemestar social do homem, representando na prtica um sistema dinmico, evolutivo e interactivo, que se ancora no passado, e se enriquece no presente, atravs de actividades inovadoras e criativas, para se projectar no futuro com modernidade (MATEUS 2005: 100), convertendo-se num capital cultural19 que necessrio preservar. Este capital cultural existe como uma fonte de bens e servios culturais, que beneficia a sociedade no presente e no futuro, sendo, pois, necessria a sua preservao ante a problemtica da sustentabilidade20 das instituies culturais.

17 David Throsby (THROSBY 2001: 3 4) defende que no Sc. XVI a noo de cultura se relacionava com o cultivo da mente e do intelecto. Todavia, no sculo XIX a definio passou a abranger o desenvolvimento intelectual e espiritual da civilizao como um todo. Porm, actualmente, a cultura apresentada num duplo sentido: 1- Tem a ver com o domnio antropolgico e sociolgico descrevendo atitudes, crenas, costumes, valores e prticas que so partilhadas por um grupo. Este pode ser definido em termos polticos, geogrficos, religiosos ou tnicos, procurando analisar-se a relao entre a cultura e o desenvolvimento econmico. 2- Tem uma orientao mais funcional, denotando algumas actividades diversificadas por pessoas e o resultado dessas actividades que se relacionam com os aspectos intelectuais, morais e artsticos da vida humana. 18 Os novos estudos no mbito das polticas culturais e da sua avaliao, tendem a alargar cada vez mais os conceitos da palavra cultura (MATEUS 2005: 100). Aqui define-se cultura como algo que contempla uma srie de caractersticas partilhadas por uma determinada comunidade modos de vida, sistemas de valores, tradies e crenas e baseadas no conhecimento herdado do passado. 19 Por capital cultural entende-se segundo Throsby (THROSBY 2001: 10) o conjunto de manifestaes de cultura, tradies, lngua, costumes, objectos que resultam da cultura de um povo, o qual necessrio preservar. 20 Throsby (THROSBY 2001: 52-58) define seis princpios essenciais sustentabilidade aplicada ao capital cultural: 1- Existncia de bens materiais (acervo tangvel) e imateriais (patrimnio imaterial); 2- equidade intergeracional e eficincia (relacionada com a distribuio dos bens pelas diferentes geraes futuras); 3- equidade intrageracional (igualdade na capacidade de distribuio dos bens no mbito da mesma gerao); 4- manuteno da diversidade ( de ideias, crenas, tradies e valores); 5- princpios de precauo (todas as decises que possam alterar e pr em risco o capital cultural e que possam ser irreversveis devem ser muito ponderadas); 6- manuteno dos sistemas culturais e sua inter-relao (nada independente, devendo ser relacionado com outro). 34

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At ao final da dcada de 90 do sculo passado, por iniciativa de programas de desenvolvimento econmico, a cultura no era considerada como elemento que integrava a discusso. Ora, muitos exemplos provam hoje que os projectos culturais contribuem directa e indirectamente para o desenvolvimento das regies. A prpria Comisso Europeia individualizou-a j como rea de poltica que cimenta a coeso europeia e participa das polticas de desenvolvimento(PORTUGAL 2000: 10).

Os projectos culturais so considerados determinantes na valorizao das regies onde se inserem21. Tendo em conta o tempo-livre e a subida do nvel de educao22, os equipamentos culturais de uma regio, podendo ser de diferentes tipos: renovao do patrimnio arquitectnico, urbanismo de qualidade, produo de espectculos, museologia, passaram a constituir uma mais-valia de incalculvel valor, influenciando o turismo, e, concomitantemente, provocando uma melhoria da rede de transportes, servios pblicos e hotelaria. Esta conscincia vem alargando o campo das tutelas e dos tipos de expresses artsticas, promovendo uma cada vez maior democratizao da cultura e descentralizao das decises, articulando diferentes poderes pblicos, autarquias, associaes e sistemas de ensino (COSTA 1997: 3), sendo que as polticas pblicas tm gravitado em torno do patrimnio, da formao de pblicos, da sustentao da oferta cultural e do uso econmico, social e poltico da cultura. Os projectos culturais, independentemente da sua rea de actividade, patrimnio, arte ou outros considerandos so geradores de emprego, frequentemente, qualificados e duradouros. A cultura , enfim, um objectivo do desenvolvimento, um elemento essencial na formao dos indivduos e da sociedade. Neste panorama, os museus, assim como a tipologia especfica das casas-museu, devem assumir um papel determinante no domnio da produo de bens culturais de qualidade. Os museus so instituies que, teoricamente, devem preservar as memrias materiais e imateriais, homenageando personalidades e evocando acontecimentos, zelar pela sua conservao, no sentido de permitirem o acesso das geraes do presente a esses patrimnios e, fundamentalmente,

21 Segundo Jos Portugal (PORTUGAL 2000: 10) os projectos culturais tm consequncias econmicas multiplicadoras: 1- porque deles decorre a melhoria global do atractivo de uma zona ou de uma regio inicialmente desfavorecida; 2- porque a qualidade de vida para a qual contribui em grande parte o ambiente cultural e natural, constitui um dos critrios de escolha dos detentores do poder de deciso e dos investidores; 3- porque melhorar a situao cultural de uma regio favorece a sua posio em termos de concorrncia do ponto de vista do seu atractivo face a outras regies; 4- porque, finalmente, a identidade cultural um recurso estratgico A Cultura fertiliza e pode ser fertilizada pelos diferentes domnios de expresso e de construo do desenvolvimento, incluindo os da organizao e da eficincia na utilizao dos recursos. 22 O aumento do nvel de instruo das diferentes camadas sociais assim como da sua formao, tem aumentado e alimentado os consumos culturais, os nveis de exigncia dos pblicos, motivando por consequncia o aumento do nvel de formao dos recursos humanos que desenvolvem a actividade cultural como profisso. (MATEUS 2005: 102) 35

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que as geraes futuras possam fruir o que de melhor se produziu no mbito da criao humana ao longo dos tempos, catalisando vontades e agregando grupos em torno de ideais, minimizando, assim, os riscos da globalizao social23, onde o princpio de identidade se esgota. Todavia, antes da sua converso em bem pblico, o patrimnio, mvel ou imvel, pode necessitar de intervenes, restauros e estudos, podendo a sua exposio pressupor investimentos avultados, sendo necessrio proceder a estudos econmicos de avaliao do custo/benefcio, no devendo, contudo avaliar-se somente o custo financeiro, pois o valor patrimonial, muitas vezes, superior. Se o projecto se relacionar com uma pea absolutamente nica, esta relao no se coloca24, uma vez que este bem deve mesmo ser salvaguardado, devido ao seu valor de unicidade. Segundo Throsby (THROSBY 2001: 78-79) o patrimnio pode assumir os seguintes valores: Valor Existencial: o acervo vale por si mesmo ou pelo valor que tem na comunidade, mesmo que este no seja considerado num momento inicial; Valor Opcional: futuramente, um indivduo, grupo ou comunidade pode pretender usufruir desse patrimnio; Valor do Conhecimento: o povo pode beneficiar do conhecimento produzido por um bem patrimonial, passando-o de gerao em gerao. No mbito da museologia, nomeadamente no processo de criao de casas-museu onde, muitas vezes, so tidas mais em conta as razes de ordem pessoal do que patrimonial ou de reconhecida relevncia, a questo custo-benefcio nem sempre tomada em linha de conta. O artista que pretende imortalizar a sua obra, o seu espao; o coleccionador que pretende preservar a sua coleco, um qualquer familiar que deseja exortar um familiar que se destacou numa qualquer rea da vida pblica; ou, simplesmente, um governo ou uma autarquia local que desenvolve uma aco para demonstrar a importncia de determinada personalidade local, nem sempre ponderam a relao custo-benefcio da sua aco, instituindo unidades museol-

23 A criao de museus em Portugal, algo que no distingue o nosso pas dos outros pases europeus, associa-se valorizao da Histria local e ao incremento recente na investigao na rea. isso faz-se atravs da valorizao das razes das comunidades, que se perdem na noite dos tempos, desde os homens rudes que habitavam o alto dos montes ou faziam desenhos nos vales [...] at aos escritores, artistas plsticos e polticos, filhos da terra. Qual a terra que no tem um capito ou pelo menos um marinheiro [...] uma mamoa [...] alfaias agrcolas em desuso recolhidas por um senhor padre autor da monografia local? (PORTUGAL 2000: 13) 24 O valor cultural do patrimnio determinado por: 1- valor esttico; 2- valor espiritual; 3- valor social; 4- valor histrico; 5- valor simblico; 6- valor de autenticidade. Todavia estes valores nem sempre so tomados em conta, tendo os poderes polticos uma palavra determinante na seleco do patrimnio a conservar (THROSBY 2001: 84 - 85). 36

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gicas que posteriormente no tm capacidade de desenvolvimento e valorizao. Na sociedade globalizada, numa perspectiva economicista, so cometidos erros que posteriormente daro origem a instituies sem valor, amorfas, passadistas e sem capacidade de implantao. Muitos dos criadores de casas-museu procuram que estas passem, o mais rapidamente possvel, para a esfera pblica. Esta transferncia de responsabilidades, em muitos casos, sem estudos profundos, no difcil de justificar, uma vez que estas instituies museolgicas podem ser consideradas essenciais no sentido da formao de uma identidade local, regional ou nacional. Segundo muitos autores, a estrutura museolgica dever ser, preferencialmente, tutelada por um rgo estatal ou uma fundao com capacidade financeira para suportar as necessidades tcnico-funcionais de um museu com este carcter (S/A 1934: 277). Assim, no ser de estranhar que uma parte considervel das casas-museu seja administrada por autarquias locais, as quais tentam criar laos de identidade local, apresentando a individualidade capaz de atrair turismo e, eventualmente, investimento para a localidade. O turismo tem uma grande visibilidade pelo que representa em termos de fluxos humanos, empregos directos e indirectos, recursos e receitas, mas a cultura no se esgota a, implica um conjunto mais diversificado de outras actividades. Os responsveis pela casa-museu devem procurar garantir fundos que lhes permitam desenvolver uma actividade de qualidade, geradora de factores de divulgao e valorizao da unidade museolgica. O plano museolgico deve estabelecer as principais linhas de gesto da instituio, as suas principais fontes de financiamento e a forma como a instituio ser gerida ao longo do seu processo de existncia25. Desde logo se deve equacionar sobre os valores da bilheteira a aplicar, a sua actualizao ao longo dos anos, a existncia de uma loja do museu, de uma cafetaria, a forma como se proceder procura de mecenato cultural, os encargos com restauros, consumos energticos, com meios de comunicao, promoo e divulgao. De primordial importncia a existncia de um plano de marketing26, o qual traar a linha de25 As novas polticas culturais tendem no sentido das estruturas que se criam e se afirmam neste domnio procurarem ser auto-sustentveis, com vista responsabilizao dos seus dirigentes e simultaneamente como forma de estimular a criao de actividades que produzam recursos financeiros que evitem o constante recurso ao financiamento pblico. Os museus e no caso concreto as casas-museu tm de ter a capacidade de iniciativa, com vista criao de recursos para a sua sustentabilidade. (HESMONDHALGH 2005: 3) 26 A partir dos anos 80 do sculo passado verificaram-se grandes alteraes ao nvel da definio das polticas culturais, dos contedos, mas tambm na promoo e no desenvolvimento de planos de marketing, que permitam uma maior promoo e rentabilizao das instituies culturais. (HESMONDHALGH 2005: 2) 37

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divulgao e promoo da casa-museu27. Para que o pblico visite o museu tem de o conhecer; s com uma boa campanha de divulgao se poder levar a instituio ao conhecimento de um maior nmero de pblico. crucial chegar junto dos meios de comunicao social, dos operadores tursticos, dos centros culturais com os quais pretendemos desenvolver actividades, visando como se referiu, aumentar o nmero de visitantes, factor que potencia a aplicao de mais verbas por parte das tutelas e, simultaneamente, pode proporcionar o desenvolvimento do mecenato. 1.4. MOTIVOS PARA A CRIAO DE CASAS-MUSEU Depois de identificados os sentidos e os intervenientes no processo de criao de uma casa-museu, importante sistematizar as razes que podem motivar a criao de uma instituio museolgica deste gnero. Motivos de vria ordem podem ser avanados, uns mais de carcter pessoal, outros mais de ndole institucional, que passam desde a auto-homenagem at ao enriquecimento do sentido histrico de um pas. Ao celebrar uma personalidade, legitima-se a memria pessoal de algum, operando a passagem do domnio privado para o pblico (MARTINS 1996: 71), consagrando-se uma determinada memria (CABRAL 2003: 60). Entre os inmeros casos apresentados, destaca-se o caso da Casa-Museu Leal da Cmara, em Sintra (DIAS 1997: 34), a qual foi instituda com vista perpetuao da memria do Mestre Leal da Cmara, da sua vida pessoal, mas tambm, em grande parte, da sua actuao poltica de resistncia. A musealizao da casa de um determinado poltico, de um escritor ou artista de qualquer rea, poder acontecer face enorme projeco obtida na poca em que viveu e/ou devido influncia que exerceu sobre as geraes vindouras. legtimo que essa figura seja usada como um smbolo de uma nacionalidade, algum que agregue em si a vontade de um povo, o seu orgulho. Isto determina que se pretenda criar uma estrutura onde o pblico possa tomar contacto com essa personagem, onde se perceba a sua realidade, a sua forma de vida, com o objectivo de o conhecer melhor e de consigo criar laos de identidade.

27 Segundo Maria de Lurdes Santos (SANTOS 1999: 1-2) as indstrias culturais sofrem de grande imprevisibilidade quanto sua eficcia junto dos mercados, no sendo possvel determinar partida a adeso do pblico, Donde, o uso de estratgias que tendem a ser mais sofisticadas do que nos outros mercados, com vista a tentar gerir aquela imprevisibilidade estratgias tais como a aposta em pblicos bem determinados, a promoo do star-system, o recurso a gate-keepers, etc. 38

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Estes conceitos de homenagem, consagrao e perpetuao da memria de algum, podem ter ainda outra abrangncia. Em muitas situaes, a consagrao dessa personalidade desenvolvida por outrm. Existem, porm, situaes em que se verifica uma sria necessidade de auto-homenagem e de perpetuao da prpria memria (MARTINS 1996: 71). Esta ideia associa-se de organizao da casa-museu pelo prprio patrono. Este trabalhar para deixar organizada uma instituio que far perdurar, nos tempos vindouros, a sua aco e a sua personalidade. Implcita a esta necessidade de auto-homenagem pode-se, ainda, agregar a eventual necessidade de reconhecimento social, assim como de um determinado status social(CABRAL 2003: 60).

A criao de casas-museu relacionadas com figuras pblicas pode ainda pressupor outras razes. Estas instituies so usadas para veicular ideias e ideais de algum ou de determinado regime (CABRAL 2003: 62). A forma como vive e os objectos de que se rodeia, podem identificar e legitimar um determinado estilo de vida, que ao ser apresentado ao pblico se vai tornar mais conhecido e, certamente, mais claro aos olhos de quem toma contacto com uma realidade at ento desconhecida. Devido ao seu grande valor simblico, uma vez que podem representar algum que identifique uma nao, estas casas foram e continuam a ser usadas pelas ideologias dominantes como smbolos de identidade nacional e para legitimar ou negar a validade de alguns regimes. Na Argentina, estas instituies serviram como paradigmas de unidade nacional (GORGAS 2001:12)28. A Casa de Anne Frank foi usada para mostrar os efeitos devastadores da perseguio ao

povo judeu por parte dos nazis (STAM 2002: 66). Pode aceitar-se como justificao para a criao de casas-museu o facto de determinado indivduo, que tendo reunido ao longo da sua vida uma significativa coleco de objectos, de arte ou mesmo etnogrficos, no gostaria de ver esse conjunto dividido ou mesmo perdido, usando a figura da casa-museu como forma de preservar o seu acervo intacto. No se pode deixar de referir: entende-se que a casa-museu s o , se esses objectos mantiverem o seu enquadramento domstico. Este acto pode resultar de duas situaes: o patrono no ter herdeiros e sentir a necessidade de assegurar a integridade das suas coleces, ou o mesmo no desejar que os objectos deixem de constituir uma unidade e possam dispersar-se pelos herdeiros.

28 Mnica Risnicoff de Gorgas (GORGAS 2001: 12-13) apresenta alguns exemplos de estruturas museolgicas que pelo seu carcter so utilizadas como forma de legitimao de sistemas ou actos de cariz poltico. o caso da Casa do escritor Argentino Manuel Mujica, a Casa da Inconfidncia Mineira ou as Casas da Companhia de Jesus utilizadas para demonstrar a importncia do papel desempenhado pela referida Ordem em territrio argentino. 39

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Para alm das motivaes pessoais, identificam-se outras de carcter patritico ou de identidade nacional (BRYANT 2003: 54; FACOS 2003: 66). A apresentao de uma determinada forma de organizao domstica, numa poca, numa sociedade, de um determinado grupo, pode motivar a criao de uma qualquer casa-museu (LORENTE LORENTE 1998: 30; DIAS 2001: 68). Mas, independentemente do seu carcter, as populaes dos locais onde se insere a casa-museu sentem por ela um enorme orgulho, uma vez que essa localidade apresentada como o local onde determinada figura, que se destacou dos demais, viveu e teve alguma relao com essa terra (SOUSA 2005: 21). Por vezes, denominam-se casas-museu inmeras estruturas que retratam diferentes formas de quotidiano domstico sem se relacionarem com alguma vivncia concreta, reportando-se antes a formas de vida de determinada localidade ou regio. Estas unidades museolgicas tanto poderiam ser no local em que se encontram como noutro, uma vez que no tm a referncia a qualquer indivduo em concreto. No se consideram estas estruturas casas-museu, falta-lhes o factor vivncia. Sero museus etnogrficos, casas-tpicas, museus de histria, onde os objectos organizados de determinada forma contam uma histria criada por algum. No uma histria real, apesar de se poder basear em factos concretos (DIAS 1997: 165; Idem 1999: 133). Para alm de celebrao individual, as casas-museu podem tambm funcionar como autnticos actos celebratrios de um determinado regime poltico ou social. O enquadramento de um espao domstico num certo regime, vai fazer reflectir essas mesmas tendncias nas suas diversas reas. A casa-museu, smbolo que reflecte acontecimentos, pocas e regimes que no podem ser apagados desse espao (PINNA 2001: 7) transporta o visitante para os tempos retratados no stio, levando o pblico a pensar nas pessoas que outrora viveram e usufruram esse espao, e que estiveram sujeitas a uma determinada organizao poltica vigente num certo momento. Estes espaos podem tambm ser instrumentos utilizados pelas classes dominantes com o objectivo de imporem os seus modelos culturais, a sua viso da histria, recorrendo, para o efeito, a altas personalidades, inquestionveis face ao seu reconhecimento. Atravs das suas casas e das ideias a implcitas, tentam influenciar o pensamento e a conduta de um grupo de pessoas que visita uma casa-museu (CABRAL 2003: 62; FACOS 2003: 66). Por exemplo, nos Estados Unidos da Amrica (BUTCHER-YOUNGHANS 1993: fw) a criao deste tipo de museus acelera entre os anos de 1979 e 1980, face s comemoraes do segundo centenrio da revoluo, sendo, neste momento, importante relanar os valores e as motivaes desse processo revolucionrio, assim como os seus principais heris.40

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A criao de Mont Vermon, em meados do sculo XIX (1858), no poder ser esquecida. Este complexo foi criado, liderado por mulheres que musealizaram a vida domstica e salientaram o papel do homem branco na histria deste pas (WEST 1999: 5), realando alguns protagonistas como o caso de George Washington. Em finais do sculo XIX e durante o sculo XX, as mulheres perderam o domnio das casas-museu em favor dos homens, continuando, contudo, estas instituies a desempenhar um importante papel celebratrio, tendo este deixado de ser exclusivamente das classes dominantes, passando estas instituies a reflectir tambm as classes mais desfavorecidas da sociedade, tal como os escravos. 1.5. TIPOLOGIAS DE CASAS-MUSEU AS PROPOSTAS DE CLASSIFICAO Um dos objectivos que motivou o presente trabalho, prende-se com a necessidade sentida em perceber claramente o que so casas-museu e se possvel estabelecer a diferenciao tipolgica destas unidades museolgicas. imprescindvel perceber, de uma forma clara e rpida, o tipo de instituio que se visita, atravs da anlise da terminologia integrante do seu nome. No senso comum, o conceito de casa-museu compreende stios de diferentes tipos e dimenses: de palcios reais a residncias de pessoas poderosas, famosas, a estdios de artistas, casas de burgueses at habitaes mais modestas (PINNA: 2001), podendo a diversidade tipolgica funcionar como um motor da confuso instalada. Certamente, ao visitar uma casa-museu dedicada a uma certa individualidade, muitos visitantes sentiram-se defraudados, pois aquilo com que se deparam nada tem a ver com o patrono da instituio. Desde o sculo XIX at aos nossos dias, foram fundadas inmeras casas-museu dedicadas a vultos da literatura, da escultura, da pintura, ou a um conjunto de personalidades, preservando fidedignamente a arquitectura e a decorao original do espao (LORENTE LORENTE 1998: 31). Paralelamente, surgem casas-museu de mbito etnogrfico que, por norma, se encontram mais perto do conceito de museu local ou regional, monogrfico ou etnogrfico, do que de casa-museu (MARTINS 1996: 8). Com a realizao da 1 reunio do comit das casas histricas e casas-museu, no mbito do International Council of Museums (ICOM), em 1997, foi sentida a necessidade de criar um sistema de classificao tipolgica para estas unidades museolgicas. Tal classificao ser to mais importante quanto mais facilitar a comunicao entre a instituio e o seu pblico, no sentido de evitar confuso e frustrao. Por outro lado, o estabelecimento de um sistema de identificao destas instituies permitir, de igual forma, uma fcil compreenso e comunicao entre a comunidade cientfica (PAVONNI 2001: 64). Definindo-se a natureza especfica dos diferentes tipos41

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de casas-museu, ser mais fcil definir as suas prticas, modos de aco, misso, actos de conservao, restauro, estudo e outras actividades, segundo as caractersticas especficas de cada grupo (MEYER 2003: 130). Pela sua natureza, pode-se considerar que uma casa-museu est relacionada com uma individualidade com determinada relevncia; todavia, se isso no acontece, temos de definir uma aco e um tempo a apresentar. Esta seleco, eminentemente tcnica, responsabilidade do director e determinar toda a aco da instituio. Noutros casos, a casa-museu est relacionada com a apresentao de um grupo social, uma estrutura cultural, numa determinada poca, designadas por casas-museu interpretativas, criando ex-novo objectos e estruturas como forma de interpretar ou representar um perodo histrico, um estilo artstico, gosto ou forma de vida (PAVONNI 2002:52), possuindo elementos museolgicos precisos: os objectos da coleco, estilos, perodos his-

tricos em questo devem estar conformes com estilo arquitectnico do edifcio. Nesta categoria podemos incluir quartos e casas dedicadas a artistas, decorados com materiais produzidos com vista a contextualizar o trabalho de algum que se notabilizou no mundo da arte, visando recriar a atmosfera em que este trabalhou ou viveu (PAVONNI 2003: 118; PAVONNI 2002: 52). Nos Estados Unidos da Amrica, recuperaram-se as casas dos Presidentes da Nao, de autores famosos, de homens ricos. Ao mesmo tempo, surgiu a ideia de preservar as casas de pessoas simples, incluindo determinadas minorias, como o caso dos escravos (BUTCHER YOUNGHANS1993: 5), interpretando-se o modus-vivendi de cada grupo social de forma diferenciada. Quando

a aco da casa-museu se reporta celebrao de uma personalidade, poder ser encarada como uma casa-museu biogrfica, conferindo uma informao que se aproxima de um estudo semelhante ao de uma publicao desse gnero (BURKOM 2003: 32). lvio Sousa (2005) apresenta cinco factores, alguns j referidos, para que se possa proceder classificao de uma casa-museu: a instalao na casa que o patrono habitou, pelo menos durante algum tempo; o espao dever ser o espelho da vivncia do Homem que lhe d o nome, sendo suposto entrar no espao ntimo de algum, desde que o local assinale e testemunhe a vivncia efectiva do homenageado; a estrutura museolgica deve realar o factor vivncia, que funciona como o motor da aco; tanto quanto possvel, deve apresentar a dimenso pessoal e individualizada, clara e prxima da pessoa que se homenageia; possuir um servio de cariz museolgico, tal como o horrio de funcionamento com abertura ao pblico, uma equipa tcnica e desenvolvendo actividades de conservao, educao e investigao, entre outras aces universalmente assumidas por um museu. Ao aceitar estas premissas, estamos, partida, perante um quadro que limita a existncia deste tipo de estruturas, deixando de fora instituies at agora aceites como casas-museu.42

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Face diversidade e dificuldade na definio destas estruturas museolgicas, vrios autores tentaram apresentar tipologias para clarificar o quadro existente e facilitar o acesso a estas instituies, uma vez que imperioso estabelecer um processo de classificao, permitindo uma terminologia diferenciada, que dever ser divulgada em cada instituio. No artigo Les Maisons Historiques et leur Utilization comme Muses, publicado em 1934, na revista Museion do Office International des Muses, so indicados 3 grupos de casas-museu, estabelecidos a partir da anlise das suas coleces (S/A 1934:283): Casas de Interesse Biogrfico, nas quais as coleces podem ser constitudas a partir de manuscritos, correspondncia, escritos, biografias, desenhos, recortes de publicaes, objectos pessoais, espcimes de trabalhos, entre outros objectos com estas caractersticas tipolgicas. Casas de Interesse Social, apresentando objectos que documentam a vida quotidiana dos ocupantes, tais como, cartas, quadros, objectos pessoais, peas de decorao e vesturio, entre outros. Casas de Interesse Histrico Local, onde o acervo composto de objectos de diferentes perodos e com diversas utilizaes, tais como armas, uniformes, alfaias agrcolas ou outros com estas especificidades. George Henry Rivire quando publicou o conjunto de lies de museologia, em 1985, apresentou, com a colaborao de Gilbert Delcroix, uma proposta de classificao dos bens musealizados (RIVIRE 1985: 240-243). Por um lado, integrou-as no conjunto dos monumentos/edifcios civis como bem museolgico imvel cultural ecolgico, ou seja, aquele que vive da relao com o meio original da sua produo e/ou utilizao, e cujo tratamento museolgico praticado em funo da existncia anterior do edifcio (em oposio ao bem museolgico imvel cultural tipolgico que vive independentemente da relao com o meio original da sua produo e utilizao) (MOREIRA 2006: 17). Casas Histricas: terminologia utilizada para classificar trs categorias de imveis de acordo com a tipologia dos seus habitantes: Museus-Palcios e Castelos de Soberania: espaos relacionados com a habitao das classes dominantes.43

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Palcios, Castelos e Casas Privadas: espaos que, depois de passar o seu perodo ureo, apresentam significativos problemas de funcionamento e manuteno, abrindo ao pblico apenas temporariamente, cobrando bilhetes, alugando espaos para os mais diversos eventos. Casas de Notveis e de Pessoas Clebres, tais como, de Artistas, de Escritores ou de Cientistas: espaos ligados celebrao de pessoas notveis. Em Paris, escritores como Balzac, artistas como Dlacroix, ou cientistas, como Pasteur, tm as suas casas musealizadas. Casas Rurais: equipamentos que traduzem a tradio de um certo local, caracterizadas com a natureza dos edifcios. Este conjunto, descontextualizado, poder ser criado em qualquer museu. Em 1993, Sherry Butcher-Younghans apresentou uma proposta de classificao dividida em quatro categorias (BUTCHER YOUNGHANS 1993: 184-186): Casas-Museu Documentrias: apresentam a vida de uma personagem famosa, rica, um fundador de uma cidade, um escritor famoso, um presidente. O grande objectivo apresentar a vida de uma figura ou um acontecimento histrico, contendo os objectos e, se possvel, o lugar em seu estado original. Este tipo de casa-museu, vulgar nos Estados Unidos da Amrica e tambm na Europa, pode apresentar-nos um tipo de sociedade elitista, uma vez que muitas das figuras tratadas apresentam nas suas casas objectos que lhes deram a projeco e o seu status social. Casas-Museu Representativas: documentam um estilo, uma poca ou modo de vida. Estes ambientes podem ser reconstrudos utilizando objectos no originais. Algumas casas foram restauradas para apresentarem determinado estilo de arquitectura ou perodo histrico em particular, utilizando peas adquiridas em mercados com o objectivo de mostrar histrias de grupos, mais do que individualidades. Casas-Museu Estticas: servem de abrigo e expem coleces de arte de grande qualidade, mobilirio e antiguidades de diferentes perodos. A casa serve de contentor para os objectos, no tendo importncia determinante o seu fundador ou acontecimento que decorreu nesse espao. A organizao de exposies artsticas em espaos de cariz domstico sem vivncia do origem aos denominados period rooms, locais onde se apresentam conjuntos de objectos e obras de arte de determinado perodo e tipologia.44

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Casas-Museu que combinam categorias anteriores: uma casa-museu pode ser documentria, uma vez que algumas das salas apresentam a sua decorao original, ao tempo em que a habitou o patrono ou a famlia alvo, mas pode incluir outros espaos organizados com exposies temticas sobre assuntos regionais ou de outros tipos de informao; por vezes, alguns espaos funcionam ainda como sedes de sociedades histricas ou do abrigo a museus etnogrficos locais. Assim, estamos perante estruturas museolgicas que retratam os seus fundadores (documentrias), apresentando tambm interiores elegantes e trabalhos artsticos (estticas) e explicando fenmenos sociais atravs de objectos, eventualmente, no originais (representativas). Alguns anos depois, face necessidade sentida aquando do encontro do DEMHIST j referido, Rosana Pavonni e Ornella Selvafolta, em 1997, tentaram estabelecer tipologias mais pormenorizadas de casas-museu (PAVONNI e SELVAFOLTA 1997: 35-36), determinando as seguintes categorias: Palcios Reais: so realidades muito particulares no panorama das casas-museu, com alto valor representativo, sendo necessrio diferenciar, de entre os que ainda mantm a funo residencial e aqueles que so unicamente museus. Casas de pessoas eminentes: museus que identificam pessoas ilustres atravs dos seus objectos pessoais, da sua vida e da sua carreira, utilizando geralmente as casas onde nasceram e/ou viveram uma parte da sua vida. Casas criadas por artistas: casas criadas para a promoo de um artista e/ou divulgao da obra, expondo, por exemplo, materiais ou modelos usados. Casas dedicadas a um estilo ou poca: tm por objectivo contextualizar peas de mobilirio ou artes decorativas, de acordo com a interpretao dos muselogos. Casas de coleccionadores: no contemplam um discurso museolgico, mas sim a exibio e proteco de coleces pessoais, evoluindo, posteriormente, no sentido de se transformarem em museus. Casas de famlia: nascem e desenvolvem-se como museus familiares, sendo representativas de um determinado meio social e cultural. Casas com identidade social e cultural especfica: representando gostos de grupos sociais ou profissionais, estas construes so conotadas com a presena de objectos45

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de trabalho e, em alguns casos, transformam-se em museus relacionados com o folclore. Casas onde so conservadas coleces sem ligao particular com a histria da casa. Rosana Pavonni aprofunda, depois, a sua proposta de classificao, apresentando subcategorias de classificao das casas-museu, reflectindo a adaptao da casa a museu, o seu discurso e o seu relacionamento com a sociedade: Casa-Museu Descritiva, intacta, permite o desenvolvimento de um discurso directo a partir da apresentao dos espaos e dos seus acervos. Interpreting Homes (PAVONNI 2002: 52), casas-museu interpretativas criadas para interpretar uma pessoa, um perodo da Histria da Arte, um estilo de vida, um facto histrico ou outra que se retrate no ambiente domstico. Em 2006, no 6 Encontro Anual do DEMHIST, Linda Young (YOUNG 2006), docente da Universidade de Deakin, em Melbourne, e investigadora deste tema, apresentou uma nova proposta de classificao tipolgica das casas-museu, baseada na anlise de cerca de 600 unidades museolgicas em Inglaterra, Estado Unidos da Amrica e Austrlia: Casas de Heris e a museologia dos significados intangveis: so espaos onde viveram pessoas importantes ou, em alguns casos, onde s por l passaram, podendo interpretar a histria desse homenageado, levando-nos a pensar no tipo de inspirao que a podemos encontrar. A esta tipologia de casas-museu est associada a necessidade de estabelecer um panteo de heris, os quais tm um enorme poder na imaginao popular. Este movimento iniciou-se nos Estados Unidos depois em Inglaterra, tendo-se posteriormente alastrado. Casas de Coleco e a museologia de coleces intactas: estas casas definem-se atravs da presena de coleces especificas ou de material com alto valor intrnseco para a casa. Nestas instituies est muito presente a necessidade de preservar intactas coleces de artes decorativas, histria ou arqueologia. Este tipo de casa-museu facilmente se poder confundir com um museu generalista. Porm, para que isso no acontea, o esquema expositivo deixado pela personalidade que organizou a coleco dever ser mantido, com vista preservao dos significados que a mesma tem.46

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Casas de Design e a museologia da experincia esttica num ambiente histrico: apresentam a casa como criao artstica com objectivo de apreciao esttica pelos visitantes. A casa e a coleco so fundamentais, mas a estas acresce a importncia na percepo espacial dos volumes, texturas, permitindo, muitas vezes, aos visitantes, o contacto com obras primas do design. Casas de Acontecimentos ou Casas de Processos e a museologia da representao histrica: esto relacionadas com acontecimentos determinantes da Histria. Os habitantes destes espaos no so pessoas de tal forma importantes que possam ser considerados heris, tendendo a histria destas casas a ser annima e genrica, caminhando-se no sentido de cont