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MARTA MARIA CHAGAS DE CARVALHO
A ESCOLA E
A REPÚBLICA
E OUTROS
ENSAIOS
ESTUDOS CDAPH S é r ie H is t o r io g r a f ia
CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO E APOIO À PESQUISA
EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO - CDAPH
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UNIVERSIDA DE SÃO FRANCISCOReitor: Gilberto Gonçalves Garcia, OFM
Programa de Estudos Pós-Graduados em EducaçãoCoordenação: Alexandrina Monteiro
Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa em História da Educação -CDAPHCoordenação: Maria Cristina Cortez Wissenbach
Conselho Editorial:Ana Waleska Mendonça Luciano Mendes de Faria Filho
Carlos Roberto Jamil Cury Luis Felipe Serpa
Clarice Nunes Marcos Cezar de FreitasEliane Marta Teixeira Lopes Marta Maria Chagas de Carvalho
Helena M. B. Bomeny Rogério Fernandes
José Gonçalves Gondra Zaia Brandào
Lúcia Lippi Oliveira
371.2 Carvalho. Marta Maria Chagas de.
C325e A escola e a República e outros ensaios / Marta MariaChagas de Carvalho. -- Bragança Paulista : EDUSF, 2003.
355 p. (Estudos CDAPH. Série historiografia)
1. Educação. 2. República. 3. Política educacional.
4. Escola nova. 5. Brasil. 6. Modernidade pedagógica.
1. Título. II. Série.
Ficha Catalográfica elaborada pelas Bibliotecárias do Setor de Processamento
Técnico da Universidade São Francisco
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APRESENTAÇÃO
Este livro reúne trabalhos de história da educação produzidos
entre 1988 e 2002. Tem 4 partes e, com exceção do capítulo 42 da
Parte 4, texto inédito, reúne dois tipos de publicação. Artigos
publicados em periódicos especializados (com exceção de dois deles,
publicados originalmente como capítulos de livros) compõem as
partes 2, 3 e 4. Um livrinho publicado em 1989 pela Editora
Brasiliense, na coleção Tudo é História, A Escola e a República,
compõe a lâ Parte. Produzido para integrar uma coleção dirigida a um
público não especializado, está esgotado há muitos anos, mas vem
sendo muito utilizado em cursos universitários de Graduação e Pós-
Graduação por estudantes que se têm valido de cópias xerográficas
dele. Considerando a sua forte articulação temática com o restante dos
ensaios desta coletânea, resolvi integrá-lo nesta publicação. Por causa da
sua grande aceitação pelo público universitário, optei por reproduzi-lo
sem outra alteração senão aquela resultante de sua republicação em
uma coletânea. Assim disposto, o livrinho funciona com o espécie de
enquadramento temático e referencial periodizador do recorte que
presidiu à seleção dos ensaios que integram a 2~ parte do livro.
Nesses ensaios, figuras muito conhecidas como Fernando de
Azevedo, Anísio Teixeira e Lourenço Filho são personagens que insistentemente protagonizam o relato e invadem a cena de outros
protagonistas, figuras menos célebres, como Vicente Licínio Cardoso, Edgar Süssekind de Mendonça, Sampaio Dória, Oscar Thompson,
João Hippolyto de Azevedo e Sá, Everardo Backeuser, Alba Canizares
Nascimento, Femando de Magalhães e muitos outros. Como
personagens, todos eles dramatizam temas, levantam questões e
tensionam a narrativa. Mas, se a expectativa do leitor for a de
encontrar nos ensaios aqui reunidos qualquer tipo de conhecimento
biográfico, sua leitura será certamente deceptiva. A montagem da
cena, a aparição dos personagens e a dramatização de seus discursos
obedecem, no caso, a outra lógica: a de reconstituição de um campo de
consenso atravessado por tensões em que o personagem funciona
como ponto de condensação de temas pojêmicos e recurso analítico de
explicitação de diferenças, de elucidação de significações e de
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INTRODUÇÃO
H f e p A Escola e a República e Outros Ensaios 11
A escola foi, no imaginário republicano, signo da instauração
da nova ordem, arma para efetuar o Progresso. Na sociedade excludente
que se estruturou nas malhas da opção imigrantista, nos fins do século
XIX e início do XX, a escola foi, entretanto, facultada a poucos. Nos
anos 20, na avaliação da República instituída feita por intelectuais que
se propõem a pensar o Brasil, a política republicana é acusada de ter
relegado ao abandono “milhões de analfabetos de letras e de ofícios”,
toda uma massa popular, núcleo da nacionalidade. Esta legião de
excluídos da ordem republicana aparece então como freio do Progresso, a
^ impor sua presença incômoda no cotidiano das cidades. A escola foi, em
conseqüência, reafirmada como arma de que dependia a superação dos
entraves que estariam impedindo a marcha do Progresso, na nova ordem
que se estruturava. Passa, no entanto, a ser considerada “arma perigosa”, exigindo a redefinição de seu estatuto como instrumento de dominação.
Este texto realiza um percurso por esse processo de
redefinição do estatuto da escola na ordem republicana. Centra-se,
pira isto, na elucidação do projeto político-pedagógíco formulado nos
anos 20, ao calor do chamado entusiasmo pela educação. A partir da
avaliação da República instituída, que informou este projeto, o texto se
detém numa leitura da ação reformadora de Caetano de Campos, no
fim do século, para, em seguida, registrar o deslocamento que sofre a
questão educacional no final da década de 1910. Finalmente, exibe o
novo deslocamento que se produz no discurso pedagógico a partir de
meados da década de 20, interpretando-o como repolitização do
campo educacional, expresso num ambicioso projeto de reforma
moral e intelectual.Em seu percurso, o texto recusou a doutrina do transplante
cultural, acionada com freqüência na historiografia sobre educação
no Brasil, para explicar o abismo que efetua - pelo confronto entre
ideolog ias e fatos - entre projetos lidos com o propostas de
democratização da sociedade pela escola e a realidade educacional.
Descartando essa doutrina por sua capacidade de tudo explicar e,
portanto, nada explicar, o texto deixa como sugestão a novas
investigações em história da educação brasileira uma perspectiva de
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12 Marta Maria Chagas de Carvalho
análise que descarte a tentação, sempre recorrente, de entender a
importação de idéias estrangeiras como mimetismos inconseqüentes
que atestariam a fragilidade das classes dominantes ou de fração delas
na formulação e imposição de projetos políticos de seu interesse.
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CAPÍTULO 1
A Escola e a República e Outros Ensaios 13
A DÍVIDA REPUBLICANA1
Sedimentou-se nos anos 20, entre intelectuais que se
aplicavam a pensar o Brasil e a avaliar a República instituída, a crença
de que na educação residia a solução dos problemas que identificavam. Esse entusiasmo pela educação condensava expectativas diversas de
controle e modernização social, cujajbrmulação mais acabada se deu
no âmbito do nacionalismo que contamina a produção intelectual do
período. Nesse âmbito, o papel da educação foi hiperdimensionado: tratava-se de dar forma ao país amorfo, de transformar os habitantes
em povo, de vitalizar o organismo nacional, de constituir a nação. Nele
se forjava projeto político autoritário: educar era obra de moldagem de
um povo, matéria informe e plasmável, conforme os anseios de Ordem
e Progresso de um grupo que se auto-investia como elite com
autoridade para promovê-los. jxPerpassava fortemente o imaginário desses entusiastas da
educação o tema da amorfia. Referido ao país, marcava-o como
nacionalidade em ser a demandar o trabalho conformador e
homogeneizador da educação. Referido às populações brasileiras,
proliferava em signos da doença, do vício, da falta de vitalidade, da degradação e da degenerescência. O trabalho é, nessas figurações,
elemento ausente da vida nacional. As imagens de populações doentes,
indolentes e improdutivas, vagando vegetativamente pelo país, somam-se
às de uma população urbana resistente ao que era entendido como
trabalho adequado, remunerador e salutar. Imigrantes a fermentar de
anarquia o caráter nacional e populações pobres perdidas na vadiagem
impunham sua presença incômoda nas cidades e comprometiam o que se propunha como “organização do trabalho nacional”.
1O texto que compõe esta primeira parte do livro foi originalmente publicado
em 1989, na coleção Tudo é História da editora Brasiliense, com o lítulo A
Escola e a República. Cf. CARVALHO, Marta Maria Chagas de. A Escola e
a República. São Paulo: Brasiliense, 1989 (Col. Tudo é História, 127).
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14 Marta Maria Chagas de Carvalho
Regenerar as populações brasileiras, núcleo da nacionalidade, tornando-as saudáveis, disciplinadas e produtivas, eis o que se
esperava da educação, erigida nesse imaginário em causa cívica de
redenção nacional. Regenerar o brasileiro era dívida republicana a ser
resgatada pelas novas gerações.
A questão da organização do trabalho nacional formulava-se
em termos diversos daqueles que haviam predominado no fim do
século. As teses racistas, que haviam sido articuladas em defesa da
imigração, embasando práticas excludentes da participação do liberto
no mercado de trabalho dos setores mais dinâmicos da economia
nacional, são agora reformuladas. Se a cor da pele permanecia
assombrando os novos intérpretes do Brasil que entram em cena nos
anos 20, ganhava força entre eles a idéia de que a educação era fator
mesológico determinante no aperfeiçoamento dos povos, sobrepujando
os fatores raciais. As imagens do negro e do mestiço como “vadio”
continuam a inquietar esse imaginário, mas deixam de ser o signo de
uma incapacidade inamovível para o trabalho livre. O liberto e seus
descendentes permanecem estigmatizados como criaturas primitivas e
por isso propensas à vadiagem. Mas esta passa a ser também o
resultado da incúria política de abolicionistas e republicanos que não
os teriam adestrado para as imposições da liberdade. Era o que, em
193 I, Fernando Magalhães - ilustre médico carioca que desde os anos
20 se engajara na campanha de regeneração nacional pela educação -
lastimava, ao escrever que o país não se preparara
para o dia seguinte da liberdade que despovoaria os campos
pelo delírio dos libertados, meio inconscientes, cujo
primitivismo os manteria na escravidão social, ainda hoje não
abolida. A displicência dos governos despreocupou-se de
defender o trabalho livre, garantia da produtividade nacional,
no momento em que a alucinação da alforria houvesse, como houve, de se encaminhar para a vadiagem. A palavra dos
pregadores da abolição, se proclamou criaturas livres, não as
adestrou para as imposições da liberdade. (A Escola Regional)
Por sua vez, o imigrante não era mais marcado no imaginário
dessas novas elites pelos signos da operosidade, vigor e disciplina que
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haviam enleado os promotores da imigração no fim do século XIX, ^Iil^efitando-lhes os sonhos de Progresso. Tais sonhos, articulados
^ política de exclusão do liberto, na expectativa racista e jizadora de que a tão decantada operosidade do imigrante
isse por erradicar a vadiagem nacional, ruíam agora. As greves
^operárias marcavam a figura do imigrante como presença também
mpômoda a “fermentar de anarquia o caráter nacional”, como
lastimava o mesmo Magalhães:
Parecia o Brasil pagar duramente o pecado da
escravidão prolongada. Ao cabo de quase 50 anos, permanece
a preocupação angustiosa pelo destino da massa popular,
núcleo da nacionalidade e da democracia, incapaz de servir
as suas responsabilidades e arriscada de se falsificar nas
correntes imigratórias fermentadas de indisciplina.{ ibidem)
A preocupação angustiosa pelo destino da massa popular
encenava, no discurso de Magalhães, a crítica ao citadismo e ao
industrialismo de importação, conseqüências de mentalidade verbalista
cega ao país real e fascinada com fórmulas e costumes estrangeiros:
O exemplo de outros países de costumes e tradições
diferentes contaminou de suntuosidade o regime, criando o
novo problema, o Citadismo, atraindo para os centros de grande torvelinho provincianos e sertanejos, crentes no
milagre da vida fácil, (ibidem)
A industrialização era “fenômeno de importação onde a terra
definha de emigração”. O antídoto desses males era a “educação do povo
sertanejo desprotegido”, que o fixasse no campo. Não são apenas, dizia,
as riquezas materiais que se ocultam no interior do país: são
as suas forças vivas, as suas forças morais, únicas capazes de
dominar a dissolução dos centro, urbanos ostentosos e
anarquizados. (ibidem)
[e a República e Outros Ensaios 15
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Desta perspectiva, organizar o trabalho nacional era, sobretudo- com o concurso de uma escola que disseminasse “não o perigoso
conhecimento exclusivo das letras, mas a consciência do dever
domiciliário” - fixar o homem no campo, de modo a conter os fluxos,
migratórios para as cidades e a vitalizar a produção rural. Neste caso, o
resgate do que se considerava uma dívida republicana fazia-se como
proposta agrarista: “o que não foi feito oportunamente sê-lo-á agora e
o trabalhador rural, livre, criará o cidadão útil, votado à propriedade do
seu-recanto” (ibidem).
Outro era o teor da dívida republicana a ser resgatada, segundo
Vicente Licínio Cardoso, intelectual que cunhou a expressão pensar o
Brasil nos anos 20. Propunha que se revisse a historiografia
estabelecida sobre o advento do regime republicano, criticando-lhe a
desconsideração dos fenômenos sociais e econômicos, postos em jogo
com a emancipação dos escravos. No seu entender, tal desconsideração
não somente impedia a compreensão adequada do processo que conduzira à Proclamação da República, como também induzia a uma percepção
equivocada dos problemas que barravam a efetiva republicanização do
país. Entendendo democracia como organização social do trabalho livre e
república como a forma política de tal organização, Licínio julgava
que a República brasileira não se havia ainda efetivamente implantado,
dado o estado de desorganização do trabalho nacional. Desorganizada
a economia rural com a Abolição, teria havido “um verdadeiro êxodo
dos emancipados para os centros urbanos”, determinando a oferta do
“braço operário barato”. Disto teria decorrido “uma organização
urbana artificial”, que funcionava como “uma válvula de descarga
aberta, atraindo continuamente o elemento rural emancipado para os
bairros fabris das grandes capitais”. O fenômeno se lhe afigurava
como conseqüência de um processo inadequado de transição da
economia agrícola fundada na escravidão para a fase industrial do
operário urbano livre:
Sem capitais fáceis como a França e a Inglaterra, sem
o artificio técnico em abundância como a Alemanha e outros
países, sem carvão na medida de suas necessidades e sem a
indústria de ferro organizada, o Brasil, como a Rússia, não
podia resolver o problema gravíssimo da transição agrícola,
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crescimento industrial, de modernização agrícola, de reordenação política, de saneamento e educação.
A seção “A Defesa Nacional”, publicada de julho de 1927 a
agosto de 1928 em A Bandeira, era uma publicação militar já existente
desde 1911.0 grupo militar ligado à revista tivera origem em 1906, na
política do Marechal Hermes da Fonseca de modernizar o exército
enviando jovens oficiais para servirem arregimentados no exército
alemão. Com a vinda da Missão Francesa, em 1920, os militares
ligados à revista ampliaram sua concepção de defesa nacional.
Segundo José Murilo de Carvalho, o que “existia na área se baseava
num conceito estreito de defesa que se limitava quase que só à
proteção de fronteiras do Sul e do Sudoeste”. Com a vinda da Missão, amplia-se a noção, “incluindo a mobilização de recursos humanos, técnicos e econômicos” que abrangiam “todos os aspectos relevantes
da vida do país, desde a preparação militar propriamente dita até o
desenvolvimento de indústrias estratégicas como a siderúrgica” (“Forças Armadas na Primeira República”).
Os signos de progresso de A Bandeira estavam a serviço de
um projeto de modernização nacional articulado com essa concepção
de defesa nacional. E neste quadro que a educação ganha estatuto de
peça fundamental de uma política de valorização do homem como
fator de produção e de integração nacional. A superação do isolamento
das diversas regiões brasileiras pelo desenvolvimento dos meios de
comunicação e transporte; sua integração num circuito que garantisse a
circulação dos bens materiais e culturais constituindo um grande
mercado nacional; a modernização da agricultura; o desenvolvimento
industrial com ênfase na indústria de base; a dinamização do homem
como fator de produção por políticas sanitárias e educacionais
integram-se num projeto de maximização e integração dos recursos
nacionais subordinados à concepção de defesa nacional referida.
Vicente Licínio Cardoso não integrava os órgãos técnicos e diretores do Club, como Ferdinando Labouriau, Mário de Brito e Paulo
Ottoni de Castro Maya, seus companheiros da Escola Politécnica e de
campanha educacional. Foi, entretanto, por ocasião de sua posse como
professor naquela escola, festejado por A Bandeira como figura-
símbolo da mentalidade H.B. (Homem Bandeirante) nela propagandeada.
Suas formulações sobre o Brasil coadunavam-se com o nacionalismo
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da revista, pela larga utilização que fazia de metáforas energéticas e pela valorização de medidas de organização e integração nacioi-ais. O
processo de transição para o trabalho livre aparecia-lhe marcado por
“perdas sociais de energias gastas em atritos passivos violentíssimos”,
abalando, por isso mesmo, “a saúde da própria sociedade”. Nesse
diagnóstico, a educação era o instrumento que permitiria “transformar, sem coação, a energia potencial do homem em energia cinética”. “Trabalho”, escrevia Licínio, “é um complexo: energia, ação e
produção. Complexo é o conjunto de condições que uma sociedade
deve satisfazer para o estabelecimento desta organização do trabalho
livre do homem: Instrução (Energia); Liberdade (Ação); Ordem
(Produção).” (ibidem) O papel da instrução nas sociedades era o “do
condutor, do transmissor pelo qual é possível a transformação da
energia potencial do homem em energia cinética”. Insuflando,
despertando, desenvolvendo as energias potenciais dissimuladas pela
ignorância, a instrução era o “veículo que permite a transformação deles em energias atuais, cinéticas, donde consequentemente, em
resultado, o próprio trabalho amplificado” (ibidem).
Pensando o Brasil com apoio em modelos organicistas,
Vicente Licínio Cardoso concluía faltar-lhe “coesão, densidade social
(...) peças de ligação imprescindíveis, tecidos sociais econômicos
fundamentais (...) órgãos aparelhados que (...) pudessem facilitar a
unidade nacional almejada jje um organismo de flex ibilidade social escassa, perdendo energias - já de sinal cultivadas - em atritos e
resistências passivas formidáveis” (ibidem). O Brasil era um “organismo
de vida estéril”, sem “continuidade de seiva”, “ritmo de vida”,
“seqüência de energia”. Os “milhões de analfabetos de letras e ofrios”,
que “vegetavam”, desamparados, nos “latifúndios enormíssimos do país”,
eram “peso morto” a consumir as escassas energias do incipiente
organismo nacional, retardando perigosamente a marcha do Progresso.Um catastrofismo semelhante sobressalta o imaginário dos
entusiastas da educação. Ressoa nele, como um alarma, o lema de
Euclides da Cunha: “Progredir ou desaparecer”. Fala-se insistentemente
em crise, em horas gravíssimas, significando-se algum enorme perigo que
ameaça o país se suas elites não superarem o pessimismo, a passividade e
a indiferença, lançando-se à campanha de regeneração nacional pela
educação. “Vitalizar pela educação e pela higiene” - prescrevia Miguel
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Couto, personagem-símbolo do entusiasmo pela educação - “toda essa
gente reduzida pela vérmina a meio homem, a um terço de homem, a um
quarto de homem” era a única “salvação” (No Brasil só há um problema
nacional - a educação do povo). A incumbência de educar os “sub-
homens” era alçada por Fernando Magalhães à missão sagrada a ser
executada “à beira do abismo, ante o precipício”.
Cobrava-se então o preço da incúria política dos republicanos:
a massa popular, o núcleo da nacionalidade, esses milhões de analfabetos
de letras e ofícios relegados a condições subumanas de vida maculav am a assepsia burguesa de que vinham sendo tecidos os sonhos de Progresso na
República. O pesadelo pode ser descrito citando-se o higienista
Belisário Penna, que em 1912 fora encarregado por Oswaldo Cruz de
fazer um inventário das condições de saúde de populações sertanejas e
que se integrara na campanha educacional nos anos 20:
3/4 dos brasileiros vegetam miseravelmente nos
latifúndios e nas favelas das cidades, pobres párias que, no
país do nascimento, perambulam como mendigos estranhos,
expatriados na própria pátria, quais aves de arribação de
região em região, de cidade em cidade, de fazenda em
fazenda, desnutridos, esfarrapados, famintos, ferreteados com
a preguiça verminótica, a anemia palustre, as mutilações da
lepra, as deformações do bócio endêmico, as devastações da
tuberculose, dos males venéreos e da cachaça, a inconsciência
da ignorância, a cegueira do tracoma, as podridões da bouba,
da leishmaniose, das úlceras fragedêmicas, difundindo sem
peias esses males. (A Escola Regional)
Regenerar essa massa popular era tarefa compartilhada por
agraristas, como Magalhães, e industrialistas, como Vicente Licínio,
típicos defensores do velho e do novo, que alguns historiadores têm afirmado estarem em total polarização no período. As diferenças de
diagnóstico e de terapêutica eram unificadas por sua subordinação a
um interesse comum: o de minimizar os efeitos, tidos como perniciosos,
dessa massa popular no cotidiano das cidades. Deter os fluxos
migratórios para a cidade, promovendo política agrarista de fixação do
homem no campo por intermédio da escola, ou dinamizar a economia
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de base industrial, por medidas educacionais que incorporassem levas de
ociosos ao sistema produtivo, eram projetos com um denominador
comum: o equacionamento da questão urbana, a estruturação de esq jemas
de controle que viabilizassem, no espaço da cidade e no tempo da
produção-expropriação capitalista, o disciplinamento das populações
resistentes, na vadiagem ou na anarquia, à nova ordem que se
implantava.
A empresa regeneradora não era fácil. O balanço feito da
República instituída era, para Licínio e para a autodenominada
“geração dos homens nascidos com a República”, a que ele pertenceu,
pessimista:
A grande e triste surpresa de nossa geração fo i sentir
que o Brasil retrogradou. Chegamos quase à maturidade na
certeza de que já tínhamos vencido certas etapas. A educação,
a cultura ou mesmo um princípio de experiência, nos tinham
revelado a pátria como uma terra em que a civilização já resolvera de vez certos problemas essenciais. E a desilusão, a
tragédia da nossa alma fo i sentir quanto de falso havia nessas
suposições. O tempo nos preparava uma volta implacável à
realidade. E essa realidade era muito outra, muito outra, do
que aquela a que o nosso pensamento nos preparara e que a
imaginação delineara.
Encontramo-nos bruscamente, ao abrir os olhos da
razão, perante uma pá tria ainda por faze',', ainda informe,
ainda tolhida em sua ação e sem vitalidade, sem alma, sem
ideal, uma pátria que o lirismo tinha decantado em cores
fa lsas e de que a indiferença agora sorria ou o pessimismo
negava grosseiramente. (A Margem da República)
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AEscola e a República e Outros Ensaios 23
CAPÍTULO 2
A ESCOLA MODELAR
Proclamada a República, a escola foi, no Estado de São Paulo,
o emblema da instauração da nova ordem, o sinal da diferença que se
pretendia instituir entre um passado de trevas, obscurantismo e
opressão, e um futuro luminoso em que o saber e a cidadunia se entrelaçariam trazendo o Progresso. Como signo da instauração da
nova ordem, a escola devia fazer ver. Daí a importância das
cerimônias inaugurais dos edifícios escolares. O rito inaugural repunha
o gesto instaurador. A fala de Cesário Mota na inauguração do edifício
da Escola Normal Caetano de Campos, em 1894, é paradigmática:
... o historiador, fitando o passado inteiro de nossa pátria,
querendo sopesar o grandioso progresso de nosso Estado,
precisando de avaliar a sua extensão, conhecer-lhe a base, os
lados, os vértices, há de forçosamente tomar como ponto
culminante, ponto de prova, ponto de triangulação, ponto que
denote a reunião de todos os lados do polígono social, no
início da República em São Paulo, a Escola Normal que ora
se inaugura.
E prosseguia:
Não porque tenha este palácio as grandes cintilações
artísticas que orgulham os arquitetos, os pintores de todos os tempos”, mas porque no edifício celebrado “a grandeza, a majestade do
simples” simbolizava a ‘fo rça de uma idéia elevaaa'1'’: a instrução do
povo. “ Ponto culminante de nossa arquitetônica", o edifício revelava “a
altura em que a República colocou desde o início o problema da
instrução”. A “nobreza” das suas linhas demonstrava a crença de que
não haveria mais nobre profissão que aquela que se incumbe de
“preparar cidadãos para a sustentação, defesa e engrandecimento de
uma pátria livre”. Sua “vastidão” denotava o gesto do Governo,
convidando utodas as aptidões, todas as fortunas, todas as idades,
todos os sexos, todas as vocações para virem sagrar-se aqui sacerdotes
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24 Marta Maria Chagas de Carvalho
da religião do saber, em que nós democratas fundam os as nossas
ardentes esperanças de prosperidade da pútria e de glória para a
República.
A visão do luminoso templo laico levantado com recursos que
o Império havia destinado à construção de uma catedral, contrapunham-se
visões tenebrosas da escola na velha ordem: “casas sem ar e luz,
meninos sem livros, livros sem método, escolas sem disciplina, mestres
tratados como párias”. No retrato da educação no Império, a falta de
recursos “trazia a de estímulos, o desânimo, e a escola pública era, em
geral, a penitenciária do menino, e o ganha-pão do mestre”. Dessas
escolas não se poderia obter nem educação cívica, nem “preparação
para satisfazer as necessidades da vida ou para desempenhar as
funções sociais, que o regime representativo exige”, nem “ preparo da
mentalidade infantil para receber as idéias que por ampliação se lhe
deveriam incutir nos anos superiores”. Por isso, resolvido o problema
econômico, o social e o político, o governo republicano ter-se-ia
voltado para o da instrução. O edifício que então se inaugurava era a
resposta dos governos republicanos a uma sociedade inteira que,
cansada de enviar os filhos ao estrangeiro “ para mendigar o saber que vi aqui não se podia obter ”, e entristecida em ver os cárceres repletos,
teria bradado com Goethe: “Luz! Luz! Mais Luz\”Para fazer ver, a escola devia se dar a ver. Daí os edifícios
necessariamente majestosos, amplos e iluminados, em que tudo se
dispunha em exposição permanente. Mobiliário, material didático, trabalhos executados, atividades discentes e docentes - tudo devia ser
dado a ver de modo que a conformação da escola aos preceitos da
pedagogia moderna evidenciasse o Progresso que a República instaurava.
Aquilo que num imaginário fortemente impregnado pelo
positivismo era tido como dogma da constituição dos povos modernos
- conhecer para vencer - era o desafio lançado à República. Sem
preparo intelectual, ponderava Caetano de Campos em documentos
compilados por João Lourenço Rodrigues, nenhum povo estaria apto
para as conquistas do Progresso. Facultadas à Humanidade pela
Ciência, tais conquistas desembocavam na revolução “ prodigiosa” que
o século vinha realizando.
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A Escola e a República e Outros Ensaios 2.S
Educar era a aspiração uníssona que se levantava em todos os
países. Não bastava, contudo, ensinar: era preciso saber ensinar. Não
poderia haver ensino produtivo sem a adoção de métodos que estariam transformando em toda a parte o destino das sociedades. A educação
do homem moderno exigiria uma soma de conhecimentos que
resultavam “ sinteticamente das noções enciclopédicas hauridas em
diversos ramos de estudo”. Como era impossível “ensinar às crianças
tudo quanto pode ser necessário à vida”, tornava-se praticável dar à
inteligência um grau de maturidade que preparasse suficientemente o
homem novo para entrar na vida social “cow seguros capitais para o
êxito”. Dos métodos bem entendidos e bem praticados é que poderia
sair “o cérebro adaptado à conquista da verdade”. Por isso, insistia
Caetano de Campos em discurso aos professores, em 1890:
... quando um país quer dar a medida de seu progresso, do
alcance de suas instituições, do valor de sua raça, aponta o
número de suas casas de ensino e abre-lhes as portas como
que dizendo: Vede como se aprende!
A montagem do sistema público de ensino paulista no início
da República, sob a ação reformadora de Caetano de Campos' levou às
últimas conseqüências o primado da visibilidade. E que, fazendo a
educação do homem novo depender de novos métodos e processos de
ensino e o domínio desses métodos e processos da experiência de vê-
los em execução, essas iniciativas republicanas organizaram-se em
tomo da instituição da Escola Modelo. A escola em que se aprende a
ensinar, dizia Caetano de Campos em Carta à Imprensa, “é
necessariamente uma escola prática e longa”, pois não seria possível “ser mestre em tais assuntos sem ter visto faze r e sem ter fe ito por si”.
Toda erudição seria de pouco proveito para os mestres se não fossem
“ver como as crianças eram manejadas e instruídas”.
Na Escola Modelo, instituição que deveria ser o “coração do
Estado”, revelar-se-ia, “aos olhos dos futuros professores, o mundo, novo para eles, do ensino intuitivo”. Os processos intuitivos, que
estariam em constante aperfeiçoamento na Alemanha, na Suíça e nos
Estados Unidos, eram a base do ensino moderno. Seu merito, “a
cultura intensiva do espírito, o aproveitamento de todos os detalhes,
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26 Marta Maria Chagas de Carvalho
cada cousa em cada hora, o alimento intelectual o mais completo,
dado na proporção da receptividade psicológica” (Discurso aos
professorandos). Disciplina do espírito pela seleção e dosagem
adequada dos “fatos que devem ser explicados” à psicologia infantil, o
ensino intuitivo repetia “o processo que instruiu a humanidade inteira
em sua vida intelectual - a intuição” (Memória apresentada em 1891
ao Governo do Estado). Marcava-se com o signo do novo opondo-se
aos processos que haviam caracterizado a educação na velha ordem:
Dantes, enchia-se a cabeça do aluno com uma série
interminável de definições por meio duma instrução imbuída
na memória à força de repetições, tantas vezes reproduzidas
quantas eram necessárias para que o fato aí permanecesse
(...) Modernamente, o pedagogo atua de outro modo.
Coleciona previamente os fatos que devem ser explicados,
coordena-os tacitamente em seu gabinete, numa sucessão
lógica que é muitas vezes o segredo de todo o sucesso do
ensino; apresenta-os depois à apreciação do aluno, atendendo
sempre à sua capacidade atual, à sua idade, à sua agudeza de
espírito e outras condições psicológicas que ele, professor ,
estuda em cada aluno, (ibidem)
Formar o pedagogo moderno consistia em fazê-lo ver os novos
métodos em funcionamento, pois seria “inútil pensar em adquirir sem
ter visto p r a t i c a r Mas como fazê-lo sem mestres que já tivessem
visto fazer e feito por si? A solução era mandar vir do estrangeiro
mestres hábeis nessa especialidade e, com eles, profuso material
didático adequado às exigências da “modernapedagogia”.
A importação de mestres foi resolvida pela contratação de
professoras já radicadas no Brasil, mas formadas nos Estados Unidos.
A importação de material didático foi possibilitada pelo Governo e suplementada por alguns empréstimos feitos à Escola Americana. Um
então aluno da Escola Normal, João Lourenço Rodrigues, deixou seu
depoimento:
O edifício constava de dois corpos ligados por um
corredor, mas, a princípio, dele só fo i aproveitado o
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A Escola e a República e Outros Ensaios 27
pavimento superior. O corpo da frente fo i ocupado pela seção
masculina, a cargo de Aíiss Browne; no corpo do fundo fo i
instalada a seção feminina, confiada a D. Maria Guilhermina.
Completa a instalação das classes e bem encaminhado o
trabalho de sua organização, os alunos e alunas do 3a ano
puderam enfim começar os exercícios práticos de ensino. A
princípio deviam limitar-se a observar e a anotar as suas
observações. Entre o que lhes fo i dado a ver e as suas
reminiscências, ainda recentes, da escola régia tradicional, o contraste não podia ser mais flagrante. A mobília, cedida pela
Escola Americana, era nova e envernizada; o aspecto das
classes, munidas do material necessário para a prática do
ensino intuitivo, causava excelente impressão. Notava-se por
toda a parte ordem, asseio e não faltava nem mesmo i nota
artística de algumas jarras de flores, alinhadas sobre as
mesas. O ambiente não podia ser mais sugestivo. As crianças,
que outrora fugiam com horror da escola, eram agora as
primeiras a chegar. Pudera! A imobi'idade de outrora, que as
fa zia morrer de tédio, sucediam agora, alternando com lições
curtas, exercícios de marcha e canto, que imprimiam à vida
escolar um tom. (Um Retrospecto)
Exímias na arte de ensinar, as professoras contratadas para a
Escola Modelo não tiveram, entretanto, muito êxito na exposição dos
princípios que norteavam sua prática aos alunos da Escola Normal. O
mesmo João L. Rodrigues recordava:
As aulas das escolas modelos não podiam começar
desde logo, em razão das obras que estavam sendo executadas
no prédio da Rua do Carmo. (...) O Dr. Caetano de Campos
entendeu que as duas professoras poderiam aproveitar utilmente o seu tempo dando às duas classes do terceiro ano
algumas aulas teóricas, que serviriam para traçar a
orientação do ensino nas esperadas escolas modelos. No dia
marcado para o primeiro encontro, os alunos, reunidos numa
das salas de aula, as esperavam com grande curiosidade.
Depois do toque da sineta, as duas entraram, acompanhadas
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28 Marta Maria Chagas de Carvalho
do Diretor, muito 'sorridentes, a desfazerem-se em mesuras e
cortesias. Feita a apresentação, o Dr. Campos retirou-se e D.
Maria Guilhermina iniciou sua exposição inaugural. Estava
visivelmente intimidada e, talvez por isso, não conseguiu dar a
essa exposição a clareza que fora para desejar. Os ouvintes
ansiavam por conhecer as diretrizes essenciais da nova
pedagogia e D. Maria Guilhermina, perdendo-se em minúcias,
deixou essas diretrizes na penumbra. Por muito bem informada
que se revelasse em processos de ensino, parecia ser dessas pessoas que não sabem elevar-se da noção da árvore à noção
da floresta: era dispersiva. ( ... ) Miss Browne fo i mais feliz:
não conhecendo bem a língua, ficou dispensada de fa lar e mal
se aventurou a alguns monossílabos, (ibidem)
A inépcia das professoras não era, contudo, relevante para os
propósitos republicanos de Caetano de Campos. O sistema público de
ensino paulista montava-se, como já foi sublinhado, sob o primado da
visibilidade. Ver para reproduzir os procedimentos vistos e dar a ver sua
prática como modelo de outras era o que se propunha aos futuros mestres.
E que a Pedagogia dos “ processos intuitivos” era uma arte da minúcia,
da dosagem, da gradação, que se queria fundada na observação de cada
aluno, na experiência de cada situação, na concatenação minuciosa dos
conteúdos de ensino pacientemente isolados e colecionados no cultivo de
cada faculdade da criança numa ordenação que se pretendia fundada na
natureza. Seria por meio desses processos, “sem o descuido de um
instante, que a criança, graças à sua natural atividade”, tornava-se
“produtiva em vez de vadia, amiga da verdade e induzida a procurá-la
por hábito, porque tudo o que sabe deve a seu próprio esforço, muito
apta para a conquista das noções, porque aperfeiçoaram-lhe os
sentidos e com eles a aquisição de i d é i a s tornava-se também “hábil e
fecunda, porque só se lhe deu o que ela podia receber; porque o que se lhe deu tinha a medida na sua própria psicologia, e tudo o que
adquiriu estava baseado na formação do seu caráter, na justiça das
coisas...” (Carta à Imprensa).
Colhendo nas ciências naturais “os elementos de disciplina
menta\” que fez seus, a “intuição como método pedagógico” era a
pedra de toque na organização do sistema de ensino paulista. Era, como já
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A Escola e a República e Outros Ensaios 29
se observou aqui, a possibilidade de recapitular, no indivíduo, “o
processo que instruiu a humanidade inteira em sua vida intelectuaF\ Era, por isso, a possibilidade de conquistar para o indiviVuo os
benefícios que a Ciência trouxera para a Humanidade e, por meio
deles, as condições para o exercício da cidadania. Já que a mudança ae
regime havia entregue “cro povo a direção de si mesmo”, nada era mais
urgente, ponderava Caetano de Campos em Memória apresentada ao
Governador Jorge Tibiriçá, que “cultivar-lhe o espírito, dar-lhe a
elevação moral de que ele precisa, formar-lhe o caráter para que saiba querer ”. Num regime em que “o príncipe é o p o \o” e em que
não haveria porque zelar pelo “interesse de uma fam ília privilegiada”,
o povo só poderia guiar-se pela “convicção científica”, tomando
realidade o self-government. Para o Governo, educar o povo era um
dever e um interesse. Interesse “ porque só é independente quem tem o
espírito culto, e a educação cria, avigora e mantém a posse da
liberdade”. Tal interesse não se restringia ao ensino primário. Se este
era importantíssimo por desenvolver na criança “o hábito de refletir
antes de enunciar, a ciência de aproveitar o tempo (...) e sobretudo o
amor ao trabalho”, isto não seria suficiente para formar cidadãos. Para
tanto se impunha que o ensino fosse, tanto quanto possível, “completo,
inteiro em todos os conhecimentos indispensáveis à vida, enciclopédico
por assim dizer, já que nosso viver social na atualidade envolve-nos
em contingências oriundas de toda sorte de noções científicas”. Não
era admissível “apagar o facho que deve conduzir a criança para o grande templo da vida”, terminado o ensino primário. Não quando os
primeiros anos de escolaridade já tivessem desenvolvido na criança o
hábito de pensar e sua curiosidade já houvesse sido despertada. Os
conhecimentos científicos ministrados na escola secundária deveriam
ser a base da educação. O conhecimento do mundo físico constituía-se
na “melhor disciplina mental ”, assim como o hábito de experimentar
era garantia de “ formação de um homem apto em todos os sentidos”.Fornecer tal ensino inteiro, completo, de base científica,
condição efetiva da cidadania plena, é o que se entendia como tarefa
republicana. Isto porque era a redenção da Ciência que a República
devia trazer ao povo:
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30 Marta Maria Chagas de Carvalho
No século em que vivemos, todas as liberdades foram
conquistadas pela ciência. Só esta desvenda a realidade das
coisas, só esta separa o jo io do trigo, só esta nobilita o
homem, só esta combate, resiste e vence. (Discurso aos
professorandos)
Era preciso “afastar o sofisma, rechaçar o preconceito, fustigar o
obscurantismo, seja qual fo r sua p r o c e d ê n c ia O que implicava o
povo ser “instruído largamente, proficientemente, como quem precisa governar-se a si, e poder governar outros povos, se a ocasião o
exigir ” (Memória apresentada ao Governador). A disseminação desse
ensino de base científica, entretanto, demandava o estabelecimento
prévio de novas escolas-modelo, de 22 e 32 graus, anexas à Escola
Normal, em que pudessem ser vistos os novos processos de ensino.
Antes de criar as escolas secundárias adequadas a esses graus escolares
superiores, era preciso preparar os professores, familiarizando-os com “os
processos que os naturalistas empregam para a obtenção da verdade
c i e n t í f i c a Havia “muito que fazer na criação de bons moldes, muito
livro a escrever, muita noção a a d q u i r i r A cidadania efetiva dos
brasileiros ficava postergada para o futuro, na tessitura dos moldes
pedagógicos com que a República se anunciava. Caetano de Campos
dizia: “Epreciso não perder tempo porque devemos andar devagar
*
* *
As profissões de fé dos republicanos paulistas não podem
deixar de ser referidas à opção política da grande lavoura cafeeira pela
imigração. Só desta forma os projetos de um Caetano de Campos e de
tantos outros republicanos que, eloqüente e reiteradamente, afirmaram
com palavras e atos sua fé no poder liberalizador e democratizador da educação podem ter sua extensão aquilatada. A pergunta que fica ao
nos depararmos com o imaginário pedagógico republicano é: Quem,
nesse imaginário, é o cidadão que a República tem o dever e o
interesse de educar?
Em estudo sobre o negro no imaginário das elites brasileiras
no século XIX, Célia Azevedo mostra como se consolidou na
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A> Escola e a República e Outros Ensaios 31
Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo, no início da década
de 80, o imigrantismo. Acompanhando os debates parlamentares nos
anos 70 e 80, a autora mostra como o
imigrantismo, bem como a formulação correspondente de seu
ideário racista, emerge tal qual uma arma ou insirvmento
político manejada contra os negros, adversários temidos do
cotidiano passado, presente e futuro, e cuja resistência
disseminada, e por isso mesmo difícil de ser coibida, objetivava-se de alguma forma neutralizar, substituindo-os por
uma massa de imigrantes brancos. (Onda Negra Medo Branco)
As medidas tomadas para sustar a “onda negra” - “ imagem
vívida do temor suscitado pela multidão de escravos transportados do
norte do país para a província no decorrer das décadas de 1860 e
1870” (ibidem) - bem como para promover a imigração eram
veementemente defendidas nos debates parlamentares por insistente
caracterização do negro como raça inferior, incapaz para o trabalho,
propensa ao vício, ao crime e inimiga da Civilização e do Progresso. A
partir do início da década de 80, quando o imigrantismo se consolida,
o tema do aproveitamento do nacional, intensamente debatido dentro e
fora do Parlamento durante todo o século, é posto de lado. A
imigração européia é, então, a alternativa escolhida, ''''dando vazão aos
sonhos de trocar o negro pelo branco, de transformar a ‘raça brasileira’
e, no caso de São Pàulo, de valorizar as tão decantadas qualidades
’viris’ dos paulistas, tornando-a, no futuro, uma província branca,
capacitada, conseqüentemente, para um franco progresso e
desenvolvimento” (ibidem). Assim, o imigrantismo propunha não
somente a troca do negro pelo branco nos setores fundamentais da
produção, como também arquitetava um projeto de regeneração e
capacitação para trabalho, cujo instrumento era a miscigenação de que se esperava um desejado branqueamento moralizador das populações negras.
É dominante na historiografia educacional o recurso à figura
do transplante cultural como um lugar-comum, que explica um abismo
alegado entre os bons propósitos ilustrados de uma elite convencida do
poder democratizador e liberalizador da educação e os resultados
efetivos desses propósitos. Os projetos dessas ilustres elitçs não se
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A Escola e a República e Outros Ensaios 33
universos - o dos cidadãos e o dos sub-homens - funcionando como
dispositivo de produção/reprodução da dominação social. Se a
cidadania plena só era para Caetano de Campos facultada por um
ensino inteiro, completo, de base científica e se a generalização deste
ensino ficava postergada para um futuro remoto na dependência de
morosas providências pedagógicas, fica a questão: o que tornava
possível este vagar?
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A Escola e a República e Outros Ensaios 35
CAPÍTULO 3
O FREIO DO PROGRESSO
O vagar com que Caetano de Campos marcava seu paciente
trabalho de reformador não tem lugar na linguagem de cifras e na
urgência das metas que caracterizam o relatório apresentado em 1918
por Oscar Thompson, Diretor-Geral da Instrução Pública do Estado de São Paulo, ao Secretário do Interior, Rodrigues Alves:
A evolução do ensino público paulista, j á no que toca
aos seus métodos educativos, já no que se refere à sua difusão
por todos os 196 municípios do Estado, acresceu ao estudo
grandes e importantes problemas que exigem solução pronta e
rápida: 232.621 crianças freqüentaram escolas em 1918;
247.543 em idade escolar não freqüentaram escolas públicas
ou particulares conforme atesta a estatística.
Que fazer para educar esses milhares de menores que,
crescendo analfabetos, constituirão elementos negativos do
nosso progresso?
O analfabetismo passava a ser a marca da inaptidão para o
Progresso. Era ele a causa da existência das populações que “mourejavam no Estado, sem ambições, indiferentes, de todo em todo,
às cousas e homens do Brasir (ibidem). Produz-se, assim, um
deslocamento no discurso educacional: um novo personagem irrompe,
um brasileiro doente e improdutivo, peso morto a frear o Progresso,
substitui a figura do Cidadão abstrato, alvo das luzes escolares. O novo
cidadão não é mais invocado para oficiar no augusto templo da
Ciência. Basta-lhe agora o manejo cívico do alfabeto.A pergunta formulada pelo Diretor-Geral é respondida por
Sampaio Dória em carta aberta. O futuro reformador da instrução
pública paulista em 1920 justificava as medidas que preconizava,
reiterando as razões para a extinção do analfabetismo:
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36 Marta Maria Chagas de Carvalho
Hoje não há quem não reconheça e não proclame a
urgência salvadora do ensino elementar às camadas populares. O maior mal do Brasil contemporâneo é a sua
porcentagem assombrosa de analfabetos. (...) O monstro
canceroso, que hoje desviriliza o Brasil, é a ignorância crassa
do povo, o analfabetismo que reina do norte ao sul do país,
esterilizando a vitalidade nativa e poderosa de sua raça.
A alfabetização do povo apresentava-se para Sampaio Dória
como “a questão nacional por excelência”. É que o imigrante de que
os republicanos históricos haviam esperado o aprimoramento da “raça
brasileira” era visto agora como ameaça ao “caráter nacional”. Só
resolvendo o problema do analfabetismo é que o Brasil poderia
“assimilar o estrangeiro que aqui se instala em busca da fortuna
esquiva". Não haveria como fugir ao dilema: ou o Brasil manteria “o
cetro dos seus destinos, desenvolvendo a cultura dos seus filhos”, ou
seria “dentro de algumas gerações absorvido pelo estrangeiro que para ele aflui”. Reintroduzia-se, assim, a questão do aproveitamento
do chamado elemento nacional. Em estudo sobre a formação do
mercado de trabalho livre em São Paulo, Lúcio Kowarick observa que
o tema da valorização da desacreditada mão-de-obra nacional é
retomado num momento em que, com a Primeira Grande Guerra, os
fluxos imigratórios contínuos sofrem brusco corte. Além disso, as
greves operárias do fim da década de 10 destroem os mitos da tão decantada operosidade do imigrante que haviam embalado o imaginário
das elites paulistas no fim do Império e início da República.
O programa educacional desta revalorização concentrou-se
inicialmente na alfabetização. A partir de meados da década de 20,
esse programa é redefinido ao calor da campanha de regeneração
nacional promovida pela Associação Brasileira de Educação (ABE),
fundada no Rio de Janeiro, em 1924. Para os entusiastas da educação que
nela se aglutinaram, era preciso combater o ‘ fetichismo da alfabetização
intensiva”, valorizando-se o que se entendia por “educação integral”.
Em ambas as formulações, entretanto, o mesmo deslocamento discursivo.
A figura do Cidadão abstrato, dominante na retórica dos republicanos
históricos, é substituída pela imagem de um brasileiro improdutivo,
doente e ignorante, que urge regenerar com o recurso da escola.
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A Escola e a República e Outros Ensaios 37
0 projeto de Sampaio Dória, ideólogo da Liga Nacionalista de
São Paulo, não se limitava, contudo, à alfabetização. A escola primária de objetivos modestos e de duração reduzida que sua reforma implantou
em São Paulo deveria, enfatiza Heládio Antunha, funcionar como:
1- instrumento de aquisição científica, como aprender
ler e escrever; 2a educação inicial dos sentidos, no desenho,
no canto e nos jogos; 3a educação inicial da inteligência, no
estudo da linguagem, da análise, do cálculo e nos exercícios
de logicidade; 4~ educação moral e cívica, no escotismo,
adaptado à nossa terra e no conhecimento de tradições e
grandezas do Brasil; 5a educação fís ica inicial, pela ginástica,
pelo escotismo e pelos jogos. (A Reforma de 1920)
Mesmo a Liga Nacionalista, cujas campanhas de alfabetização se
atrelavam à luta pelo alistamento eleitoral e pelo voto secreto, não
descurava de iniciativas de educação cívica de modo a garantir a qualidade do voto e, concomitantemente, a propalada regeneração
do caráter nacional.
Apesar disto, a prioridade da difusão do ensino sobre questões
atinentes à sua qualidade é legível na urgência das metas e no roteiro
das cifras que determinam a lógica da Reforma. O sistema escolar era
racionalizado de modo a conciliar a alegada exigüidade de recursos
financeiros governamentais'às metas democráticas de generalização dos benefícios escolares. No confronto dos números, era construído o
dilema: dar uma escola de 4 anos a alguns, excluindo os outros, ou
generalizar o ensino elementar de 2 anos a todos. A Reforma opta pela
segunda via. As medidas que adota para erradicar o analfabetismo são
arroladas por Heládio Antunha:
(a) a radical modificação efetuada nos níveis inferiores do
ensino público (art. Ia), com a redução do ensino primário a
dois anos e a conseqüente criação do ensino médio de dois
anos de duração, correspondendo aos 3a e 4a anos primários,
então extintos;
(b) a redução da obrigatoriedade e gratuidade da freqüência
escolar primária. As crianças legalmente obrigadas a
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38 Marta Maria Chagas de Carvalho
freqüentar o curso primário de dois anos passam a ser apenas
as de 9 e 10 anos de idade;
(c) a taxação do curso médio;
(d) a unificação das escolas isoladas ao tipo único de dois
anos;
(e) a redistribuição de professores de 3~ e 41 anos, que
ficavam em disponibilidade, para as novas classes
alfabetizadoras de 1~ e 2~ anos a serem formadas;
(f) o desdobramento das escolas isoladas e também do trabalho do professor das escolas em que fosse excessiva a
matrícula e no caso de não haver condições para a existência
de dois professores;
(g) isenção dos pobres das taxas em todos os graus do ensino;
(h) a “proscrição ” escolar às crianças de 7 e 8 anos. As
crianças dessa idade deixavam de ser obrigadas à freqüência
escolar e, mais do que isso, não lhes seria permitido o ingresso
nas escolas públicas antes de completarem 9 anos de idade;
(i) a criação de duas mil escolas isoladas. (A Reforma de 1920)
Estas medidas foram acompanhadas de outras, voltadas para o
que era entendido como nacionalização do ensino. A questão
comportava dois aspectos distintos, embora solidários: tratava-se, por
um lado, de “abrasileirar os brasileiros” mediante a alfabetização e a
educação moral e cívica e, por outro, de integrar o imigrante estrangeiro. Neste segundo aspecto, o escotismo foi incentivado,
juntamente com outras medidas de formação cívica. Mas a iniciativa
mais relevante neste caso foi a intervenção nas escolas estrangeiras.
Novas disposições legais prescreviam que respeitassem os feriados
nacionais, ministrassem o ensino em vernáculo, incluíssem no
currículo o ensino de Português, Geografia e História do Brasil por
professores brasileiros natos e ensinassem os cantos nacionais nas classes infantis. Além disso, essas escolas deveriam abrir-se à inspeção
do Estado e fornecer-lhe os dados estatísticos solicitados.
Com a derrogação da Reforma em 1925, a reorganização do
ensino paulista fez-se sob o signo da volta ao passado, de retomada
dos padrões que haviam prevalecido no início da República e que a
Reforma mutilara. Era reabilitado o modelar sistema de ensino paulista
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AEscola e a República e Outros Ensaios 39
montado a partir das meticulosas providências de Caetano de Campos
e dos que imediatamente sucederam a ele. O primado da qualidade
impunha-se à prioridade concedida à difusão do ensino. Será uma
mudança de ênfase como esta que permeará o discurso educacional
dominante na segunda metade da década de 20. Nesta redefinição de
prioridades, teve importantíssimo papel a Associação Brasileira de
Educação (ABE), fundada, como já foi dito, em 1924.
Sediada originalmente no Rio de Janeiro, a ABE foi projetada
como organização nacional. Seus organizadores esperavam que em cada Estado brasileiro fossem criados núcleos similares ao instalado
no Distrito Federal. A ação local desses núcleos deveria ser integrada
por Conferências Nacionais realizadas anualmente, de forma que o
debate e a troca de informações pudessem constituir a Associação
como “órgão legítimo de opinião das classes cultas” em matéria
educacional. Embora tenha malogrado o objetivo de organizar os
núcleos es+aduais, a ABE consolidou-se com o entidade nacional quando, a partir de 1927, passou a promover as projetadas Conferências
Nacionais. Isto é testemunhado por Fernando de Azevedo que, ao
descrever o movimento educacional na década de 20, põe em relevo o
papel da ABE em sua dinamização e expansão, afirmando que sua
importância residiu em ter funcionado como “força de aglutinação”
dos esforços esparsos dos educadores que se vinham empenhando na
reforma dos sistemas estaduais de educação:
Congregando os educadores do Rio de Janeiro, pondo-
os em contacto uns com os outros, abrindo oportunidades
para debate largo sobre doutrinas e reformas, freqüentemente
de um conteúdo intelectual confuso e contraditório, e
convocando para congressos ou conferências de educação ”, a
ABE teria sido "um dos instrumentos mais eficazes de difusão
do pensamento pedagógico europeu e norte-americano e um dos mais importantes, se não o maior centro de coordenação e
de debates para o estudo e solução de problemas educacionais,
ventilados por todos as formas, em inquéritos em comunicados
à imprensa, em cursos de fér ias e nos congressos que
promoveu nas capitais dos Estados. (A Cultura Brasileira)
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Em especial, as Conferências Nacionais, aproximando
educadores de todos os Estados e congregando-os em diferentes centros culturais do país, teriam propiciado o que chamou dz^m archa resoluta
para uma política nacional de educação.'''' (ibidem)
Em discurso-programa da Associação Brasileira de Educação,
Heitor Lyra da Silva, apontado como principal idealizador e organizador
da entidade, afirmava em 1925:
Creio interpretar a maioria senão a totalidade dizendo
que não temos o fetichismo da alfabetização intensiva e que
estamos convictos, salvo pequenas divergências secundárias, de
que o levantamento do nível popular tem que repousar sobre
tríplice base: moral, higiênica e econômica, o que significa que
sem a cultura das qualidades do caráter, sem a melhoria das
condições de saúde da massa da população e sem uma racional
organização do trabalho é utopia esperar que a alfabetização
rápida e quase instantânea, se possível, viesse a transformar
para o bem as atuais condições do nosso país. (Discurso)
Para os organizadores da ABE, era necessário, como pontuava
Azevedo Sodré em conferência por ela promovida em 1925:
... convencer a nossa gente de que, ao contrário do que
habitualmente se afirma, não cabe ao analfabetismo a culpa
do atraso, do desgoverno, da anarquia e dos muitos males que
ajligem nosso país.
Antes seriam ...
mais nocivas, culpáveis e condenáveis as elites mal
preparadas que nos governam e as legiões sempre crescentes
de semi-alfabetos que as sustentam.
Segundo Sodré, os analfabetos eram “obreiros pacíficos e
conformados ao progresso nacionaT\ Se era verdade que “produziriam
mais, com menos esforço”, se fossem instruídos, era entretanto
“preferível que fossem analfabetos”, porque “os iletrados adultos que
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A Escola e a República e Outros Ensaios 41
trabalham, produzem, não fazem revoltas, não perturbam, nem
anarquizam o nosso meio”. A solução apresentada pretendia-se estritamente pedagógica, propondo-se como ampliação do âmbito
formativo da escola. Era preciso, ao invés de “apressadamente ensinar
a ler, escrever e contar aos adultos iletrados” - coisa de má pedagogia -
“cuidar seriamente de educar-lhes os filhos fazendo-os freqüentar
uma escola moderna que instrui e moraliza, que alumia e civiliza”.
A partir do trabalho de Jorge Nagle, Educação e Sociedade na
Primeira República, tornou-se impossível referir-se ao movimento
educacional do período sem utilizar a nomenclatura que criou para
expressar os momentos distintos desse movimento com suas
características: entusiasmo pela educação e otimismo pedagógico.
O entusiasmo pela educação caracterizar-se-ia pela importância
atribuída à educação, constituída como o maior dos problemas nacionais,
de cuja solução adviria o equacionamento de todos os outros. O
otimismo pedagógico manteria, do entusiasmo, a crença no poder da
educação, não de qualquer tipo de educação, enfatizando a importância
da nova pedagogia na formação do homem novo. Na passagem do
entusiasmo para o otimismo se teria produzido no movimento uma
crescente dissociação entre problemas sociais, políticos e econômicos
e problemas pedagógicos. , .
Existe para Nagle uma anterioridade temporal do entusiasmo
pela educação em relação ao otimismo pedagógico. Entretanto, n?o
considera relevante o critérío cronológico na distinção entre os dois movimentos. Exemplo disto é que toma o discurso de Miguel Couto na
ABE, em 1927, No Brasil só há um problema nacional, a educação do
povo, como caso mais típico do entusiasmo pela educação. A leitura
que Vanilda Paiva faz do texto de Nagle estabelece um limite temporal
rígido: até 1925, estaríamos diante do entusiasmo pela educação; a
partir de então, do otimismo. Leia-se o que escreve:
Com o nacionalismo dos anos 10 voltam à baila os
ideais republicanos e democráticos, aos quais se ligim os
anseios de universalização do ensino elementar e de ampliação
das oportunidades educacionais para o povo. Organizam-se
as 'lig as”, em cujos programas sempre estão presentes
reivindicações relativas à instrução popular... Este nacionalismo
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42 Marta Maria Chagas de Carvalho
educacional que se manifesta na luta pela democratização do
ensino, está ligado ao problema da ampliação das bases de
representação eleitoral, pois na medida em que grupo
industrial urbano pretende a recomposição do poder político
dentro do marco da democracia liberal o caminho mais
seguro era o da difusão do ensino.(...)
O entusiasmo pela educação que se manifesta através
da mobilização em favor da difusão do ensino elementar e que
está ligado às tentativas de recomposição do poder político através da ampliação do número de votantes, iniciada em
meados da década de 10, não sobrevive com o mesmo caráter
logo após os primeiros anos da década seguinte, quando fo i se
tornando claro para os grupos em luta pelo poder que, através
da educação, a , conquista da hegemonia política era
problemática e demandava muito tempo... Os políticos
efetivamente interessados na conquista do poder abandonam
este campo de luta, deixando-o aos diletantes da educação e
entregando-se às conspirações de revolta armada. (Educação
Popular e Educação de Adultos)
Em Vanilda, Miguel Couto é o principal representante desse
diletantismo. Paralelamente a essa sobrevivência do entusiasmo como
diletantismo, teriam surgido os profissionais em educação, representantes
do otimismo pedagógico. Tais profissionais
reuniram-se numa Associação Brasileira de Educação (ABE),
fundada por Heitor Lyra em 1924, a fim de defender seu
campo de trabalho... Era a primeira sociedade de
profissionais da educação com caráter nacional e sua
atuação, principalmente através das Conferências Nacionais
de Educação promovidas a partir de 1927, contribuiu no sentido da difusão dos ideais e princípios da Escola Nova e do
“otimismo pedagógico” em geral. (...) Durante os anos vinte,
passada a fase do "entusiasmo pela educação ”, dominam as
idéias de tecnificação pedagógica de form a quase absoluta e
uniforme em todo o país, graças à ABE. (ibidem)
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A Escola e a República e Outros Ensaios 43
0 texto de Vanilda Paiva amarra o “entusiasmo pela
educação” às “tentativas de recomposição do poder político através da
ampliação do número de votantes iniciada em meados da década de 10”.
Ter-se-ia aí um momento em que educação e política estavam vinculadas. A partir de meados da década de 20, esse vínculo desapareceria, dando
lugar a um enfoque técnico da questão educacional.Questiona-se aqui esta tese de Vanilda Paiva. Primeiramente,
porque o grupo que compunha os órgãos diretores da Associação
dificilmente pode ser qualificado de profissionais em educação. Nele predominaram médicos, advogados e sobretudo engenheiros, professores
da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, cujos interesses e campo de
trabalho abrangiam questões de siderurgia, urbanismo, economia
política, finanças, política, astronomia, física etc. Em segundo lugar,
porque tal grupo guardou do entusiasmo a priorização da educação
como grande problema nacional, cuja solução transformaria política,
social e economicamente o país. Em terceiro - razão principal - porque a ênfase do grupo na qualidade do ensino em detrimento da
simples difusão da escola - o que faria deles otimistas - não foi
decorrente de razões pedagógicas, mas políticas. Dependendo de sua
qualidade, a educação foi explicitamente valorizada, como
instrumento político de controle social.Depois de realçar a vinculação original das preocupações
educacionais “com as tentativas de recomposição do poder político
através da ampliação do número de votantes”, Vanilda Paiva apresenta
o que considera uma causa da dissociação progressiva entre as
preocupações políticas e educacionais: é que “foi se tornando claro
para o grupo em luta pelo poder que, através da educação, a conquista
da hegemonia política era problemática e demandava muito tempo”.
Os “políticos efetivamente interessados na conquista do poder” teriam
abandonado o “campo de luta” educacional, “entregando-se às
conspirações de revolta armada”, como já se leu.A história da fundação e da organização da Associação
Brasileira de Educação não confirma essas afirmações. Sua fundação
resultou do malogro na organização de um partido político, por causa
da precipitação de um dos organizadores que, em julho de 1924,
acreditando no sucesso da revolução paulista, chegou a entrar em
contato com os revolucionários. Além disso, parcela significativa dos
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fundadores da Associação - a se crer na veracidade das acusações que
determinaram a prisão de alguns deles - esteve envolvida em
movimentos militares. Finalmente, cerca de metade dos integrantes
dos órgãos diretores da Associação foram os fundadores e organizadores
do Partido Democrático do Distrito Federal, tendo composto a cúpula
do partido nos anos de 1927 e 1928. Dois deles chegaram mesmo a
eleger-se intendentes municipais nas eleições de 1928 e, segundo
informação de Paulo Nogueira Filho, estreitamente vinculado ao grupo,
foi o desaparecimento deste, num desastre de aviação em 1928, que inviabilizou o Partido Democrático do Distrito Federal.
A significação disso não extrapolaria a simples retificação do
relato de Vanilda Paiva se fosse possível sustentar que o grupo aglutinado
na ABE na década de 20 era apenas um grupo remanescente do
entusiasmo pela educação, convencido da importância da simples
difusão do ensino sem qualquer restrição ao conteúdo da educação a
ser difundida. Este não é o caso, como já se afirmou. A crítica ao que
Heitor Lyra da Silva chamara de “fetichismo da alfabetização
intensiva” era mesmo um dos pontos consensuais entre os integrantes
da Associação, constituindo-se, ao que parece, como um dos mais
importantes móveis da fundação da entidade.
Muito esclarecedora, a respeito, é a informação de Mattos
Pimenta. Pertencia à Comissão Executiva de Partido Democrático do
Distrito Federal em 1927 e 1928 e era muito identificado com
intelectuais do Conselho Diretor da ABE, participantes, nesses anos, daquela Comissão. Segundo ele, o Partido fora organizado a partir da
avaliação de que a Revolução de 1924 em São Paulo falhara em razão
da inexistência de uma opinião pública que desse sustentação à tomada
do poder pelas armas. Isto implicava, a seu ver, deslocar a ênfase que
vinha caracterizando as campanhas de alfabetização no período -
ampliação do número de eleitores - para questões de organização do
eleitorado. Estas abrangiam a formação de uma opinião pública e, para tanto, partido e sistema educacional eram propostos como instrumentos
principais. Isto sugere que o abandono da ênfase na difusão do ensino,
registrado por Vanilda Paiva, não significou uma despolitização do
campo educacional mas, ao contrário, sua politização em novos
termos. Compreender este desdobramento requer que se compreenda o
aparecimento do entusiasmo pela educação e sua transformação no
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A Escola e a República e Outros Ensaios 45
otimismo pedagógico em termos que possibilitem evidenciar o sentido
da repolitização operada.A ampliação do número de eleitores, a erradicação da
ignorância como instrumento de qualificação do voto consciente, a
formação e organização de uma opinião pública são objetivos que, em
maior ou menor grau, aglutinam na ABE os intelectuais dedicados ao
estudo e à propaganda da causa educacional. Mas o que os aglutinava
era, fundamentalmente, o projeto político de uma grande reforma de
costumes que ajustasse os homens - com o afirmaria Lcurenço Filho em 1935, referindo-se à trajetória da ABE - “a novas cond ições e
valores de vida, pela pertinácia da obra de cultura, que a todas as
atividades impregne, dando sentido e direção à organização de cada
povo”. A proposta de uma educação integral , resultante da subordinação
da difusão do ensino a razões técnicas ou estritamente pedagógicas
que determinassem sua qualidade, era uma das respostas políticas
ensaiadas por setores da intelectualidade brasileira na redefinição dos
esquemas de dominação vigentes.
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CAPÍTULO 4
A Escola e a República e Outros Ensaios 47
A REFORMA MORAL E INTELECTUAL
As principais iniciativas que notabilizaram a Associação
Brasileira de Educação nos anos 20 foram marcadas como
acontecimentos cívicos: a propaganda que se fez de'as, os rituais que
as constituíram colocaram a Associação como obra cívica de que dependia a redenção do país. As Conferências Nacionais não foram
somente instâncias de debate, mas eventos que funcionaram como
propaganda da causa educacional. Nelas, discursos e rituais
representaram a ABE como congregação de homens de elite,
esclarecidos, bem intencionados e devotados ao equacionamentu das
mais graves questões nacionais. Nesta prática, operavam mecanismos
de constituição e validação da campanha educacional. Divergências
eram relativizadas ou mesmo apagadas na generalidade das
proclamações em que o civismo era o campo consensual de atuação.
Amalgamando ou diluindo divergências, atraindo adeptos, a campanha
cívica tinha importância em si mesma, sendo ela própria parte
essencial do projeto de reforma moral e intelectual em que se engajava
a ABE. Produzindo o que se entendia como uma taineana temperatura
moral, era processo em curso de erradicação do que se identificava
como uma das principais eausas da crise nacional: o ceticismo, o
individualismo, a apâtia das elites políticas, cegas à importância da
educação. Promover uma reforma da mentalidade dessas elites,
convencendo-as da necessidade de regenerar pela educação as
populações brasileiras, moldando-as como povo saudável e produtivo,
era o que se esperava da campanha educacional.
Máquina persuasiva, o discurso cívico da ABE opera
maniqueistamente, produzindo imagens da realidade brasileira que opositivamente se interqualificam. O presente é reiteradameníe
condenado e lastimado, sendo caracterizado de modo a fundamentar
temores de catástrofes iminentes, que atingirão o país se a
campanha educacional não obtiver os resultados desejados. Ao
futuro insistentemente se alude como dependente de uma política
educacional: futuro de glórias ou de pesadelos, na dependência da ação
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48 Marta Maria Chagas de Carvalho
diretora de uma elite que direcione, pela educação, o processo de
transformação do país. Na oposição construída por imagens de um país
presente condenado e lastimado e de um país futuro desejado é que se
constitui a importância da educação como espécie de chave mágica
que viabilizará a passagem do pesadelo para o sonho. Neste espaço é
que se inscreve o entusiasmo pela educação de que a ABE é ao mesmo
tempo conseqüência e principal foco de irradiação.No discurso cívico da ABE, a figura de um brasileiro doente e
indolente, apático e degenerado, alegoriza os males do país. Transformar essa espécie de Jeca Tatu em brasileiro laborioso, disciplinado, saudável e
produtivo era o que se esperava da escola.
As práticas discursivas das organizações cívico-nacionalistas
que proliferam no país nos anos 10 e 20 têm merecido pouca atenção
dos historiadores. Interpretado como palavrório vazio, ausência de
ideologia, ritual esvaziado, o discurso cívico não é analisado enquanto
prática. Com isto, perde-se a possibilidade de identificar não somente
estratégias organizacionais de grupos interessados em ampliar seu
campo de atuação, como também os objetos de intervenção constituídos
por tais estratégias. E muito tênue a diferença entre a prática dessas
organizações cívicas e a que caracterizou as associações de profissionais,
como médicos, educadores, engenheiros e higienistas, que na década
de 20 se organizaram por meio de inúmeros congressos e conferências
em tomo de questões eleitas como pontos privilegiados de intervenção.
Nelas, inúmeros rituais, conformavam tais questões como causas cívicas, validando objetos e técnicas de intervenção e credenciando
seus agentes. Nesta situação é que se dá a montagem de diversos
dispositivos de controle, ordenação, regulação e produção do cotidiano
das populações pobres. O reformador social - cuja presença mercante
na década de 20 só recentemente tem sido registrada e analisada - tem
nessas organizações o seu lugar de emergência. Nelas é que tais
reformadores se credenciam como colaboradores indispensáveis e eficientes na invenção e no aprimoramento de dispositivos de dominação.
A Associação Brasileira de Educação foi uma dessas
organizações. Nela, um grupo de intelectuais se auto-representou
como elite que deveria dirigir por intermédio da educação o processo de
transformação do país. Sua prática constituiu como objetos de
intervenção política a ignorância, o vício, a doença e a indolência das
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A Escola e a República e Outros Ensaios 49
populações brasileiras. E, no processo de debates desencadeado nas
Conferências Nacionais, tal prática credenciou os agentes e as ,técnicas
de intervenção preconizadas. A ABE funcionou assim como instância
de organização e credenciamento de reformadores sociais, produzindo
um espaço de ação política - o do técnico - que seria gradativamente
alargado no interior da burocracia estatal, principalmente a partir de
1930. Mas funcionou também como instância de disseminação de um
saber sobre o social, de marcada configuração autoritária, em que o
povo brasileiro é figurado como matéria informe e plasmável pela ação de uma elite que projetava conformá-lo a seus anseios de Ordem e Progresso.
A implantação de hábitos de trabalho e o cultivo da operosidade
como valor cívico eram pontos essenciais da “ grande reforma de
costumes” referida por Lourenço Filho. Segundo ele, deveria ajustar os
homens a “novas condições e valores de vida”. O ajustamento dependia
de uma remodelação e reestruturação do aparelho escolar. Mas dependia
também do que Gustavo Lessa entendia como “organização da
resistência” na cidade invadida pela fábrica. Referindo-se a Londres, dizia
ele em 1930:
Há mais de um século, quando a cidade começou a se
industrializar, nela despertaram os mesmos valores que hoje
vemos afluir no Rio de Janeiro: miséria em vasta escala,
superlotação nas habitações, facilidade de contágios em
doenças, degradação dos padrões de moralidade. Mas a raça inglesa soube suscitar então os leaders enérgicos que ela tem
produzido em todas as emergências, não só religiosos como
leigos. Foi-se organizando a resistência, foram-se constituindo
inúmeras sociedades privadas para lutar contra a miséria física
e moral ... Está claro que os males não foram extintos, mas
opôs-se à sua violenta invasão a muralha de aço da solidarie
dade humana. (“O papel dos grupos familiares na educação”)
A remodelação e a reestruturação do sistema escolar era tema
dos debates que se constituíram como objetivo central da ABE, com
vistas à formulação e implementação de uma política nacional de
educação. Mas a organização da resistência nos termos descritos por
Gustavo Lessa era o que definia a atuação da entidade no Rio de
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50 Marta Maria Chagas de Carvalho
Janeiro. Nesta espécie de cruzada moral, inúmeros rituais cívicos,
propostos como iniciativas que expandiam o raio de influência da
escola na moralização dos costumes da cidade, absorviam os intelectuais
engajados na ABE. Cuidados com a formação cívica apareciam a eles
como garantia do “trabalho metódico, adequado, remunerador e salutar”, de “disciplina consciente e voluntária e não apenas automática e
apavorada”, como também da “ordem sem necessidade do emprego da
força e de medidas restritivas ou supressivas da liberdade.” (Solução de
um problema vital) Tais cuidados deveriam necessariamente incorporar- se ao que se preconizava como educação integral, em oposição ao que
se entendia por instrução pura e simples. Amplamente forjada por rituais
de constituição de corpos saudáveis e de mentes e corações
disciplinados, a educação cívica era garantia de que a educação não
viesse a tomar-se fator de desestabilização social. Porque a instrução
pura e simples era, como a entendia Heitor Lyra da Silva, “uma arma”
e, “como toda arma”, “perigosa”. Colocá-la nas mãos da população
requeria medidas que preparassem quem a recebesse “para manejá-la
benfazejamente para si e para os outros” (Missão Educacional).
Educação do sentimento, dos gestos, do corpo e da mente, assim se
diferenciava a educação integral preconizada da instrução pura e
simples, arma perigosa. Era esse poder disciplinador atribuído à
educação prescrita que fazia com que a questão da organização do
trabalho no país - tema que avulta, como já se viu no primeiro
capítulo, nas avaliações que a geração de 20 faz da República
instituída - dependesse fundamentalmente dos recursos educacionais.
O tema da organização do trabalho é sempre referido no
discurso da ABE como questão incontroversa, cuja estrita nomeação é
dotada da magia da argumentação irrecusável na defesa da importância
da educação. Embora seja por isso difícil precisar o que se entendia
pela formulação, é possível afirmar que significava um conjunto de
dispositivos que distribuem, integram, dinamizam, aparecendo com referenciais diversos. Referida à escola, a expressão designa medidas
de racionalização do trabalho escolar sob o modelo da fábrica, tais
como: tecnificação do ensino, orientação profissional, testes de
aptidões, rapidez, precisão, maximização dos resultados escolares etc.
Designa também o funcionamento da escola na hierarquização dos
papéis sociais, formando elites condutores e povo produtivo. Referida
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ao país, a expressão designa um conjunto de dispositivos de integração
nacional (como os propostos pelo Club dos Bandeirantes do Brasil) e de
distribuição ordenada das populações por diversas atividades produtivas.
Referida às populações pobres, aparece como disciplinamento, pela
distribuição regrada das populações em espaços adequados, pela
regulamentação controlada do lazer e do trabalho. Nesta acepção,
englobava medidas destinadas a atenuar conflitos de classe e a aumentar a
produtividade do trabalhador, envolvendo questões de saúde e de moral,
com o objetivo de adequar a vida cotidiana do operário às exigências do trabalho industrial na ordem capitalista.
O tema deve sua circulação na ABE à predominância de
engenheiros. Defendendo medidas de organização do trabalho de que
seriam os executores, eles se auto-representavam como “desejosos do
bem moral e material dos seus auxiliares” (leia-se “operários”, mas, ao
mesmo tempo, “cuidadosos da finalidade dos empreendimentos
entregues à sua direção.” (O Mundo Contemporâneo e a Engenharia)
O trabalho organizador do engenheiro implicava observação minudente e
apontava para um grande número de providências que extrapolavam a
vida no interior da fábrica. O engenheiro deveria
notar o homem que está fatigado ou mal empregado, para lhe
dar um trabalho menos penoso ou mais conveniente; o homem
que está doente e vai contaminar seus camaradas para dirigi-
lo ao dispensário; cr homem sem teto, e facilitar-lhe a casa decente para sua família; o homem que se quer instruir e,
para tanto lhe dar os meios; o homem que desejasse aproveitar
seus momentos de fo lg a e lhe propiciar um jardim, (ibidem)
Representando seu papel como o de “conduzir homens”, os
engenheiros deveriam ser “os bons irmãos dos jovens operários e, por
isso, velar não só pela higiene do corpo, suas vestes, seus costumes, como pelas funções morais” (ibidem).
A referência ao tema traduziu-se, em alguns casos, na
valorização dos métodos da chamada pedagogia moderna enquanto
possibilidade de realização, no meio escolar, das novas máximas
organizadoras do trabalho industrial. A idéia de que aqueles motodos
permitiriam conseguir melhores resultados com menos esforços, à
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semelhança dessas máximas, determinou o crivo principal de valorização
das inovações pedagógicas: sua maior eficiência comparativamente à chamada pedagogia tradicional. Providências como testes, organização
de classes homogêneas, atendimento aos interesses e habilidades
individuais dos alunos eram, dessa perspectiva, valorizadas. Lourenço
Filho, por exemplo, em artigo de 1929 sobre “A Escola Nova”,
apontava duas tendências principais na pedagogia moderna, referindo-
se a uma delas como “taylorismo na escola”: abrangendo “inovações
ou sistemas que visam dar maior rendimento escolar do ponto de vista
da organização das classes ou cursos”, essa tendência encararia a
escola “como a produção das modernas indústrias, que deve ser rápida,
precisa, com perdas mínimas de energia e pessoal”. As propostas
pedagógicas de Claparède, por exemplo, eram interpretadas como
reflexo da “necessidade de classificação menos empírica dos alunos”,
decorrente da dificuldade que no ensino escolar comum representava a
“heterogeneidade da classe entregue a um só professor”. Para
Claparède, segundo Lourenço Filho, não seria apenas necessário respeitar a diferenciação quantitativa: “O menino não é só mais capaz
ou menos capaz em relação à idade. Cada criança apresenta capacidades
específica: é observadora ou reflexiva; intelectual ou técnica”. Disto
decorreria a “correspondente necessidade de especialização do trabalho
e conseqüente classificação escolar”. A escola sob medida de Claparède
seria a expressão desta necessidade, propondo-se não somente a
hierarquizar, mas a diferençar também.A concepção da escola como meio a ser organizado por máximas
similares às da racionalização do trabalho industrial não significou
apenas valorização de providências do tipo aludido. Tal concepção
também funcionou como crivo de avaliação do alcance pedagógico de
propostas mais globais que visavam redefinir o processo mesmo do
ensino, a natureza da relação professor-aluno. Valorizando a liberdade
do educando, Barbosa de Oliveira, por exemplo, prescrevia-lhe
limites, de modo que ela não resultasse em “ um esforço inútil e um
tempo perdido”. Para ele, o trabalho infantil nas escolas deveria ser
organizado de modo a “ guiar a liberdade para que o máximo de
frutos” fosse “obtido com um mínimo de tempo e esforço perdidos .” (A
Unificação da Escola Normal) Isto significava não somente prescrever
normas de organização das atividades escolares, mas também postular
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proposta, como fez a Segunda Conferência, tentando preservar a
autonomia estadual e aprovando a realização de um acordo entre os
governos estaduais e Federal que assentasse um “ plano de educação moral teórica e prática em todas as escolas normais brasileiras,
integrando as mesmas finalidades humanas e nacionais.” (Anais da
Segunda Conferência Nacional de Educação) O que importava era
assegurar que “um espirito comum, um estado de ânimo acionar’’''
impregnasse, pela ação desses “organizadores da alma popular ”, o
trabalho escolar.
O tema da organização do trabalho condensava também
expectativas de fixação do homem ao campo, “organizando” desta forma
as populações. Nesta acepção, a máxima “O homem certo no lugar certo”
significava não a adequação do trabalhador a uma determinada ocupação
industrial, mas expectativas quanto a uma distribuição “racional” da
população pelas atividades rurais e urbanas. Assim pensada, a questão
traduzia-se na valorização da chamada Escola Regional. Nesta acepção, o
tema tinha conotações românticas de idealização utópica da vida
campestre. Imagens da honradez, da simplicidade, da saúde figuravam
virtudes rurais, por oposição idílica a representações da cidade como
vício, corrupção e insalubridade. A escola rural era uma espécie de
antídoto largamente receitado contra o “congestionamento das cidades”
e “o pauperismo urbano com seus perniciosos efeitos.” (A Educação
Rural) Abrir-se ao influxo da vida campestre era o que se propunha
como recurso disciplinar da escola rural. Quanto à escola adaptada ao
meio urbano, era comum a expectativa de que viesse “combater, ou
pelo menos atenuar em seus efeitos morais, essa vida tumultuosa,
corrosiva, ávida de prazeres”, com os recursos oferecidos pela
moderna pedagogia (A Escola Ativa nos Centros Urbanos).
A regionalização como instrumento de alteração que Fernando
Magalhães entendia por “distribuição humana desordenada” não poderia,
entretanto, comprometer a função homogeneizadora da escola. No
programa nacionalista a ela reservado, era necessário conciliar vantagens
da regionalização com o que se propunha como função essencial da
escola primária: “a homogeneização necessária dos indivíduos como
membros de uma comunhão nacionaP\ na formulação de Lourenço
Filho. A escola de civismo deveria garantir a unidade política do país
inculcando “em todas as crianças brasileiras idéias e sentimentos
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A Escola e a República e Outros Ensaios 55
necessários à própria existência da nacionalidade” (A Uniformização
do Ensino no Brasil).
A nostalgia romântica da sociedade agrária que perpassa o
discurso dos apologistas da escola rural não era partilhada por todos os
organizadores da ABE. Para o grupo de Vicente Licínio Cardoso e
Ferdinando Labouriau, a cidade não se apresentava como signo da
dissolução, mas, ao contrário, como emblema do Progresso. Foi,
entretanto, aquela nostalgia que imprimiu sua marca na atuação da ABE
na cidade do Rio de Janeiro. Essa nostalgia não deve iludir: ao formular-
se como valorização de determinados comportamentos, funcionava como
proposta de disciplinamento adequada ao mundo da fábrica. Idealizações
utópicas das virtudes moralizadoras da vida campestre equivalem, desta
perspectiva, aos signos futuristas de dinamismo com que se enaltecia o
modo de vida moderno de que a cidade é o palco. O bucolismo era
encenado articulando projeto de disciplinamento das populações urbanas
sob o "molde das virtudes “higiênicas” de que o trabalhador rural
idealizado era o protótipo. Asseio, Temperança, Laboriosidade - virtudes
higiênicas que, nessas idealizações, somente a vida rural poderia propiciar
- eram virtudes capazes de produzir corpos e mentes disciplinados no
mundo da fábrica. Equivaliam, como se disse, aos signos modemizadores
com que um novo ritmo de vida era proposto, ritmo de que a máquina
era a metáfora e o modelo a regular o cotidiano das populações urbanas.
A atuação da ABE na cidade do Rio de Janeiro modulou-se
principalmente como resistência moralizadora ao mal urbano. Pregações,
festas pedagógicas, comemorações cívicas, controle do lazer por
procedimentos vários, constituição de Círculos de Pais destinados a
ampliar o raio de influência da escola, medidas de proteção à Infância
- tais iniciativas tinham com o denominador comum o empenho na
moralização dos costumes citadinos. A elas somente se contrapunham
as promovidas pela Seção do Ensino Superior do Departamento
carioca da AB E - seção em que se aglutinava o grupo de Labouriau -
em que a tônica era a promoção de cursos e conferências de alta
cultura, numa tentativa de demonstração prática da viabilidade do
ensino universitário no país. Mas a presença de expressivo número de
militantes católicos na Associação deu à entidade o caráter de
resistência moral referido. É por isso interessante reter a especificidade
do caráter que esse grupo dava à sua atuação.
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56 Marta Maria Chagas de Carvalho
Em julho de 1929, Fernando Magalhães, líder do grupo católico
sediado na ABE carioca, submete ao Conselho Diretor da Associação
um projeto de organização social cometido por D. Amélia de Rezende
Martins, a ser desenvolvido como A ção Social Brasileira. A autora já
fizera sentir sua presença'no círculo da ABE propondo, em 1927, na
Primeira Conferência Nacional de Educação, que o ensino religioso
fundado na doutrina católica integrasse o programa das escolas
oficiais. Mais tarde, em 1931, D. Amélia também seria a responsável pela
área social da Liga de Defesa Nacional, a convite do mesmo Fernando Magalhães, então presidente do órgão. D. Amélia, contudo, não integrava
os órgãos diretores da Associação, nem se destacava como sócia atuante.
Submetido à apreciação do Conselho, o projeto foi agraciado
com um voto de apoio à idéia “ generosa e útiP\ A maior parte do
Conselho subscreveu, em agosto de 1929, os estatutos da Ação Social
Brasileira, sociedade civil por eles instituída com sede no Rio de Janeiro,
"tendo por objetivo coordenar e desenvolver toda a Ação Social no
Brasil, aproveitando, auxiliando, ampliando e completando as iniciativas
já existentes, especialmente em beneficio da educação e da assistência”.Mesmo que se tenha em conta uma provável condescendência
do Conselho às boas intenções de D. Amélia, o projeto referido
interessa aqui por hiperbolizar o tipo de redução de cunho moralista
operada na identificação do que é nomeado questão social e na
constituição concomitante de um campo de ação educacional, permitindo
elucidar o significado das práticas da ABE na cidade do Rio de Janeiro.Montado como enumeração e exemplos de ação benemérita, o
documento pretendia estar apresentando uma solução global para a
chamada questão social. Curiosamente, entretanto, justapunha sugestões
de divertimentos “sociais” e “populares”, com os quais D. Amélia, apaziguando sua aflição de observadora preocupada, esperava solucionar
o ócio inoperante do operário e a dissolução dos costumes da alta
sociedade. Desta maneira, a leitura do projeto produz um efeito de
incongruência, na medida em que não obedece a um princípio
hierárquico de ordenação e adequação discursivas: D. Amélia dispõe
seu texto quase que por livre associação, de modo que um enunciado
como “As mães não sabem que divertimentos proporcionar aos
rapazes para afastá-los das mesas de jogo, dos bilhares públicos, do
cabaret, do mau cinema, de tudo mais que não preciso citar, de todas
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as diversões, enfim, verdadeiras escolas do vício...” coexiste ccm
as sarjetas continuam cheias de folhas e papéis que vão entupir os
raios com a primeira chuva”, “é impraticável e esfalfante, a meu ver,
para o professorado daqui, com o nosso clima deprimente, levar
turmas de alunos a visitar fábricas, museus, jardins zoológicos,
observatórios etc” e “Os literatos enchem as nossas livrarias de uma
literatura perversa” ou, ainda, “A Ação Social terá em vista ampliar
sempre os seus fins, cuidará da questão dos prisioneiros, onde o
problema não estiver ainda resolvido, e auxiliará, por exemplo, com seus films, as Academias Superiores de Ciências e Artes e também a
Saúde Pública”.Na dispersão desses objetivos, configura-se uma proliferação
de questões que estariam a exigir solução urgente, segundo D. Amélia.
A organização da Ação Social Brasileira pretendia superar a situação
de impotência em que se encontravam as senhoras beneficentes:
As festa s de caridade caíram em desuso, ninguém
mais se interessa por essas miscelâneas, que dão um trabalho
insano para serem organizadas e estão irremediavelmente
sujeitas à mais severa crítica. Os chás já estão cansando,
muita gente deles se esquiva, e muita gente lamenta não poder
fazer outro tanto. A festa da flor já está muito explorada,
apresentando grandes desvantagens, e vai caindo, pela sua
repetição, na antipatia do público, que se enerva de ter que parar, em seu caminho, e abrir a carteira. As tômbolas e as
quermesses já fizeram seu tempo e hoje só dão resultado em
centros menores. 0 que resta para fazer viver as obras sociais?
Em sua falta de coesão e efeito ridículo, o documento oe D.
Amélia exibe-se à leitura como espécie de rata de um bom tom
discursivo presente nos mecanismos de censura de discursos mais
elaborados. Nestes, a disposição do que se diz prevê adequação à
recepção, impedindo que, nesta, a “verdade” do discurso possa ser
comprometida ao evidenciar-se em sua mera particularidade. Desta
maneira, espécie de lapso discursivo cuja inépcia faz ver o recalcado
de outros discursos mais elaborados, o documento de D. Amélia
permite ler o que se pretendia apto. Por seu caráter de coisa secundária,
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explicita seus limites não só de coisa mal feita e mal conseguida mas,
principalmente, os limites dos vários elementos de que se apropria e
que, articulados sem inépcia, constituíam ajusta medida, o tom certo e
verossímil do bom senso educacional.
Na apresentação que fez do projeto ao Conselho, D. Amélia de
Rezende Martins iniciava atribuindo à Associação Brasileira de Educação
o caráter de organização de finalidade similar à da que pretendia criar:
O empreendimento que apresento ao vosso estudo não é mais uma fundação para cuidar das mesmas coisas d 2 que já
se ocupam algumas das nossas organizações sociais, entre as
quais avulta, com brilho intenso, a A.B.E. (...) As Senhoras
são as mesmas que trabalham na A.B.E., como nas escolas,
como nas demais obras sociais de caráter particular, como em
instituições de caridade ... A A.B.E., que reúne a nata da
nossa intelectualidade, está no seu papel, levantando planos
soberbos, que já se vão realizando aos poucos. (...) Mas o que
prega a Associação Brasileira de Educação tem que ser
realizado em grande escala. E 0 que pretende fazer a Ação
Social Brasileira...
Atribuindo à ABE finalidade similar à do seu projeto - que
pretendia propor meios mais eficientes que chás, quermesses, tômbolas,
rifas, festas da flor e atividades congêneres na prestação de serviços de
benemerência - D. Amélia evidenciava 0 caráter de obra assistencial
que, segundo ela, algumas de suas integrantes emprestavam à Associação.
Suas palavras confirmam impressão, que fica da leitura das atas do
Conselho Diretor, dos Boletins da ABE e da revista Schola, órgão
oficial da Associação em 1930-1931, de que a atuação de um grupo
significativo de mulheres na entidade se fez como ação assistencial.
Prosseguindo sua exposição ao Conselho, D. Amélia encarregava-se de interpretar algumas das iniciativas da Associação,
apresentando uma leitura possível de uma dessas iniciativas: seu
compromisso com a chamada questão social.
A A.B.E., por exemplo, guiará a educação social do
operariado, pelo seu Círculo de Pais: a Ação Social Brasileira
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I
proporcionará um teto aos infelizes que vegetam nas favelas,
em casas de caixas de querosene, cobertas de folhas de zinco,
verdadeiros aglomerados de tocas ignóbeis, torpes espeluncas,
verdadeiros antros de miséria física e moral, onde pululam as
crianças enfezadas e imundas ... O Círculo de Pais, em boa
hora lembrado pela A.B.E. e posto em prática por i/iuitas
escolas do Distrito Federal, acordará nos pais de família seus
deveres para com os filhos, interessá-los-á nos trabalhos
escolares, tornando prestigiados os professores. Poderemos, entretanto, acreditar que o Círculo de Pais proporcionará
ocupação aos filhos para as horas de lazer ? Pais e mães têm
seus dias tomados pelas ocupações que lhes garantem a
subsistência, e o que farão crianças fora do horário escolar?
Será essa a hora, será esse o lugar da Ação Social Brasileira,
que proporcionará diversões inocentes, jogos recreativos e
instrutivos ou brinquedos profissionais, organizando, também,
para os operários, o que lhes distrairá o espírito, afastando-os
das tavernas, uma vez terminadas as horas serviço, o que se
dá ainda com o sol de fora.
Voltada para obra caritativa que objetivava contemplar o
operariado com formas outras de lazer, desviando-o da taverna e
quantos outros espaços perniciosos houvesse, à proposta de D. Amélia
não faltava o interesse de realizar tanta obra com a finalidade de evitar
o que temia como iminente acirramento da questão social : “Não temos
ainda organizada entre nós a questão sociar. Parecia-lhe que, em
outros países, havia “tanta perturbação" porque não teriam acordado
"em tempo para cuidar problema tão temeroso” antes que este se
avolumasse mais. A questão se lhe afigurava como “um formigueiro
que atacamos aqui e ele irrompe mais longe”. Era necessário, por isso,
reunir forças num momento em que “o mundo, convulsionado pelo
espírito de desordem, sente o angustioso desejo de organização”. Era
preciso, dizia enfeixando Mussolini na ordem do discurso, imitá-lo:
"pelo seu prestígio pessoal, diretamente encaminha toda a atividade,
toda a iniciativa italiana”. Por isso, propunha que se cuidasse de
“nossa organização social antes que o descalabro, que nos ameaça,
chegue a ponto de perturbar a nossa vida econômica, como está
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sucedendo em outras terras, com as greves sucessivas”. Era necessário,
por isso, antecipar-se ao “ perigo”: "Se temos levantes gastamos rios de dinheiro para sufocá-los”. Seria “mais fácil prevenir do que remediar
Calculando que a diferença entre a obra caritativa que se
antecipava ao perigo e a repressão armada era, talvez, apenas uma questão
de economia doméstica do país, D. Amélia deslocava abruptamente o
referencial de seu discurso para a enumeração de “descalabros” de
todo tipo: crianças gritando pelas ruas e quebrando vidraças; varredores
que não sabem o seu serviço; crianças da alta sociedade sem diversões
interessantes; moças de boa família que se degradam a cada dia;
adolescentes que se perdem nas mesas de jogo ou na cocaína; operários
que trocam família pela taverna; crianças a dizer inconveniências e a sujar
calçadas; vitrines, postais e manequins, “tudo exposto com o maior
atrevimento”; filmes imorais; artistas perversos; professores que
ganham menos que porteiros; tarjetas postais imorais que vêm da
Espanha; lares desfeitos; escolas sem material didático adequado;
circos de cavalinhos com palhaços repugnantes... Contra tão proliferante
perigo, D. Amélia propunha um rol de medidas do tipo: “publicação de
jogos escolares, instrutivos e recreativos, e de livros de caráter
educativo em geral”; “publicação de revista para a mocidade escolar”;
“museu escolar”; “cinema escolar e instrutivo”; “centro de investigação
pedagógica, científico e artístico”; “diversões para crianças e mocidade,
para operários e suas famílias”; “exercícios de educação física pela
ginástica e jogos esportivos”; “música por artistas, amadores e crianças”; “cursos de artes plásticas”; “comemorações das datas nacionais e festas
tradicionais”; “feira de diversões”; “colônias de férias”, “vida ao ar
livre”; “banhos de mar”; “práticas higiênicas” e “todos os ramos das
obras sociais, educacionais e de assistência”.
Tais prescrições são risíveis, apresentando-se como um
amontoado heteróclito. Não são inocentes: na sua minuciosa
insignificância, evidenciam forte expectativa de disciplinamento
abrangente do cotidiano, na medida em que se exibem como recursos
de controle da ocupação do tempo livre do operário e do ócio da “alta
sociedade”, no espaço da cidade.
Reordenação do espaço e redistribuição do tempo, intervenção
no cotidiano, as receitas de D. Amélia não dispensavam o recurso
sensibilizador, persuasivo,, de gosto naturalista, que constituía o
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A Escola e a República e Outros Ensaios 61
operariado como animalidade e seu modo de vida como sujeira, doença
e vício. Erradicar “formigueiros pululantes”, “torpes espeluncas”, “antros de miséria física e moral”, “tocas ignóbeis”, “infelizes que
vegetam nas favelas”, “crianças enfezadas e imundas” era a missão
que se propunha à beneficência, sem dispensar, evidentemente, o
concurso da escola e da polícia. Operando por justaposição de
referências e por sua livre associação, o discurso de D. Amélia produz
um efeito de expansão do significado dessas imagens para a cidade
como um todo. Prisioneiro do imaginário paturalista, o discurso cpera
uma interpretação em que toda a sociedade é contaminada pela sujeira,
pela doença e pelo vício. Nela, a imoralidade da “alta sociedade”
aparece como sintoma da contaminação da sujeira e da doença operária.
A imoralidade dos costumes citadinos passa a ser, desta maneira, o
ponto de incidência principal do “ projeto de organização sociaF'1de
Amélia de Rezende Martins. Proporcionar bons “divertimentos
populares” fornecendo “exemplos de trabalho, de educação e de
morar e organizar “divertimentos sociais” para os filhos da “alta
sociedade” eram, neste sentido, medidas que se equivaliam na
tentativa de “evitar que rios de dinheiro corram para dominar
levantes e rios de sangue brasileiro encharquem nosso solo”.
Nas iniciativas que marcaram a presença da ABE na cidade do
Rio de Janeiro na década de 20, evidencia-se propósito similar ao de
D. Amélia: o de tornar mais abrangente e eficiente a ação escolar no
disciplinamento do cotidiano- citadino. Tais iniciativas, de que são exemplares as Semanas de Educação dos anos 20, consistiram em
práticas comemorativas diversas que foram montadas como celebração
de condutas ideais na escola, no lar, no trabalho, postulando a
necessidade da Higiene, da Aplicação, do Devotamento, da Ordem.A eficiência pedagógica das comemorações festivas escolares
era, no circulo educacional, a razão de existência de tais práticas, uma
vez que, na esteira de Gustave Le Bon, entendia-se a educação como
mecanismo de fazer passar atos do domínio do consciente para o do
inconsciente.O valor educativo das festas era, por exemplo, enfatizado por
Lourenço Filho que, na qualidade de Diretor da Instrução Pública do
Ceará, determinava em instrução aos professores:
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62 Marta Maria Chagas de Carvalho
As simples comemorações, as festas só valem pelo
caráter educativo de que se revistam, isto é, pela influência
que possam ter sobre a alma infantil, antes de tudo, e pela
influência que possam ter sobre o meio social em que
funcionar a escola.
Educando “ pela representação ou evocação de fa tos dignos de
ser imitados”, as festas forneciam às crianças “oportunidade para gravar,
indelevelmente, muitas lições proveitosas”. Nelas, a criança começaria a “ sentir o efeito da sanção social sobre seus atos, pelos aplausos ou
sinais de enfado e de críticg que percebe: sente que há um público, um
conjunto de pessoas que louvam ou reprovam”. Em muitos casos, as
festas poderiam “ter também uma influência direta sobre o espírito
dos pais". Quando isto não ocorresse, as festas teriam pelo menos
influência indireta sobre eles, “elevando a escola e o papel do professor ”.
Como lições vividas, pelas quais o aluno teria o maior iníeresse,
as comemorações festivas, como as Semanas de Educação, eram incorpo
radas na prática do círculo da ABE ao repertório de medidas inovadoras
com que se pretendia assegurar maior eficiência ao trabalho escolar.
A introdução de inovações pedagógicas não era dissociável
dos padrões de etiqueta que modulavam a vida social da ABE. Freqüentar
ou proferir conferências sobre modernos métodos de ensino, visitar
exposições pedagógicas, participar de palestras nas quais se relatavam
inúmeras viagens ao Exterior, recepcionar visitantes estrangeiros, manter
correspondência com organizações internacionais, promover espetáculos
eram acontecimentos sociais equivalentes aos inúmeros jantares
promovidos pela ABE no Jockey Club Rio ou aos muitos chás dançantes
e sessões festivas incluídos nos programas das Conferências Nacionais.A programação das Semanas de Educação na década de 20
consagrava a cada dia um tipo de celebração: do Mestre, do Lar, do
Trabalho, da Saúde, da Fraternidade e outros arquétipos. Assim, palestras, festas, prêmios, competições, inaugurações, exposições eram
organizados em diversas escolas e locais públicos, cultuando signos de
autoridade e hierarquia e ritualizando, no espetáculo cívico, modelos
de comportamento exemplar. Valores burgueses encenados como
normas disciplinadoras do corpo e do espírito sacralizavam o Lar, a
Escola, o Mestre, o Dever, a Saúde, fazendo dessas essências objetos
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de comemoração programados para dias inteiros. A formação de
hábitos saudáveis era objeto de atenções especiais. A saúde não era somente um dos temas preferidos das preleções cívicas nas festividades,
como também objeto de celebração em inúmeras competições esportivas
oferecidas em espetáculos como modelos exemplares de comportamento.
O esporte e a vida saudável simbolizavam a energia, o vigor, a força, a
operosidade, signos de progresso inscritos no corpo que conhece o
movimento adequado e útil para cada ato. Preceitos de higiene eram
divulgados em palestras e folhetos ou constituídos, ainda, pelo incentivo à organização de Pelotões de Saúde, em preceitos cívicos de
bom comportamento. O escotism o - fusão exemplar de vida saudável
e moralizada - era iniciativa que contava com todo o apoio da A3E .
Dar publicidade a modelos de comportamento estabelecendo-
se padrões que incidiam sobre a vida familiar, as relações de trabalho e
o lazer no cotidiano urbano foi o denominador comum das práticas
comemorativas da ABE carioca. Nelas, como um museu, os objetos
expostos são ações modelares. Seu campo de recorte, a pluralidade dos
comportamentos humanos. A coleção exposta, um conjunto restrito de
comportamentos tipificados. O efeito geral dessas práticas é, assim, a
exposição de ações exemplares de uma norma da excelência.
A exposição de ações exemplares dá-se como programação de
festividades, como roteiros de visitações a objetos oferecidos em
espetáculo. A ação pode ser diretamente exposta - é o caso, por
exemplo, da montagem de espetáculos de ginástica, de que participam
crianças de diversas escolas - ou indiretamente exposta, quando se
tematiza, em discursos dados em espetáculo, o que é agir bem na
escola, no trabalho ou no lar.As ações expostas à visitação nas programações festivas
promovidas pela Associação são construídas como objetos exemplares
pela abstração de todo elemento particularizante que as possa relativizar
enquanto comportamento simplesmente possível e/ou desejável em determinada situação e/ou sob certas condições. Sua referência ao
vivido dá-se como operação de confinamento do cotidiano em espaços
idealizados: o Lar, a Escola, o Trabalho, objetivados e expostos também, no caso, como sínteses ideais das ações que harmonicamente os
constituem. A operação é hábil: o espectador eventualmente cativo dos
modelos oferecidos é instado a localizar-se num desses espaços, i<eles
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encontrando a cena indispensável para o sentido de suas ações.
Constituídos como lugares de inclusão do indivíduo, o Lar, a Escola e
o Trabalho o são, também, pela mesma operação, como instâncias
excludentemente formadoras do social. Produz-se uma representação
do social como idealidade reguladora: lugares sociais têm sua
configuração delineada idealmente, de modo que neles possam ser
situados os indivíduos particulares, como adequação a um tipo, e de
modo que outros lugares - com o a rua ou o botequim, por exem plo -
sejam expurgados na representação que simultaneamente os inclui.
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Anuário do Ensino do Estado de São Paulo. São Paulo: Augusto
Siqueira & Cia, 1918.
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 57/57
PARTE 2
O TERRITÓRIO DE CONSENSO
E A DEMARCAÇÃO DO
PERIGO: LIMITES POLÍTICOS
DA INOVAÇÃO