CARVALHO (2003). A hermenêutica constitucional e os desafios postos aos direitos fundamentais

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140 JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS TROTIGNON, Pierre. Heidegger. Lisboa: Edições 70,1990. VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Trad. de Tércio Sampaio Ferraz Jr. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1979. ZARADER, Marlène. Heideggere as palavras da origem. Lisboa: Instituto Piaget, 1990. A HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL E OS DESAFIOS POSTOS AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Menelick de Carvalho Netto" Em sua palestra, A Crise da Hermenêutica e a Hermenêutica da Crise, o Prof. Lênio Streck enfocou o Di- reito Constitucional como vida. E, realmente, o Direito Cons- titucional é vida; ou é vida ou não é nada. Norberto Bobbio, no seu A Era Dos Direitos, afirma que a história do Direito Constitucional é uma história de promessas não cumpridas. Exatamente por isso, a atual doutrina do Direito é unânime em requerer que o Direito em geral e, em especial, o Direito Constitucional selam uma efetividade viva, isto é, que se tra- duzem-na vivência cotidiana de todos nós. Os direitos funda- mentais, tal como os entendemos hoje, são o resultado de um processo histórico tremendamente complexo, como pude- mos ver na brilhante exposição do Prof. Marcelo Galuppo, O Que São os Direitos Fundamentais, que retoma a traje- tória do labor filosófico, jurídico e político que buscou ontologizá-los fornecendo distintos fundamentos elaborados e reelaborados nesse mesmo e único processo de sua afirma- * Doutor em Filosofia do Direito pela UFMG. Professor dos cursos de Graduação e Pós-Graduação da UFMG.

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CARVALHO NETTO, Menelick de. A Hermenêutica Constitucional e os desafios postos aos direitos fundamentais. In: LEITE SAMPAIO, José Adércio (Org.). Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p.141-161.

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140JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

TROTIGNON, Pierre. Heidegger. Lisboa: Edições 70,1990.

VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Trad. de Tércio Sampaio Ferraz Jr.Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1979.

ZARADER, Marlène. Heideggere as palavras da origem. Lisboa: Instituto Piaget,1990.

A HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL

E OS DESAFIOS POSTOS AOS DIREITOSFUNDAMENTAIS

Menelick de Carvalho Netto"

Em sua palestra, A Crise da Hermenêutica e a

Hermenêutica da Crise, o Prof. Lênio Streck enfocou o Di-

reito Constitucional como vida. E, realmente, o Direito Cons-titucional é vida; ou é vida ou não é nada. Norberto Bobbio,

no seu A Era Dos Direitos, afirma que a história do DireitoConstitucional é uma história de promessas não cumpridas.Exatamente por isso, a atual doutrina do Direito é unânimeem requerer que o Direito em geral e, em especial, o DireitoConstitucional selam uma efetividade viva, isto é, que se tra-duzem-na vivência cotidiana de todos nós. Os direitos funda-mentais, tal como os entendemos hoje, são o resultado de umprocesso histórico tremendamente complexo, como pude-mos ver na brilhante exposição do Prof. Marcelo Galuppo,O Que São os Direitos Fundamentais, que retoma a traje-

tória do labor filosófico, jurídico e político que buscouontologizá-los fornecendo distintos fundamentos elaboradose reelaborados nesse mesmo e único processo de sua afirma-

* Doutor em Filosofia do Direito pela UFMG. Professor dos cursos de Graduaçãoe Pós-Graduação da UFMG.

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ção e negação histórica. Fundamentos que se acreditaramdefinitivos e que, hoje, revelam-se frágeis, requerendo queos compreendamos como conquistas históricas discursivasque, embora estruturalmente inafastáveisdo processo-dereprodução diuturna da sociedade moderna, por si sós, nãosão definitivas, ao contrário, encontram-se, elas próprias,em permanente risco de serem manipuladas e abusadas.

Vimos a fragilidade da fundamentação que, em nossaépoca, podemos plausivelmente oferecer à noção de direi-tos fundamentais e, claramente, prefiro essa expressão àoutra, direitos humanos, por entendê-los conquistas históri-cas, aquisições evolutivas socialmente criadas, direitosinstitucionalizados em uma sociedade improvável, comple-xa. Na modernidade, vivemos em uma sociedade instável,uma sociedade que se alimenta de sua própria instabilidade,uma sociedade absolutamente implausível. O antropólogoLevi Strauss, na segunda década do século XX, já questi-onava a pretensa superioridade dessa sociedade, colocandoem xeque a idéia mesma de desenvolvimento, ao afirmarque ela produz infelicidades não somente para os seus mem-bros, mas a sua móvel estrutura relacional predatória esten-de-se também ao seu entorno ambiental, pois é sempre in-satisfeita, inadequada, e daí a sua permanente mutabilidade.Levi Strauss contrapunha essa nossa sóciedade moderna àsociedade dita primitiva, às sociedades tribais. E foi assimque, ao estudar tribos indígenas amazônicas, Levi Straussquestionou a postura tradicionalmente assumida pelos an-tropólogos diante das sociedades tribais, pois, ao estudar oque eles próprios denominavam "sociedades primitivas", pres-supunham a inferioridade tanto da mente daquelas pessoasquanto daquela cultura, bem como, é claro, a superioridadede sua própria mente e de sua cultura ocidental, tornando-se absolutamente incapazes de apreender o alto grau decomplexidade sempre presente na mente humana e nas dis-tintas experiências culturais. Eles não viam, por exemplo,que, ao contrário da nossa sociedade, aquelas eram socie-dades bem adaptadas ao entorno, capazes de produzir

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estabilidade e inclusão sociais e, dessa sorte, a felicidadede seus membros. Em qual sentido nós poderíamos legiti-mamente nos considerar uma sociedade superior, desen-volvida? Na capacidade de produzir rádios de pilha, com-putadores, produtos de consumo de toda a ordem? E qualseria o nosso desenvolvimento em termos do que chama-mos inclusão social? Uma sociedade indígena, diz LeviStrauss, em termos da integração social de seus membros,possibilita algo muito maior, muito mais desenvolvido - a sa-tisfação no reconhecimento do papel social desempenhado porcada um na comunidade. Vivemos em uma sociedade da insa-tisfação, pois se é possível, por um lado, descrevera socieda-de moderna, e por outro, a única certeza que podemos ter emrelação ao seu futuro, cientificamente, éo fato de ela se tornarcada vez mais complexa e sempre mais rapidamente.

Trata-se de um tipo de sociedade que requer um graurecorrentemente mais alto de complexidade para a sua pró-pria reprodução, uma sociedade, portanto, insatisfeita con-sigo mesma. Desde o seu nascimento, uma sociedade que-se diferenciai aue se especializa para poder se reproduzirnum grau de complexidade tão grande que exigiu a inven-ção dos direitos humanos, dos direitos fundamentais; re-quereu á ã--firmação , a um só tempo , paradoxal -e est-rutúrál-mente móvel, do reconhecimento recíproco da igualdade eda liberdade de todos os seus membros, ou seja , tornou ,plausível e exigiu a idéia de que somos, pela primeira vez nahistória, uma sociedade na qual nos reconhecemos comopessoas iguais , porque ao mesmo tempo livres . Livres parasermos i crentes, uma vez que somos diferentes, plurais, \'-em dotes e potencialidades desde o nascimento e nos reco-nhecemos o direito de sermos diferentes e de exercermosas nossas diferenças, _ou seja, de sermos livres e de exer-cermos nossas liberdades. E, ainda assim, ou melhor, pre-cisamente or õ,-nos res citamos como iguais.

Essa, igualdade na diferença é a grande tensão inova-dora que a sociedade moderna inaugura em nossos camposde interesse, o do Direito e o da política, em razão de seu

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próprio processo interno de diferenciação. Neste processocolocou-se a exigência de uma tal ordem de complexidadeque a religião não mais pôde continuara ser vista como umelemento unitario e necessariamente compartilhado por ó-doç oc membros da comunidade como basicamente constitutivoda coesão social, como nas sociedades tradicionais, tornan-do-se agora apenas direito individual de cada um dos seüs`integrantes considerados de forma plural e atomística.

A política e o Direito são vivencialmente sentidos e teo-ricamente reconstruídos como problemas seculares, a seremresolvidos, nos espaços públicos, secularmente por nós, ho-

{1 c. e- mens como cidadãos, para que, ao mesmo tempo, pudésse-mos ser sujeitos de Direito, protegendo assim, publicamente,o espaço privado de cada um. Adota-se, como óbvio, o su-posto, absolutamente improvável, segundo o qual, com vistaà produção e à reprodução da sociedade, teríamos de noscolocar de acordo sobre tudo em todos os momentos. Ora, a

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produção e a reprodução dessa sociedade altamente cõmplêjtornou-se possíve l não pela nossa efetiva e permanente

participação nas c,le-eisões públicas , mas, ao contrário, comodemonstra Niklas Luhmann, por um processo interno de- di-ferenciação e esp lão funcionais-da sociedade em di-versos subsistemas sociais. Vivemos em uma sociedade detal ordem complexa que ela própria criou monstros _^ara ga-rantir a sua produção e reprodução . Uma sociedade que fun-ciona graças a esses monstros inventados na mesma épocaem que a noção de direitos naturais passa a ser rS ou ida_pela exigência lógico-racional do reconhecimento recíprocode que somos universalmente livres e iguais mor nascimento.São o mercado , o Estado , o Direito , enfim , toda uma sériede subsistemas esnecializgdos e funcionalmente diferencia-dos que garantem a reprodução social pelas nossas costas.Sistemas que podem fazer com que os sentidos que preten-demos dar a determinadas ações venham a ser, na prática,invertidos do avesso . Corremos esse risco a todo momento.

Aqui eu_gostariá de começar a tratar explicitamente daquestão çlós desafios postos hoje aos direitos fundamentais.

O primeiro e grande desafio , a meu ver, é sabermos que^se,por um lado, os direitos fundamentais promovem a inclu-são social , por outro e a um só tempo, produzem exclusõesfundamentais. A qual uer afirma ão de direitos correspondeuma dëlimitação , ou seja, corresponde ao achamento docorpo daqueles titulados a esses direitos , à demarcação docampo inicialmente invisível dos excluídos de tais ird`eitos-A nossa história constitucional não somente comprova isso,cóma-ata que repostulemos auestão da identi a

'constitucionaLcomo um processo permanente em que severi ica uma constante tensão extremamente rica e comple-xa entre a inclusão e a exclusão e que, ao dar visibilidade àexclusão, permite a organização e a luta pela conquista deconcepções cada vez mais complexas e articuladas da afir-mação constitucional da igualdade e _da liberdade de todos.Este é um desafio à compreensão dos direitos fundamen-tais ; tomá-los como algo permanentemente aberto, ver aprópria Constituição formal como um processo permanen-te, e portanto mutável , de afirmação da cidadania.

-A ameaça aos direitos fundamentais por inter-médio das leis de combate ao terror - a inglesa da décadade oitenta e a norte-americana bem mais recente - é umadas questões centrais do debate constitucional de nossosdias. E a comparação dessas leis nas distintas tradições cons-titucionais dos dois países recoloca a necessidade de refle-tirmos acerca da importância que a formalidade constituci-onal deve assumir ao lado e concomitantemente com a exi-gência de materialidade, de concretude, dos direitos consti-tucionais na vida cotidiana de todos nós. Ou seja, tambémaqui coloca-se mais uma vez a imperatividade de umareabord_ãgem teorética que supere o enfoque dicotômicosimplista e antinômico típico da_ ótica moderna clássica -Constituição formal x Constituição material Já tivemos ocasiãode oferecer üm enfoqüé mais complexo das dicotomias ci-ência e filosofia, público e privado, e agora também temosde ver a relação de complementaridade e de interdependênciarecíproca que entre si guardam esses dois opostos, forma e

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matéria, em termos constitucionais. Precisamos pensar essasrelações de forma mais complexa do que a redução ao anta-gonismo procedida pela modernidade desde o seu início atéa década de 1960/1970. A concepção material de Consti-tuição como realidade viva, concreta, orgânica de cada povo,como propõe Carl Schmitt, por exemplo, contra a visão clássica,universal e formal de Constituição do período constitucionalanterior, o do paradigma do Estado de Direito, foi a tônicavigente sob o paradigma do Estado Social, ao se redescobrir,tecer louvores e erigir à condição modelar a Constituiçãomaterial e vivencial britânica, como se a formalidade e, conse-qüentemente, a universalidade abstrata a ela vinculada nãotivessem a menor relevância.

Como bem salientou em sua palestra o Prof. MarceloGaluppo, por um lado, os direitos humanos em abstrato nadasignificam, pois precisam da densificação da ética e daefetividade que tanto o Direito quanto a política precisamlhes emprestar. O Direito, por intermédio da positivação des-ses direitos em normas gerais e abstratas, transforma-os emdireitos fundamentais e permite que a política, mediante asua forma moderna do Estado, com todo o seu aparato bu-rocrático-funcional, venha emprestar-lhes coercibilidade efetivaem nossa vida cotidiana. A política e o Direito, por outrolado, na modernidade, precisam do insumo de legitimidadeque somente os direitos fundamentais podem lhes fornecer.

Assim, se, enfocadas por determinado ângulo são asmodernas exigências morais, abstratas e universais, da igual-dade e da liberdade de todos que ganham maior densidade econcretude ao serem incorporadas tanto )eios usos, costu-mes e tradiões da experiência vivida dos distintos povos, ou-seja, pela eticidade, quanto pelos diversos ordenamentos ju

- rídicos modernos, ou seja, pelo Direito, pela legalidade, quantoainda pela política, ganhando a etetrvi a e a imperatívidadeestatal. Se enfoeac^a^ e outro ângulo, podemos ver que sãoessas exigências, agora já transformadas em direitos funda-.mentais-por sua incorporarão ao Direito, que fornecem osinsumos básicos de legitimidade de credibilidade institucional,

indis ensáveis ao bom funcionamento do Direito e da políti-

lex _ --^_cai °mp -á-sociedade moderna. mais enriquecidos peloNeste passo, podemos retornar, já aquele da

percurso trilhado até aqui, ao nosso problema inicial, aes de Constituição formal e de^ õcepçcontraposição entre as con

Constituição material, tomadas como idéias antagônicas.De um lado, a concepção formal, universal, de Cons-

tituição como uma constituição ideal,existência de direitossonha da pelo

liberalismo, declarando ade igualdade e de liberdade inatos a todos e estabelecendoas bases da organização política de modo a transformá-la,

ameaça ao livre exercício dessesestruturalmente, de uma

garantia do seu livre curso na sociedade Vdireitos em uma g que deveria ',Y ^'civil. A Constituição que deveria ser perfeita, Jy^funcionar como o mecanismo de um relógio. O único pro-

no entanto, é que, na vida real, as constituições factíveisblema,eram imperfeitas, não eliminavam problemas, ao contrário,

tamento jurídico oucriavam problemas a exigirem ou tracuidado político. Os homens daquele período, no entanto,teimavam em crer na possibilidade de uma Constituição ra-cional, perfeita, capaz de permitir à sociedade "funcionarcomo um relógio" por si só. Acreditavam, em sua inocênciahistórica, ser possível a Constituição perfeita que traduziriamecanicamente a verdade universal e evidente dos direitosracionais, inegáveis a qualquer ser humano, reconhecendo-os, internalizando-os e garantindo-os nas próprias bases daorganização política. O problema residiria apenas em que

ela ainda não havia sido feita.Na outra vertente contraposta, tão antiga quanto a pró-

pria idéia moderna de Constituição, tipicamente caracterís-tica, no entanto, do constitucionalismo social do século XX,encontramos a concepção material de Constituição. Carl Schmitt,

traduz claramente as cren-nstituição,sua Teoria da onaças de sua época em conceitos ao atacar a idéia de universa- ^^^lidade da Constituição, de uma constituição ideal, de direi-tos humanos universais. Segundo Schmitt, abstrações, semdúvida, úteis à sociedade burguesa politicamente censitária

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e excludente do século XIX que visava neutralizar o risco doEstado e garantir, através de poucas leis gerais e abstratas, olivre desenvolvimento das propriedades de cada um. Idéiasque agora, para Schmitt, revelam-se completamente inúteise visivelmente desviantes tendo em vista a sociedade de massasque emerge no final da segunda década do século XX. 0sufrágio universal requer que a política seja vista como aarte de manipular as massas mediante a construção de umaidentidade constitucional, de uma comunhão política que apenasum Estado forte, unitário, sem divisões partidárias, de prefe-rência capaz de ser encarnado na pessoa de um líder, de umFüher, poderia realizar. Um Estado que promete constitucio-nalmente o resgate dos desvalidos, o asseguramento a todosdas condições materiais mínimas ao exercício consciente dacidadania, mediante a prestação de um sem-número de ser-viços estatais, enfocados como direitos sociais, bem como aproteção legal e institucional daquele que se encontrar no ladomaterialmente mais frágil das várias relações. Constituição,liberdade e igualdade são vistos agora como conceitos de umateologia secularizada voltados à implementação de um Estadoforte capaz de responder, pelo menos politcámente aos imensosdesafios postos aquela sociedade, criando e mantendo umacomunidade política a partir de interesses plurais, diversos e,sem dúvida, no mais das vezes, antagônicos.

Assim é que afirmam que direitos universais não exis-tem; o que há são direitos nacionalmente reconhecidos quedependem da tradição na qual se inserem. Pois, é claro, oreconhecimento desses direitos, e não de outros, atende àrealização de interesses construídos como nacionais nos termosdos grupos que dominam aquelas nações. Schmitt buscou,desse modo, ao retomar elementos tipicamente pré-moder-nos da sociedade indiferenciada, levar às últimas conseqü-ências o projeto moderno de adequação de meios à conse-cução de fins no campo da política e do Direito Constituci-onal, ou seja, responder aos desafios desagregadores com oquais defrontou-se a organização política e jurídica moder-na no início do século XX.

Como pano de fundo da pré-compreensão da comuni-cação social cada vez mais difundido e preponderante a par-tir dos anos finais da Primeira Guerra, i nzli e-pradigmado Constitucionalismo social ou d siado social , pressa-

mente acolhido nas Constituições do p ' la um pro-cesso difuso de doloroso aprendizado social. Liberdade eigualdade, como direitos fundamentais, não mais podem seréntendrdas em seu sentido exclusivamente formal. Par__

rem plausíveis requerem, agora, a sua materialização em di-reitos que constitucional e legalmente protejam, como vi-mos, o lado mais fraco das varias relações e que viabilizempolíticas públicas inclusivas (acesso à saúde, à educação, àcultura, a tentativa de controle estatal e jura ico dá c omiabuscando evitar as Gris . cíclicas do capitalismo, etc.). Oconstitucionalismo clássico, ao desconhecer as diferençasmateriais, as desigualdades efetivamente existentes entre osindivíduos, a título de buscar proteger-lhe a liberdade, afir-mou uma compreensão exclusivamente formal e intimamen-te associada à propriedade privada da igualdade e da liberda-de, que possibilitou a maior exploração do homem pelo ho-mem de que se tem notícia na história. Um acúmulo de capitalsem precedentes nas mãos de pouquíssimos, bem como umamiséria igualmente nunca antes vista de forma tão difundida.As lutas sociais por igualdade e liberdade materiais, a partir demeados do século XIX, revelam o aprendizado ideológico e,sobretudo, vivencial das pessoas do período que se defronta-ram diretamente com o lado mais perverso dessas conquistasevolutivas. Como resultado dessas lutas, a massa de desva-lidos é agora politicamente incluída, alcançando a conquistado sufrágio universal. O desafio que se colocava ao Estadosocial em termos de direitos fundamentais era, sem dúvidaalguma, imenso, transformar aquela massa de desvalidos, antesvista corno sociedade civil, em cidadãos.

Estados fortes, dotados de Executivos poderosos, ca-Pazes de realizar políticas públicas de inclusão com rapideze agilidade, eram uma necessidade política. Pudemos assistirno período entre-guerras a confirmação da tese schmittiniana

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da derrocada dos regimes de democracia representativa em

todo o mundo e, mesmo naqueles países que a mantiveram,

a ascensão ao poder de líderes carismáticos como Roosevelt

ou Churchil. A identidade entre o govern^rP^e oe^oyernado,

o que definia a democracia para Schmitt parecia realmente

só poder ser alcançada nas ditaduras A urgente mat. rializáção

dos direitos, como condição prévia à cidadania parecia re-

querer e recomendar a supressão da formalidade, dos pro-

cessos de participação. Afinal de contas, o que a massa ou

seus representantes pluralmente configurados teriam a dizer

em assuntos tecnicamente intrincados e complexos? A cons-

trução da identidade constitucional poderia se dar de formarápida e eficaz por intermédio da figura de um Führer querecorresse a meios simbólicos e icônicos adequados a lidar

com a massa emocionalmente e não por meio da razão. A

comunhão em torno de alguns valores tradicionais concretos

define os que efetivamente deveriam constituir a nação con-

tra aqueles que, embora formalmente pertencessem àquela

nacionalida e, por materialmente não -comungarem esses

valores, seriam, na verdade, seus inimigos. A visão materia-

liz á á á poTticã como especificada pèl^ relação amigo versusinimigo, naturalizan as astantas nações em um supostoNomos da Terra, continua a perdurar após a Segunda Gu er-ra Mundial e a alimentar Guerra ria que se seguiu.

Com al ncia do Estado social, capaz de produzir, nomáximo, clien a-e-nunca-e-idatIã-o como prometera, tendo

/ em sua base toda uma crítica aos excessos da racionalidadeinstrumental moderna, com, portanto, o acolhimento de um

amovo conceito de ciência, como saber que se sabe limitado, ,ecom o advento da questão ambiental e dá queda do_ muro deBerlim, novos desafios são postos aos direitos fundamentais.

Todos esses eventos provocam, outra vez, um dramáti-co processo de aprendizado geracional e difuso. O grau decomplexidade que a doutrina constitucional passa a ter de in-corporar para responder aos novos desafios é imenso. A pró-pria garantia política de participação na polis também é umaexclusão de muitos da própria polis, podendo atingir graus

racionalmente insustentáveis como o nazismo, o fascismo eo comunismo, como estados burocráticos de massas demons-traram. Forma e matéria não podem ser enfocados como em,uma relação de contradi ão. Se são dimensões distintas emesmo contrárias, elas não são contraditórias entre si, mas

complementares, co-originárias egüi rp imordiais. roces-

so histórico de aprendizado na recorrente busca de afirma-ção dos direitos fundamentais ressalta a importância dos pa-nos de fundo de silêncio por nós compartilhados em que seassenta a nossa compreensão do mundo, ou seja,_os nossosconceitos fundam-se em preconceitos. E a radical historicidade

os rehumana, portanto, que n

Assim é que

_de ^arádigma.

ceito de parada ma inça r or , na

ciência, a compreensaoM ss1 idade humana de um

conhecimento absoluto, de um saber total, perfeito e eterno,precisamente em razão do nosso inafastável e constitutivoenraizamento social, histórico-cultural. O fato de que - eaqui retomo a palestra do Prof. Lênio Streck - nos encon-tramos mergulhados na vida e de que é nela que nos consti-tuímos, nos formamos, faz com que sejamos condicionadosa limites tipicamente humanos. Só podemos observar algocom os olhos que temos, marcados socialmente e historica-mente datados, e não com supostos olhos divinos e atemporais.Nossos olhos são sempre os olhos de uma sociedade deter-minada, de determinada época. Nas conferências hoje pro-feridas e que tive a oportunidade de ouvir, há, sem dúvida,uma linha comum a todas elas, uma linha de visão do mun-do, de compreensão deste mundo que certamente não éapenas minha, apenas do Prof. Streck ou do Prof. Galuppo,é também do acúmulo de vivências que herdamos e quenos constitui, bem como da sociedade que está se vendo oubuscando se ver, desses monstros sistêmicos que de algu-ma forma estão falando por nosso intemédio.

Há algo mais complexo que só podemos intuitivamen-te traduzir e que possibilita que nos comuniquemos, atéporque essa comunicação se assenta nesse pano de fundocompartilhado de uma série de sentidos naturalizados, não

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discutidos racionalmente por nós, mas inconscientementeassentados em nossas práticas sociais cotidianas; pré-com-preensões que limitam a nossa possibilidade de ver sem quesaibamos. Ou melhor, hoje sabemos, em razão do próprioconceito de paradigma, compreendido como essa grade se-letiva que, queiramos ou não, molda o nosso olhar sobrenós mesmos e o mundo, a determinar o horizonte social depossibilidades de atribuição de sentido, de significação, anós mesmos e ao mundo que nos circunda.

Qualquer saber, para ser considerado saber científico,tem atualmente de levar em consideração esse limite huma-no do conhecimento ou, simplesmente, não é ciência o quese está a fazer. Como condição do cone cimento temosentão precisamente a exigência de saber que nosso conhe-cimento e limitado, o que requer fundamentação explicitadae, assim, que esse saber se apresente abertamente em suaprecarie a e, oferecendo-se à permanente op ssibilidadã dérefutação, ou seja, ou é um saber refutável e aQrimorávelou não é conhecimento. A dogmática jurídica, portanto, elaprópria só é admissível hoje como ciência do direito se nãofor exatamente dogmática, há que ser fundamentada, aber-ta e se s b li it la er m a a pe a permanente possibilidade-de re-futação de suas premissas e afirmações.

Nesse sentido, é claro que a visão schmittiniana dofechamento da identidade constitucional, da idéia orgânicae concreta d privo como um dado histórico nat ado eontologizado, é u _ a e=aãe-uma- solução. No pro-cesso de nstrução da identidade constitucional, a contraposiçãoao outro, à ãTt-er a , ' momen o necessário e, sem dú-vida, imprescindível, tal como o é no processo de formaçãoda identidade individual. No entanto, não é suficiente. Oespelho do outro é necessário para que eu me afirme comoindivíduo; preciso de que o outro me reconheça como umigual; o risco, no entanto, é o da armadilha da relação entreo senhor e o escravo tão bem descrito por Hegel. Eu preci-so exatamente do espelho do outro para me afirmar comoindivíduo e, uma vez que preciso e busco desesperadamen-

te esse reconhecimento, tendo a alcançá-lo da forma maisfácil, apossando-me do outro, por meio de um processo

de reificação, de escravização, mediante o qual consigo oreconhecimento do outro exatamente por ser mais forte. Aliás

essa é a história da humanidade, não é? Quando se tornoupossível, quando a riqueza socialmente produzida possibilitouque alguns deixassem de trabalhar, a escravidão, de imediato,

surgiu. No entanto, essa relação entre o senhor e o escravoé tremendamente perversa, alerta-nos Hegel. É uma rela-ção alienante para ambos, pois, por um lado, o escravo nãoé o senhor de seu trabalho, no sentido de determinar asfinalidades que vai buscar realizar, é o senhor, que as deter-mina para o escravo; por outro lado, ao ficar livre de ter de

trabalhar, do lado duro da natureza, para se apropriar ape-nas do lado macio dela, dos frutos do trabalho alheio, nadaaprende com o processo de fazer realizado apenas pelo es-

cravo, tornando-se, assim, ao cabo, escravo do escravo, ouseja, inteiramente dependente do trabalho deste último. Oescravo aprende a fazer, ele sabe fazer, o senhor não sabefazer, aliás, por isso é que estamos aqui, não é? Nós, quegozamos deste lado macio da natureza, ainda hoje sofremosde outro modo, diz Hegel, o calvário do estudo, do esforço

intelectual para a apreensão daquilo que foi produzido, de umsaber que foi produzido. Quando, por exemplo, este prédiofoi construído, as pessoas que efetivamente estiveram aqui,que o ergueram com o seu trabalho braçal, nunca mais entra-

ram aqui, não estão aqui assistindo a esta conferência. Dealguma forma, no entanto, geraram um saber ou, para dizerem termos mais atuais, uma linguagem, um plano de comuni-cação do qual eles mesmos se encontravam excluídos.

O reconhecimento alcançado pela vitória e a dominaçãodo outro transforma-o em coisa dominada e, de imediato, oreconhecimento obtido perde qualquer valor, posto que equi-valente ao reconhecimento que se busca por intermédio daposse das coisas, da demonstração externa de status. O

vazio interior permanece e se agrava no interior do sujeito,levando-a desejar possuir mais e mais coisas, e, assim, nunca

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será preenchido, o seu objeto do desejo nunca poderá sersatisfeito pela apropriação das coisas. Somente r conhecen-do os outros como iguais, como pessoas iguais a mim possoreconhecera mim mesmo como sujeito de um processo devida individual que só se dá na interação complexa da vidãcoletiva e aprender com esse processo, tornando-me sujeitoportador de uma identidade própria. Como carência, airic mnletiide do.£u_' constitucional, tal como_ oéprre conoscono nível individual, só pode ser superada no âmbito de umacomunidade de cidadãos que se assume como um projetoinclusivo, em _que essa carência seja transformada na dispo-- ----mbilidade p-ara_aprendercom as próprias vivências e na aberturapára-sempre novas inclusões. A identidade constitucional nãopode se fechar, a não ser ao preço de trair o próprioconstitucionalismo como demonstra Michel Rosenfeld.

O constitucionalismo, ao lançar na história a afirmaçãoimplausível de que somos e devemos ser uma comunidade dehomens, mulheres e crianças livres e iguais, lançou uma ten-são constitutiva à sociedade moderna que sempre cem á à1ut^por-noras inclusões, pois toda inclusão é também umanova exclusão. E os direitos ^is só Doderão cón`ti

no-táis se a própria Constitui ão como a nossa ex-ç ,pressamente afirma no § 2° do seú art. 5 , aprësénfár_cõmóa moldura de um processo deermanente aquisão de novosdireitos fundamentais. Aquisições que não representarão ape-nas alargamento da tábua de direitos, mas, na verdade,redefinições integrais dos nossos conceitos de liberdade e deigualdade, requerendo nova releitura de todo o ordenamento àluz das novas concepções dos direitos fundamentais.

Assim, são nossas práticas sociais cotidianas que pos-sibilitam um pano de fundo de silêncio, um horizonte decompreensão, por intermédio do qual lemos a Constitui-ção e a nós mesmos, quer individualmente, quer cone'membros de grupos categoriais, quer como cidadãos, OI`seja, membros dessa identidade constitucional fluida, abstrata e aberta, que, embora requeira densificação, jarra"poderá se fechar material e concretamente, sob pena d`

negar o constitucionalismo e de se realizar como ditadurae excludência.

Deve resultar claro, portanto, agora ós,-que osdireitos fundamentais apresentam um natureza reflexiva,não são apenas um texto, um pacto funmelhor, se são textos , se são pacto fundador, são fundantesde um imenso problema, nós mesmos e o reconhecimentorecíproco de nós mesmos como identidades individuais ecomo cidadãos co-partícipes e co-responsáveis por nossavida em comum . Nesse sentido , acredito que seja ótimo quenos mantenhamos sempre como um problema . O perigo paranós é nos fecharmos , tanto no nível individual , como pessoas,somos pessoas; tão mais saudáveis quanto mais nos enten-dermos como processos em permanente fieri, em perma-

nente construção , capazes de aprender com as nossas expe-riências, com as nossas vivências , de nos tornarmos reflexi-vamente pessoas cada vez melhores , como também comosujeito coletivo , como identidade constitucional , como povo.

É óbvio que sobretudo aí reside a matéria propria-mente constitucional . Esses direitos fundamentais que sãodireitos civis, políticos e sociais a um só tempo, que impor-tam, sim, exatamente na superação , ou melhor, na compre-ensão desse processo de aprendizado de construção de umaidentidade como povo , como cidadãos que reciprocamentese respeitam em suas diferenças , que foi a própria trajetóriado constitucionalismo , como exigência universal de liberda-de e de igualdade de todos. ,

Esses duzentos e poucos anos de experiência constituci -onal da humana raie nclusive a universalização do ,,fenômeno d constitucionalismo, revelam-se hoje para nósUm processo de ap a ser reflexivamente assumido.

-- em vimos, na experiência do ^rimeiro grande perí-todo constitucional' aprendemos duramèrrte-4ue--se__enten-

s ex g n=derrnos os direitos fundamentais como direitos naturalcias morais, egoísticas,que antecederiam a própria organi-_zaç ^uridico-política, condicionãndo_a ao mínimo neces-sário pari evitar a autodestruição, ou seja,_que se preteri-

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156JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E OS DIREITOS FUNDAMENrAu 9¡ELICK

DE CARVALHO NETTO

dermos reduzir ao máximo a dimensão pública buscand o afirmtêm de ^^ zar da

ropriamente dia. Normas ue enciais áfetá-seus p°t__ ara cida anca, mataremos precisamente a cidadania. cidada-nia_ é úer dimensão ública ou eu reduzo a dimensã n io

pdade de serem aceitas por tódós os_os (aceitabilidade). No entanto de fe daaIgualdade dosde__ id -

vidua , os direitos individuais, a mero egoísmo, inviablllzandoa própria noção de convivência comum do respeito a

ié uma garantia da_ ,lib ___abstrata há or o utro lado - risco de acreditarmos que

mesma for maqu èdad dos`tro, que é a dimensão pública inafastável dos direitos priva-dos. E é precisamente esse aspecto, e p úralismo, da tensãoentre igualdade e liberdade, o da igualdade dos diferentes

_as dcl aao aplica_las devêssemos p. __; ._- õrtánte entrarmos em

fizemos, a° adota-lãs. Aqul, e Imp

uma outra dimensão da palestra do Prof. Marcelo Galuppo,licação. No momento dead,

que abre a possibilidade de uma sociedade tão complexa quantoa moderna. Tanto quanto, de outra vertente, o outro aspectodessa tensão, o da liberdade dos iguais. Aprendemos a ver os

pesão dos discursos r daaplicação desses direitos eu ^á°ã olegislativa eou sejãr dá__-uei no nível da elabo ç_ ui, encontro-me nomasde nor; 2q

-;-riscos envoltos nesse segundo aspecto da tensão entre igual- ado ão,-ao da^

j va dosmeEdade e liberdade, não menos dolorosamente, por intermédio distinto terreno da a licaçao norma.• r enf suaede e Becoid

dos excessos aterializantes do constitucionalismo social.Adimensão pública pressupõe o respeito às difere t ini

agrandes enganos da modern que medianteexcessiva na racionalidade. é as resolvia-se ode abn es, op -

ões, valores e crenças. O pluralismo político eor ni i lstra

raeestabelecimento de normas g d s leis deveria serga zac onaé essencial para que o público não será privatizado por umaburocráçla encastelada no poder Somo m e

aproblema do controle social; a aplicação

sempree

situaçõesa às distintas situações deecificidades das semp tales -ce

tal. s iguais, e bora t -

nhamos cores diferentes religiões diferen õ i

g plicação. O imperativo categórico kantian ° leiumaates-_, opç es sexua sdiferentes, etc., e, no entanto, nos respeitamos como i uais

pforma que a máxima de tua ação seja sempcampo da adoçãog .

Somos-livres para cónstru r a nossa i úIdade no respeito às.nossas diferenças. O interesse público é o de t d f

versal - deveria cobrar não somente nodas normas, mas igualmente no da sua aplicação, uma apli-

sempre que se }ilo eta-os os aos elo exercício dod e_ _p_ poder e_não, necessariamente, o d

uma determinada administração. Essa a dimensão prática dos

,ecação automática, férrea e inafastável daverificasse a hipótese normativa prevista. A crença na ca-

f eada (direitos fundamentais que agora cobramos não só em tex-

\ide racionalmente, Por ortpacidade fi-a de sjurídic,

tos, mas em nossa vida cotidianae

regularmos a vida moral, ão normativa.lei ali.

Este é um problema central afeto a outro ue eu-

, çccarmos livres de problemas no campo da ap

erais isoladas nãoqgos-taria de nomear como o roblema da legitimidade do Direi- Bom, o problema é que as normas m examinarmos abto é portanto dos di s fi

ecõm lexidade dá vida. Se há, , sore uI aTrn'nrta -^^ l^-f da- esgotam a veremos queurídicopento dos direitos fundamentais problema que foi a tônica

,Constituição e o ordenamento j ans-tm regras e que,

da palestra do Prof. Marcelo Galuppo a saber ssi-o dcípios contrários que são densificados e do o ordenamento, , a po

bilidade de fundamentarmos leis de aceitarmos as rmasmitem a tensão originária entre eles a to i-tid, no

gerais que vão reger a nossa vida em comum. A legitimida-

aque, nesse sentido, não se fecha aos IrI o

emitfde que passa pela percepção de que as normas erais e

aeana, como urja-realidade per idualidade dos event^igabstratas sã

vc-nncretude e a indue laéo uma garantia básica para todos nós ost /q egger aquecontrários da a, con raprivilégios tradicionais de nascimento que impediam OUdificultavam a institucion li ã

^P ara a comi°uraçao normativa adequa

, m re es ecI Ica e da-ão determiit --__a zaç uaço de uma esfera pública s

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158 JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Podemos compreender o fascínio de Kant. e omaravilhamento de toda a modernidade pela forma da leicomo uma forma que, por si só, garantiria a civilidade, ofim dos odiosos privilégios de nascimento, o respeito aooutro e a, efetividade deste antigo sonho da realização dajustiça. Se, no entanto, a forma genérica e abstrata da leipôde ser traduzida materialmente, na prática, em uma explo-ração do homem pelo homem sem precedentes na históriada humanidade, foi capaz, contudo, de manter a sua mística,apenas que agora no contexto da materialização do Direito.Manteve-se no Estado Social a mesma crença: seria por meiode normas gerais e abstratas que se poderia materializar oDireito, exigindo ações políticas de densificação desses direi-tos mediante a adoção de políticas públicas pelo Estado; sãoos direitos sociais, à educação, à saúde, etc. Políticas públi-cas que, hoje, para nós, são direitos, mas somente o são, éclaro, à medida que efetivamente promovam a liberdade e aigualdade dos membros da comunidade.

Assim é que a aplicação dos direitos não mais podeser confundida coma sua justificação em tese. As normasgerais e abstratas são, é claro, rantia evolutiva, se-gundo a qual as normas a serem aplicadas são normas quepassaram por este crivo da universalidade, da aceitabilidadeuniversal. No momento da aplicação, no entanto, tenho deter claro o problema que o Prof. Lênio Streck colocou. Eunão interpreto só texto, nossa situação no mundo é urnasituação hermenêutica, inclusive eu mesmo sou um projetose for algo, porque os sistemas tendem a nos reduzir a nada.a objetos, a papéis sociais. Se eu próprio não me assumiscomo sujeito, se a psicanálise não puder me ajudar aí, mi-nimamente, eu tendo a ser reduzido a papéis, usualmente.muito problemáticos, quase nunca harmônicos entre si. Mas.enfim, também no nível público, temos de empreender oresgate de nós mesmos como projeto de uma cidadania con-creta, de um povo, de uma nação. Ou seja, de uma comu-nidade de pessoas que requer concretamente a realização'dos direitos de seus membros em sua vida cotidiana. Não

MENELICK DE CARVALHO NETTO

mais n nrP

1)9

ender que coma racionalização em termosde estabelecimento de uma legislação abstrata eu tenha re-solvido os problemas da vida concreta. Pelo contrár pee--

nas criei o instrumental necessário para que tenha lugar o^

trabalho de aplicação. Sabemos hoje, tal como Luhmann podenos alertar, que o Direito tem limites, que a normatividade, apositividade tem limites e limites que sabemos, na pele, so-bretudo em matéria constitucional. Não podem ser supera-dos aprovando-se mais texto constitucional. Não é reformandoa Constituição que solucionaremos problemas que não sãodo Direito, mas da política ou da economia, por exemplo.

O grande desafio, posto hoje aos direitos fundamen-tais no meu modo e èntender, continua a ser a descobertade que o Direito moderno não regula nem a si mesmo.

O Direito moderno só se dá a conhecer por meio deltextos e textos, por definição; são manipuláveis. Kelsen jábuscará trabalhar o caráter indeterminado do Direitp ino a partir de uma concepção positivista de ciência.(Dworkin,aó^entráric^, huscar^í respondera esse desafio, nodo atual conceito de ciência, optando pelo enfoque dáhermenêutica filosófica. Se são possíveis várias leituras deum mesmo texto, para ela, a saída encontra-se na concretudee na singularidade dos eventos sociais que o Direito regula.A situação vivencial concreta levada ao Judiciário é única,irrepetível, por definição. No campo social, os eventos nãose repetem e não se repetem em grau definitivo, porque se ofizerem já não são os mesmos, uma vez que nós que osvivenciamos somos pessoas diferentes do antes fôramos, jáque aprendemos vivencialmente com eles. Somos pessoasmais vivenciadas, mais vividas, mais experientes e as nossasexpectativas em relação a eles são distintas.

É nesse sentido que Ronald Dworkin pôde afirmar quehá uma única decisão correta para cada caso, não é emtermos _de só seja possível uma única leitura de um textolegal. Dworkin tem uma formação extremamente sofistica-da, é um crítico literário, sabe não somente que um textoadmite várias leituras, mas que o horizonte de possibilidade

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1UKISDIÇAO CONSTITUCIONAL E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

das leituras se altera com as mudanças sociais verificadasao longo do tempo. Por isso mesmo , para ele , não temosacesso ao fato, mas a leituras que fazemos desses fatos.Para retomar o Prof. Lênio , a nossa condição no mundo éhermenêutica , atribuímos sentido, interpretamos o tempointeiro e as nossas interpretações dependem de uma sériede não ditos , de supostos . A grande questão reside aí: comolidar com a aDlic ao dessa arántiás que não garantemnada, com as _ nórmas__ gerais_e_ab_strat s. Esse é o grandeproblema da doutrina constitucional de hoje.

A partir de diversas perspectivas , todos os autores vãobuscar responder àquele desafio lançado por Norberto Bobbio:dar efetividade aos direitos fundamentais nas situações con-cretas de vida , não apenas em abstrato , aqui e agora , no bojodas distintas situações vivenciais . Para tanto, como ser im-parcial ? Como seria possível garantir a liberda e e a i úáldá-de de todos na ap Icação das normas jurídicas ? Claro queobservando a nnsição concreta e as pretensões a direitos le-vantadas pelos envolvidos naquele caso, levando em contaque pode haver pretensões abusivas que nada têm a ver coma situação concreta vivenciada pelas partes, decorrentes xtamente do caráter genérico e abstrato das leis . -mc õs en-volvidos levanta uma pretensão a direito não porque a tives-se levantado e esta tivesse sido aceita quando do evento,mas, simplesmente , em razão de haver uma previsão geral eabstrata que, em tese , daria guarida a tal pretensão . Normasgerais nem sempre são aplicáveis a todos os casos , mas ape-nas àqueles casos que sejam capazes de reger sem resíduosde injustiça . Qualquer caso é complexo , é difícil , qualquersituação concreta envolve pretensões a direitos , e o trabalhojudicial aí é essencial para que a nossa e^essa socie-dade artificial, sem fundamento, s torne crível, para quepossamos acreditar que existe justiça. damentação dadecisão há de apresentar- tal consistência que possa, em tese.convencer racionalmente a parte cuja pretensão não foi aco-

lhida da impossibilidade de se fazê-lo sem ferir a justiça e•portanto, a própria segurança jurídica.

MENELICK DE CARVALHO ItI iv

Esse é o grande desafio uqe recai sobre os ombros dos

juízes: tornar plausível a crença em nossas instituições. Esseé um desafio que recai também sobre nós, professores d^Direito Constitucional em um país onde ensinar Direito Cons-titucional não é fácil, pois o jornal cotidianamente noticia con-dutas das autoridades, como se normais e corriqueiras, quecolocam emxeque túdo o que se buscou ensinar em sala. E^esse é um problëmã-básicwUt prõblé-m que nõs rëénvia lá

ao início de nossa palestra, do nosso diálogo: à idéia de queesses direitos fundamentais ou são vida ou não são nada.

Não há Constituição a ser defendida se ela não forvivenciada. É claro que estamos em um terreno cultural,em um terreno em que pagamos um alto preço pela vidaque construímos para nós mesmos. Esse o toque de Midastípico da condição humana; tudo o que tocamos torna-senós mesmos, estamos enfeixados em nós. Retomamos aquia palestra do Prof. Lênio mais uma vez, não há saída forade nós mesmos, nossa situação é hermenêutica, vemos anós mesmos em tudo. E se o nós que construímos for umnós pobre, um nós excludente e excluído, um nós de umpaís periférico, é claro que a identidade constitucional seráapenas um ícone para os poderosos reproduzirem a suaprivatização do espaço público, como, aliás, necessariamentese vêem obrigadas a fazer as ditaduras.

No entanto, nós, o povo, no Brasil de hoje, somosuma identidade aberta, que só pode ser efetivamente cons-titucional à medida que não se fechar, que se mantiver sempreaberta. Sempre um problema e nunca uma solução!

Também, como a própria noção de direitos fundamentaise a rica e profunda exposição do Prof. Marcelo Galupporevelou o imenso e rico problema que são os direitos fun-damentais. Espero sinceramente que os direitos fundamen-tais de todos continue a ser um rico problema para nós eque, sobretudo, se transforme para a lavadeira da favela doPendura-a-Saia, bem como para o pipoqueíro ali da esqui-na, em um rico problema. Em algo a ser conquistado, por-que vale a pena alcançar e preservar.

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1 OL JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS 1 DIENELICK DE CARVALHO NETTO

A teoria da Constituição nasceu como um hino

schimitiniano à Constituição inglesa. A efetividade, aconcretude da Constituição inglesa e a sua falta de formalismo,historicamente, quem sabe, até explicável pelo próprio fato

de a Inglaterra haver inventado o conteúdo material do Di-reito Constitucional, e talvez, por isso mesmo, não tenhaprecisado nem inventar e nem posteriormente acolher a for-malidade constitucional que os norte-americanos termina-ram por inventar. De toda sorte, estamos diante dessas duase distintas experiências históricas. A lei antiterror foi apro-

vada na Inglaterra já há décadas, revogando dispositivostão antigos que remontavam à Magna Carta, destruindo ospilares mestres da Constituição britânica. Acabou com nor-

mas profundamente enraizadas no povo inglês. Até Schimittchegava a admirá-lo, um povo que acreditava no direitoconstitucional como realidade viva, que criou o habeas corpus,a inviolabilidade da correspondência, do domicílio, etc. Pensarque na Inglaterra de hoje qualquer um pode ser preso paraaveriguação, sem culpa formada, sem autorização judicial esem ser pego em flagrante; que qualquer um pode ter suacorrespondência aberta e o seu domicílio violado. É farta aliteratura constitucional inglesa sobre o fim da Constituçãobritânica. A experiência norte-americana, embora muito re-

cente, já aprova a questão da formalidade constitucional e daimportância do controle de constitucionalidade. Será que di-ante de ameaças desse tipo, conquistas históricas poderãoser derrogadas como na Inglaterra? A Constituição norte-americana vai ser destruída? Se tomarmos o que a SupremaCorte dos EUA entende por Constituição, veremos que éexatamente essa garantia que leis antiterror desse tipo des-truiriam. O respeito à dupla tensão presente entre o direito àigualdade e à liberdade de todos. Toda essa construção, umaconstrução fantástica, admirável, mesmo com todas as críti-cas que lhe podem ser dirigidas, é colocada em tela de desa-fio. Desafio aos direitos fundamentais, à formalidade consti-tucional e ao próprio controle de constitucionalidade comogarantias evolutivas do constitucionalismo.

Concluindo, gostaria de salientar um outro desafio, nãomenos sério, porém de origem interna: a importação por vialegal de supostos típicos do controle concentrado ou austríacode constitucionalidade das leis. Nossos supostos são de umatradição muitíssimo mais antiga e também melhor em ter-mos de experiência e de vivência constitucional do que aalemã, extremamente mais sofisticada e muito mais efetivacomo garantia da idéia de liberdade e de igualdade concretas.São colocados em xeque os supostos básicos do controledifuso de constitucionalidade, que constituem nossa herançade mais de cem anos. Uma herança que marca a compre-ensão da Constituição como de autoria de todos nós, queafirma que a matéria constitucional diz respeito a todos nós.O controle difuso faz com que qualquer um de nós sejaintérprete autorizado da Constituição, uma vez que não seautorizou ao Legislativo e nem a qualquer outro poder violardireitos fundamentais, e em que a matéria constitucional,por ser sempre afeta aos direitos fundamentais de todosnós, reconhece-se competência para discussão, averiguaçãoe decisão dessa matéria a qualquer juiz em qualquer casoconcreto que surja diante dele. É importante registrar o tre-mendo esforço q_ue Peter Hãberle empreende ara poderafirmar a Pxistência de uma comunidade aberta de intérpre-tes da Constituição na Alemanha, o que para nós é um su-posto, um ponto básico de partia a mais e cém anos. Éclaro que não é mais possível a artificialidade da visão kelsenianaabsolutamente superada, como salientou o próprio Prof. LênioStreck. A autoridade encarregada de aplicar a Constituição'ao pode fazer o que bem quiser do texto constitucional, hálimites, esses limites são intersubjetivamente compartilhados,e a maior garantia de qualquer constituição chama-se cidada-nia, uma cidadania viva e atuante, zelosa de seus direitos.