Cartografia dos afetos

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Cartografias dos afetos José Joaquim Gomes Neto Graduado em Filosofia pela PUC-GO. Acadêmico de Artes Plásticas da Universidade Federal de Goiás. E-mail: [email protected] Resumo O presente trabalho insere-se na tentativa de compreender os aspectos singulares que dão significado ao processo de criação. Primeiramente possibilita compreender o corpo numa dimensão de possível cartografia, de reconhecer nossa estranheza frente nosso próprio corpo e das infinitas possibilidades de criar traçados cartográficos. A segunda parte empreende-se em entender as etapas em que o ato criador surge com ato existencial fundante do próprio ser do artista. Por fim, entender a performance Cartografia dos Afetos – Ato 1 em sua complexidade e relevância dentro da minha produção artística atual. Palavras-chave Cartografia, afetos, corpo, memória, ato criador. ARTIGO nº 1 | 2013 www.apublicada.com

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O presente trabalho insere-se na tentativa de compreender os aspectos singulares que dão significado ao processo de criação. Primeiramente possibilita compreender o corpo numa dimensão de possível cartografia, de reconhecer nossa estranheza frente nosso próprio corpo e das infinitas possibilidades de criar traçados cartográficos. A segunda parte empreende-se em entender as etapas em que o ato criador surge com ato existencial fundante do próprio ser do artista. Por fim, entender a performance Cartografia dos Afetos – Ato 1 em sua complexidade e relevância dentro da minha produção artística atual.

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Cartografias dos afetos

José Joaquim Gomes Neto

Graduado em Filosofia pela PUC-GO. Acadêmico de Artes Plásticas da Universidade Federal de Goiás.

E-mail: [email protected]

Resumo

O presente trabalho insere-se na tentativa de compreender os aspectos singulares que dão significado ao processo de criação. Primeiramente possibilita compreender o corpo numa dimensão de possível cartografia, de reconhecer nossa estranheza frente nosso próprio corpo e das infinitas possibilidades de criar traçados cartográficos. A segunda parte empreende-se em entender as etapas em que o ato criador surge com ato existencial fundante do próprio ser do artista. Por fim, entender a performance Cartografia dos Afetos – Ato 1 em sua complexidade e relevância dentro da minha produção artística atual.

Palavras-chave

Cartografia, afetos, corpo, memória, ato criador.

ARTIGO

nº 1 | 2013

www.apublicada.com

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Introdução

Cartografia surge de um desejo de entender o corpo em instâncias novas, extrapolando as dimensões do meramente biológico ou do meramente psicológico. Acredito que as vias de acesso ao corpo podem partir de um conjunto grande de possibilidades de leituras e vivencias capazes de traduzir em metáforas visuais, nuanças próprias desse caminho de descobertas.

Na primeira parte do texto adentraremos na compreensão da cartografia como sendo temporal, memorial, existencial. Na segunda parte, perscrutaremos o ato criador, num sentido em que não se pode perceber a obra como produto de um momento único, mas de um conjunto de ideias, sensações e percepções que não cansam e não param de borbulhar no artista.

Por fim, analisaremos o ato fundante da performance Cartografia dos afetos – Ato 1. Toda sua complexidade, sua importância dentro de um processo de criação perene, e de uma profunda descoberta do que é ser artista, num conceito capaz de remeter sentidos novos a minha própria forma de ver o mundo, a arte e a obra de arte. Os desdobramentos de tal ato legitimam-no como marco, em que o sentido e a sua ausência se encontram concomitantemente.

Cartografia Lugares ocultos em memórias retalhadas.

O tempo imprime no corpo suas marcas. Como navalha retalha-nos impiedosamente, desenhando contornos por vezes insólitos, mas fulguram na memória os suspiros, os lampejos de lembranças ardentes, de lágrimas, de sorrisos a desenhar novos caminhos entre lábios/palavras recolhidas e professadas; olhos/imagens negadas e desejos iluminados, nariz/cheiros sufocados e desejos exalados, mãos/despedidas lamentadas e toques apaixonados. O tempo, ladrão vil, nos rouba e nos faz desejosos de deleite e gozo, deixando-nos o vazio, o silêncio, a memória, a saudade.

A experiência vivida é fundamentalmente o modo como a existência humana se define, além de ser o tema fundamental da fenomenologia. Nesse ponto, tomo de Maurice Merleau-Ponty (1999) a oposição à ideia de corpo como res cogitans que compreende o mundo como mera consciência que se faz dele, apregoada pelos racionalistas e/ou como res extensa assimilando o mundo como o que se observa acerca dele, como compreendia os empiristas. Essa dualidade foi rejeitada pela fenomenologia de Merleau-Ponty. Não tomemos o corpo nem como mero suporte, tão pouco como uma máquina. A vida é, nesse sentido, um entrelaçamento entre a carne que sofre e executa a ação, a subjetividade que vive essas ações em níveis psíquicos ou biológicos, a cultura que orienta modos particulares de percepção e a própria consciência. Esses são pois, modos de compreensão da relação do homem com o mundo e por isso são modos de traçar, delinear experiências, portanto, compreendo-o como uma espécie de cartografia: dos afetos, perceptos e outros tantos que ao final compreendem-se como cartografia do corpo. “Não toco a mão-ideia, uma pedra-ideia, um mundo-ideia, toco com meu corpo o mundo. Se posso me pensar com sujeito (...) só posso fazê-lo enquanto corpo e enquanto corpo no mundo” (PONTY apud OLIVEIRA, in V.A p. 98).

O tempo, artista hábil, grava nosso corpo profundamente, transpondo essa imagem plástica que reflete vertiginosa no espelho. Essa linha que nos delimita, exprime-se como caminhos, levando-nos a corredores longínquos de memória e ausência. Essas linhas manifestam-se numa cartografia da existência, um poema dramático, épico, lírico, trágico, cômico. Reconhecer a vida é concomitantemente reconhecer a morte. O que é o passado? O que é o ontem? Marcas, vestígios, frestas... Dados semióticos? Será possível compreende-los fora do corpo que sente sem palavras, que sente simplesmente? São caminhos que vemos, mas não nos é permitido o passo. O que é o presente? O que é o agora? O gesto, a força, a morte inscrita dia após dia, segundo após segundo, como um soneto escatológico.

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Cada escolha, cada mudança, cada sorriso esboça em nosso corpo as marcas de outrora. Por que existir é tão angustiante? Jean-Paul Sartre diz ser o nada o responsável por isso, mas o nada aqui se refere ao conjunto infinito de possibilidades que se projetam à nossa frente, esperando nosso toque, nossa entrega, nossa recusa. Milan Kundera (1983, p.14) afirma na obra A insustentável leveza do ser: “Não existe meio de verificar qual é a boa decisão, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Com se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É isso que faz com que a vida pareça sempre um esboço. No entanto, mesmo esboço não é a palavra certa porque esboço é sempre um projeto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço que é a nossa vida não é o esboço de nada, é um esboço sem quadro”, Não podemos vislumbrar a obra que irrompe, pois quando o artista a finaliza fecharemos os olhos.

Cartografia do corpo empreende-se numa caminhada pelo corpo compreendido como lugar da consciência, dos afetos, dos perceptos. Proponho captar e transformar esses modos de percepção em narrativas visuais. Não como um itinerário com um finalismo, mas uma incessante busca à imensidão íntima. Inúmeros movimentos efervescem até que a obra irrompa, tais borbulho constituem matéria de vislumbramento. O ato criador, o momento em que todo esse conjunto de complexas relações, devem e serão abordadas num olhar desbravador, um olhar de pesquisa, de busca de uma compreensão do ato criador.

Ato criadorNa obra crio um eu estranho e intimo

Quando nos deparamos diante das nuanças próprias de uma obra de arte, suas curvas, tensões, continuidades e descontinuidades, cores, formas, ritmos, percebemos um passo além do movimento originário, àquele de um artista e de

um mundo, do homem e seu universo próprio, da realidade e do gesto. O ato criador da arte possui uma característica única dentre as produções de sentido no universo do fazer humano, seus caminhos e contornos, partidas e chegadas, pressões e impressões produzem pulsões capazes de retirar o artista de seu lugar cômodo, de uma possível inércia, até que nada resta a não ser a força, a ato do gesto, a tonificação da forma. Tal movimento é necessário para que a obra salte de sua existência imaterial e alcance a realidade própria do cotidiano.

Deleuze afirma que se o artista não se deparar numa situação de estrangulamento não produz arte. Essa pressão é forjada por um conjunto de impossibilidade (DELEUZE, 1992, p.167). É esse conjunto de impossibilidades que o gesto encontra seu poder de ação e é nessas inconstâncias que as brechas do possível são encontradas.

Os regalos desse processo são velozmente percorridos pelo artista, que apesar de estar munido de impressões, imagens, ideias, formas, observações, memórias, anseios, necessidades, afetos e desafetos, desejos e desconsolos, o faz de maneira solitária, mas não é uma solidão sufocante, é a solidão de ordenação, onde o artista ou melhor o homem, visto que tal situação não é restrita ao universo de uma arte singular, mas na pluralidade das expressões: na literatura, na artes plásticas, na música e por que não na filosofia, essa solidão é um momento necessário em que o homem impele-se no desejo de ordenação. Um demiurgo no emaranhado de imagens do seu universo interior. Ou o inverso, uma subversão das simetrias do sempre dado, sempre pensado, sempre visto, sempre experimentado. Maurice Blanchot afirma que essa experiência talvez nos oriente no sentido do que buscamos. A solidão do escritor, essa condição que é o seu risco, proviria então do que pertence, na obra, ao que está sempre ates da obra. Por ele, a obra chega, é a firmeza do começo , mas ele próprio pertence a um tempo em que reina a indecisão do recomeço (BLANCHOT, 1987, p.14).

Encontrando-nos defronte a esse estado perene, abrimo-nos às pulsões que delibe-

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radamente nos movem a uma decisão, a uma ação, a um gesto... Mas decisão, ação e gesto, são ressonâncias de um corpo que, segundo Edith Derdyk (2001) em sua obra Linha de horizonte: para uma poética do ato criador: “cria pensamentos, o corpo sustenta uma ação, o corpo vive os ritmos, as (des)constinuidades, as intensidades, as disjunções, as alternâncias. O pensamento borbulha o corpo, o corpo contrai com pensamento, o pensamento gera um movimento, o movimento do corpo provoca as matérias do mundo”. É através das vivencias, das experiências temporais vividas pelo corpo, seus modos de percepção, absorção de sensações que o pensamento encontra matéria para uma síntese que ao mesmo tempo transforma, por processo semiótico, o mundo e a própria noção de corpo. O pensamento vaga por caminhos de topografia acidentada, por geografias singulares, por locais que somente ele pode acessar, lugares que a experiência cotidiana não consegue assegurar. O cotidiano dos sentidos mantém-se contornados pelo tempo. O pensamento encontra bifurcações, soma, multiplica com o dado do fazer ordinário. É igualmente alto, abstrato, metafísico, intocável, abismal e ao mesmo tempo baixo, delineado, físico, experimentável. O pensamento e a experiência, são, segundo Edith, tão inerentes quanto distantes na participação existencial deste corpo (cf. DERDYK, 2001, p.)

O corpo capta a obra nascente em seu interior e a projeta para o exterior. Mesmo sendo o ato criador fruto da intenção, não podemos deixar de reconhecer que há no próprio movimento do gesto uma dimensão cega, ou seja, que extrapola

a própria intenção, que escapa à minha percepção consciente da própria dimensão de alcance do gesto.

A obra de arte possui um conjunto de signos que podem abrir clareiras e apontar trilhas de interpretação. Essa semiose é a palavra do ato criador expressa na obra; produz uma centelha no mundo da obra, revelando conceitos, forças, ideologias, olhares, sensações, movimentos próprios, criptografados em signos visuais, auditivos e verbais. Mas entre a intencionalidade do artista e a obra de fato, possui uma discrepância, Duchamp afirma:

o ato criador, o artista passa da intenção à realização, através de uma cadeia de relações totalmente subjetivas. Sua luta pela realização é uma série de esforços, sofrimentos, satisfações, recusas, decisões que também não podem e não devem ser totalmente conscientes, pelo menos no plano estético. O resultado deste conflito é uma diferença entre a intenção e a sua realização, uma diferença de que o artista não tem consciência. Por conseguinte, na cadeia de relações que acompanha o ato criador falta um elo. Esta falha que representa a inabilidade do artista em expressar integralmente a sua intenção; esta diferença entre o que quis realizar e o que na verdade realizou é o “coeficiente artístico” pessoal contido na sua obra de arte. Em outras palavras, o “coeficiente artístico” é como uma relação aritmética entre o que permanece inexpresso embora intencionado, e o que é expresso não intencionalmente (DUCHAMP in BATTOCH, 1986, p. 196).

As apropriações de Duchamp - ready made - fazem uma crítica radical à própria noção

Figura. 01

CARTOGRAFIA DOS AFETOS: ATO 1

2011

Algumas imagens, videoperformance de

José Neto

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de autoria; elas operam uma torção pela qual o autor do gesto é posto em questão, no mesmo movimento que faz do objeto uma obra. Em primeiro lugar, Duchamp insiste aí em alargar a concepção da criação para além dos limites da técnica e da subjetividade do artista. Este não só não é capaz de descrever objetivamente suas decisões durante o processo de criação, nota ele, como “não desempenha papel algum no julgamento do próprio trabalho” (DUCHAMP in BATTOCH, 1986, p.197). O contemplador assume, na obra, um papel fundamental, complementando o do próprio artista. O ato, escreve Duchamp, “não é executado pelo artista sozinho; o público estabelece o contato entre a obra de arte e o mundo exterior, decifrando e interpretando suas qualidades intrínsecas e, desta forma, acrescenta sua contribuição ao ato criador” (DUCHAMP in BATTOCH, 1986, p.198). Mas o próprio ato é esburacado; o que o faz artístico é o conflito, o hiato que o constitui. Ainda nas palavras do grande artista, há uma “falha”, uma “inabilidade” necessária do artista em “expressar integralmente sua intenção”, e nesse descompasso entre o que se queria realizar e o que se produziu reside o “‘coeficiente artístico’ pessoal contido na obra”. Se tal coeficiente é “pessoal”, ele não confirma, contudo, a pessoa do artista, muito pelo contrário: ele despersonaliza, na medida em que desbanca a intenção e a expressão do artista. O ato criador mostra-se então hi-ato: descontinuidade entre intenção e ação do artista que se reproduz, em ato, no “olhador” da obra.

Ao atribuir papel importe ao espectador da obra, critica-se a posição soberana do autor no processo de criação. Questionar

essa leitura da obra a partir do autor, é atribuir-lhe valor em si, é renunciar as possíveis legendas, é garantir seu caráter de movimento, seu devir, seu gerúndio. O precursor do gesto é aquele que recebe as pulsões da natureza externa, a fertilizar, empresta seu universo à ação, seu corpo traz à tona a obra, mas esta a partir da ação, já lhe é diversa. É o que Umberto Eco designa como obra aberta (ECO,1988), ou seja, não se encerra no traço último do artista, mas o continuo movimento de significação e resignificação confere a obra novos pontos de contato. Roland Barthes em seu texto intitulado “A morte do Autor” afirma que uma vez o autor afastado, a pretensão de “decifrar” um texto torna-se totalmente inútil. Dar um Autor a um texto é impor a esse texto um mecanismo de segurança, é dotá-lo de um significado último, é fechar a escrita. Esta concepção convém perfeitamente à crítica, que pretende então atribuir-se a tarefa importante de descobrir o Autor (BARTHES, 2004). Não podemos deixar de verificar e constatar que há na relação entre o artista e sua obra um processo de estranhamento, como se lhe fosse diverso o próprio criado.

Essa compreensão de que a obra de arte articula-se numa dinâmica própria, em que o movimento incide sobre a própria forma novas proposições caracteriza o gerúndio na arte. Henry Bergson profere que a forma é coisa que não existe, pois pertence ao domínio do imóvel, ao passo que a realidade é movimento. Real é a mudança contínua de forma: a forma é apenas um instantâneo tirado durante uma transição. Mais uma vez, portanto, a nossa percepção arranja maneiras de solidificar em imagens

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descontinuas a continuidade fluida do real (BERGSON, 1971, p. 295).

Tal realidade me toca, me cinge, produzindo uma fenda na minha consciência e expandindo minha percepção. Um mundo de acontecimentos escondidos, de matérias encobertas, de texturas negadas ao toque, uma explosão de fricções no meu ser; colocando-me em movimento, movimento fenomenológico. Mas não uma fenomenologia qualquer; o acontecimento a que me imerso proporciona-me a ruptura do silêncio mortal da funcionalidade dada à matéria. O devir subverte a ordem, impele a matéria, bruta ou não, a revelações, a manifestações, a sentidos sempre novos. Por isso mesmo, caracteriza-se uma fenomenologia do “baixo”. Não entendamos baixo como um lugar em que uma lógica formal possa criar uma estrutura comparativa, numa dinâmica de inferior e superior. Baixo, neste sentido, evidencia aquilo ou aquele local onde a percepção alcança somente através do movimento, da abertura ao curvar-se-sobre, da descoberta de novas perspectivas de visão, de ruptura com o enrijecido, com o formal, com o factual, com o sólido. É encarar a vertigem a que Milan Kundera (1983, p. 65) refere-se na obra Insustentável Leveza do Ser:

O que é a vertigem? O medo de cair? Mas por que sentimos vertigem num mirante cercado por uma balaustrada? A vertigem não é o medo de cair, é outra coisa. É a voz do vazio embaixo de nós, que nos atrai e nos envolve, é o desejo da queda do qual logo nos defendemos aterrorizados.

Quando o artista vê tais fendas, tais forças, tais tensões, tais contradições,

através do gesto próprio de quem já viu o abismo que se projeta a sua frente, cria a obra sintetiza através da expansão, forja paradoxos. A partir daí, o espectador, através das lacunas deixadas pelo modo não totalizante de construir do artista, é capaz de encontrar a lógica do movimento da obra, tornando-se co-autor, co-herdeiro, não necessariamente do gesto originário, mas do encontro com esses novos olhares, novas frestas e perspectivas que o gesto se atualiza, nas novas significações e experiências estéticas.

Observando os aspectos desse itinerário metafísico, de surgimento da obra do plano das ideias, ao plano do concreto, fenomenológico, compreendemos os alcances da obra enquanto manifestação de uma linguagem singular, sendo segundo Ana Rey (2002) tal linguagem ultrapassa as categorias fundamentadas nas técnicas e substancia-se na colocação em cena de uma série de códigos formais e visuais. Os códigos são um espelho ao qual o artista subjetivamente se revela, a obra comunica-se numa linguagem dialética...tese, antítese, síntese; da síntese é projetada uma nova tese, espera-se uma nova antítese e assim sucessivamente. Esse processo de significação traduz-se constantemente em sentido, mas este ao certo, não se revela num finalismo, ou seja, não há de maneira estrita um sentido último. O sentido último é uma nova possibilidade de descoberta de algum lugar cujo olhar não penetrou, lugar este, incompreendido ou ignorado pelo próprio autor. Ao final, o coeficiente artístico revela a impossibilidade de dominar as variáveis do processo de criação, mesmo que tais ímpetos sejam produzidos no mais intimo do autor.

Figura. 02

FURIGEM2011

Algumas imagens, videoperformance de

José Neto

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Criador do ato

Nos caminhos da memória, encontrei flores e monstros.

O que seria uma obra de arte autêntica tendo como base a arte contemporânea? Autentico é o que comunica uma verdade, é o ser do artista revelado na obra. Há sem sombra de duvidas aspectos de nós mesmos, de nossa história que escapa à nossa compreensão, há portas longínquas em nosso íntimo, esconderijos de segredos demasiado belos, demasiados grotescos, imensamente pe-quenos, e esmagadoramente grandes. Desse conjunto de percepções que, por sua vez, podem empreender-se num jogo de sensações contrarias cuja nomenclatura foge ao controle, ao domínio racional, surge o momento exato em que a vulnerabilidade impera, cuja capacidade de negação torna-se vã. Nesse instante as convenções e normativas caminham nos trilhos de uma única e imperativa prerrogativa: explosão de sentidos, de sensações.

A experiência a qual denomino de Carto-grafia dos afetos: ato 1 (figura 1) surgiu de uma proposta feita por mim a uma colega de faculdade. Procederia da seguinte forma: tendo como base o desenho cego, seria preparado um ambiente tranqüilo e com o mínimo de espaço, em que o desenho surgiria pressionando vários lápis fixados em partes do corpo e transferidos ao papel. Até aí, nada de mais, o que se segue é que tais desenho surgiriam de sentimentos insurgentes de momentos de silêncio e concentração. Posteriormente percebi que a ideia apontada a esta colega, poderia ser de grande valia para mim. Decidi, pois, me sujeitar a essa experiência. Em

um ambiente devidamente preparado, me coloquei sobre um papel (2x2m), liguei a câmera filmadora, para registrar o processo do desenho. Entretanto, o que aconteceu, fugiu completamente do planejado, extrapolou toda margem por mim definida.

A tensão sentida por mim, a sensação de esvaziamento arremessou-me em um peso existencial, o borbulhar desses afetos: solidão, euforia, medo, fragilidade, alegria culminara em um momento em que todo sentido escapa a supremacia do cogito, a libertação se dá como as compotas abertas num represamento. O choro é incontrolável, tornando-se e tomando uma demissão catártica.

Compreender tal ato como cartografia é reconhecer aspectos singulares do meu corpo memorial, e concomitante traçar novas formas de me reconhecer, ou o reverso, formas de estranhamento de mim mesmo. O gesto sentido, executado e transferido ao papel perde força à imagem captada no vídeo. Na filmagem vemos um artista sozinho, como quem vê o mundo, e todo conjunto de possibilidades são ao mesmo tempo excitantes e apavorantes. O caminho temporal transfere o artista a uma condição placentária, momento este em que o parto arremessa o sujeito num mundo estranho. Ao mesmo tempo em que explode em grande quantidade as percepções, o medo domina por uma única via: sentir-se frágil, indefeso.

Percebi que o ato ocorrido naquela experiência não poderia ser refeito na mesma intensidade, tornando-o singular, destacando ainda mais sua importância em

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uma cartografia dos afetos. “A atualidade do gesto cortante é a vivencia temporal de um presente eterno irresgatável por um novo ato”.(FABBRINI,1994, p.95).

DesdobramentosA experiência descrita acima marcou sobremaneira meu modo de compreender meu próprio projeto Cartografia do Corpo. A partir daquele instante, libertador e frágil, coloco-me inteiramente a pensar toda essa relação corpo/memória/afetos/perceptos, ou seja, nas múltiplas e infinitas formas de traçar significados à nossa existência. Novas formas de delimitar o corpo, formas estas superadas no plano meramente físico, e multiplica em sentimentos e memórias.

A performance “Furigem” (figura 2) une o conceito de fúria de quem deseja libertar-se e a ferrugem que come a dureza e frieza do metal, tornando-se ato e metáfora daquele gesto vivido em Cartografia do Corpo – Ato1. Neste sentido, pude metaforicamente trazer materialmente o que senti fisicamente naquela experiência.

Perceber a importância do ato criador na constituição da obra é de suma importância, mas essa relação tem múltiplas vias, há de levar em conta que o ato criador pode ser constituinte do autor do ato, dando-lhe sentido, fazendo-o também obra. Obra esta inserindo artista, obra, ato, numa dinâmica capaz de gerar novos traçados, novas formas de compreender, de ver a arte, o processo de criação e ao mesmo tempo, torna-nos capazes de reconhecer que esse processo é perene, constante....e que está muito além da capacidade do artista de dar nomenclatura e significados.

Furigem exprime com força uma metáfora existencial. De um lado o artista, angustiado, asfixiado por uma sensibilidade que lhe escapa e lhe atravessa, por outro lado, há um impulso de vida, desejo de movimento. O neologismo Furigem composto de “fúria” e “ferrugem”, são duas expressão que apresentam um impulso de torna-se, de um lado a força explosiva cujos estilhaços afetam quem observa, convidando-o a mover-se na dor, a pedir por um alento e

por de outro lado vemos uma entrega ao descafelamento, à morte. O que aparece nas imagens? O homem sendo, existindo, movimentando-se, recusando-se à lacuna. O silêncio invade-nos e nos convida a imaginar os suspiros, os gemidos, o alivio que parece não chegar, e que de fato não chega, pois tudo aponta para um rebento, um mar que está sempre revolto num turbilhão de sentimentos, desejos, e claro, gozos.

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