Cartas do Brasil (1890 -1891)*

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    Estudios Latinoamericanos 3 (1976), pp. 163-169

    Cartas do Brasil (1890 -1891)*

    Antoni Macierewicz**

    Estas notas so dedicadas a problemtica relacionada com aentrada dos emigrantes poloneses para nao brasileira, seuprimeiro contato com a nova realidade, o confrontamento entre aimaginao e o estado de fato, e com as idias [destes emigrantes -

    nt.] sbre o seu lugar e papel na nova sociedade, que se formamapartir deste primeiro contato. Os autores da introduo, que analisaamplamente e de todos os ngulos as cartas1, dedicam maior lugar aestes problemas quando se ocupam do material originrio dosemigrantes poloneses nos Estados Unidos da Amrica. Isto compreensvel. Concentrando sua ateno nas cartas dos EstadosUnidos (que constituem 2/3 do material editado), os autores, comramo, observam que estas so simplesmente cartas camponesas

    provocadas pela emigrao2. A maioria destas cartas da impressode transitoriedade: a emigrao no est conscientizada (com maispreciso - no est ainda conscientizada) como decislo final, semretorno. Muitos autores destas cartas pretendem retornar, muitosviajaram tilo somente para ganhar dinheiro com o fim de melhorarsua situao no pas, com frequncia lembram conhecidos, parentes,aqueles que retornaram.

    Situao diferente apresentam as cartas vindas do Brasil. Namaioria dos casos, os autores so conscientes da irreversibilidade dasua decisao, de bem que frenquentemente no percebiam isto nomomento da partida. J aps algumas semanas de estada no Brasilsabiam que no tinham retorno, pelo menos por motivos financeiros:

    *A margem da edio do material original;Listy emigrantw z Brazylii i Stanw Zjednoczonych. 1890 -1891 [Cartas dos emigrantes do Brasil e dos Estados Unidos. 1890 - 1891], editado por. W. Ku1a, N.Assorodobraj-Ku1a, M. Ku1a, Warszawa 1973.**Traducido del polaco por Almer Gonales1Listy emigrantw..., introduo, pp. 19 - 115.2Listy emigrantw..., introduo, p. 51.

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    o pagamento da passagem de. volta, para a familia toda,normalmente ultrapassava as suas possibilidades. Parece que nascartas brasileiras, os problemas que poderiam ser definidos comoemigracionais - descris da viagem martima e depois terrestre,

    condies nos campos transitrios, das terras recm-obtidas e, porfim, as condies da sociedade brasileira - dominam os problemas daaldeia natal, que, no raramente, ocupam o primeiro plano nas cartasdos EUA.

    Falta aos autores destas cartas perspectiva temporal. Em geral,estao eles no Brasil somente h algumas semanas ou meses. Aindano se estabeleceram, ainda no Babero de tudo, ainda no est tudo

    decidido. No Babero se vencerao ouno. Se realizarao ou no as suas esperanas. Isto tira a estas cartas muitos valores informativos,que so to caractersticos para as memrias dos emigrantes,publicadas pelo Instituto de Economia Social3. Seria difcil se esperarurna descrio mais completa e profunda da sociedade brasileira, nose pode esperar juzos verificados, equilibrados e objetivados pelotempo e pelos acontecimentos. E nisto reside a virtude destas cartas.No conhecemos a sorte futura dos emigrantes, no sabemos como as

    relaes coro outros grupos recemchegados e coro os brasileirostomara o forma. Tomamos conhecimento, por Qutro lado, do capitalpsquico coro que iniciam. Nas cartas podemo apreender ospensamentos e os sentimentos dos emigrantes ao vivo, na suaforma mais simples, a qual podemos ter acesso, assirp como estes seformaram na Polonia e no con tato coro fragmentos da novarealidade observada. Os autores. da introduo remarcam que as

    cartas sao muito mais representativas para todos os emigrantespoloneses do que as memrias: no atuayam ainda os mecanismosseletivos que do s memrias carater de documentos de pessoas queobtiveram xito. Pode-se supor que os autores das cartas sao maissinceros, menos condicionados. Escrevem, enfim, para suas familias,no para instituies estatais (sbre isto, de que a conscincia do fimdevia deturpar o contedo das memrias certifica claramente opedido de um dos autores destas memrias. a Comisso do Instituto

    de Economia Social para no acreditar nos restantes, pois estes

    3 [Memrias dosemigrantes], Warszawa 1938.

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    escrevem somente na esperana de ganhar o premio em dinheiro4).Nascartas este elemento no existe, os camponeses relacionam osacontecimentos ao corrente; ainda inacabados, cuja sorte futura no conhecida. No tem que valorizar sua deciso, melhorar ou enegrec-

    la, defender a sua atitude a todo custo. O futuro todo est ainda diante dles.

    Eis por que as cartas constituem urna fonte capital, que permitemrefletir sbre as imagensdos poloneses quanto ao seu papel e lugar nanava sociedade, sbre a sua viso do Brasil e dos biasileiros. O valrreside justamente no que em outro caso poderia ser defeito: falta deperspectiva. Mais ntidamente se contorna o tal capital psquico,

    coro o qual inicia a vida de emigrante; Sem dvida, entre tantosoutros fatores que decidiram sbre a atual situao da Polnia,[nome dado na Polonia aos grupos poloneses emigrantes no exterior -nt.] brasileira, um lugar dos mais importantes ocupam as imagenssbre o seu prprio lugar e papel na sociedade brasileira.

    O que sabia o futuro emigrante sbre o Brasil ao partir? O queformava suas imagens? Boatos e propaganda oficial anti-emigracional - espcie de lenda negra - apresentavam o Brasil como

    pas selvagem, aonde vivero pessoas de outras religies ou mesmopagaos, ande no existem igrejas catlicas. Clima cruel, doenc;asmortais, trabalho escravo nas fazendas de caf completavam oquadro. Dutro lado, as cartas dos parentes e conhecidos falavamsbre a possibilidade de receber terras, ajuda do govrno, solosfrteis. E, por fim, tal vez o fator mais importante: a propagandapremi- gracional conduzida ,pelo govrno brasileiro. Assim

    caracteriza est propaganda L. Krzywicki no prefcio para asmemrias: Impulso [para a emigrao - A.M.] deu o govrnobrasileiro querendo atrair emigrantes para o seu territrio [...] pelasaldeias e pequenas cidades corriam as novinas que aumentavamtremendamente estas promessas [do govrno brasileiro - nt.]. Tendose apiedadodo povo catlico, o Papa ordenou ao imperador brasileiroa distribuir terras para os poloneses, para que os mesmos as tilvessecoro fatura. O Brasil, na imaginao das massas, era como a

    terraprometida; com leite e mel corrente, que esperava pelo polons-

    4Listy emigrantw..., p. 68.

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    catlico5. Sbre a poltica emigracional do govrno brasileiro e adireo da propaganda que deveria levar a sua realizao decidiramdais fatres. A libertao dos escravos, a ameaa da falta de braospara o trabalho o fator que ordinariamente mais destacado. Se

    bem que, sem alguma dvida importante, sbretudo para osfazendeiros de caf, no parece ter tido decisiva influncia na polticado goyerno federal, planejada numa escala mais ampla. O programaemigracional devia ser, na inteno do govrno, um fator chve napoltica de tranformaces economico-sociais formuladas comoentrada no caminho do progresso tcnico-civilizatrio. A causa doatraso econmico de at entao va-se na apatia e incapacidade

    das massas. As raas negra e verrnelha e as suas misturas seriamdestituidas do instinto de progresso tcnico, preguic;osas e no-criadoras por natureza, constituiam assim a maior barreira para oavanc;o do Brasil, tendo como modelo a Europa e os EUA. Asubstituio da populao local pelos emigrantes europeus era, entao,a nica maneira de se escapar ao crculo maldito do atraso. Contava-se no smente com os efeitos diretos, mas, em perspectiva, quera-se obter o branqueamento da sociedade brasileira. Queria-se de

    alguma forma, inocular na sociedade brasileira, atraVs daemigrao branca, estas tradies culturais e civilizatrias, quefizeram das naes europias pases (desde a perspectiva da Amricado Sul) com urna grande dinamica de desenvolvimento industrial egrande estabilidado poltica. A viso de progresso atravs daemigrao era, entao, inseparvel dos preconceitos e de um certo tipode pessimismo racial6. Isto no poderia deixar de ecoar na

    propaganda pr-emigracional e no poderia deixar tambm deinfluenciar a formao das imagens dos emigrantes sbre o Brasil, osseus habitantes e sbre seu papel entre eles.

    Nada de estranho que na brochura de autoria de K. stimulava a emigrao encontrou-se o seguintefragmento: Chegamos a um pas de cultura inferior, poucopopuloso, com fraco grau de educao, para o qual o nosso emigrantetraz, alem de mao de obra capacitada, perseverana, e ainda,

    5Listy emigrantw..., p. VII6S. J. Stein, B. H. Stein:La herencia colonial de la Amrica Latina, Mxico 1972, pp. 180 - 181.

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    experiencia social, apego a terra, a igreja e profunda religiosidade;sao estas as condies, segundo as quais podemos construir o futuro[...]7. Ser que o campones polones viajava, entao, para o Brasilcom a convico de sua superioridade, de sua missao civilizatria?

    Pode ser que no. Urna grande influencia na decisao de partir para oBrasil devia ser, justamente, a convico de que neste distante paspoderia se re encontrar, a convico de que l o mesmo que entrens8. Nas cartas enviadas durante a viagem os camponeses evitamde se ocupar das suas esperanas, previses. Existem problemas maisimportantes: como conseguiram atravessar a fronteira e chegar aBrema, quanto dinheiro era necessrio para a viagem e como se

    proteger dos trapaceiros. Em tres cartas somente o Brasil lembrado.Numa justifica o autor a escolha do Brasil por ter escutado o sermodo padre polones em Brema, que afirmava ser a mesma boa; pas, aocontrrio, nos EUA esperava a clera de Deus por se distanciar daf9. Na segunda, como lembrmos h pouco, expoe-se o fato de quetudo o mesmo, como entre ns. Na terceira, finalmente, tomamosconhecimento de que sbre a deciso de partir pesou o dinheiro: apossibilidade de viagem grtis fez pesar a balana em favor do

    Brasil10. Este elemento era muito importante. Para muitos, a viagemgrtis era condio imprescndivel, sem a qual de nenhuma maneira aviagem seria possvel. Para a maioria, a ajuda do govrno, orecebimento praticamente grtis da terra, ferramentas, casa - tudo istodava a impressao de que no sao aqu intrusos, que sao necessrios eesperados. Pode ser, por isto, que em nenhuma carta encontramosreclamaes contra o govrno de que tenham sido trapaceados.

    Apesar dos sofrimentas na ilha das Flres, doenas e morte em quasetodas as cartas se encontram citaes sbre o bom gverno, quedeles se ocupava11. morte, as doenas e ao descnforto oscamponeses poloneses estavam acostumados, ajuda do govrno -no.

    7K. Warchalowski: os Viajantes e Emigrantes], Krakw 1903, p. 4.8Listy emigrantw..., p. 137, carta 16.9Ibidem, pp. 128 - 129, carta 7.10Ibidem, p. 123, carta 4.11Ibidem, p. 178, carta 42.

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    Primeiro cantata - ilha das Flres, Rio de Janeiro: de um lado, aajuda do govrno d o sentimento de segurana, a consciencia doprprio valor; por outro lado, as primeiras observaes da socieda-.de brasileira: o idioma engraado12, o cerimonial religioso que,

    para os camponeses acostumados a solenidade e seriedade da Igrejapolonesa, situava-se na fronteira da blasfmia13. A imagem at entouniforme comea a se diferenciar - de um lado, o gverno; doutro, osbrasilianos. A imagem destes ltimos se torna mais precisa durantealguns das de viagem para a colonia. O que lhes chama a ateno a inexistencia de aldeias cesamente construidas, o primitivismodas casas dos camponeses situadas distante de si dezenas de

    quilmetros, a orientao da economia voltada, principalmente, paraa criao e o cultivo de plantas, que no exigem trabalho intensivocoro aterra14. Os camponeses poloneses j sabemque o solo brasileiro bastante rendoso, sabem que o clima possibilita vrias colheitasdurante o ano. No conhecem ainda, por outro lado, as condiesconcretas de trabalho, ho sabem como dificil cultivar esta terraande corre leite emel. Eis por que o juzo deles sbre a economacamponesa dos brasilianos to crtico. Para eles, acostumados a

    contar cada metro quadrado de terra, a situao incompreensvel,explicvel somente pela preguia, m-vontade dos brasilianos parao trabalho. Desta maneira, no pensamehto do campones-emigrantesurge a prxima oposio, que d forma a sua relao coro osbrasileiros: aterra onde corre o leite e o me!, terra, na qual suficiente semear para brotar e os nativos preguiosos mimadospela abundancia estragam a ddiva de Deus.

    Tal opinio se formou coro base na observao de passagem. Aesta se adicionaram, depois da chegada ao lugar da colnia, oscantos dos antigos colonos, tambm europeus, sbre os primeiroscontatoscomos caboclos e os ndios. Sentimento de ser estrangeiro,isolamento, depois mdo. Relaes instveis no interior, resoluo deconflitos com a ajuda de pistola, litgios com os grupos indgenas -somente agora os emigrantes comeam a compreender o, quanto esta

    12Ibidem, p. 227, carta 77.13Ibidem, p. 170, carta 36.14Ibidem, como exemplo p. 217, carta 68.

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    o distantes da calma e orientada segundo as leis , Europa. Nascartas, com mais frequnda, aparece a convico de que, lanarameles numa nao selvagem, aparece a conscincia da ameaaconstante15. Ameaa real ou ficticia? Pode-se supor que surge, desta

    maneira, antes a incerteza do emigrante lanado sem, esperar nascondies daquelas terras virgens do que a real agressividade doshabitantes locais. Segue-ce, ao mesmo tempo, a diferenciaocaracterstica: ns somos emigrantes vindos da Europa, no importainclusive se poloneses, alemos ou suios; em trno de ns, estanao selvagem. Os brasileiros so piores no somente por que soperigosos, pois podem atirar sem barulho da distncia da de 300

    metros (como reclama um dos camponeses)

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    , so piores por que nosabem aproveitar aterra oferecidaa eles por Deus, pois sopreguiosos.

    Assim se apresentam, mais ou menos, as etapas de formao dojuzo, que faz eco com os principios emigracionais do govrnobrasileiro. Partindo da propaganda pr-emigracional executada nopas, atravs da conquista da confiana em si mesmo e do sentimentodo valor prprio e dos primeiros juzos desqualificando os

    brasilianos, os camponeses polonses obtm a convico de suamisso civilizatria no Brasil. Escrevem para suas familias que osdaqu vivem como animais. Mas quando comearmos a trabalhartudo ser diferente17. Foram conduzidos [ao Brasil- nt.] paratrazerem consigo civilizao, eles construirao o novo Brasil: [...]antigamente aqu exista um vazio terrvel e as montanhas eramcobertas por florestas, que agora devemos transformar em campos

    cultivados

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    . Aqu onde estamos no existem ainda fbricas [...]tudo era deserto, ns agora constituiremos cidades [...]19.Interessante que esta convicc;ao da prpria superioridade, de queso esperados edesejados, de que trazem certos valores civilizatrios,os quais faltavam aos habitantes locais, no est relacionada, demaneira alguma, como o racismo. Para os camponeses poloneses, os

    15Ibidem, p. 188, carta 47.16Ibidem, p. 225, carta 75.17Ibidem, p. 227, carta 77.18Ibidem, p. 188, carta 47.19Ibidem, p. 194, carta 52.

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    brasileiros no so piores por que so negros, vermelhos ou de cr.Nas cartas aparece, antes, simpatia, para com os negros, com osquais, aoque parece, era mais fcil entrar em contato. Os brancosprovocam fieles repulsa com sua soberbia e indeferentismo religioso.

    Verdadeiros catlicos sao justamente os negros20. Este ltimoproblema vale sublinhar. Pode ser que o catolicismo negro, taofrequentemente definido como sincretismo desvirtuando-se bastantedos limites da ortodoxia, fsse, entretanto, mais prximo das formasdo catolicismo popular polones do que boje em da pode parecer.

    Assim, ento, o Brasil aparece para os camponeses polonesescomo pas meio selvagem e atrasado, sem cultura agrcola, com

    abundncia de terras e populao preguiosa, que no sabe e noquer aproveitar estas condies. um pas, onde no existe fbricas,as ferramentas agrcolas e os artigos industriais tem que serimportados da Europa, da Europa dos emigrantes (pois os repetidosconselhos-pedidos nas cartas para que os parentes vindo [para oBrasil- nt.] tragam consigo ferramentas, no so so mente sintomasdo apego as conhecidas formas da enxada e do ancinho, no somentereflexo do tradicionalismo campones, mas - antes de tudo - reflexo

    da profunda convico de que as ferramentas produzidas na Europa,Rssia e Prssia so simplesmente melhores). claro que estadescrio feta com base em observaes rpidas e fragmentriasrefletiam, no tanto a realidade brasileira, mas a sua imagem surgidano pensamento dos emigrantes. Importante, antes de tudo, para ns, o fato de que os camponeses poloneses tratados na sua prpria ptriacomo algo inferior, de repente foram mais valorizados. Toda a

    propaganda emigracional, a ajuda do gverno, as condies que -pelo menos teoricamente - foram criadas para eles, as primeirasobservaes na terra brasileira, tudo isto dava aos emigrantes osentimento de que trazem consigo algo de muito valor, de que saoindispensveis. Tornaram-se assim, graas a isto, participantes da co-criao do Brasil, da co-criao, durante a qual eram, segundo suasprprias convices, doadores, mas no recebedores.

    20Ibidem, p. 227, carta 77.