Carta Encíclica Pascendi

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CARTA ENCÍCLICA DO SUMO PONTÍFICE PIO X PASCENDI DOMINICI GREGIS SOBRE AS DOUTRINAS MODERNISTAS Aos Patriarcas, Primazes, Arcebispos, Bispos e outros Ordinários em paz e comunhão com a Sé Apostólica Veneráveis Irmãos, saúde e benção apostólica INTRODUÇÃO A missão, que nos foi divinamente confiada, de apascentar o rebanho do Senhor, entre os principais deveres impostos por Cristo, conta o de guardar com todo o desvelo o depósito da fé transmitida aos Santos, repudiando as profanas novidades de palavras e as oposições de uma ciência enganadora. E, na verdade, esta providência do Supremo Pastor foi em todo o tempo necessária à Igreja Católica; porquanto, devido ao inimigo do gênero humano nunca faltaram homens de perverso dizer (At 20,30), vaníloquos e sedutores (Tit 1,10), que caídos eles em erro arrastam os mais ao erro (2 Tim 3,13). Contudo, há mister confessar que nestes últimos tempos cresceu sobremaneira o número dos inimigos da Cruz de Cristo, os quais, com artifícios de todo ardilosos, se esforçam por baldar a virtude vivificante da Igreja e solapar pelos alicerces, se dado lhes fosse, o mesmo reino de Jesus Cristo. Por isto já não Nos é lícito calar para não parecer faltarmos ao Nosso santíssimo dever, e para que se Nos não acuse de descuido de nossa obrigação, a benignidade de que, na esperança de melhores disposições, até agora usamos. E o que exige que sem demora falemos, é antes de tudo que os fautores do êrro já não devem ser procurados entre inimigos declarados; mas, o que é muito para sentir e recear, se ocultam no próprio seio da Igreja, tornando-se destarte tanto mais nocivos quanto menos percebidos. Aludimos, Veneráveis Irmãos, a muitos membros do laicato católico e também, coisa ainda mais para lastimar, a não poucos do clero que, fingindo amor à Igreja e sem nenhum sólido conhecimento de filosofia e teologia, mas, embebidos antes das teorias envenenadas dos inimigos da Igreja, blasonam, postergando todo o comedimento, de reformadores da mesma Igreja; e cerrando ousadamente fileiras se atiram sobre tudo o que há de mais santo na obra de Cristo, sem pouparem sequer a mesma pessoa do divino Redentor que, com audácia sacrílega, rebaixam à craveira de um puro e simples homem. Pasmem, embora homens de tal casta, que Nós os ponhamos no número dos inimigos da Igreja; não poderá porém, pasmar com razão quem quer que, postas de lado as

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CARTA ENCCLICADO SUMO PONTFICEPIO XPASCENDI DOMINICI GREGISSOBREAS DOUTRINAS MODERNISTASAos Patriarcas, Primazes, Arcebispos,Bispos e outros Ordinrios em paz e comunho com a S ApostlicaVenerveis Irmos, sade e beno apostlica

INTRODUO

A misso, que nos foi divinamente confiada, de apascentar o rebanho do Senhor, entre os principais deveres impostos por Cristo, conta o de guardar com todo o desvelo o depsito da f transmitida aos Santos, repudiando as profanas novidades de palavras e as oposies de uma cincia enganadora. E, na verdade, esta providncia do Supremo Pastor foi em todo o tempo necessria Igreja Catlica; porquanto, devido ao inimigo do gnero humano nunca faltaram homens de perverso dizer (At20,30), vanloquos e sedutores (Tit1,10), que cados eles em erro arrastam os mais ao erro (2Tim3,13). Contudo, h mister confessar que nestes ltimos tempos cresceu sobremaneira o nmero dos inimigos da Cruz de Cristo, os quais, com artifcios de todo ardilosos, se esforam por baldar a virtude vivificante da Igreja e solapar pelos alicerces, se dado lhes fosse, o mesmo reino de Jesus Cristo. Por isto j no Nos lcito calar para no parecer faltarmos ao Nosso santssimo dever, e para que se Nos no acuse de descuido de nossa obrigao, a benignidade de que, na esperana de melhores disposies, at agora usamos.

E o que exige que sem demora falemos, antes de tudo que os fautores do rro j no devem ser procurados entre inimigos declarados; mas, o que muito para sentir e recear, se ocultam no prprio seio da Igreja, tornando-se destarte tanto mais nocivos quanto menos percebidos.

Aludimos, Venerveis Irmos, a muitos membros do laicato catlico e tambm, coisa ainda mais para lastimar, a no poucos do clero que, fingindo amor Igreja e sem nenhum slido conhecimento de filosofia e teologia, mas, embebidos antes das teorias envenenadas dos inimigos da Igreja, blasonam, postergando todo o comedimento, de reformadores da mesma Igreja; e cerrando ousadamente fileiras se atiram sobre tudo o que h de mais santo na obra de Cristo, sem pouparem sequer a mesma pessoa do divino Redentor que, com audcia sacrlega, rebaixam craveira de um puro e simples homem.

Pasmem, embora homens de tal casta, que Ns os ponhamos no nmero dos inimigos da Igreja; no poder porm, pasmar com razo quem quer que, postas de lado as intenes de que s Deus juiz, se aplique a examinar as doutrinas e o modo de falar e de agir de que lanam eles mo. No se afastar, portanto, da verdade quem os tiver como os mais perigosos inimigos da Igreja. Estes, em verdade, como dissemos, no j fora, mas dentro da Igreja, tramam seus perniciosos conselhos; e por isto, por assim dizer nas prprias veias e entranhas dela que se acha o perigo, tanto mais ruinoso quanto mais intimamente eles a conhecem. Alm de que, no sobre as ramagens e os brotos, mas sobre as mesmas razes que so a F e suas fibras mais vitais, que meneiam eles o machado.

Batida pois esta raiz da imortalidade, continuam a derramar o vrus por toda a rvore, de sorte que coisa alguma poupam da verdade catlica, nenhuma verdade h que no intentem contaminar. E ainda vo mais longe; pois pondo em obra o sem nmero de seus malficos ardis, no h quem os vena em manhas e astcias: porquanto, fazem promiscuamente o papel ora de racionalistas, ora de catlicos, e isto com tal dissimulao que arrastam sem dificuldade ao erro qualquer incauto; e sendo ousados como os que mais o so, no h conseqncias de que se amedrontem e que no aceitem com obstinao e sem escrpulos. Acrescente-se-lhes ainda, coisa aptssima para enganar o nimo alheio, uma operosidade incansvel, uma assdua e vigorosa aplicao a todo o ramo de estudos e, o mais das vezes, a fama de uma vida austera. Finalmente, e isto o que faz desvanecer toda esperana de cura, pelas suas mesmas doutrinas so formadas numa escola de desprezo a toda autoridade e a todo freio; e, confiados em uma conscincia falsa, persuadem-se de que amor de verdade o que no passa de soberba e obstinao. Na verdade, por algum tempo esperamos reconduzi-los a melhores sentimentos e, para ste fim, a princpio os tratamos com brandura, em seguida com severidade e, finalmente, bem a contragosto, servimo-nos de penas pblicas.

Mas vs bem sabeis, Venerveis Irmos, como tudo foi debalde; pareceram por momento curvar a fronte, para depois reergu-la com maior altivez. Poderamos talvez ainda deixar isto desapercebido se tratasse somente deles; trata-se porm das garantias do nome catlico.

H, pois, mister quebrar o silncio, que ora seria culpvel, para tornar bem conhecidas Igreja esses homens to mal disfarados.

E visto que os modernistas (tal o nome com que vulgarmente e com razo so chamados) com astuciosssimo engano costumam apresentar suas doutrinas no coordenadas e juntas como um todo, mas dispersas e como separadas umas das outras, afim de serem tidos por duvidosos e incertos, ao passo que de fato esto firmes e constantes, convm, Venerveis Irmos, primeiro exibirmos aqui as mesmas doutrinas em um s quadro, e mostrar-lhes o nexo com que formam entre si um s corpo, para depois indagarmos as causas dos erros e prescrevermos os remdios para debelar-lhes os efeitos perniciosos.

1 PARTE

EXPOSIO DO SISTEMA E SUA DIVISO

E para procedermos com ordem em to abstrusa matria, convm notar que cada modernista representa e quase compendia em si muitos personagens, isto , o de filsofo, o de crente, o de telogo, o de historiador, o de crtico, o de apologista, o de reformador; os quais personagens todos, um por um, cumpre bem os distinga todo aquele que quiser devidamente conhecer o seu sistema e penetrar nos princpios e nas conseqncias das suas doutrinas.

O modernista filsofoComeando pelo filsofo, cumpre saber que todo o fundamento da filosofia religiosa dos modernistas assenta sobre a doutrina, que chamamos agnosticismo. Por fora desta doutrina, a razo humana fica inteiramente reduzida considerao dos fenmenos, isto , s das coisas perceptveis e pelo modo como so perceptveis; nem tem ela direito nem aptido para transpor estes limites. E da segue que no dado razo elevar-se a Deus, nem conceder-lhe a existncia, nem mesmo por intermdio dos seres visveis. Segue-se, portanto, que Deus no pode ser de maneira alguma objeto direto da cincia; e tambm com relao histria, no pode servir de assunto histrico. Postas estas premissas, todos percebem com clareza qual no deve ser a sorte da teologia natural, dos motivos de credibilidade, da revelao externa. Tudo isto os modernistas rejeitam e atribuem ao intelectualismo, que chamam ridculo sistema, morto j h muito tempo. Nem os abala ter a Igreja condenado formalmente erros to monstruosos. Pois que, de fato, o Conclio Vaticano I assim definiu;

Se algum disser que o Deus, nico e verdadeiro, criador e Senhor nosso, por meio das coisas criadas no pode ser conhecido com certeza pela luz natural da razo humana, seja antema (De Revel. Cn. 1); e tambm:

Se algum disser que no possvel ou no convm que, por divina revelao, seja o homem instrudo acerca de Deus e do culto que lhe devido, seja antema (Ibid. Cn. 2); e, finalmente:

Se algum disser que a divina revelao no pode tornar-se crvel por manifestaes externas, e que por isto os homens no devem ser movidos f seno exclusivamente pela interna experincia ou inspirao privada, seja antema (De Fide, Cn. 3).

De que modo porm os modernistas passam do agnosticismo, que puro estado de ignorncia, para o atesmo cientfico e histrico que, ao contrrio, estado de positiva negao, e por isso, com que lgica, do no saber se Deus interveio ou no na histria do gnero humano, passam a tudo explicar na mesma histria, pondo Deus de parte, como se na realidade no tivesse intervindo, quem o souber que o explique.

H entretanto para eles uma coisa fixa e determinada, que o dever ser atia a cincia a par da histria, em cujas raias no haja lugar seno para os fenmenos, repelido de uma vez, Deus e tudo o que divino. E dessa absurdssima doutrina ver-se-, dentro em pouco, que coisas seremos obrigados a deduzir a respeito da augusta Pessoa de Cristo, dos mistrios e da sua vida e morte, da sua ressurreio e ascenso ao cu.

Este agnosticismo, porm, na doutrina dos modernistas, no constitui seno a parte negativa; a positiva acha-se toda na imanncia vital.

Eis aqui o modo como eles passam de uma parte a outra. A religio, quer a natural quer a sobrenatural, mister seja explicada como qualquer outro fato. Ora, destruda a teologia natural, impedido o acesso revelao ao rejeitar os motivos de credibilidade, claro que se no pode procurar fora do homem essa explicao. Deve-se, pois, procurar no mesmo homem; e visto que a religio no de fato seno uma forma da vida, a sua explicao se deve achar mesmo na vida do homem. Daqui procede o princpio da imanncia religiosa.Demais, a primeira moo, por assim dizer, de todo fenmeno vital, deve sempre ser atribuda a uma necessidade; os primrdios, porm, falando mais especialmente da vida, devem ser atribudos a um movimento do corao, que se chama sentimento. Por conseguinte, como o objeto da religio Deus, devemos concluir que a f, princpio e base de toda a religio, se deve fundar em um sentimento, nascido da necessidade da divindade.

Esta necessidade das causas divinas no se fazendo sentir no homem seno em certas e especiais circunstncias, no pode de per si pertencer ao mbito da conscincia; oculta-se (porm), primeiro abaixo da conscincia, ou, como dizem com vocbulo tirado da filosofia moderna, na subconscincia, onde a sua raiz fica tambm oculta e incompreensvel. Se algum, contudo lhes perguntar de que modo essa necessidade da divindade, que o homem sente em si mesmo, torna-se religio, ser esta a resposta dos modernistas: a cincia e a histria, dizem eles, acham-se fechadas entre dois termos: um externo, que o mundo visvel; outro interno, que a conscincia. Chegados a um ou outro destes dois termos, no se pode ir mais adiante; alm destes dois limites acha-se o incognoscvel. Diante deste incognoscvel, seja que ele se ache fora do homem e fora de todas as coisas visveis, seja que ele se ache oculto na subconscincia do homem, a necessidade de um qu divino, sem nenhum ato prvio da inteligncia, como o quer o fidesmo, gera no nimo j inclinado um certo sentimento particular, e este, seja como objeto seja como causa interna, tem envolvida em si a mesma realidade divina e assim, de certa maneira, une o homem com Deus. precisamente a este sentimento que os modernistas do o nome de f e tem-no como princpio de religio.

Nem acaba a o filosofar, ou melhor, o desatinar desses homens. Pois, nesse mesmo sentimento eles no encontram unicamente a f; mas, com a f e na mesma f, do modo como a entendem, sustentam que tambm se acha a revelao. E que o que mais se pode exigir para a revelao? J no ser talvez revelao, ou pelo menos princpio de revelao, aquele sentimento religioso, que se manifesta na conscincia? Ou tambm o mesmo Deus a manifestar-se s almas, embora um tanto confusamente, no mesmo sentimento religioso? eles ainda acrescentam mais, dizendo que, sendo Deus ao mesmo tempo objeto e causa da f, essa revelao de Deus como objeto e tambm provm de Deus como causa; isto , tem a Deus ao mesmo tempo como revelante e revelado. Segue-se daqui, Venerveis Irmos, a absurda afirmao dos modernistas, segundo a qual toda a religio, sob diverso aspecto, igualmente natural e sobrenatural. Segue-se daqui a promscua significao que do aos termos conscincia e revelao. Daqui a lei que d a conscincia religiosa, a par com a revelao, como regra universal, qual todos se devem sujeitar, inclusive a prpria autoridade da Igreja, seja quando ensina seja quando legisla em matria de culto ou disciplina.

Entretanto, em todo este processo donde, segundo os modernistas, resultam a f e a revelao, deve atender-se principalmente a uma coisa de no pequena importncia, pelas conseqncias histrico-crticas, que da fazem derivar. Aquele Incognoscvel, de que falam, no se apresenta f como que nu e isolado; mas, ao contrrio, intimamente unido a algum fenmeno que, embora pertena ao campo da cincia ou da histria, assim mesmo, de certo modo, transpe os seus limites.

Este fenmeno poder ser um fato qualquer da natureza, contendo em si algum qu de misterioso, ou poder tambm ser um homem, cujo talento, cujos atos, cujas palavras parecem nada ter de comum com as leis ordinrias da histria. A f, pois, atrada pelo Incognoscvel unido ao fenmeno, apodera-se de todo o mesmo fenmeno e de certo modo o penetra da sua vida. Donde se seguem duas coisas.

A primeira uma certa transfigurao do fenmeno, por uma espcie de elevao das suas prprias condies, que o torna mais apto, qual matria, para receber o divino.

A segunda uma certa desfigurao, resultante de que, tendo a f subtrado ao fenmeno os seus adjuntos de tempo e de lugar, facilmente lhe atribui aquilo que em realidade no tem; o que particularmente se d em se tratando de fenmenos de antigas datas, e isto tanto mais quanto mais remotas so elas. Destes dois pressupostos, os modernistas deduzem outros tantos cnones que unidos a um terceiro j deduzido de agnosticismos, constituem a base da crtica histrica. Esclareamos o fato com um exemplo tirado da pessoa de Jesus Cristo. Na pessoa de Cristo, dizem, a cincia e a histria no acham mais do que um homem. Portanto, em virtude do primeiro cnon deduzido do agnosticismo, da histria dessa pessoa se deve riscar tudo o que sabe de divino. Ainda mais, por fora do segundo cnon, a pessoa histrica de Jesus Cristo foi transfigurado pela f; logo, convm despoj-la de tudo o que a eleva acima das condies histricas.

Finalmente, a mesma foi desfigurada pela f, em virtude do terceiro cnon; logo, se devem remover dela as falas, as aes, tudo enfim que no corresponde ao seu carter, condio e educao, lugar e tempo em que viveu. em verdade estranho tal modo de raciocinar; contudo esta a crtica dos modernistas.

O sentimento religioso, que por imanncia vital surge dos esconderijos da subconscincia, pois o grmen de toda a religio e a razo de tudo o que tem havido e haver ainda em qualquer religio.

Este mesmo sentimento rudimentar e quase informe a princpio, pouco a pouco, sob o influxo do misterioso princpio que lhe deu origem, tem-se ido aperfeioando, a par com o progresso da vida humana, da qual, como j ficou dito, uma forma.

Temos, pois, assim a origem de toda a religio, at mesmo da sobrenatural; e estas no passam de meras explicaes do sentimento religioso. Nem se pense que a catlica excetuada; est no mesmo nvel das outras, pois no nasceu seno pelo processo de imanncia vital na conscincia de Cristo, homem de natureza extremamente privilegiada, como outro no houve nem haver. Fica-se pasmo em se ouvindo afirmaes to audaciosas e sacrlegas! Entretanto, Venerveis Irmos, no esta linguagem usada temerariamente s pelos incrdulos. Homens catlicos, at muitos sacerdotes, afirmaram estas coisas publicamente, e com delrios tais se vangloriam de reformar a Igreja.

J no se trata aqui do velho erro, que natureza humana atribua um quase direito ordem sobrenatural.

Vai-se muito mais longe ainda; chega-se at a afirmar que a nossa santssima religio, no homem Jesus Cristo assim como em ns, fruto inteiramente espontneo da natureza. Nada pode vir mais a propsito para dar cabo de toda a ordem sobrenatural. Por isto com suma razo o Conclio Vaticano I definiu: Se algum disser que o homem no pode ser por Deus elevado a conhecimento e perfeio, que supere as foras da natureza, mas por si mesmo pode e deve, com incessante progresso, chegar finalmente a possuir toda a verdade e todo o bem, seja antema (De Revel Cn. 3).

At agora porm, Venerveis Irmos, no lhes vimos dar nenhum lugar ao da inteligncia. Contudo, segundo as doutrinas dos modernistas, tem ela tambm a sua parte no ato de f. Vejamos como.

Naquele sentimento, dizem, de que tantas vezes j se tem falado, precisamente porque sentimento e no conhecimento, Deus de fato se apresenta ao homem, mas de modo to confuso que em nada ou mal se distingue desse mesmo crente. Faz-se, pois, mister lanar algum raio de luz sobre aquele sentimento, de maneira que Deus se apresente fora e distinto do crente. Ora, isto obra da inteligncia, qual somente cabe o pensar e o analisar, e por meio da qual o homem a princpio traduz em representaes mentais os fenmenos de vida, que nele aparecem, e depois os manifesta com expresses verbais.

Segue-se da esta vulgar expresso dos modernistas: o homem religioso deve pensar sua f. Sobrevindo, pois, a inteligncia ao sentimento, inclina-se sobre este, elabora-o todo, a modo de um pintor que ilumina e reanima os traos de um quadro estragado pelo tempo. O paralelo de um dos mestres do modernismo. Neste trabalho a inteligncia procede de dois modos: primeiro, por um ato natural e espontneo, exprimindo a sua noo por uma proposio simples e vulgar; depois, com reflexo e penetrao mais ntima, ou, como dizem, elaborando o seu pensamento, exprime o que pensou com proposies secundrias, se forem finalmente sancionadas pelo supremo magistrio da Igreja, constituiro o dogma.

Assim pois, na doutrina dos modernistas, chegamos a um dos pontos mais importantes, que a origem e mesmo a natureza do dogma. A origem do dogma pem-na eles, pois, naquelas primitivas frmulas simples que, debaixo de certo aspecto, devem considerar-se como essenciais f, pois que a revelao, para ser verdadeiramente tal, requer uma clara apario de Deus na conscincia. O mesmo dogma porm, ao que parece, propriamente constitudo pelas frmulas secundrias. Mas, para bem se conhecer a natureza do dogma, preciso primeiro indagar que relaes h entre as frmulas religiosas e o sentimento religioso.

No haver dificuldade em o compreender para quem j tiver como certo que estas frmulas no tm outro fim, seno o de facilitarem ao crente um modo de dar razo da prpria f. De sorte que essas frmulas so como que umas intermedirias entre o crente e a sua f; com relao f, so expresses inadequadas do seu objeto e pelos modernistas se denominam smbolos; com relao ao crente, reduzem-se a meros instrumentos.

No portanto de nenhum modo lcito afirmar que elas exprimem uma verdade absoluta; portanto, como smbolos, so meras imagens de verdade, e portanto devem adaptar-se ao sentimento religioso, enquanto este se refere ao homem; como instrumentos, so veculos de verdade e assim, por sua vez, devem adaptar-se ao homem, enquanto se refere ao sentimento religioso. E, pois que este sentimento, tem por objeto o absoluto, apresenta infinitos aspectos, dos quais pode aparecer, hoje um, amanh outro e da mesma sorte como aquele que cr pode passar por essas e aquelas condies, segue-se que tambm as frmulas, que chamamos dogmas, devem estar sujeitas a iguais vicissitudes, e por isso tambm a variarem.

Assim pois, temos o caminho aberto ntima evoluo do dogma. Eis a um acervo de sofismas, que subvertem e destroem toda a religio!

Ousadamente afirmam os modernistas, e isto mesmo se conclui das suas doutrinas, que os dogmas no somente podem, mas positivamente devem evoluir e mudar-se. De fato, entre os pontos principais da sua doutrina, contam tambm este, que deduzem da imanncia vital: as frmulas religiosas, para que realmente sejam tais e no s meras especulaes da inteligncia, precisam ser vitais e viver da mesma vida do sentimento religioso. Da porm no se deve concluir que essas frmulas, particularmente se forem s imaginrias, sejam formadas a bem desse mesmo sentimento religioso; porquanto nada importa a sua origem, nem o seu nmero, nem a sua qualidade; segue-se, porm, que o sentimento religioso, embora modificando-as, se houver mister, as torna vitais e f-las viver de sua prpria vida. Em outros termos, preciso a frmula primitiva seja aceita e confirmada pelo corao, e que a subseqente elaborao das frmulas secundrias seja feita sob a direo do corao. Procede da que tais frmulas para serem vitais, ho de ser e ficar adaptadas tanto f quanto ao crente. Pelo que, se por qualquer motivo cessar essa adaptao, perdem sua primitiva significao e devem ser mudadas. Ora, sendo assim mutvel o valor e a sorte das frmulas dogmticas, no de admirar que os modernistas tanto as escarneam e desprezem, e que por conseguinte s reconheam e exaltem o sentimento e a vida religiosa. Por isto, com o maior atrevimento criticam a Igreja acusando-a de caminhar fora da estrada, e de no saber distinguir entre o sentido material das frmulas e sua significao religiosa e moral, e ainda mais, agarrando-se obstinadamente, mas em vo, a frmulas falhas de sentido, de deixar a prpria religio rolar no abismo. Cegos, na verdade, a conduzirem outros cegos, so esses homens que inchados de orgulhosa cincia, deliram a ponto de perverter o conceito de verdade e o genuno conceito religioso, divulgando um novo sistema, com o qual, arrastados por desenfreada mania de novidades, no procuram a verdade onde certamente se acha; e, desprezando as santas e apostlicas tradies, apegam-se a doutrinas ocas, fteis, incertas, reprovadas pela Igreja, com as quais homens estultssimos julgam fortalecer e sustentar a verdade (Gregrio XVI, Encclica "Singulari Nos" 7 Jul. 1834).

Assim, Venerveis Irmos, pensa o modernista como filsofo.

O modernista crenteAgora, passando a consider-lo como crente, se quisermos conhecer de que modo, no modernismo, o crente difere do filsofo, convm observar que, embora o filsofo reconhea por objeto da f a realidade divina, contudo esta realidade no se acha noutra parte seno na alma do crente, como objeto de sentimento e afirmao; porm, se ela em si mesma existe ou no fora daquele sentimento e daquela afirmao, isto no importa ao filsofo. Se, porm, procurarmos saber que fundamento tem esta assero do crente, respondem os modernistas: a experincia individual. Com esta afirmao, enquanto na verdade discordam dos racionalistas, caem na opinio dos protestantes e dos pseudo-msticos.

Eis como eles o declaram: no sentimento religioso deve reconhecer-se uma espcie de intuio do corao, que ps o homem em contato imediato com a prpria realidade de Deus e lhe infunde tal persuaso da existncia dele e da sua ao, tanto dentro como fora do homem, que excede a fora de qualquer persuaso, que a cincia possa adquirir. Afirmam, portanto, uma verdadeira experincia, capaz de vencer qualquer experincia racional; e se esta for negada por algum, como pelos racionalistas, dizem que isto sucede porque estes no querem pr-se nas condies morais que so necessrias para consegui-la. Ora, tal experincia a que faz prpria e verdadeiramente crente a todo aquele que a conseguir. Quanto vai dessa doutrina catlica! J vimos essas idias condenadas pelo Conclio Vaticano I. Veremos ainda como, com semelhantes teorias, unidos a outros erros j mencionados, se abre caminho para o atesmo. Cumpre, entretanto, desde j, notar que, posta esta doutrina da experincia unida outra do simbolismo, toda religio, no executada sequer a dos idlatras, deve ser tida por verdadeira. E na verdade, porque no fora possvel o se acharem tais experincias em qualquer religio? E no poucos presumem que de fato j se as tenha encontrado. Com que direito, pois, os modernistas negaro a verdade a uma experincia afirmada, por exemplo, por um maometano? Com que direito reivindicaro experincias verdadeiras s para os catlicos? E os modernistas de fato no negam, ao contrrio, concedem, uns confusa e outros manifestamente, que todas as religies so verdadeiras. claro, porm, que eles no poderiam pensar de outro modo.

Em verdade, postos os seus princpios, em que se poderiam porventura fundar para atribuir falsidade a uma religio qualquer? Sem dvida seria por algum destes dois princpios: ou por falsidade do sentimento religioso, ou por falsidade da frmula proferida pela inteligncia. Ora, o sentimento religioso, ainda que s vezes menos perfeito, sempre o mesmo; e a frmula intelectual para ser verdadeira basta que corresponda ao sentimento religioso e ao crente, seja qual for a fora do engenho deste. Quando muito, no conflito entre as diversas religies, os modernistas podero sustentar que a catlica tem mais verdade, porque mais viva, e merece mais o ttulo de crist, porque mais completamente corresponde s origens do cristianismo. A ningum pode parecer absurdo que estas conseqncias todas dimanem daquelas premissas. Absurdssimo , porm, que catlicos e sacerdotes que, como preferimos crer, tm horror a to monstruosas afirmaes, se ponham quase em condio de admiti-las. Pois, tais so os louvores que tributam aos mestres desses erros, tais as homenagens que publicamente lhes prestam, que facilmente do a entender que as suas honras no atingem as pessoas, que talvez de todo no desmeream, antes, porm, aos erros, que elas professam s claras, e entre o povo procuram com todos os esforos propagar.

H ainda outra face, alm da que j vimos, nesta doutrina da experincia, de todo contrria verdade catlica. Pois, ela se estende e se aplica tradio que a Igreja tem sustentado at hoje, e a destri. E com efeito, os modernistas concebem a tradio como uma comunicao da experincia original, feita a outrem pela pregao, mediante a frmula intelectual.

Por isto a esta frmula, alm do valor representativo, atribuem certa eficcia de sugesto, tanto naquele que cr, para despertar o sentimento religioso qui entorpecido, e restaurar a experincia de h muito adquirida, como naqueles que ainda no crem, para despertar neles, pela primeira vez, o sentimento religioso e produzir a experincia. Por esta maneira a experincia religiosa abundantemente se propaga entre os povos: no s entre os existentes, pela pregao, mas tambm entre os vindouros, quer pelo livro, quer pela transmisso oral de uns a outros. Esta comunicao da experincia s vezes lana razes e vinga; outras vezes se esteriliza logo e morre. O viver para os modernistas prova de verdade; e a razo disto que verdade e vida para eles so uma e a mesma coisa. E daqui, mais uma vez, se infere que todas as religies existentes so verdadeiras, do contrrio j no existiriam.

Levadas as coisas at este ponto, Venerveis Irmos, j temos muito para bem conhecermos a ordem que os modernistas estabelecem entre a f e a cincia; notando-se que neste nome de cincia incluem tambm a histria. Antes de tudo se deve ter por certo que o objeto de uma de todo estranho e separado do objeto de outra. Porquanto a f unicamente se ocupa de uma coisa, que a cincia declara ser para si incognoscvel. Segue-se, pois, que diversa a tarefa de cada uma; a cincia acha-se toda na realidade dos fenmenos, onde a f por maneira alguma penetra; a f, pelo contrrio, ocupa-se da realidade divina, que de todo desconhecido cincia. Conclui-se, portanto, que nunca poder haver conflito entre a f e a cincia; porque, se cada uma se restringir a seu campo, nunca podero encontrar-se, nem portanto contradizer-se. Se, entretanto, algum objetar que no mundo visvel h coisas que tambm pertencem f, como a vida humana de Cristo, respondero os modernistas negando. E a razo que, conquanto tais coisas estejam no nmero dos fenmenos, todavia, enquanto viveram pela f e, no modo j indicado, foram pela mesma transfiguradas e desfiguradas, foram subtradas ao mundo sensvel e passaram a ser matria do divino. Por este motivo, se ainda se quisesse saber se Cristo fez verdadeiros milagres e profecias, se verdadeiramente ressuscitou e subiu ao cu, a cincia agnstica o negar e a f o afirmar; e nem assim haver luta entre as duas. Nega-o o filsofo como filsofo, falando a filsofos e considerando Cristo na sua realidade histrica; afirma-o o crente, como crente, falando a crentes e considerando a vida de Cristo a reviver pela f e na f.

De muito se enganaria quem, postas estas teorias, se julgasse autorizado a crer que a cincia e a f so independentes uma da outra. Por parte da cincia, essa independncia est fora de dvida; mas, j no assim por parte da f, que no por um s, mas por trs motivos, se deve submeter cincia. Efetivamente de notar, em primeiro lugar, que em todo fato religioso, tirada a realidade divina e a experincia que o crente tem da mesma, tudo o mais, e principalmente as frmulas religiosas, no sai do campo dos fenmenos; cai portanto sob o domnio da cincia. Afaste-se embora do mundo o crente, se lhe aprouver; mas, enquanto se achar no mundo, nunca poder se furtar, queira-o ou no, s leis, s vistas, ao juzo da cincia e da histria. Ainda mais, embora se tenha dito que Deus s objeto da f, isto entretanto no se deve entender seno da realidade divina e no da idia de Deus.

Esta dependente da cincia; a qual, enquanto se deleita na ordem lgica, tambm se eleva at o absoluto e o ideal. , pois, direito da filosofia ou da cincia indagar da idia de Deus, dirigi-la na sua evoluo, corrigi-la quando se lhe misturar qualquer elemento estranho. Fundados nisto que os modernistas sustentam que a evoluo religiosa deve ser coordenada com a evoluo moral e intelectual; isto , como ensina um dos seus mestres, deve ser-lhes subordinada. Deve-se enfim observar que o homem, em si, no suporta um dualismo, por conseguinte o crente experimenta em si mesmo uma ntima necessidade de harmonizar de tal sorte a f com a cincia, que aquela no se oponha idia geral que a cincia forma do universo. Conclui-se, pois, que a cincia de todo independente da f; esta, ao contrrio, embora se declame que estranha cincia, deve-lhe submisso. Todas estas coisas, Venerveis Irmos, so diametralmente contrrias ao que o Nosso antecessor Pio IX ensinava, dizendo (Brev. ad Ep. Wratislaw. 15 jun. 1857): Em matria de religio, dever da filosofia no dominar, mas servir, no prescrever o que se deve crer, mas aceit-lo com razovel respeito, no perscrutar os profundos dos mistrios de Deus, mas piedosa e humildemente vener-los. Os modernistas entendem isto s avessas: h, pois, sobeja razo de aplicar-se-lhes o que outro nosso predecessor, Gregrio IX, escrevia de alguns telogos do seu tempo: Alguns dentre vs, excessivamente cheios de esprito de vaidade, com profanas novidades se esforam por transpor os limites traados pelos Santos Padres, curvando doutrina filosfica dos racionalistas a interpretao das pginas celestes, no proveito dos ouvintes, mas para dar mostras do saber...E estes, arrastados por doutrinas diversas, transformam em cauda a cabea e obrigam a rainha a servir escrava (Ep. ad Magistros theol., Paris, julho de 1223).

Estas coisas tornar-se-o ainda mais claras, tendo-se em vista o procedimento dos modernistas, de todo conforme com o que ensinam. Nos seus escritos e discursos parecem, no raro, sustentar ora uma ora outra doutrina, de modo a facilmente parecerem vagos e incertos. Fazem-no, porm, de caso pensado; isto , baseados na opinio que sustentam, da mtua separao entre a f e a cincia. por isto que nos seus livros muitas coisas se encontram das aceitas pelo catlicos; mas, ao virar a pgina, outras se vem que pareceriam ditadas por um racionalista. Escrevendo, pois, histria, nenhuma meno fazem da divindade de Cristo; ao passo que, pregando nas igrejas, com firmeza a professam. Da mesma sorte, na histria no fazem o menor caso dos Padres nem dos Conclios; nas instrues catequticas, porm, citam-nos com respeito. Distinguem, portanto, outrossim a exegese teolgica e pastoral da exegese cientfica histrica. Mais ainda: fundados no princpio que a cincia em nada depende da f, quando tratam de filosofia, de histria, de crtica, no sentindo horror de pisar nas pegadas de Lutero (cf.Prop. 29 conden. por Leo X,Bulla "Exurge Domine"de 16 de maio de 1520): Temos aberta a estrada para enfrentar a autoridade dos Conclios e para contradizer vontade as suas deliberaes, e julgar os seus decretos e manifestar s claras tudo o que nos parece verdade, seja embora aprovado ou condenado por qualquer Conclio), ostentam certo desprezo das doutrinas catlicas, dos Santos Padres, dos conclios ecumnicos, dos magistrios eclesisticos; e se forem por isto repreendidos, queixam-se de que se lhes tolhe a liberdade. Finalmente, professando que a f h de sujeitar-se cincia, continuamente e s claras criticam a Igreja, porque irredutivelmente se recusa a acomodar os seus dogmas s opinies da filosofia, e eles, por sua vez, posta de parte a velha teologia, empenham-se por divulgar uma nova, toda amoldada aos desvarios dos filsofos.

O modernista telogoJ tempo, Venerveis Irmos, de passarmos a considerar os modernistas no campo teolgico. Empenho rduo este, mas em poucas palavras diremos tudo. O fim a alcanar a conciliao da f com a cincia, ficando porm sempre inclume a primazia da cincia sobre a f. Neste assunto o telogo modernista se utiliza dos mesmos princpios da imanncia e do simbolismo. Eis com que rapidez ele executa a sua tarefa: diz o filsofo que o princpio da f imanente; acrescenta o crente que esse princpio Deus; conclui pois o telogo: logo Deus imanente no homem. Disto se conclui a imanncia teolgica. Outra adaptao: o filsofo tem por certo de que as representaes da f so puramente simblicas; o crente afirma que o objeto da f Deus em si mesmo; conclui pois o telogo: logo as representaes da realidade divina so simblicas. Segue-se daqui o simbolismo teolgico. So erros enormes deveras; e quanto sejam perniciosos vamos ver de um modo luminoso, observando-lhes as conseqncias. E para falarmos desde j do simbolismo, como os smbolos so: smbolos com relao ao objeto, e instrumentos com relao ao crente, dizem os modernistas que o crente, antes de tudo, no deve apegar-se demais frmula, que deve servir-lhe s no intuito de unir-se com a verdade absoluta, que a frmula ao mesmo tempo revela e esconde; isto , esfora-se por exprimi-la, sem jamais o conseguir. Querem, em segundo lugar, que o crente use de tais frmulas tanto quanto lhe forem teis, porquanto elas so dadas para auxlio e no para embarao; salvo porm o respeito que, por motivos sociais, se deve s frmulas pelo pblico magistrio julgadas aptas para exprimir a conscincia comum, e enquanto o mesmo magistrio no julgar de outro modo.

Quanto imanncia, na verdade difcil indicar o que pensam os modernistas, pois h entre eles diversas opinies. Uns fazem-na consistir em que Deus, operando no homem, est mais intimamente no homem do que o prprio homem em si mesmo; e esta afirmao sendo bem entendida, no merece censura. Pretendem outros que a ao divina uma e a mesma com a ao da natureza, como a causa primeira com a causa segunda; e isto j destruiria a ordem sobrenatural. Outros explicam-na, enfim, em um sentido que tem ressaibos de pantesmo; e estes, a falar a verdade, so mais coerentes com o restante das sua doutrinas.

A este postulado da imanncia ainda outro se acrescenta, que pode ser chamado da permanncia divina; estes entre si diferem do mesmo modo como a experincia privada difere da experincia transmitida por tradio. Esclareamos isto com um exemplo, e seja ele tirado da Igreja e dos Sacramentos. No se pode crer, dizem, que a Igreja e os Sacramentos foram institudos pelo prprio Cristo. Isto no permitido pelo agnosticismo, que em Cristo no v mais do que um homem, cuja conscincia religiosa, como a de qualquer outro homem, pouco a pouco se formou; no o permite a lei da imanncia, que no admite, como eles se exprimem, externas aplicaes; probe-o tambm a lei da evoluo, que para o desenvolvimento dos germens requer tempo e uma certa srie de circunstncias; probe-o enfim a histria, que mostra que tal foi realmente o curso dos acontecimentos. Todavia deve admitir-se que a Igreja e os Sacramentos foram mediatamente institudos por Cristo. Mas de que modo? Todas as conscincias crists, assim que eles o explicam, estavam virtualmente includas na conscincia de Cristo, como a planta na semente. Ora, como os rebentos vivem a vida da semente, assim tambm afirmar-se deve que todos os cristos vivem a vida de Cristo. Mas a vida de Cristo, segundo a f, divina; logo tambm a vida dos cristos. Se pois esta vida, no correr dos sculos, deu origem Igreja e aos Sacramentos, com toda a razo se poder dizer que tal origem procede de Cristo e divina. Pelo mesmo processo provam que as Escrituras e os dogmas so divinos. E com isto se conclui toda a teologia dos modernistas. bem pouco, em verdade; porm, mais que abundante para quem professa que sempre e em tudo se devem respeitar as concluses da cincia. Cada um entretanto poder ir por si mesmo fazendo a aplicao destas teorias aos outros pontos, que vamos expor.

Falamos at agora da origem e natureza da f. Mas, como so muito os frutos da mesma, sendo os principais a Igreja, o dogma, o culto, os livros sagrados, tambm a respeito destes devemos saber o que dizem os modernistas. Comeando pelo dogma, j sabemos, pelo que ficou dito, qual seja a sua origem e natureza. O dogma nasce da necessidade que o crente experimenta de elaborar o seu pensamento religioso, a fim de tornar sempre mais clara a sua conscincia e a de outrem. Consiste todo esse trabalho em esquadrinhar e polir a frmula primitiva, no por certo em si mesma e racionalmente, mas segundo as circunstncias ou, como de modo pouco inteligvel dizem, vitalmente. O resultado disto que, como j dissemos, ao redor da mesma se vo formando frmulas secundrias, que mais tarde sintetizadas e reunidas em um nico todo doutrinal, quando forem ratificadas pelo magistrio pblico como correspondentes a conscincia comum, so chamados dogmas. Destas devem cuidadosamente distinguir-se as investigaes teolgicas; as quais porm, posto que no vivem da vida do dogma, contudo no so inteis, seja para harmonizar a religio com a cincia e dissipar qualquer contraste entre elas, seja para iluminar a religio e defend-la; e talvez ainda tenham a utilidade de preparar um futuro dogma. Do culto no haveria muito que dizer, se debaixo deste nome no se achassem tambm os Sacramentos, a respeito dos quais muito erram os modernistas. Pretendem que o culto resulta de um duplo impulso; pois que, como vimos, pelo seu sistema, tudo se deve atribuir a ntimos impulsos. O primeiro dar religio, alguma coisa de sensvel; o segundo a necessidade de propag-la, coisa esta que se no poderia realizar sem uma certa forma sensvel e sem atos santificantes, que se chamam Sacramentos. Os modernistas, porm, consideram os Sacramentos como meros smbolos ou sinais, bem que no destitudos de eficcia. E para indicar essa eficcia, servem-lhes de exemplo certas palavras que facilmente vingam, por terem conseguido a fora de divulgar certas idias de grande eficcia, que muito impressionam os nimos. E assim como aquelas palavras so destinadas a despertar as referidas idias, assim tambm o so os Sacramentos com relao ao sentimento religioso; nada mais do que isto. Falariam mais claro afirmando logo que os Sacramentos foram s institudos para nutrirem a f. Mas esta proposio condenada pelo Conclio de Trento (Sess. VII, de Sacramentis in genere, cn.5): "Se algum disser que estes Sacramentos foram s institudos para nutrirem a f, seja antema".

J alguma coisa ficou dito sobre a natureza e origem dos livros sagrados. Segundo a mente dos modernistas, bem se pode defini-los uma coleo de experincias, no por certo das que de ordinrio qualquer pessoa adquire, mas das extraordinrias e das mais elevadas que se tm dado em uma qualquer religio. precisamente isto que os modernistas ensinam dos nossos livros do Antigo e Novo Testamento.

Todavia, a estas suas opinies mui astutamente acrescentam que, embora a experincia deva ser do tempo presente, pode assim mesmo receber matria do passado e do futuro, enquanto o crente pela lembrana revive o passado como se fora o presente, ou j vive do futuro por antecipao. Deste modo se explica porque os livros histricos e apocalpticos so computados entre os livros sagrados. Assim pois, nestes livros, Deus fala por meio do crente; mas, como diz a teologia modernista, s por imanncia e permanncia vital. Perguntar-lhes-emos, pois, que feito da inspirao?

Respondem-nos que ela, a no ser talvez por uma certa veemncia, no se distingue da necessidade que o crente experimenta de manifestar vocalmente ou por escrito a prpria f. Nota-se aqui certa semelhana com a inspirao potica; e neste sentido um deles dizia: Deus est entre ns, e agitados por ele ns nos inflamamos. Deste modo que se deve explicar a origem da inspirao dos livros sagrados. Sustentam ainda os modernistas que a nenhuma passagem desses livros falta essa inspirao.

Neste ponto algum poderia julg-los mais ortodoxos do que certos exegetas recentes, que em parte restringem a inspirao como, por exemplo, nas tais citaes tcitas. Mas isto no passa de aparncias e palavras.

De fato, se segundo as leis do agnosticismo, consideramos a Bblia um trabalho humano, feito por homens para utilidade de outros homens, seja embora lcito ao telogo apelid-la de divina por imanncia, de que modo poderia restringir-se nela a inspirao?

Tal inspirao, de fato, admitem-na os modernistas; no, porm, no sentido catlico.

Maior extenso de matria nos oferece o que os modernistas afirmam da Igreja. Pressupem que ela fruto de uma dupla necessidade, uma no crente, principalmente naquele que, tendo tido alguma experincia original e singular, precisa comunicar a outrem a prpria f; outra na coletividade, depois que a f se tornou comum a muitos, para se reunir em sociedade, e conservar, dilatar e propagar o bem comum. Que , pois, a Igreja? um parto da conscincia coletiva, isto , da coletividade das conscincias individuais que, por virtude da permanncia vital, esto todas pendentes do primeiro crente, que para os catlicos foi Cristo. Ora, toda sociedade precisa de uma autoridade que a reja, e cujo mister seja dirigir os membros para o fim comum e conservar com prudncia os elementos de coeso, que em uma sociedade religiosa so a doutrina e o culto. H, por isso, na Igreja Catlica uma trplice autoridade: disciplinar, dogmtica e cultural. A natureza desta autoridade deve ser deduzida da sua origem; e da natureza, por sua vez, devem coligir-se os direitos e os deveres. Foi erro das eras passadas pensar-se que a autoridade da Igreja emanou de um princpio estranho, isto , imediatamente de Deus; e por isto, com razo era ela considerada autocrtica. Estas teorias, porm, j no so para os tempos que correm.

Assim como a Igreja emanou da coletividade das conscincias, a autoridade emana virtualmente da mesma Igreja. A autoridade, portanto, da mesma sorte que a Igreja, nasce da conscincia religiosa, e por esta razo fica dependente da mesma; e se faltar a essa dependncia, torna-se tirnica. Nos tempos que correm o sentimento de liberdade atingiu o seu pleno desenvolvimento. No estado civil a conscincia pblica quis um regime popular. Mas a conscincia do homem, assim como a vida, uma s. Se, pois, a autoridade da Igreja no quer suscitar e manter uma intestina guerra nas conscincias humanas, h tambm mister curvar-se a formas democrticas; tanto mais que, se o no quiser, a hecatombe ser iminente. Loucura seria crer que o vivo sentimento de liberdade, ora dominante, retroceda.

Reprimindo e enclausurando com violncia, transbordar mais impetuoso, destruindo conjuntamente a religio e a Igreja. So estes os raciocnios dos modernistas que, por isto, esto todos empenhados em achar o modo de conciliar a autoridade da Igreja com a liberdade dos crentes.

Acresce ainda que no s dentro do seu recinto que a Igreja tem com quem entender-se amigavelmente, mas tambm fora. No se acha ela s no mundo a ocup-lo; ocupam-no tambm outras sociedades, com as quais no pode deixar de tratar e de relacionar-se. Convm, pois, determinar quais sejam os direitos e os deveres da Igreja para com as sociedades civis; e bem se v que tal determinao deve ser tirada da natureza da mesma Igreja, tal qual os modernistas no-la descreveram.

As regras que ho de servir para este fim so as mesmas, que acima serviram para a cincia e a f. Tratava-se ento de objetos, aqui de fins. Assim pois, como por causa do objeto se disse que a f e a cincia so mutuamente estranhas, tambm o Estado e a Igreja so estranhos um outra, por causa do fim a que tendem, temporal para o Estado, espiritual para a Igreja. Falava-se outrora do temporal sujeito ao espiritual, de questes mistas, em que a Igreja intervinha qual senhora e rainha, porque ento se tinha a Igreja como instituda imediatamente por Deus, enquanto autor da ordem sobrenatural. Mas estas crenas j no so admitidas pela filosofia, nem pela histria. Deve, portanto, a Igreja separar-se do Estado, e assim tambm o catlico do cidado. E por este motivo que o catlico, no se importando com a autoridade, com os desejos, com os conselhos e com as ordens da Igreja, e at mesmo desprezando as suas repreenses, tem direito e dever de fazer o que julgar o mais oportuno ao bem da ptria.

Querer, sob qualquer pretexto, impor ao cidado uma norma de proceder, por por parte do poder eclesistico verdadeiro abuso, que se deve repelir com toda a energia. - Venerveis Irmos, as teorias de que dimanam todos estes erros so as mesmas que o Nosso Predecessor Pio VI condenou solenemente na Constituio apostlica Auctorem fidei (Prop. 2. A proposio que afirma que o poder foi dado por Deus Igreja, para que fosse comunicado aos Pastores, que so os seus ministros, para a salvao das almas, entendida no sentido de que o poder do ministrio e regime eclesistico passa da comunidade dos fiis para os pastores: heresia. Prop. 3. Tambm aquele que afirma que o Romano Pontfice chefe ministerial, entendida no sentido de que, no de Cristo na pessoa do bem-aventurado Pedro, mas da Igreja recebeu como sucessor de Pedro, verdadeiro Vigrio de Cristo e chefe de toda a Igreja: hertica).

No entanto, escola dos modernistas no basta que o Estado seja separado da Igreja. Assim como a f deve subordinar-se cincia, quanto aos elementos fenomnicos, assim tambm nas coisas temporais a Igreja tem que sujeitar-se ao Estado. Isto no afirmam talvez muito abertamente; mas por fora de raciocnio so obrigados a admiti-lo. Em verdade, admitido que o Estado tenha absoluta soberania em tudo o que temporal, se suceder que o crente, no satisfeito com a religio do esprito, se manifeste em atos exteriores, como, por exemplo, em administrar ou receber os Sacramentos, isto j deve necessariamente cair sob o domnio do Estado. Postas as coisas neste p, para que servir a autoridade eclesistica? Visto que esta no tem razo de ser sem os atos externos, estar em tudo e por tudo sujeita ao poder civil. esta inelutvel conseqncia que leva muitos dentre os protestantes liberais a desembaraar-se de todo o culto externo e at de toda a sociedade religiosa externa, procurando pr em voga uma religio, que chamam individual. E se os modernistas, desde j, no se atiram francamente a esses extremos, insistem pelo menos em que a Igreja se deixe espontaneamente conduzir por eles at onde pretendem lev-la e se amolde s formas civis. Isto quanto autoridade disciplinar.

Mais grave e perniciosos so suas afirmaes relativamente autoridade doutrinal e dogmtica. Assim pensam eles acerca do magistrio eclesistico: a sociedade religiosa no pode ser uma, sem unidade de conscincia nos seus membros e unidade de frmula. Mas esta dupla unidade requer por assim dizer um entendimento comum, a que compete achar e determinar a frmula que melhor corresponda conscincia comum; e a esse entendimento convm ainda atribuir a autoridade conveniente, para poder impor comunidade a frmula estabelecida. Nesta unio e quase fuso da mente designadora de frmula e da autoridade que a impe, acham os modernistas o conceito de magistrio eclesistico. Visto pois que o magistrio, afinal de contas, no mais do que um produto das conscincias individuais, e s para cmodo das mesmas conscincias lhe atribudo ofcio pblico, resulta necessariamente que ele depende dessas conscincias, e por conseguinte deve inclinar-se a formas democrticas. Proibir, portanto, que as conscincias dos indivduos manifestem publicamente as suas necessidades, e impedir crtica o caminho que leva o dogma a necessrias evolues, no fazer uso de um poder dado para o bem pblico, mas abusar dele. - Da mesma sorte , no prprio uso do poder deve haver modo e medida. quase tirania condenar um livro sem que o autor o saiba, e sem admitir nenhuma explicao nem discusses. Ainda aqui, portanto, deve adotar-se um meio termo, que ao mesmo tempo salve a autoridade e a liberdade. E nesse nterim o catlico poder agir de tal sorte que, protestando o seu profundo respeito autoridade, continue sempre a trabalhar sua vontade. Em geral admoestam a Igreja de que, sendo o fim do poder eclesistico todo espiritual, no lhe assentam bem essas exibies de aparato exterior e de magnificncia, com que si comparecer s vistas da multido. E quando assim o dizem, procuram esquecer que a religio, conquanto essencialmente espiritual, no pode restringir-se exclusivamente s coisas do esprito, e que as honras prestadas autoridade espiritual se referem pessoa de Cristo que a instituiu.

Para concluir toda esta matria da f e seus diversos frutos, resta-nos por fim, Venerveis Irmos, ouvir as teorias dos modernistas acerca do desenvolvimento dos mesmos. Tm eles por princpio geral que numa religio viva, tudo deve ser mutvel e mudar-se de fato. Por aqui abrem caminho para uma das suas principais doutrinas, que a evoluo. O dogma, pois, a Igreja, o culto, os livros sagrados e at mesmo a f, se no forem coisas mortas, devem sujeitar-se s leis da evoluo. Quem se lembrar de tudo o que os modernistas ensinam sobre cada um desses assuntos, j no ouvir com pasmo a afirmao deste princpio. Posta a lei da evoluo, os prprios modernistas passam a descrever-nos o modo como ela se efetua. E comeam pela f. Dizem que a forma primitiva da f foi rudimentar e indistintamente comum a todos os homens; porque se originava da prpria natureza e vida do homem. Progrediu por evoluo vital; quer dizer, no pelo acrscimo de novas formas, vindas de fora, mas por uma crescente penetrao do sentimento religioso na conscincia. Esse mesmo progresso se realizou de duas maneiras: primeiro negativamente, eliminando todo o elemento estranho, como seja o sentimento de famlia ou de nacionalidade; em seguida positivamente, com o aperfeioamento intelectual e moral do homem, donde resultou maior clareza para a idia divina e excelncia para o sentimento religioso. As mesmas causas que serviram para explicar a origem da f, explicam tambm o seu progresso. A estas, porm, devem acrescentar-se aqueles gnios religiosos, a que chamamos profetas, dos quais o mais iminente foi Cristo; seja porque eles na sua vida ou nas suas palavras tinham algo de misterioso, que a f atribua divindade, seja porque alcanaram novas e desconhecidas experincias em plena harmonia com as exigncias do seu tempo.

O progresso do dogma nasce principalmente da necessidade de vencer os obstculos da f, derrotar os adversrios, repelir as dificuldades. Deve-se ainda acrescentar um contnuo esforo, para se penetrar cada vez mais nos arcanos da f. Deixando de parte outros exemplos, assim sucedeu com Cristo: aquilo de divino que a f a princpio lhe atribua, foi-se gradualmente aumentando, at que definitivamente foi tido por Deus.

O principal estmulo de evoluo para o culto, a necessidade de se adaptar aos costumes e tradies dos povos e bem assim de gozar da eficcia de certos atos, j admitidos pelo uso. A Igreja acha finalmente a razo do seu evoluir na necessidade de se acomodar s condies histricas e s formas do governo publicamente adotadas. Isto dizem os modernistas de cada um daqueles princpios. E aqui, antes de passarmos adiante, queremos insistir em que se atente nessa doutrina das necessidades, porque ela, alm do que j vimos, como que a base e o fundamento desse famoso mtodo que chamam histrico.

Detendo-nos ainda na doutrina da evoluo, observamos que, embora as necessidades sirvam de estmulo para a evoluo, se ela no tivesse outros estmulos seno esses, facilmente transporia os limites da tradio, e assim desligada do primitivo princpio vital, j no levaria ao progresso, mas runa. Estudando, pois, mais a fundo o pensar dos modernistas, deve-se dizer que a evoluo como o resultado de duas foras que se combatem, sendo uma delas progressiva e outra conservadora. A fora conservadora est na Igreja e a tradio. O exerccio desta prprio da autoridade religiosa, quer de direito, pois que de natureza de toda autoridade adstringir-se o mais possvel tradio; quer de fato, pois que, retrada das contingncias da vida, pouco ou talvez nada sente dos estmulos que impelem ao progresso. Ao contrrio, a fora que, correspondendo s necessidades, arrasta ao progresso, oculta-se e trabalha nas conscincias individuais, principalmente naquelas que, como eles dizem, se acham mais em contato com vida. Neste ponto, Venerveis Irmos, j se percebe o despontar daquela perniciosssima doutrina que introduz na Igreja o laicato como fator de progresso.

De uma espcie de conveno entre as foras de conservao e de progresso, isto , entre a autoridade e as conscincias individuais, nascem as transformaes e os progressos. As conscincias individuais, ou pelo menos algumas delas, fazem presso sobre a conscincia coletiva; e esta, por sua vez, sobre a autoridade, obrigando-a a capitular e pactuar. Admitido isto, no de admirar ver-se como os modernistas pasmam por serem admoestados ou punidos. O que se lhes imputou como culpa, consideram um dever sagrado. Ningum melhor do que eles conhece as necessidades das conscincias, porque so eles e no a autoridade eclesistica, os que se acham mais em contato com elas. Julgam quase ter em si encarnadas todas essas necessidades; da a persuaso que tm de falar e escrever sem medo. Nada se lhes d das censuras da autoridade; porque se sentem fortes com a conscincia do dever, e por ntima experincia sabem que merecem aplausos e no censuras. Nem to pouco ignoram que os progressos no se alcanam sem combates, nem h combates sem vtimas, como o foram os profetas e Cristo. Ainda que a autoridade os maltrate, no a odeiam; sabem que assim est cumprindo o seu dever. Lamentam apenas que se lhes no prestem ouvidos, porque isto ser causa de atraso ao progresso dos espritos; mas, h de vir a hora de se romperem as barreiras, porque as leis da evoluo podero ser refreadas; quebradas, porm, nunca. Traado este caminho, eles continuam; continuam, com desprezo das repreenses e condenaes, ocultando audcia inaudita com o vu de aparente humildade. Simulam finalmente curvar a cabea; mas, no entanto a mo e o pensamento prosseguem o seu trabalho com ousadia ainda maior. E assim avanam com toda a reflexo e prudncia, tanto porque esto persuadidos de que a autoridade deve ser estimulada e no destruda, como tambm porque precisam de permanecer no seio da Igreja, para conseguirem pouco a pouco assenhorear-se da conscincia coletiva, transformando-a; mal percebem porm, quando assim se exprimem, que esto confessando que a conscincia coletiva diverge dos seus sentimentos, e que portanto no tm direito de declarar-se intrpretes da mesma.

Nada, portanto, Venerveis Irmos, se pode dizer estvel ou imutvel na Igreja, segundo o modo de agir e de pensar dos modernistas. Para o que tambm no lhes faltaram precursores, esses de quem o nosso predecessor Pio IX escreveu: estes inimigos da revelao divina, que exaltam com os maiores louvores o progresso humano, desejariam com temerrio e sacrlego atrevimento introduzi-lo na religio catlica, como se a mesma no fosse obra de Deus, mas obra dos homens, ou algum sistema filosfico, que se possa aperfeioar por meios humanos (Enc. "Qui pluribus", 9 de nov. de 1846). acerca da revelao particularmente, e do dogma, os modernistas nada acharam de novo; pois, a sua mesma doutrina, antes deles, j fora condenada no Silabo de Pio IX nestes termos: A divina revelao imperfeita e por isto est sujeita a contnuo e indefinido progresso, correspondente ao da razo humana (Syllabo, proposio condenada 5); e mais solenemente ainda a proscreve o Conclio Vaticano I por estas palavras: A doutrina da f por Deus revelada, no proposta inteligncia humana para ser aperfeioada, como uma doutrina filosfica, mas um depsito confiado esposa de Cristo, para ser guardado com fidelidade e declarado com infalibilidade. Segue-se pois que tambm se deve conservar sempre aquele mesmo sentido dos sagrados dogmas, j uma vez declarado pela Santa Me Igreja, nem se deve jamais afastar daquele sentido sob pretexto e em nome de mais elevada compreenso (Const."Dei Fillius", cap. IV). De maneira alguma poder seguir-se da que fique impedida a explicao dos nossos conhecimentos, mesmo relativamente f; ao contrrio, isto a auxilia e promove. Neste sentido que o Conclio prossegue dizendo: Cresa, pois, e com ardor progrida a compreenso, a cincia, a sapincia tanto de cada um como de todos, tanto de um s homem como de toda a Igreja com o passar das idades e dos sculos; mas no seu gnero somente, isto , no mesmo dogma, no mesmo sentido, no mesmo parecer (Lugar citado).

O modernista historiador e crticoJ entre os sequazes do modernismo consideramos o filsofo, o crente e o telogo; resta agora examinarmos tambm o historiador, o crtico e o apologista.

H certos modernistas que se atiram a escrever histria, que parecem muito preocupados em no passar por filsofos e chegam at a declarar-se totalmente alheios aos conhecimentos filosficos. isto um rasgo de finssima astcia; para que ningum os julgue embebidos de preconceitos filosficos e assim paream, como eles dizem, completamente objetivos. Em verdade, porm, a sua histria ou crtica no fala seno filosofia e as suas dedues procedem por bom raciocnio dos seus princpios filosficos. Isto se faz manifesto a quem refletir com ponderao. Os trs primeiros cnones desses tais historiadores ou crticos so aqueles mesmos princpios que acima deduzimos dos filsofos, isto , o agnosticismo, o teorema da transfigurao das coisas pela f, e o outro que Nos pareceu poder denominar da desfigurao. Vamos examinar-lhes j, em separado, as conseqncias. Segundo o agnosticismo, a histria, bem como a cincia, s trata de fenmenos. Por conseguinte, tanto Deus como qualquer interveno divina nas causas humanas deve ser relegado para a f, como de sua exclusiva competncia. Se tratar, pois, de uma causa em que intervier duplo elemento, isto , o divino e o humano, como Cristo, a Igreja, os Sacramentos e coisas semelhantes, devem separar-se e discriminar-se tais elementos, de tal modo que o que humano passe para a histria, o que divino para a f. este o motivo da distino que soem fazer os modernistas entre um Cristo da histria e um Cristo da f, e uma Igreja da histria e uma Igreja da f, entre Sacramentos da histria e Sacramentos da f, e assim por diante. Em seguida, esse mesmo elemento humano que vemos o historiador tomar para si, tal qual se manifesta nos monumentos, deve ser tido como elevado pela f, por transfigurao, acima das condies histricas. Convm, portanto, subtrair-lhe de novo os acrscimos feitos pela f, e restitu-los mesma f e histria da f;

Assim se deve proceder, tratando-se de Jesus Cristo, em tudo o que excede as condies de homem, seja natural, como a psicologia no-la apresenta, seja conforme as condies do lugar e tempo em que viveu. Demais, em virtude do terceiro princpio filosfico, tambm as coisas que no saem fora das condies da histria, fazem-nas eles como que passar pela joeira, e eliminam, relegando f, tudo o que, a juzo seu no entrar na lgica dos fatos nem for conforme ndole das pessoas. Assim, querem que Cristo no tenha dito aquelas coisas que parecem no estar ao alcance do vulgo.

Por isto eliminam da sua histria real e transportam para a f todas as alegorias que se encontram nos seus discursos. E com que critrio, perguntamos, se guiam eles nesta escolha? Pela considerao do carter do homem, das condies em que se achou a sociedade, da educao, das circunstncias de cada fato; em uma palavra, por uma norma que, se bem a entendemos, se resume em mero subjetivismo. Isto , procuram apoderar-se da pessoa de Jesus Cristo e como que revestir-se dela, e assim lhe atribuem, nem mais nem menos, tudo o que eles mesmos fariam em circunstncias idnticas. Assim pois, para concluirmos, a priori, e partindo de certos princpios que admitem, embora afirmem que os ignoram, na histria real afirmam que Cristo nem foi Deus, nem fez coisa alguma de divino; e como homem, que ele fez e disse apenas aquilo que eles, referindo-se ao tempo em que viveu, acham que podia ter feito e dito.

Assim pois, como a histria recebe da filosofia as suas concluses, assim tambm a crtica, por sua vez, as recebe da histria. O crtico, seguindo a pista do historiador, divide todos os documentos em duas partes. Depois de fazer o trplice corte acima referido, passa todo o restante para a histria real, e entrega a outra parte histria da f, ou noutros termos, histria interna. Os modernistas pem grande empenho em distinguir estas duas histrias; e, note-se bem, contrapem histria da f a histria real, enquanto real. Da resulta, como j vimos, um duplo Cristo; um real, e outro que, de fato, nunca existiu, mas pertence f; um que viveu em determinado lugar e tempo, outro que se encontra nas piedosas meditaes da f; tal, por exemplo, o Cristo descrito no Evangelho de So Joo, o qual Evangelho, pretendem-no os modernistas, do princpio ao fim mera meditao.

Mas o domnio da filosofia na histria ainda vai alm. Feita, como dissemos, a diviso dos documentos em duas partes, apresenta-se de novo o filsofo com o seu princpio de imanncia vital, e prescreve que tudo o que se acha na histria da Igreja deve ser aplicado por emanao vital. E visto como a causa ou condio de qualquer emanao vital procede de alguma necessidade, todo acontecimento deve ser a conseqncia de uma necessidade, e deve considerar-se historicamente posterior a ela.

Que faz ento o historiador? Entregue de novo ao estudo dos documentos, tanto nos livros sacros quanto nos demais, vai formando um catlogo de cada uma das necessidades que por sua vez se apresentaram Igreja, quer relativos ao dogma, quer ao culto ou a outras matrias. Feito este catlogo, passa-o ao crtico. Este, pois, manuseia os documentos destinados histria da f e os distribui de idade em idade, de maneira que correspondam ao elenco que lhe foi dado; e tudo isto faz tendo sempre em vista o preceito de que o fato precedido da necessidade, e a narrao, do fato.

Bem poderia ser que certas partes da Escritura Sagrada, como as Epstolas, tambm fossem um fato criado pela necessidade. Seja como for, o certo porm que no se pode determinar a idade de nenhum documento, seno pela poca em que cada necessidade se manifestou na Igreja. Convm ainda distinguir entre o comeo de um fato e o seu desenrolar; porquanto, o que pode nascer em um dia, no cresce seno com o tempo. Esta a razo pela qual o crtico ainda deve bipartir os documentos, j dispostos segundo as idades, segregando os que se referem s origens de um fato dos que pertencem ao seu desenvolvimento, e dispondo de novo estes ltimos em ordem cronolgica.

Feito isto, reaparece o filsofo e obriga o historiador a conformar os seus estudos com os preceitos e as leis da evoluo. E o historiador, conformando-se, torna a esquadrinhar os documentos; a procurar com cuidado as circunstncias em que se achou a Igreja, no correr dos tempos, as necessidades internas e externas que a impeliram ao progresso, os obstculos que se levantaram, numa palavra, tudo o que puder servir para determinar o modo pelo qual se realizaram as leis da evoluo. Concludo este trabalho, ele esboa em suas linhas principais a histria do desenvolvimento dos fatos. Segue-se-lhe o crtico, que a este esqueleto histrico adapta os demais documentos.

Escreve-se ento a narrao; est completa a histria; - mas agora perguntamos, essa histria a quem se deve atribuir? Ao historiador ou ao crtico? A nenhum dos dois, por certo; mas ao filsofo. Tudo foi exarado por apriorismo, e certamente por um apriorismo abundante em heresias. So na verdade para lastimar esses homens, dos quais o Apstolo disse: Desvairaram em seus pensamentos...gabando-se de sbios, estultos que se tornaram (Rom1,21-22); mas ao mesmo tempo provocam a indignao, quando acusam a Igreja de corromper os documentos para faz-los servir aos prprios interesses. Isto , atiram sobre a Igreja aquilo de que a prpria conscincia manifestamente os acusa.

Dessa desagregao e da disseminao dos documentos pelo decurso do tempo, segue-se naturalmente que os livros sagrados no podem absolutamente ser atribudos aos autores de quem trazem o nome. E esta a razo porque os modernistas no hesitam em afirmar a mido que esses livros, especialmente o Pentateuco e os trs primeiros Evangelhos, de uma breve narrao primitiva, foram pouco a pouco se avolumando por acrscimos e interpolaes, seja a modo de interpretaes teolgicas ou alegricas, seja a modo de transies para ligarem entre si as diversas partes.

Noutros termos mais breves e mais claros, querem que se deva admitir a evoluo vital dos livros sacros, nascida da evoluo da f e correspondente mesma. Acrescentam ainda que os sinais de tal evoluo aparecem to manifestos, que se poderia escrever a histria dos mesmos. E chegam mesmo a escrever essa histria, e com tanta persuaso que parecem eles mesmos ter visto com seus prprios olhos cada um dos escritores, que nos diversos sculos estenderam a mo sobre a Escritura para ampli-la. Para confirm-lo, recorrem crtica que chamam textual, e se esforam em persuadir que este ou aquele fato, estes ou aqueles dizeres no se acham no seu lugar, e aduzem ainda outras razes deste mesmo quilate. Dir-se-ia, na verdade, que se preestabeleceram certos tipos de narraes ou alocues que servem de critrio certssimo para julgar se uma coisa est no seu lugar ou fora dele. Com semelhante mtodo, julgue quem puder faz-lo, se eles podem ser capazes de discernir. E no entanto, quem os ouvir discorrer a respeito dos seus estudos relativos Escritura, na qual lograram descobrir tantas incongruncias, levado a crer que antes deles ningum manuseou aqueles livros, e que no houve uma infinita multido de Doutores, em talento, em sabedoria, e na santidade da vida muito superiores a eles, que os esquadrinharam em todos os sentidos.

E para esses sapientssimos doutores to longe estavam as Sagradas Escrituras de ter alguma coisa de repreensvel que, ao contrrio, quanto mais eles as aprofundavam, tanto mais agradeciam a Deus ter-se dignado de assim falar aos homens.

Mas que os nossos doutores no se entregaram ao estudo da Escrituras com os meios de que se proviram os modernistas! Isto , no se deixaram amestrar nem guiar por uma filosofia que tem a negao de Deus por ponto de partida, e nem se arvoraram a si mesmos em norma de bem julgar. Parece-nos, pois, j estar bem declarado o mtodo histrico dos modernistas. O filsofo abre o caminho; segue-o o historiador; logo aps, por seu turno, a crtica interna e textual. E como prprio da primeira causa comunicar sua virtude s segundas, claro est que tal crtica no uma qualquer crtica, mas por direito deve chamar-se agnstica, imanentista, evolucionista; e por isso quem a professa ou dela se utiliza, professa os erros que se contm nela e se pe em oposio com a doutrina catlica. Por esta razo muito de admirar que tal gnero de crtica possa hoje ter to grande aceitao entre catlicos. Isto assim sucede por dois motivos: primeiro a aliana ntima que h entre os historiadores e crticos desse gnero, no obstante qualquer diversidade de nacionalidade ou de crenas; o outro a incrvel audcia com que, qualquer parvoce que algum deles diga, pelos outros sublimada e decantada como progresso da cincia; se algum o negar leva a pecha de ignorante; se, porm, o aceitar e defender, ser coberto de louvores. Disto se segue que no poucos ficam enganados; entretanto, se melhor considerassem as coisas, ficariam, ao contrrio, horrorizados. Desta prepotente imposio dos extraviados, deste incauto assentimento dos pusilnimes produz-se uma certa corrupo de atmosfera, que penetra em toda a parte e difunde o contgio. Mas passemos ao apologista.

O modernista apologetaEntre os modernistas tambm este depende duplamente do filsofo. Primeiro indiretamente, tomando para matria a histria escrita sob a direo do filsofo, como vimos; depois diretamente, aceitando do filsofo os princpios e os juzos. Vem daqui o preceito comum da escola modernista, que a nova apologtica deve dirimir as controvrsias religiosas por meio de indagaes histricas e psicolgicas.

Por isso, esses apologetas comeam o seu trabalho advertindo os racionalistas de que no defendem a religio com os livros sacros, nem com as histrias vulgarmente usadas na Igreja e escritas moda antiga; fazem-no, porm, com a histria real, composta segundo os preceitos modernos e com mtodo moderno. Assim o dizem, no como se argumentassemad hominem, mas porque de fato acreditam que s em tal histria se acha a verdade. Quando escrevem tambm no se preocupam de insistir na prpria sinceridade; j so bastante conhecidos entre os racionalistas, j foram louvados como combatentes sob um mesmo estandarte; e desses louvores, que um verdadeiro catlico dever rechaar, eles muito se lisonjeiam e se servem como de escudo contra as censuras da Igreja. Vejamos como qualquer um deles faz praticamente semelhante apologtica. O fim que se prope de conduzir o homem que ainda no cr, a sentir em si aquela experincia da religio catlica que, para os modernistas, base da f. H dois caminhos a seguir: um objetivo e o outro subjetivo. O primeiro parte do agnosticismo, e tende a demonstrar que na religio, especialmente na catlica, h tal energia vital, que obriga todo sbio psiclogo e historiador a admitir que na sua histria se esconde alguma coisa incgnita. Para este fim mister provar que a religio catlica, qual hoje existe, a mesma fundada por Cristo, ou melhor, o progressivo desenvolvimento da semente a que Cristo deu origem. Convm, por conseguinte, antes de tudo, determinar qual seja essa semente.

Pretendem eles faz-lo pela seguinte frmula: Cristo anunciou a vida do reino de Deus, a realizar-se em breve, sendo ele o seu Messias, isto , o executor e o organizador mandado por Deus. Depois disto convir demonstrar como essa semente, sempre imanente na religio catlica e permanente, devagar e a passo com a histria se foi desenvolvendo e adaptando s sucessivas circunstncias, assimilando vitalmente tudo o que nas mesmas lhe apresentavam de til s formas doutrinais, cultuais, eclesisticas; superando ao mesmo tempo os obstculos, desbaratando os inimigos, e sobrevindo a toda sorte de contradies e lutas. Depois que todas estas coisas, a saber, os obstculos, os inimigos, as perseguies, os combates, bem como a vitalidade e fecundidade da Igreja, se tiverem mostrado tais que, conquanto na histria da mesma se vejam observadas as leis da evoluo, todavia no so bastantes ainda para uma explicao cabal, vir pela frente o incgnito, que se apresentar por si mesmo. Assim dizem eles. Contudo, em todo este raciocinar h uma coisa que no percebem; que aquela determinao da semente primitiva fruto exclusivo do apriorismo do filsofo agnstico e evolucionista, e que a prpria semente por ele to gratuitamente definida, que deveras parece convir sua causa.

Mas esses apologetas, ao passo que com os referidos argumentos procuram asseverar e persuadir a religio catlica, tambm por outra parte concedem que ela contm muitas coisas que desagradam. E tambm, com um prazer mal disfarado, publicamente propalam que tambm em matria dogmtica encontram erros e contradies; no obstante acrescentarem que tais erros e contradies s merecem desculpas, mas, e o que mais se admira, devem ser legitimados e justificados. Assim tambm nas Sagradas Escrituras, afirmam-no, ocorrem muitos erros em matria cientfica e histrica. Mas aqueles livros, acrescentam, no tratam de cincia ou histria, e sim de religio e de moral. A cincia e a histria ali so meros invlucros, que contornam as experincias religiosas e morais, para mais facilmente se divulgarem no povo; e como este povo no poderia entender de outro modo, no lhe seria vantajoso, porm nocivo, estar de posse de uma cincia ou de uma histria mais perfeita. Demais, continuam a dizer, os livros sagrados, porque religiosos por natureza, tm necessariamente a sua vida; a vida tambm por sua vez tem a sua verdade e a sua lgica, certamente diversa da verdade e da lgica racional, e at mesmo de ordem assaz diversa, a saber: verdade de comparao e proporo, quer com o ambiente em que se vive, quer com o fim para que se vive. Chegam enfim a tal extremo, que se abalanam a afirmar, sem a menor restrio, que tudo o que se explica pela vida verdadeiro e legtimo. Ns, Venerveis Irmos, para quem a verdade uma e nica, e consideramos os livros sacros como escritos por inspirao do Esprito Santo e tendo Deus por autor (Conc. Vat. IDe Ver.C.2), afirmamos que isto equivale a atribuir a Deus a mentira de utilidade ou oficiosa; e com as palavras de Santo Agostinho protestamos que, uma vez admitida em excelsa autoridade qualquer mentira oficiosa, no haver nem uma pequena parte daqueles livros que, parecendo a algum difcil de praticar ou incrvel de crer, com a mesma perniciosssima regra no seja atribuda a conselho ou utilidade do mendaz autor (Epst. 28). E da resultar o que o Santo Doutor acrescenta: Neles, isto , nos livros sacros, cada um dar crdito ao que quiser, e rejeitar o que no lhe agradar. Mas esses apologetas no se preocupam com isto. Concedem ainda que nos livros sacros para sustentar uma doutrina qualquer, se acham por vezes razes que no se apiam em nenhum razovel fundamento; a estes gneros pertencem as que se fundam nas profecias. Contudo eles tambm como artifcio de pregao, que so legitimados pela vida. Que mais? Concedem, pior ainda, sustentam que o prprio Jesus Cristo errou manifestamente, indicando o tempo da vinda do reino de Deus; e nem para admirar, dizem, pois ento ele ainda se achava sujeito s leis da vida! Posto isto, que ser dos dogmas da Igreja? Tambm estes esto cheios de evidentes contradies; mas, alm de serem aceitos pela lgica da vida, no se acham em oposio com a verdade simblica; pois, neles se trata do infinito, que tem infinitos aspectos. Enfim, tanto eles aprovam e defendem essas teorias, que no pem em dvida em declarar que se no pode render ao Infinito maior preito de homenagens, do que afirmando acerca do mesmo coisas contraditrias! E admitindo-se a contradio, que o que no se admitir?

Alm dos argumentos objetivos, o crente pode tambm ser disposto f pelos subjetivos. Para este fim os apologetas voltam-se de novo para a doutrina da imanncia. Empenham-se em convencer o homem de que nele mesmo e nos ntimos recantos de sua natureza e de sua vida, se oculta o desejo e a necessidade de uma religio, no j de uma religio qualquer, mas da catlica; porquanto esta, dizem, rigorosamente requerida (postulata) pelo perfeito desenvolvimento da vida. E sobre este ponto nos vemos de novo obrigados a lamentar que no faltem catlicos que, conquanto rejeitem a doutrina da imanncia como doutrina, todavia se utilizam dela na apologtica; e fazem-no to incautamente, que parecem admitir no somente certa capacidade ou convenincia na natureza humana para a ordem sobrenatural, (o que os apologetas catlicos com as devidas restries sempre demonstram), mas tambm uma estrita e verdadeira exigncia. Para sermos mais exatos, dizemos ainda que esta exigncia da religio catlica sustentada pelos modernistas mais moderados. Pois, aqueles que podem ser denominados integralistas, pretendem que se deve mostrar ao homem que ainda no cr, como se acha latente dentro dele mesmo o grmen que esteve na conscincia de Cristo, e que Cristo transmitiu aos homens. Eis aqui, Venerveis Irmos, sumariamente descrito o mtodo apologtico dos modernistas, em tudo conforme com as doutrinas; e tanto o mtodo como as doutrinas esto cheios de erros, capazes s de destruir e no de edificar, no de formar catlicos, mas de arrastar os catlicos heresia, mais ainda, completa destruio de toda religio!

O modernista reformadorPouco resta-nos finalmente dizer a respeito das pretenses do modernista como reformador. J pelo que est exposto fica mais que patente a mania de inovao que move estes homens; mania esta que no poupa absolutamente nada ao catolicismo. Querem a inovao da filosofia, particularmente nos seminrios; de tal sorte que, desterrada a filosofia dos escolsticos para a histria da filosofia, entre os sistemas j obsoletos, seja ensinada aos moos a moderna filosofia, que a nica verdadeira correspondente aos nossos tempos. Para a reforma da teologia, querem que aquela teologia que chamamos racional, seja fundamentada na filosofia moderna. Desejam, alm disto, que a teologia positiva se baseie na histria dos dogmas. Querem tambm que a histria seja escrita e ensinada pelos seus mtodos e com preceitos novos. Dizem que os dogmas e a sua evoluo devem entrar em acordo com a cincia e a histria. Para o catecismo, exigem que nos livros de catequese se introduzam s aqueles dogmas, que tiverem sido reformados e estiverem ao alcance da inteligncia do vulgo. Acerca do culto, clamam que se devem diminuir as devoes externas e proibir que aumentem, embora, a bem da verdade, outros mais favorveis ao simbolismo, se mostrem nisto mais indulgentes. Gritam a altas vozes que o regime eclesistico deve ser renovado em todos os sentidos, mas especialmente na disciplina e no dogma. Por isto, dizem que por dentro e por fora se deve entrar em acordo com a conscincia moderna, que se acha de todo inclinada para a democracia; e assim tambm dizem que o clero inferior e o laicato devem tomar parte no governo, que deve ser descentralizado. Tambm devem ser transformadas as Congregaes romanas, e antes de todas, as do Santo Ofcio e do ndice. Deve mudar-se a atitude da autoridade eclesistica nas questes polticas e sociais, de tal sorte que no se intrometa nas disposies civis, mas procure amoldar-se a elas, para penetr-las no seu esprito. Em moral esto pelo Americanismo, dizendo que as virtudes ativas devem antepor-se s passivas, e que convm promover o exerccio daquelas de preferncia a estas. Desejam que o clero volte antiga humildade e pobreza e querem-no tambm de acordo no pensamento e na ao com os preceitos do modernismo. Finalmente no falta entre eles quem, obedecendo muito de boa mente aos acenos dos seus mestres protestantes, at deseje ver suprimido do sacerdcio o sacro celibato. Que restar, pois, de intacto na Igreja, que no deva por eles ou segundo os seus princpios ser reformado?

Crtica geral de todo o sistemaTalvez que na exposio da doutrina dos modernistas tenhamos parecido a algum, Venerveis Irmos, demasiadamente prolixos. Isso, porm, foi de todo necessrio, tanto para que no continuem a acusar-nos, como costumam, de ignorar as suas teorias, como tambm, para que se veja que quando se fala de modernismo, no se trata de doutrinas vagas e desconexas, mas de um corpo uno e compacto de doutrinas em que, admitida uma, todas as demais tambm o devero ser. Por isso, tambm quisemos servir-nos de uma forma quase didtica, e nem recusamos os vocbulos brbaros, que os modernistas adotam. Se, pois, de uma s vista de olhos atentarmos para todo o sistema, a ningum causar pasmo ouvir-Nos defini-lo, afirmando ser ele a sntese de todas as heresias. Certo que se algum se propusesse juntar, por assim dizer, o destilado de todos os erros, que a respeito da f tm sido at hoje levantados, nunca poderia chegar a resultado mais completo do que alcanaram os modernistas. To longe se adiantaram eles, como j o notamos, que destruram no s o catolicismo, mas qualquer outra religio. Com isto se explicam os aplausos do racionalistas; por isto aqueles dentre os racionalistas que falam mais clara e abertamente, se vangloriam de no ter aliados mais efetivos que os modernistas. E de fato, voltemos um pouco, Venerveis Irmos, prejudicialssima doutrina do agnosticismo. Com esta, por parte da inteligncia est fechado ao homem todo o caminho para chegar a Deus, ao passo que se torna mais aberto por parte de um certo sentimento e da ao. Quem no percebe, porm, que isto se afirma em vo?

O sentimento corresponde sempre ao de um objeto, que proposto pela inteligncia ou pelos sentidos. Exclu a inteligncia, e o homem seguir mais arrebatadamente os sentidos pelos quais j arrastado. Alm de que, quaisquer que sejam as fantasias de um sentimento religioso, no podem elas vencer o senso comum; ora, o senso comum nos ensina que toda a perturbao ou preocupao do esprito, longe de ajudar, impede a investigao da verdade (queremos dizer da verdade em si mesma); ao passo que aquela outra verdade subjetiva, fruto do sentimento ntimo e da ao, quando muito serviria para um jogo de palavras, sem nada aproveitar ao homem, que antes de tudo quer saber se, fora de si, existe ou no um Deus, em cujas mos h de cair um dia. Recorrem outrossim e com afinco experincia. Mas, que pode ela acrescentar ao sentimento? Nada, por certo; poder apenas torn-lo mais intenso; e esta intensidade tornar proporcionalmente mais firme a persuaso da verdade do objeto. Estas duas coisas, porm, no faro que o sentimento deixe de ser sentimento, nem lhe mudaro a natureza, sempre sujeita a engano, se no for auxiliada pela inteligncia; pelo contrrio, confirmaro e reforaro o sentimento, pois que este, quanto mais intenso for, tanto mais direito ter a ser sentimento. Como porm tratamos aqui do sentimento religioso e da experincia, que nele se contm, sabeis por certo, Venerveis Irmos, com quanta prudncia convm tratar esta matria, e quanta cincia se requer para regular esta mesma prudncia. Vs o sabeis, pelo contacto que tendes com as almas, especialmente aquelas em que domina o sentimento; Vs o sabeis pelo estudo dos tratados de asctica que, no obstante serem menosprezados pelos modernistas, contm doutrina mais slida e mais fina observao do que aquela de que se vangloriam os modernistas.

E a Ns, na verdade, parece-Nos ser s de um demente ou pelo menos de um rematado imprudente o admitir, sem mais exame, por verdadeiras, as tais experincias ntimas apregoadas pelos modernistas. Por que ser ento, dizemo-lo aqui de passagem, que tendo essas experincias to grande fora e certeza, no o possa tambm ter a experincia de milhares de catlicos, quando afirmam que os modernistas vagueiam por um caminho errado? A maior parte dos homens sustenta e h de sempre sustentar com firmeza que, s com o sentimento e a experincia, sem a guia e a luz da inteligncia, nunca se chegar ao conhecimento de Deus. Resta, portanto, ainda uma vez, ou o atesmo ou a absoluta falta de religio. No esperem os modernistas melhores resultados da sua doutrina do simbolismo. De fato, se todos os elementos, que chamam intelectuais, no passam de meros smbolos de Deus, por que motivo no ser tambm um smbolo o mesmo nome de Deus ou de personalidade divina? E se assim for, bem se poderia duvidar da mesma personalidade divina, e teremos aberta a estrada para o pantesmo. Do mesmo modo, a um puro e simples pantesmo leva a outra doutrina da imanncia divina. Pois, se perguntarmos: essa imanncia distingue ou no distingue Deus do homem? Se distingue, que divergncia ento pode haver entre essa doutrina e a catlica? Ou ento, por que rejeitam os modernistas a doutrina da revelao externa? Se, pelo contrrio, no se distingue, temos de novo o pantesmo.

Mas, de fato, a imanncia dos modernistas quer e admite que todo o fenmeno de conscincia proceda do homem enquanto homem. Com legtimo raciocnio deduzimos portanto que Deus e o homem so uma e a mesma coisa; e daqui o pantesmo. Tambm a distino que fazem entre as cincia e a f, no leva a outro resultado. Pem o objeto da cincia na realidade do cognoscvel, e o da f na realidade do incognoscvel. Ora, o incognoscvel produzido pela completa desproporo entre o objeto e a inteligncia. E esta desproporo, acrescentam, nunca poder cessar. Logo, o incognoscvel ficar sempre incognoscvel, tanto para o crente quanto para o filsofo. Se, pois, alguma religio houver, o seu objeto ser sempre a realidade do incognoscvel; e no sabemos por que motivo essa realidade no poder ser a alma universal do mundo, como querem certos racionalistas. Isto j bastante para bem nos certificarmos de que muitos so os caminhos, pelos quais a doutrina modernista vai acabar no atesmo e na destruio de toda religio. Neste caminho os protestantes deram o primeiro passo; os modernistas o segundo; pouco falta para o completo atesmo.

II PARTE

AS CAUSAS DO MODERNISMO

Para mais a fundo conhecermos o modernismo e o mais apropriado remdio acharmos para to grande mal, cumpre agora, Venerveis Irmos, indagar algum tanto das causas donde se originou e porque se tem desenvolvido. No h duvidar que a causa prxima e imediata a aberrao do entendimento. As remotas, reconhecemo-las duas: o amor de novidades e o orgulho. O amor de novidades basta por si s para explicar toda a sorte de erros. Por esta razo o Nosso sbio predecessor Gregrio XVI, com toda a verdade escreveu (Encicl. "Singulari Nos" 7/07/1834): Muito lamentvel ver at onde se atiram os delrios da razo humana, quando o homem corre aps as novidades e, contra as admoestaes de So Paulo, se empenha em saber mais do que convm e, confiando demasiado em si, pensa que deve procurar a verdade fora da Igreja Catlica, onde ela se acha sem a menor sombra de erro. Contudo, o orgulho tem muito maior fora para arrastar ao erro os entendimentos; e o orgulho que, estando na doutrina modernista como em sua prpria casa, a acha larga de que se cevar e com que ostentar as suas manifestaes.

Efetivamente, o orgulho f-los confiar tanto em si que se julgam e do a si mesmos como regra dos outros. Por orgulho loucamente se gloriam de ser os nicos que possuem o saber, e dizem desvanecidos e inchados: Ns c no somos como os outros homens. E, de fato, para o no serem, abraam e devaneiam toda a sorte de novidades, at das mais absurdas. Por orgulho repelem toda a sujeio, e afirmam que a autoridade deve aliar-se com a liberdade.

Por orgulho, esquecidos de si mesmos, pensam unicamente em reformar os outros, sem respeitarem nisto qualquer posio, nem mesmo a suprema autoridade. Para se chegar ao modernismo no h, com efeito, caminho mais direto do que o orgulho. Se algum leigo ou tambm algum sacerdote catlico esquecer o preceito da vida crist, que nos manda negarmos a ns mesmos para podermos seguir a Cristo, e se no afastar de seu corao o orgulho, ningum mais do ele se acha naturalmente disposto a abraar o modernismo! Seja portanto, Venerveis Irmos, o vosso primeiro dever resistir a esses homens soberbos, ocup-los nos misteres mais humildes e obscuros, a fim de serem tanto mais deprimidos quanto mais se enaltecem, e, postos na nfima plana, tenham menor campo a prejudicar. Alm disto, por vs mesmos ou pelos reitores dos seminrios, procurai com cuidado conhecer os jovens que se apresentam candidatos s fileiras do clero; e se algum deles for de natural orgulhoso, riscai-o resolutamente do nmero dos ordinandos. Neste ponto, quisera Deus que se tivesse sempre agido com a vigilncia e fortaleza que era mister!

Passando das causas morais s que se relacionam com a inteligncia, surge sempre a ignorncia. Todos os modernistas que pretendem ser ou parecer doutores na Igreja, exaltando em voz clamorosa a moderna filosofia e desdenhando a Escolstica, abraaram a primeira, iludidos pelo seu falso brilho, porque, ao ignorarem completamente a segunda, careceram dos meios convenientes para reconhecerem a confuso das idias e refutar os sofismas. , pois, da aliana da falsa filosofia com a f que surgiu o seu sistema, formado de tantos e tamanhos erros.

Quem dera que eles fossem no entanto menos zelosos e sagazes na propaganda destes erros! Mas, em vez disto, tal a sua esperteza, to indefeso o seu trabalho, que deveras causa pesar ver consumirem-se em prejuzo da Igreja tantas foras, que bem empregadas lhe seriam muito vantajosas. Para conduzirem os espritos ao erro, usam de dois meios: removem primeiro os obstculos, e em seguida procuram com mxima cautela os ardis que lhes podero servir, e pem-nos em prtica, incessante e pacientemente. Dentre os obstculos, trs principalmente se opem aos seus esforos: o mtodo escolstico de raciocinar, a autoridade dos Padres com a Tradio, o Magistrio eclesistico. Tudo isto para eles objeto de uma luta encarniada. Por isso, continuamente escarnecem e desprezam a filosofia e a teologia escolstica. Quer o faam por ignorncia, quer por temor, quer mais provavelmente por um e outra, o certo que a mania da novidade neles se acha aliada com dio escolstica; e no h sinal mais manifesto de que comea algum a volver-se para o modernismo do que comear a aborrecer a escolstica. Lembrem-se os modernistas os seus fautores da condenao que Pio IX infligiu a esta proposio (Syll. prop. 13):

O mtodo e os princpios com que os antigos doutores escolsticos trataram a teologia, no condizem mais com as necessidades dos nossos tempos e com os progressos da cincia. So tambm muito astuciosos em desvirtuar a natureza e a eficcia da Tradio, a fim de priv-la de todo o peso e autoridade. Porm, ns, os catlicos, teremos sempre do nosso lado a autoridade do segundo Conclio de Nicia, que condenou aqueles que ousam..., maneira de perversos hereges, desprezar as tradies eclesisticas e imaginar qualquer novidade... ou pensar maliciosa e astutamente em destruir o que quer que seja das legtimas tradies da Igreja catlica. Teremos sempre a profisso do quarto Conclio de Constantinopla: Professamos, portanto, conservar e defender as regras que, tanto pelos santos e clebres Apstolos quanto pelos Conclios universais e locais, ortodoxos, mesmo por qualquer deloquo Padre e Mestre da Igreja, foram dadas Santa Igreja Catlica e apostlica. Por esta razo os Pontfices Romanos Pio IV e Pio IX quiseram que se acrescentassem estas palavras profisso de f: Creio firmemente e professo as tradi