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CARTA ENCÍCLICA QUADRAGESIMO ANNO DE SUA SANTIDADE PAPA PIO XI AOS VENERÁVEIS IRMÃOS, PATRIARCAS, PRIMAZES, ARCEBISPOS, BISPOS E DEMAIS ORDINÁRIOS EM PAZ E COMUNHÃO COM A APOSTÓLICA BEM COMO A TODOS OS FIÉIS DO ORBE CATÓLICO SOBRE A RESTAURAÇÃO E APERFEIÇOAMENTO DA ORDEM SOCIAL EM CONFORMIDADE COM A LEI EVANGÉLICA NO XL ANIVERSÁRIO DA ENCÍCLICA DE LEÃO XIII « RERUM NOVARUM »

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  • CARTA ENCÍCLICA QUADRAGESIMO ANNO

    DE SUA SANTIDADE PAPA PIO XI

    AOS VENERÁVEIS IRMÃOS, PATRIARCAS,PRIMAZES, ARCEBISPOS, BISPOS E DEMAIS

    ORDINÁRIOS EM PAZ E COMUNHÃO COM A SÉAPOSTÓLICA BEM COMO A TODOS OS FIÉIS DO

    ORBE CATÓLICO SOBRE A RESTAURAÇÃO EAPERFEIÇOAMENTO DA ORDEM SOCIAL EM

    CONFORMIDADE COM A LEI EVANGÉLICA NO XLANIVERSÁRIO DA ENCÍCLICA DE LEÃO XIII

    « RERUM NOVARUM »

  • Veneráveis Irmãos e Amados Filhos Saúde e BênçãoApostólica

    No 40º aniversário da magistral encíclica deLeão XIII « Rerum novarum », todo o orbe católico,movido dos sentimentos da mais viva gratidão,propõe-se comemorá-la com a devida solenidade.

    A Encíclica « Rerum novarum ».Já antes, em certo modo, haviam preparado o

    caminho àquele documento de solicitude pastoral,as encíclicas do mesmo Nosso Predecessor sobreo princípio da sociedade humana que é a família eo santo sacramento do Matrimónio,1 sobre aorigem da autoridade civil,2 e a devida ordem dassuas relações com a Igreja,3 sobre os principaisdeveres dos fieis como cidadãos,4 contra osprincípios do socialismo,5 contra as falsas teoriasda liberdade humana,6 e outras do mesmo géneroque plenamente revelaram o modo de pensar deLeão XIII ; contudo a encíclica « Rerum novarum »distingue-se das demais por ter dado a todo ogénero humano regras seguríssimas para a boasolução do espinhoso problema do consórciohumano, a chamada « Questão social »,

    1 Encícl. Arcanum 10 de Fevereiro de 1880.2 Encícl. Diuturnum 29 de Junho de 1881.3 Encícl. Immortale Dei 1 de Novembro de 1885.4 Encícl. Sapientiae christianae 10 de Janeiro de 1890.5 Encícl. Quod apostolici muneris 28 de Dezembro de 1878.6 Encícl. Libertas 20 de Junho de 1888.

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  • precisamente quando isso mais oportuno enecessário era.

    Sua ocasiãoCom efeito ao fim do século XIX, em

    consequência de um novo género de economia,que se ia formando, e dos grandes progressos daindústria em muitas nações, aparecia a sociedadecada vez mais dividida em duas classes : das quaisuma, pequena em número, gozava de quase todasas comodidades que as invenções modernasfornecem em abundância ; ao passo que a outra,composta de uma multidão imensa de operários,a gemer na mais calamitosa miséria, debalde seesforçava por sair da penúria, em que se debatia.

    Com tal estado de coisas facilmente seresignavam os que, nadando em riquezas, osupunham efeito inevitável das leis económicas, epor isso queriam que se deixasse à caridade todoo cuidado de socorrer os miseráveis ; como se acaridade houvesse de capear as violações dajustiça, não só toleradas, mas por vezes atéimpostas pelos legisladores. Ao contrário só aduras penas o toleravam os operários, vítimas dafortuna adversa, e tentavam sacudir o jugoduríssimo : uns, levados na fúria de mausconselhos, aspiravam a tudo subverter, os outros,a quem a educação cristã demovia d'esses mausintentos, estavam contudo firmementeconvencidos de que nesta matéria era necessáriauma reforma urgente e radical.

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  • O mesmo pensavam todos os católicos,sacerdotes ou leigos, que, impelidos por umacaridade admirável, já de há muito trabalhavamem aliviar a miséria imerecida dos operários, nãopodendo de modo nenhum persuadir-se de queuma diferença tão grande e tão iníqua nadistribuição dos bens temporais correspondesseverdadeiramente aos desígnios sapientíssimos doCriador.

    Procuravam eles com toda a lealdade umremédio eficaz a esta lamentável desordem dasociedade e uma firme defesa contra os perigosainda maiores que a ameaçavam ; mas tal é afraqueza mesmo das melhores inteligênciashumanas, que ora se viam repelidos comoinovadores perigosos, ora obstaculados porcompanheiros de acção mas de ideais diversos : eassim hesitantes entre várias opiniões, nemsabiam para onde voltar-se.

    No meio de tão grande luta de espíritos,quando de uma parte e doutra ferviam disputasnem sempre pacíficas, todos os olhos se volviam,como tantas outras vezes, para a cátedra dePedro, para este depósito sagrado de toda averdade, donde se difundem pelo mundo inteiropalavras de salvação ; e todos, sociólogos,patrões, operários, acorrendo com frequênciadesusada aos pés do Vigário de Cristo na terra,suplicavam a uma voz que se lhes indicasse enfimo caminho seguro.

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  • Prudentíssimo como era o Pontífice, tudoponderou longamente diante de Deus, chamou aconselho homens de reconhecida ciência, pesoubem as razões por uma parte e outra, e finalmentemovido « pela consciência do múnusApostólico »,7 para que não parecesse, quedescurava os seus deveres calando por maistempo,8 decidiu-se a falar a toda a Igreja deCristo, antes a todo o género humano, noexercício do magistério divino a ele confiado.

    Ressoou por tanto no dia 15 de maio de 1891aquela voz há tanto suspirada, ressoou robusta eclara, sem que a intimidassem as dificuldades,nem a enfraquecesse a velhice, e ensinou à famíliahumana, a empreender novos caminhos noterreno social.

    Tópicos principaisConheceis, veneráveis Irmãos e amados

    Filhos, e sabeis perfeitamente a admiráveldoutrina, que tornou a encíclica « Rerum novarum »digna de eterna memória. Nela o bom Pastor,condoído ao ver « a miserável e desgraçadacondição, em que injustamente viviam » tãogrande parte dos homens, tomou animoso adefesa dos operários, que « as condições dotempo tinham entregado e abandonado indefesosà crueldade de patrões desumanos e à cobiça de

    7 Encícl. Rerum novarum, 15 de Maio de 1891, n. 1.8 Cfr. Encícl. Rerum novarum, n. 13.

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  • uma concorrência desenfreada ».9 Não pediuauxílio nem ao liberalismo nem ao socialismo,pois que o primeiro se tinha mostrado de todoincapaz de resolver convenientemente a questãosocial, e o segundo propunha um remédio muitopior que o mal, que lançaria a sociedade emperigos mais funestos.

    O Pontífice no uso do seu direito econvencido de que a ele principalmente foraconfiada a salvaguarda da religião e de tudo o quecom ela está estreitamente vinculado, pois setratava de um problema « a que não se podiaencontrar solução plausível sem o auxílio dareligião e da Igreja »,10 apoiando-se unicamentenos princípios imutáveis tirados do tesoiro darecta razão e da revelação divina, confiadamente e« como quem tinha autoridade »,11 expôs cominexcedível clareza e proclamou não só « osdireitos e os deveres que devem reger as relaçõesmútuas dos ricos e dos proletários, doscapitalistas e dos trabalhadores »,12 mas também aparte que deviam tomar a Igreja, a autoridade civile os próprios interessados na solução dosconflitos sociais.

    Nem a voz Apostólica ressoou debalde ;antes, com assombro a ouviram e a aplaudiram

    9 Encícl. Rerum novarum, n. 2.10 Encícl. Rerum novarum, D. 13.11 Mt., 7, 29.12 Encícl. Rerum novarum, n. 1.

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  • com suma benevolência, além dos filhosobedientes da Igreja, muitos dos que viviam longeda verdade e da unidade da fé e quase todos osque depois se ocuparam de sociologia e economiatanto no estudo teórico como na públicalegislação.

    Foram porém os operários cristãos os quecom maior alegria acolheram a encíclica aoverem-se assim vingados e defendidos pelasuprema Autoridade da terra e com eles todas asalmas generosas, que, já de há muito empenhadasem aliviar a sorte dos operários, não tinhamencontrado senão indiferença em muitos,suspeitas odientas e até manifesta hostilidade emmuitos outros. E é por isso que todos estestiveram depois em tanta estima aquelas letrasApostólicas, que todos os anos costumamcelebrar-lhe a memória com demonstrações degratidão diversas nas diversas terras.

    No meio de tanta harmonia de sentimentosnão faltaram vozes discordantes de alguns,mesmo de católicos, a quem a doutrina de LeãoXIII, tão nobre e elevada, tão nova para humanosouvidos pareceu suspeita e até escandalizou. Elaassaltava ousadamente e derribava os ídolos doliberalismo, não fazia caso de preconceitosinveterados, prevenia inopinadamente o futuro :que muito que os rotineiros desdenhassemaprender esta nova filosofia social e os tímidosreceassem subir a tais alturas, ao passo que

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  • outros, admirando aquela luz, a reputavamperfeição ideal, mais para desejar que pararealizar ?

    Fim da presente EncíclicaPor isso é que Nós, veneráveis Irmãos e

    amados Filhos, agora que todo o mundo esobretudo os operários católicos, que de toda aparte acodem a esta Alma Cidade, comemoramcom tanta solenidade e entusiasmo oquadragésimo aniversário da encíclica « Rerumnovarum », julgamos dever Nosso aproveitar estaocasião para recordar os grandes. benefícios quedela advieram à Igreja católica e a toda ahumanidade ; defender a doutrina social eeconómica de tão grande Mestre satisfazendo aalgumas dúvidas, desenvolvendo mais eprecisando alguns pontos ; finalmente, chamandoa juízo o regime económico moderno einstaurando processo ao socialismo, apontar araiz do mal estar da sociedade contemporânea emostrar-lhe ao mesmo tempo a única via de umarestauração salutar, que é a reforma cristã doscostumes. Eis os três pontos da presenteencíclica.

    I. BENEFÍCIOS DA « RERUMNOVARUM »

    Para começarmos pelo que em primeiro lugarpropusemos, seguindo a advertência de S.Ambrósio,13 que a gratidão é o primeiro e mais13 S. Ambrósio, de excessu fratris sui Satyri, I, 44.

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  • imperioso dos deveres, não podemos conter-Nosque não demos a Deus as maiores acções degraças pelos imensos benefícios que da encíclicade Leão XIII advieram à Igreja e a todo o génerohumano. Se Nós os quiséssemos enumerar,mesmo de passagem, deveríamos por assim dizer,recordar toda a história dos últimos quarentaanos, na parte relativa à questão social. Mas tudose pode reduzir a três pontos, conforme aotríplice concurso que o Nosso Predecessordesejava, para poder levar a efeito a sua obragrandiosa de restauração.

    1. - ACÇÃO DA IGREJAEm primeiro lugar o que da Igreja se podia

    esperar, declarou-o eloquentemente o mesmoLeão XIII : « A Igreja é a que aufere doEvangelho a única doutrina capaz de pôr termo àluta, ou ao menos de a suavizar, tirando-lhe todaa aspereza ; é ela que com seus preceitos instrui asinteligências e se esforça por moralizar a vida dosindivíduos ; que com utilíssimas instituiçõesmelhora continuamente a sorte dos proletários ».14

    a) No campo doutrinalOra a Igreja não deixou estagnar no seu seio

    esta linfa preciosa, senão que a fez correr emabundância para o bem comum da suspirada paz.O próprio Leão XIII e seus Sucessores nãocessaram de proclamar de viva voz e por escrito adoutrina social e económica da encíclica « Rerum14 Encícl. Rerum novarum, n. 13.

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  • novarum », urgindo-a e aplicando-a segundo aocasião às circunstâncias de tempo e lugar, comaquela caridade paterna e constância pastoral, quesempre os distinguiu na defesa dos pobres edesvalidos.15 Nem foi outro o proceder de grandeparte do Episcopado, que com assiduidade emaestria declarou e comentou a mesma doutrina,adaptando-a às condições dos diversos países,segundo a mente e as directivas da Santa Sé.16

    Não é pois de admirar, que muitos sábiosquer eclesiásticos quer leigos se aplicassemdiligentemente, seguindo a orientação dada pelaIgreja, a desenvolver a ciência social e económica,conforme às exigências do nosso tempo, levadossobretudo do desejo de tornar a doutrinainalterada e inalterável da Igreja mais eficaz pararemediar as necessidades modernas.

    Foi assim que à luz e sob o impulso daencíclica de Leão XIII nasceu uma verdadeiraciência social católica, cultivada e enriquecidacontinuamente pela indefessa aplição d'aquêlesvarões escolhidos, que chamámos cooperadores

    15 Baste mencionar: Leão XIII, Letras Apostólicas Praeclara 20 de Junho de1894. Leão XIII Graves de communi 18 de Janeiro de 1901. Pio X Motuproprio sobre a Acção-popular cristã 8 de Dezembro de 1903. Bento XV,Enciclica Ad Beatissimi 1 de Novembro de 1914. Pio XI, Enciclica Ubiarcano 23 de Dezembro de 1922. Pio XI, Enciclica Rite expiatis 30 de Abrilde 1926.16 Cfr. La Hierarchie Catholique et le Problème social depuis l'Encyclique « Rerumnovarum » 1891-1931, pp. XVI-335, publicado pela « Union internationaled'études sociales fondée à Malines, en 1920, sons la présidence du Card.Mercier ». (Paris, éditions Spes », 1931).

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  • da Igreja. Nem eles a deixam escondida nasombra de simples discussões eruditas, masexpõem-na à luz do sol em públicas palestras,como o demonstram exuberantemente os cursos,tão úteis e tão frequentados, instituídos nasuniversidades católicas, academias e seminários,os congressos ou « semanas sociais » celebradosfrequentemente e com grande fruto, os círculosde estudos, os escritos repletos de oportuna e sãdoutrina, por toda a parte e por todos os modosdivulgados.

    E não são estes apenas os frutos dodocumento Leoniano : a doutrina ensinada naencíclica « Rerum novarum » impôs-seinsensivelmente à atenção d'aqueles mesmos que,separados da unidade católica, não reconhecem aautoridade da Igreja ; e assim os princípios desociologia católica entraram pouco a pouco nopatrimónio de toda a sociedade humana ; e asverdades eternas, tão altamente proclamadas pelasanta memória do Nosso Predecessor, vemo-lasfrequentemente citadas e defendidas não só emjornais e livros mesmo acatólicos, mas até nosparlamentos e tribunais.

    E quando após a grande guerra osgovernantes das principais potências, trataram derestabelecer a paz sobre as bases de umacompleta renovação social, entre as leis, feitaspara regular o trabalho dos operários segundo ajustiça e a equidade, decretaram muitas tão

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  • conformes com os princípios e directivas de LeãoXIII, que parecem intencionalmente copiadas. Éque a encíclica « Rerum novarum » é um documentotão notável, que bem se pode dizer com palavrasde Isaias : « Estandarte arvorado à face dasnações » !17

    b) Na práticaAssim se iam divulgando cada vez mais à luz

    das investigações científicas os preceitos de LeãoXIII ; ao mesmo tempo passava-se à suaaplicação prática. E primeiramente comactividade e benevolência fizeram-se todos osesforços para. elevar aquela classe, que osrecentes progressos da indústria tinhamaumentado desmedidamente sem lhe darem nasociedade o lugar que lhe competia, e que porisso jazia em quase completa desconsideração eabandono : falamos dos operários., a cuja culturazelosos sacerdotes de um e outro clero, apesar desobrecarregados com outros cuidados pastorais,se aplicaram desde logo, sob a guia dosrespectivos Prelados e com grande fruto d'aquelasalmas. Este trabalho constante vara embeber deespírito cristão as almas dos operários contribuiutambém muitíssimo para lhes dar a verdadeiraconsciência da própria dignidade, e para habilitá-los, pela compreensão clara dos direitos e deveresda sua classe, a progredir honrada e felizmente no

    17 Cfr. Is. 11, 12.

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  • campo social e económico, a ponto de serviremde guias aos outros.

    Daqui os meios de subsistência melhorassegurados e em maior cópia : por quanto não sócomeçaram a multiplicar-se segundo asexortações do grande Pontífice as obras decaridade e beneficência, mas também foramsurgindo por toda a parte e cada vez maisnumerosas as associações de mútuo socorro paraoperários, artistas, agricultores e jornaleiros detoda a espécie, fundadas segundo os conselhos edirectivas da Igreja e ordinariamente sob adirecção do clero.

    2. - ACÇÃO DA AUTORIDADE CIVILQuanto à autoridade civil, Leão XIII,

    ultrapassando com audácia os confins impostospelo liberalismo, ensina impertérrito, que ela nãodeve limitar-se a tutelar os direitos e a ordempública, mas antes fazer o possível « para que asleis e instituições sejam tais..., que da própriaorganização do Estado dimane espontaneamentea prosperidade da nação e dos indivíduos ».18Deve sim deixar-se tanto aos particulares como àsfamílias a justa liberdade de acção, mas contantoque se salve o bem comum e não se faça injúria aninguém. Aos governantes compete defendertoda a nação e os membros que a constituem,tendo sempre cuidado especial dos fracos edeserdados da fortuna ao proteger os direitos dos18 Encícl. Rerum novarum, n. 25.

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  • particulares. « Por quanto a classe abastada,munida dos seus próprios recursos, carece menosdo auxílio público ; pelo contrário a classeindigente, desprovida de meios pessoais, esteia-sesobre tudo na protecção do Estado. Porconseguinte deve ele atender com particularcuidado e providência aos operários, visto seremeles do número da classe pobre ».19

    Não negamos que alguns governantes, jáantes da encíclica de Leão XIII, tivessem providoàs necessidades mais urgentes dos obreiros ereprimido as injustiças de maior vulto a estesfeitas. Mas foi só depois que a palavra Apostólicaressoou ao mundo inteiro desde a cátedra dePedro, que os governos, capacitando-se mais dasua missão, se aplicaram a desenvolver umapolítica social mais activa.

    E na verdade, em quanto vacilavam osprincípios do liberalismo, que havia muitoparalisavam a obra eficaz dos governos, aencíclica « Rerum novarum » produziu no seio dasnações uma grande corrente favorável a umapolítica francamente social, e de tal modo excitouos melhores católicos a cooperar com asautoridades, que não raro foram eles osdefensores mais ilustres da nova legislação nospróprios parlamentos. Mais ainda : foramministros da Igreja compenetrados da doutrina deLeão XIII que propuseram às câmaras muitas das19 Encícl. Rerum novarum, n. 29.

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  • leis sociais recentemente promulgadas, e quedepois mais urgiram e promoveram a suaexecução.

    Deste contínuo e indefesso trabalho nasceuaquela jurisprudência completamentedesconhecida nos séculos passados, que sepropõe defender com ardor os sagrados direitosdo operário, provenientes da sua dignidade dehomem e de cristão : de facto estas leis protegema alma, a saúde, as forças, a família, as casas, asoficinas, o salário, abrangem os acidentes detrabalho, numa palavra, tudo aquilo que interessaa classe trabalhadora, principalmente as mulherese crianças. E se uma tal legislação não condiz detodo nem em toda a parte com as normas deLeão XIII, não se pode contudo negar haver nelamuitas reminiscências da encíclica « Rerumnovarum » e que à mesma por conseguinte se deveatribuir em grande parte a melhorada condiçãodos operários.

    3. - ACÇÃO DOS INTERESSADOSMostra enfim muito prudentemente o

    Pontífice, que os patrões e os próprios operáriospodem fazer muito nesta matéria, « com asinstituições destinadas a levar auxílio oportunoaos indigentes e a aproximar mais uma classe daoutra ».20 Entre estas dá Leão XIII o primeirolugar às associações que abrangem quer somenteos operários, quer operários e patrões ; e alarga-se20 Encícl. Rerum novarum, n. 36.

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  • em recomendá-las e ilustrá-las, declarando a suanatureza, razão de ser, conveniência, direitos,deveres, leis, com sabedoria verdadeiramenteadmirável.

    Nem estes ensinamentos podiam vir emocasião mais oportuna : com efeito nesse tempoos que tinham na mão em muitas nações o lemedo Estado, totalmente impregnados deliberalismo, não só não eram favoráveis àsassociações operárias, mas até abertamente ashostilizavam ; e quando reconheciam de boavontade e tutelavam instituições análogas entreoutras classes, negavam com injustiça flagrante odireito natural de associação àqueles, que maisnecessitavam dele, para se defender das vexaçõesdos poderosos ; nem faltou ainda mesmo entre oscatólicos quem visse de maus olhos, acoimando-os de socialistas ou anárquicos, os esforços dosoperários em associar-se.

    A) Associações operáriasSão por tanto dignas dos maiores encómios

    as normas emanadas da autoridade de Leão XIII,que lograram derribar tais obstáculos, e desfazertais suspeitas ; mas tornaram-se ainda maisimportantes, por terem exortado os operárioscristãos a associarem-se segundo os váriosmisteres, ensinando-lhes o meio de oconseguirem, e por terem ainda consolidado nocaminho do dever muitos, a quem as associaçõessocialistas seduziam fortemente, apregoando-se a

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  • si mesmas únicos defensores e propugnadoresdos humildes e oprimidos.

    Quanto à erecção destas associações, aencíclica « Rerum novarum » observa muito apropósito, « que as corporações devem organizar-se e governar-se de modo que forneçam a cadaum de seus membros os meios mais fáceis eexpeditos para conseguirem seguramente o fimproposto, isto é : a maior cópia possível, paracada um, de bens do corpo, do espírito e dafortuna » ; porém é claro « que sobretudo se deveter em vista, como mais importante, a perfeiçãomoral e religiosa ; e que por ela se deve orientartodo o regulamento destas sociedades ».21 Comefeito « constituída assim a religião comofundamento de todas as leis sociais, não é difícildeterminar as relações que devem existir entre osmembros para que possam viver em paz eprosperar.22

    Desejosos de levar a efeito a aspiração deLeão XIII, muitos do clero e do laicadodedicaram-se por toda a parte com louvávelempenho a fundar estas associações ; as quaisprotegidas pela religião, embebidas do seuespírito, formaram operários verdadeiramentecristãos, que uniam em boa harmonia o exercíciodiligente da própria arte com os preceitossalutares da religião e defendiam eficaz e21 Encícl. Rerum novarum, n. 42.22 Encícl. Rerum novarum, n. 43.

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  • tenazmente os próprios direitos e interessestemporais, tendo sempre em conta a justiça e osincero desejo de colaborar com as outras classespara a restauração cristã de toda a vida social.

    Diverso segundo as várias circunstânciaslocais foi o esforço em realizar os desígnios e asnormas de Leão XIII. De facto nalgumas regiõesa mesma associação abraçava todos os finsvisados pelo Pontífice ; noutras ao contráriochegou-se a uma certa divisão de actividade ; eformaram-se associações distintas, umas parazelar os direitos e interesses legítimos dos sóciosnos contractos de trabalho, outras para organizaro mútuo auxílio económico, outras finalmentepara o desempenho dos deveres religiosos emorais e de outras obrigações análogas.

    Este segundo método prevaleceu sobretudonos países, onde as leis pátrias, as instituiçõeseconómicas, ou a discórdia de inteligências ecorações tão deploravelmente enraizada nasociedade moderna ou ainda a, necessidadeurgente de opor uma frente única aos inimigos daordem, impediam aos católicos a fundação desindicatos próprios. Num tal estado de coisas oscatólicos vêem-se quase obrigados a inscrever-seem sindicatos neutros, uma vez que façamprofissão de justiça e equidade e deixem aossócios católicos plena liberdade de obedecer àprópria consciência e cumprir os preceitos daIgreja. Pertence aos Bispos, se reconhecerem que

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  • tais associações são impostas pelas circunstânciase não oferecem perigo para a religião, permitirque os operários católicos se inscrevam nelas,observando contudo a este respeito as normas eprecauções recomendadas por Nosso PredecessorPio X, de santa memória.23 Primeira e a maisimportante é, que ao lado dos sindicatos existamsempre outros grupos com o fim de dar a seusmembros uma séria formação religiosa e moral,para que eles depois infiltrem nas organizaçõessindicais o bom espírito que deve animar toda asua actividade. Sucederá assim que estes gruposexercerão benéfica influencia mesmo fora dopróprio âmbito.

    Por isso deve atribuir-se à encíclica Leonianao terem florescido tanto por toda a parte estasassociações operárias, que já hoje, apesar deserem, infelizmente, ainda inferiores em númeroàs dos socialistas e comunistas, agrupam notávelmultidão de sócios e podem defenderenergicamente os direitos e aspirações legítimasdo operariado católico e propugnar os salutaresprincípios da sociedade cristã, quer fronteiras adentro da pátria, quer em congressosinternacionais.

    B) Associações não operáriasAcresce ao sobredito, que a doutrina relativa

    ao direito natural de associação tão sabiamenteexposta e com tanto valor defendida por Leão23 Encícl. Singulari quadam de 24 de Setembro de 1912.

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  • XIII, começou naturalmente a aplicar-se tambéma associações não operárias ; pelo quê deve-se emgrande parte mesma encíclica, que até entre osagricultores e outros membros da classe média sevejam florescer e multiplicar de dia para dia estasutilíssimas corporações e outros institutossimilares, que aliam felizmente os interesseseconómicos à formação espiritual.

    C) Associações de industriaisE se não pode dizer-se o mesmo das

    associações que o Nosso Predecessor tãoardentemente desejava ver instituídas entrepatrões e industriais, e que lamentamos sejam tãopoucas, não deve isso atribuir-se completamenteà má vontade dos homens, mas a dificuldadesmuito maiores que se opõem à sua realização,dificuldades que Nós muito bem conhecemos eavaliamos na devida conta. Temos porém seguraesperança de que para breve até essas dificuldadesdesaparecerão e saudamos já com íntimo júbiloda alma alguns esforços envidados com vantagemneste particular, cujos frutos abundantesprometem messe ainda mais copiosa para ofuturo.24

    CONCLUSÃO : A « MAGNACHARTA » DOS OPERÁRIOS

    Todos estes benefícios da encíclica de LeãoXIII que Nós, veneráveis Irmãos e amados

    24 Carta da S. Congregação do Concilio ao Bispo de Lille, 5 de Junho de1929.

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  • Filhos, acabamos de recordar, acenando-os maisdo que descrevendo-os, são tais e tão grandes,que mostram claramente como o imortaldocumento não era apenas a expressão de umideal magnífico mas irrealizável. Ao contrário oNosso ilustre Predecessor hauriu no Evangelho, eportanto numa fonte sempre viva e vivificante adoutrina que pode, senão resolver já de vez, aomenos abrandar muito a luta fatal em quemutuamente se digladia a família humana. Osfrutos de salvação recolhidos pela Igreja de Cristoe por todo o género humano, com a graça deDeus, mostram bem que a boa. semente,espalhada há quarenta anos em tão larga cópia,caiu em grande parte numa terra fértil ; nem étemeridade afirmar que a encíclica de Leão XIIIse demonstrou com a longa experiência do tempoa « Magna Charta » em que deve basear-se comoem sólido fundamento toda a actividade cristã nocampo social. Por isso os que mostram fazerpouco da mesma encíclica e da sua comemoração,estes ou blasfemam do que não conhecem, ounão percebem nada do que conhecem, ou, sepercebem, praticam uma solene injustiça, eingratidão.

    Mas como durante estes anos surgiramdúvidas sobre a recta interpretação de váriospassos da encíclica ou sobre as consequências adeduzir deles, dando ocasião entre os próprioscatólicos a discussões nem sempre amigáveis ; e

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  • como por outra parte as novas exigências donosso tempo e as mudadas condições sociaistornam necessária uma aplicação mais esmeradada doutrina Leoniana e mesmo algumas adições,aproveitamos de boa vontade esta ocasião, para,em virtude do Nosso múnus Apostólico, que atodos Nos faz devedores,25 satisfazermos, quantoé da Nossa parte, a estas dúvidas e exigências.

    II. AUTORIDADE DA IGREJA NAQUESTÃO SOCIAL E ECONÓMICA

    Mas antes de entrarmos neste assunto,devemos pressupor, o que já provouabundantemente Leão XIII, que julgar dasquestões sociais e económicas é dever e direito daNossa suprema autoridade.26 Não foi é certoconfiada à Igreja, a missão de encaminhar oshomens à conquista de uma felicidade apenastransitória e caduca, mas da eterna ; antes « aIgreja crê não dever intrometer-se sem motivonos negócios terrenos ».27 O que não pode, érenunciar ao ofício de que Deus a investiu, deinterpor a sua autoridade não em assuntostécnicos, para os quais lhe faltam competência emeios, mas em tudo o que se refere à moral.Dentro deste campo, o depósito da verdade queDeus Nos confiou e o gravíssimo encargo dedivulgar toda a lei moral, interpretá-la e urgir o

    25 Cfr. Rom., 1, 14.26 Cfr. Rerum novarum, n. 13.27 Encícl. Ubi arcano, 23 de Dezembro de 1922.

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  • seu cumprimento oportuna e importunamente,sujeitam e subordinam ao Nosso juízo a ordemsocial e as mesmas questões económicas.

    Pois ainda que a economia e a moral « seregulam, cada uma no seu âmbito, por princípiospróprios »,28 é erro julgar a ordem económica e amoral tão encontradas e alheias entre si, que demodo nenhum aquela dependa desta. Com efeito,as chamadas leis económicas, deduzidas daprópria natureza das coisas e da índole do corpo eda alma, determinam os fins que a actividadehumana se não pode propor, e os que podeprocurar com todos os meios no campoeconómico ; e a. razão mostra claramente, damesma natureza das coisas e da naturezaindividual e social do homem, o fim imposto peloCriador a toda a ordem económica.

    Por sua parte a lei moral manda-nosprosseguir tanto o fim supremo e último em todoo exercício da nossa actividade, como, nosdiferentes domínios por onde ela se reparte, osfins particulares impostos pela natureza, oumelhor, por Deus autor da mesma ;subordinando sempre estes fins aquele, comopede a boa ordem. Se seguirmos fielmente estaregra, sucederá, que os fins particulares daeconomia, sejam eles individuais ou sociais, seinserirão facilmente na ordem geral dos fins, enós subindo por eles, como por uma escada,28 Cfr. Conc. Vaticano, Sess. 3, c. 4.

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  • chegaremos ao fim último de todos os seres, queé Deus, bem supremo e inexaurível para si e paranós.

    1. - DO DIREITO DE PROPRIEDADEPara vir agora ao particular, começamos pelo

    direito de propriedade. Sabeis, veneráveis Irmãose amados Filhos, que Leão XIII de feliz memóriadefendeu tenazmente o direito de propriedadecontra as aberrações dos socialistas do seu tempo,mostrando que a destruição do domínioparticular reverteria, não em vantagem, mas emruína da classe operária. Mas como não faltaquem com flagrante injustiça calunie o SumoPontífice e a Igreja de ter zelado e zelar somenteos interesses dos ricos contra os proletários, e osmesmos católicos não concordam nainterpretação do genuíno e verdadeiro modo depensar de Leão XIII, pareceu-Nos bem vingar detais calúnias a sua doutrina que é a católica edefendê-la de falsas interpretações.

    Sua índole individual e socialPrimeiramente tenha-se por certo, que nem

    Leão XIII, nem os teólogos, que ensinaramseguindo a doutrina e direcção da Igreja, negaramjamais ou puseram em dúvida a dupla espécie dedomínio, que chamam individual e social,segundo diz respeito ou aos particulares ou aobem comum ; pelo contrário foram unânimes emafirmar que a natureza ou o próprio Criadorderam ao homem o direito do domínio particular,

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  • não só para que ele possa prover às necessidadespróprias e da família, mas para que sirvamverdadeiramente ao seu fim os bens destinadospelo Criador a toda a família humana : ora nadadisto se pode obter, se não se observa uma ordemcerta e bem determinada.

    Deve portanto evitar-se cuidadosamente umduplo escolho, em que se pode cair. Pois como onegar ou cercear o direito de propriedade social epública precipita no chamado « individualismo »ou dele muito aproxima, assim também rejeitarou atenuar o direito de propriedade privada ouindividual leva rapidamente ao « colectivismo » oupelo menos à necessidade de admitir-lhe osprincípios. Sem a luz destas verdades ante osolhos, cair-se-á depressa nas sirtes domodernismo moral, jurídico e social, quedenunciámos com letras Apostólicas no princípiodo Nosso Pontificado ;29 tenham-no presentesobretudo aqueles espíritos desordeiros, que cominfames calúnias ousam acusar a Igreja de terpermitido, que se introduzisse na doutrinateológica o conceito pagão do domínio, ao qualdesejam a todo o custo substituir outro, por elescom pasmosa ignorância apelidado de cristão.

    Obrigações inerentes ao domínioE a fim de pôr termo às controvérsias, que

    acerca do domínio e deveres a ele inerentescomeçaram a agitar-se, note-se em primeiro lugar29 Encícl. Ubi arcano, 23 de Dezembro de 1922.

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  • o fundamento assente por Leão XIII, de que odireito de propriedade é distinto do seu uso.30Com efeito, a chamada justiça comutativa obrigaa conservar inviolável a divisão dos bens e a nãoinvadir o direito alheio excedendo os limites dopróprio domínio ; que porém os proprietáriosnão usem do que é seu, senão honestamente, é daalçada não da justiça, mas de outras virtudes, cujocumprimento « não pode urgir-se por viasjurídicas ».31 Pelo quê sem razão afirmam alguns,que o domínio e o seu honesto uso são uma e amesma coisa ; e muito mais ainda é alheio àverdade dizer, que se extingue ou se perde odireito de propriedade com o não uso ou abusodele.

    Prestam portanto grande serviço à boa causae são dignos de todo o elogio os que, salva aconcórdia dos ânimos e a integridade da doutrinatradicional da Igreja, se empenham em definir anatureza íntima destas obrigações e os limites,com que as necessidades do convívio socialcircunscrevem tanto o direito de propriedade,como o uso ou exercício do domínio. Pelocontrário muito se enganam e erram aqueles, quetentam reduzir o domínio individual a ponto de oabolirem praticamente.

    Poderes do Estado

    30 Encícl. Rerum novarum, n. 19.31 Cfr. Encícl. Rerum novarum, n. 19.

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  • Efectivamente, que deva o homem atendernão só ao próprio interesse, mas também ao bemcomum, deduz-se da própria índole, a um tempoindividual e social, do domínio, a que nosreferimos. Definir porém estes deveres nos seuspormenores e segundo as circunstâncias,compete, já que a lei natural de ordinário o nãofaz, aos que estão à frente do Estado. E assim aautoridade pública, iluminada sempre pela luznatural e divina, e pondo os olhos só no que exigeo bem comum, pode decretar maisminuciosamente o que aos proprietários seja lícitoou ilícito no uso de seus bens. Já Leão XIIIensinou sabiamente que « Deus confiou àindústria dos homens e às instituições dos povosa demarcação da propriedade individual ».32 Erealmente o regime da propriedade não é maisimutável, que qualquer outra instituição da vidasocial, como o demonstra a história e Nósmesmo notámos em outra ocasião : « Quevariedade de formas concretas não revestiu apropriedade desde a forma primitiva dos povosselvagens, de que ainda há hoje vestígios, até àforma de propriedade dos tempos patriarcais, edepois sucessivamente desde as diversas formastirânicas (usamos esta palavra no seu sentidoclássico), através das feudais e logo dasmonárquicas, até às formas existentes na idade

    32 Encícl. Rerum novarum, n. 7.

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  • moderna » !33 É evidente porém que a autoridadepública não tem direito de desempenhar-searbitrariamente desta função ; devem semprepermanecer intactos o direito natural depropriedade e o que tem o proprietário de legardos seus bens. São direitos estes, que ela nãopode abolir, porque « o homem é anterior aoEstado »,34 e « a sociedade doméstica tem sobre asociedade civil uma prioridade lógica e umaprioridade real ».35 Eis porque o sábio Pontíficedeclarava também, que o Estado não tem direitode esgotar a propriedade particular comexcessivas contribuições : « Não é das leishumanas, mas da natureza, que dimana o direitoda propriedade individual ; a autoridade públicanão a pode portanto abolir : o mais que pode émoderar-lhe o uso e harmonizá-lo com o bemcomum ».36 Quando ela assim concilia o direito depropriedade com as exigências do bem comum,longe de mostrar-se inimiga dos proprietáriospresta-lhes benévolo apoio ; de facto, fazendoisto, impede eficazmente que a posse particulardos bens, estatuída com tanta sabedoria peloCriador em vantagem da vida humana, geredesvantagens intoleráveis e venha assim a

    33 Alocução aos membros de Acção Católica italiana, 16 de Maio de 1926.34 Encícl. Rerum novarum, n. 6.35 Encícl. Rerum novarum, n. 10.36 Encícl. Rerum novarum, n. 35.

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  • arruinar-se : não oprime a propriedade, masdefende-a ; não a enfraquece, mas reforça-a.

    Deveres relativos aos rendimentos livres Nem ficam de todo ao arbítrio do homem os

    seus rendimentos livres, isto é aqueles de que nãoprecisa para sustentar a vida convenientemente ecom decoro : ao contrário as sagradas Escrituras eos santos Padres da Igreja intimamcontinuamente e com a maior clareza aos ricos ogravíssima dever da esmola e de praticar abeneficência e magnificência. Empregar grandescapitais disponíveis para oferecer em abundânciatrabalho lucrativo, com tanto que este seempregue em obras realmente úteis, não só não évício ou imperfeição moral, mas até se deve julgaracto preclaro da virtude da magnificência muitoem harmonia com as necessidades dos tempos,como se deduz argumentando dos princípios doDoutor Angélico.37

    Títulos de aquisição do domínioTítulos de aquisição do domínio são a

    ocupação de coisas sem dono, a indústria ou achamada especificação, como o demonstramabundantemente a tradição de todos os séculos ea doutrina do Nosso Predecessor Leão XIII. Defacto não faz injustiça a ninguém, por mais quealguns digam o contrário, quem se apodera deuma coisa abandonada ou sem dono ; de outraparte a indústria que alguém exerce em nome37 S. Thomas, S. Th., II, II, q. 97 e 134.

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  • próprio, e com a qual as coisas se transformamou aumentam de valor, dá-lhe direito sobre osprodutos do seu trabalho.

    Capital e trabalhoMuito diversa é a condição do trabalho, que

    vendido a outrem se exerce em coisa alheia. A eleparticularmente visava Leão XIII, quandoescrevia « poder-se afirmar sem perigo de erro,que o trabalho é a fonte única da riquezanacional ».38 Com efeito, não vemos com ospróprios olhos, que a abundância dos bens, queconstituem a riqueza, se formam e brotam dasmãos dos obreiros, quer trabalhem sós, querarmadas de instrumentos e máquinas, com o queaumentam admiravelmente a sua actividade ?Ninguém ignora, que nunca um país se ergueu damiséria e pobreza a uma fortuna melhor e maiselevada sem a colaboração ingente de todos oscidadãos, tanto dos que dirigem o trabalho, comodos que o executam. Não é porém menos certoque estes grandes esforços seriam imiteis e vãos,que nem sequer poderiam tentar-se, se DeusCriador do universo não tivesse na sua bondadefornecido antes as matérias primas e as forças danatureza. Pois que é trabalhar, senão aplicar ouexercer as forças do corpo e do espírito nestasmesmas coisas ou por meio delas ? Exige porém alei natural ou a vontade de Deus por elapromulgada, que se mantenha a devida ordem na38 Encícl. Rerum novarum, n. 27.

    30

  • aplicação dos bens naturais aos usos humanos :ora semelhante ordem consiste em ter cada coisao seu dono. D'aqui vem que, a não ser que umtrabalhe no que é seu, deverão aliar-se as forçasde uns com as coisas dos outros ; pois que umassem as outras nada produzem. Isto precisamentetinha em vista Leão XIII, quando escrevia : « denada vale o capital sem o trabalho, nem otrabalho sem o capital ».39 Por conseguinte éinteiramente falso atribuir ou só ao capital ou sóao trabalho o produto do concurso de ambos ; e éinjustíssimo que um deles, negando a eficácia dooutro, se arrogue a si todos os frutos.

    Pretensões injustas do capitalÉ certo que por muito tempo pôde o capital

    arrogar-se direitos demasiados. Todos osprodutos e todos os lucros reclamava-os ele parasi, deixando ao operário unicamente o bastantepara restaurar e reproduzir as forças. Apregoava-se, que por fatal lei económica pertencia aospatrões acumular todo o capital, e que a mesmalei condenava e acorrentava os operários aperpétua pobreza e vida miserável. E bemverdade, que as obras nem sempre estavam deacordo com semelhantes monstruosidades doschamados liberais de Manchester : não se podecontudo negar que para elas tendia com passocerteiro e constante o regime económico e social.Por isso não é para admirar que estas opiniões39 Encícl. Rerum novarum, n. 15.

    31

  • erróneas e estes postulados falsos fossemenergicamente impugnados, e não só por aquelesa quem privavam do direito natural de adquirirmelhor fortuna.

    Injustas pretensões do trabalhoDe facto aos operários assim mal tratados

    apresentaram-se os chamados « intelectuais »,contrapondo a uma lei falsa um não menos falsoprincípio moral : « os frutos e rendimentos,descontado apenas o que baste a amortizar ereconstituir o capital, pertencem todos de direitoaos operários ». Erro mais capcioso que o dealguns socialistas, para os quais tudo o que éprodutivo deve passar a ser propriedade doEstado ou « socializar-se » ; mas por isso mesmoerro muito mais perigoso e próprio a embair osincautos : veneno suave que tragaram avidamentemuitos, a quem o socialismo sem rebuço nãopudera enganar.

    Princípio directivo da justa distribuiçãoA premuni-los contra estes falsos princípios,

    com que a si próprios fechavam o caminho dajustiça e da paz, deviam bastar as palavrassapientíssimas do Nosso Predecessor : « dequalquer modo que seja distribuída entre osparticulares, não cessa a terra de servir à utilidadepública ».40 O mesmo ensinámos Nós poucoantes, quando declarávamos, que a próprianatureza exige a repartição dos bens em domínios40 Encícl. Rerum novarum, n. 7.

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  • particulares, precisamente a fim de poderem ascoisas criadas servir ao bem comum de modoordenado e constante. Este princípio deve tercontinuamente diante dos olhos, quem não querdesviar-se da recta senda da verdade.

    Ora nem toda a distribuição dos bens ouriquezas entre os homens é apta para obtertotalmente ou com a devida perfeição o fimestabelecido por Deus. E necessário que asriquezas, em contínuo incremento com oprogresso da economia social, sejam repartidaspelos indivíduos ou pelas classes particulares detal maneira, que se salve sempre a utilidadecomum, de que falava Leão XIII, ou, por outraspalavras, que em nada se prejudique o bem geralde toda a sociedade. Esta lei de justiça socialproíbe, que uma classe seja pela outra excluída daparticipação dos lucros. Violam-na porconseguinte tanto os ricos que, felizes por severem livres de cuidados em meio da sua fortuna,têm por muito natural embolsarem eles tudo e osoperários nada, como a classe proletária que,irritada por tantas injustiças e demasiadamentepropensa a exagerar os próprios direitos, reclamapara si tudo, porque fruto do trabalho das suasmãos, e combate e pretende suprimir toda apropriedade e rendas ou proventos, qualquer queseja a sua natureza e função social, uma vez quese obtenham e pela simples razão de seremobtidos sem trabalho. A este propósito cita-se às

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  • vezes o Apóstolo, lá onde diz : « quem não quertrabalhar, não coma ».41 Citação descabida e falsa.O Apóstolo repreende os ociosos, que podendo edevendo trabalhar, não o fazem, e admoesta-nosa que aproveitemos diligentemente o tempo e asforças do corpo e do espírito, nem queiramos serde peso aos outros, quando podemos bastar-nosa nós mesmos. Agora, que o trabalho seja o únicotítulo para receber o sustento ou perceberrendimentos, isso não o ensina, nem podiaensinar o Apóstolo.42

    Cada um deve pois ter a sua parte nos bensmateriais ; e deve procurar-se que a sua repartiçãoseja pautada pelas normas do bem comum e dajustiça social. Hoje porém, à vista do contrasteestridente, que há entre o pequeno número dosultra-ricos e a multidão inumerável dos pobres,não há homem prudente, que não reconheça osgravíssimos inconvenientes da actual repartiçãoda riqueza.

    3. - REDENÇÃO DOS PROLETÁRIOSEsta é aquela « Redenção dos proletários »,

    que o Nosso Predecessor dizia dever procurar-sea todo o custo. O mesmo afirmamos e repetimosNós com tanto maior energia e insistência,quanto mais frequentemente vemos votadas aoesquecimento as recomendações daquele grandePontífice, ou porque intencionalmente se não41 II Thess., 3, 10.42 Cfr. II Thess., 3, 8-10.

    34

  • falava, delas, ou porque as julgavam impossíveisde actuar, sendo que não só podem, mas devemrealizar-se. Nem elas no nosso tempo perderamnada da aia, força e oportunidade, apesar de hojenão ser tão geral e horrendo o pauperismo, comoera ao tempo de Leão XIII. Sem dúvida que acondição dos operários melhorou e se tornoumais tolerável, sobretudo nas cidades maisprogredidas e populosas, onde os operários já nãopodem todos sem excepção ser consideradoscomo indigentes e miseráveis. Mas desde que asartes mecânicas e a indústria moderna empouquíssimo tempo invadiram completamente edominaram regiões inumeráveis, tanto as terraschamadas novas, como os reinos do remotoOriente cultivados já na antiguidade, cresceudesmesuradamente o número dos proletáriospobres, cujos gemidos bradam ao céu. Acresce oingente exército dos jornaleiros relegados à ínfimacondição e sem a mínima esperança de se veremjamais senhores de um pedaço de terra ;43 se nãose empregam remédios oportunos e eficazes,ficarão perpetuamente na condição de proletários.

    É verdade, que a condição proletária não sedeve confundir com o pauperismo ; contudobasta o facto de a multidão dos proletários serimensa, enquanto as grandes fortunas seacumulam nas mãos de poucos ricos, para provarà evidência que as riquezas, produzidas em tanta43 Encícl. Rerum novarum, n. 35.

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  • abundância neste nosso século de industrialismo,não estão bem distribuídas pelas diversas classesda sociedade.

    Os operários devem poder formar umpatrimónio

    É pois necessário envidar energicamentetodos os esforços, para que ao menos de futuroas riquezas grangeadas se acumulem em justaproporção nas mãos dos ricos, e com suficientelargueza se distribuam pelos operários ; não paraque estes se dêem ao ócio, – já que o homemnasceu para trabalhar como a ave para voar, –mas para que, vivendo com parcimônia,aumentem os seus haveres, aumentados e bemadministrados provejam aos encargos da família ;e livres assim de uma condição precária e incertaqual é a dos proletários, não só possam fazerfrente a todas as eventualidades durante a vida,mas deixem ainda por morte alguma coisa, aosque lhes sobrevivem.

    Toda esta doutrina já por Nosso Predecessor,não só insinuada, mas abertamente proclamada,Nós de novo e com mais insistência a inculcamoscom esta Nossa encíclica : pois desenganem-setodos, que se não se põe em prática quanto antese com todas as veras, será impossível defendereficazmente a ordem pública, a paz e atranquilidade da sociedade humana contra osmaquinadores de revoluções.

    4. - O JUSTO SALÁRIO

    36

  • Ora não se poderá pôr em prática, se não seprocura, que os proletários, trabalhando evivendo com parcimónia, adquiram o seumodesto pecúlio, como já acima indicamosdesenvolvendo os ensinamentos de NossoPredecessor. Mas, a não ser da própria jorna,d'onde poderá tirar esse pouco que vaieconomizando, o que não tem outra fonte dereceita senão o seu trabalho ? Entremos portantonesta questão do salário, que Leão XIII apelidou« de grande importância »,44 declarando edesenvolvendo, onde for necessário, a suadoutrina e preceitos.

    O salário não é de sua natureza injustoE primeiramente os que dizem ser de sua

    natureza injusto o contrato de compra e venda dotrabalho e pretendem substituí-lo por umcontrato de sociedade, dizem um absurdo ecaluniam malignamente o Nosso Predecessor quena encíclica « Rerum novarum » não só admite alegitimidade do salário, mas se difunde em regulá-lo segundo as leis da justiça.

    Julgamos contudo que nas presentescondições sociais é preferível, onde se possa,mitigar os contratos de trabalho combinando-oscom os de sociedade, como já começou a fazer-sede diversos modos com não pequena vantagemdos operários e dos patrões. Deste modooperários e oficiais são considerados sócios no44 Encícl. Rerum novarum, n. 34.

    37

  • domínio ou na gerência, ou compartilham oslucros.

    O justo valor da paga deve ser avaliado nãopor um, senão por vários princípios, comosabiamente dizia Leão XIII por estas palavras :« para determinar equitativamente o saláriodevem ter-se em vista várias considerações ».45

    Com estas palavras confuta a leviandade dosque pensam resolver facilmente tão momentosoproblema, empregando uma única medida e essamesma disparatada.

    Erram certamente os que não receiamenunciar este princípio, que tanto vale o trabalhoe tanto deve importar a paga, quanto é o valordos seus frutos ; e que por isso na locação dopróprio trabalho tem o operário direito de exigirpor ele tudo o que produzir. Asserção infundada,como basta a demonstrá-lo o que acima dissemosao tratar da relação entre o trabalho e o capital.

    Carácter individual e social do trabalhoComo o domínio, assim também o trabalho,

    sobretudo o contratado, deve considerar-se nãosó relativamente aos indivíduos, mas também emfunção da sociedade. A razão é clara. Se asociedade não forma realmente um corpoorganizado, se a ordem social e jurídica nãoprotege o exercício da actividade, se as váriasartes, dependentes como são entre si, nãotrabalham de concerto e não se ajudam45 Encícl. Rerum novarum, n. 17.

    38

  • mutuamente, se enfim e mais ainda, não seassociam e colaboram juntos a inteligência, ocapital, e o trabalho, não pode a actividadehumana produzir fruto : logo não pode ela sercom justiça avaliada nem remuneradaequitativamente, se não se tem em conta a suanatureza social e individual.

    Tríplice relação do salárioDestas duas propriedades naturais do

    trabalho humano derivam consequênciasgravíssimas, pelas quais se deve regular edeterminar o salário.

    A) O sustento do operário e da famíliaPrimeiro ao operário deve dar-se

    remuneração que baste para o sustento seu e dafamília.46 É justo que toda a mais família, namedida das suas forças, contribua para o seumantimento, como vemos que fazem as famíliasdos lavradores, e também muitas de artistas epequenos negociantes. Mas é uma iniquidadeabusar da idade infantil ou da fraqueza feminina.As mães de família devem trabalhar em casa ounas suas adjacências, dando-se aos cuidadosdomésticos. É um péssimo abuso, que deve atodo o custo cessar, o de as obrigar, por causa damesquinhez do salário paterno, a ganharem a vidafora das paredes domésticas, descurando oscuidados e deveres próprios e sobretudo aeducação dos filhos. Deve pois procurar-se com46 Cfr. Encícl. Casti connubii, 31 de Dezembro de 1930.

    39

  • todas as veras, que os pais de família recebamuma paga bastante a cobrir as despesas ordináriasda casa. E se as actuais condições não permitem,que isto se possa sempre efectuar, exige contudoa justiça social, que se introduzam quanto antes asnecessárias reformas, para que possa assegurar-seum tal salário a todo o operário adulto. – São poisdignos de louvor todos aqueles, que comprudente e utilíssima iniciativa tem jáexperimentado vários métodos para tornar osalário proporcionado aos encargos domésticosde tal modo que, aumentando estes, cresçatambém aquele ; antes seja tal, que possa bastar aqualquer necessidade extraordinária e imprevista.

    B) Situação da empresaÉ preciso atender também ao empresário e a

    empresa no determinar a importância dossalários ; seria injustiça exigir salários demasiados,que eles não pudessem pagar sem se arruinarem earruinarem consigo os operários. Mas se adeficiência dos lucros dependesse da negligência,inércia, ou descuido em procurar o progressotécnico e económico, não seria essa uma causajusta para cercear a paga aos operários. Se poréma causa de a empresa não render quanto bastepara retribuir aos operários equitativamente, sãocontribuições injustas ou o ver-se forçada avender os artefactos por um preço inferior aojusto, os que assim a vexam, tornam-se réus deculpa grave ; pois que privam do justo salário os

    40

  • trabalhadores, que forçados da necessidade sevêem obrigados a aceitar uma paga inferior àdevida.

    Trabalhem por conseguinte de comumacordo operários e patrões para vencer asdificuldades e obstáculos, e sejam em obra tãosalutar ajudados prudente e providamente pelaautoridade pública. Mas se apesar de tudo osnegócios correrem mal, será então o caso de verse a empresa poderá continuar, ou se será melhorprover aos operários de outro modo. Nessasgravíssimas conjunturas é, mais que nunca,necessário, que reine e se sinta entre operários epatrões a união e concórdia cristã.

    C) Exigências do bem comumEnfim a grandeza do salário deve ser

    proporcionada ao bem da economia pública. Jáatrás declarámos, quanto importa ao bemcomum, que os operários e oficiais possamformar um modesto pecúlio com a parte dosalário economizada. Mas não podemos passarem silêncio outro ponto de não menorimportância e grandemente necessário nos nossostempos, e é, que todos os que têm vontade eforças, possam encontrar trabalho. Ora istodepende em boa parte da determinação dosalário : a qual como será vantajosa, se bem feita,assim se tornará nociva, se exceder os devidoslimites. Quem não sabe, que foram os saláriosdemasiadamente pequenos ou exageradamente

    41

  • grandes a causa de muitos operários se veremsem trabalho ? É este mal, formidavelmenteagravado nos anos do nosso Pontificado, quelança aos operários nas maiores misérias etentações, que arruína a prosperidade dos estadose põe em perigo a ordem pública, a paz etranquilidade do mundo inteiro. É portantocontra a justiça social diminuir ou aumentardemasiadamente os salários em vista só daspróprias conveniências e sem ter em conta o bemcomum ; e a mesma justiça exige, que em plenoacordo de inteligências e vontades, quanto sejapossível, se regulem os salários de tal modo, queo maior número de operários possa encontrartrabalho e ganhar o necessário para o sustento davida. É também importante para o mesmo efeitoa boa proporção entre as diversas categorias desalários ; com a qual está intimamente relacionadaa justa proporção entre os preços de venda dosprodutos das diversas artes, como a agricultura, aindústria, etc. Se tudo isto se observar comoconvêm, unir-se-ão as diversas artes e seorganizarão num corpo união, prestando-se comomembros mútuo e benéfico auxílio. Só entãoestará solidamente constituído o organismoeconómico e social e será capaz de obter os seusfins, quando todos e cada um tiverem todos osbens, que as riquezas naturais, a arte técnica, e aboa administração económica podemproporcionar. Estes bens devem bastar não só à

    42

  • estrita necessidade e à honesta comodidade,senão também a elevar o homem a um certo graude cultura, o qual, uma vez que não falte aprudência, longe de obstar, grandemente favorecea virtude.47

    5. - RESTAURAÇÃO DA ORDEMSOCIAL

    O que fica exposto sobre a equitativarepartição dos bens e sobre o justo salário, dizrespeito aos indivíduos, nem visa senãoacessóriamente a ordem social, que o NossoPredecessor Leão XIII desejou e procurourestaurar pelos princípios da sã filosofia eaperfeiçoar segundo as normas sublimes da leievangélica.

    Já alguma coisa se fez neste sentido ; maspara realizar o muito que ainda está por fazer epara que a família humana colha vantagensmelhores e mais abundantes, são de absolutanecessidade duas coisas : a reforma dasinstituições e a emenda dos costumes.

    Ao falarmos na reforma das instituiçõestemos em vista sobretudo o Estado ; não porquedele só deva esperar-se todo o remédio, masporque o vício do já referido « individualismo »levou as coisas a tal extremo, que enfraquecida equase extinta aquela vida social outrora rica eharmónicamente manifestada em diversosgéneros de agremiações, quase só restam os47 Cfr. S. Thomas, De regimine principum, 1, 15. Encícl. Rerum novarum, n. 27.

    43

  • indivíduos e o Estado. Esta deformação doregime social não deixa de prejudicar o próprioEstado, sobre o qual recaem todos os serviçosdas agremiações suprimidas e que verga ao pesode negócios e encargos quase infinitos.

    Verdade é, e a história o demonstraabundantemente, que, devido à mudança decondições, só as grandes sociedades podem hojelevar a efeito o que antes podiam até mesmo aspequenas ; permanece contudo imutável aquelesolene princípio da filosofia social : assim como éinjusto subtrair aos indivíduos o que eles podemefectuar com a própria iniciativa e indústria, parao confiar à colectividade, do mesmo modo passarpara uma sociedade maior e mais elevada o quesociedades menores e inferiores podiamconseguir, é uma injustiça, um grave dano eperturbação da boa ordem social. O fim naturalda sociedade e da sua acção é coadjuvar os seusmembros, não destruí-los nem absorvê-los.

    Deixe pois a autoridade pública ao cuidadode associações inferiores aqueles negócios demenor importância, que a absorveriamdemasiado ; poderá então desempenhar maislivre, enérgica e eficazmente o que só a elacompete, porque só ela o pode fazer : dirigir,vigiar, urgir e reprimir, conforme os casos e anecessidade requeiram. Persuadam-se todos osque governam : quanto mais perfeita ordemjerárquica reinar entre as varias agremiações,

    44

  • segundo este princípio da função « supletiva » dospoderes públicos, tanto maior influência eautoridade terão estes, tanto mais feliz e lisonjeiroserá o estado da nação.

    Harmonia entre as diversas profissõesO primeiro objectivo que devem propor-se

    tanto o Estado como o escol dos cidadãos, oponto em que devem concentrar todos osesforços, é por termo ao conflito, que divide asclasses, suscitar e promover uma cordialharmonia entre as diversas profissões.

    E em primeiro lugar deve a política socialaplicar-se toda a reconstituí-las. Actualmente asociedade continua num estado violento e porisso instável e vacilante, pois se funda sobreclasses, que se movem por apetitesdesencontrados e por isso, dada a fraquezahumana, com facilidade tendem para o ódio epara a guerra.

    Com efeito embora o trabalho, como muitobem expôs o Nosso Predecessor na suaencíclica,48 não seja um simples género comercial,mas deva reconhecer-se nele a dignidade humanado operário, e não possa permutar-se comoqualquer mercadoria, de facto hoje no mercadodo trabalho a oferta e a procura dividem oscontratadores em duas classes ou camposopostos, que encarniçadamente se digladiam. Estagrave desordem leva a sociedade à ruína, se não48 Encícl. Rerum novarum, n. 16.

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  • se lhe dá pronto e eficaz remédio. Mas a cura sóentão será perfeita, quando a estas classesopostas, se substituírem organismos bemconstituídos, ordens ou profissões, que agrupemos indivíduos, não segundo a sua categoria nomercado do trabalho, mas segundo as funçõessociais, que desempenham. Assim como asrelações de vizinhança dão origem aosmunicípios, assim os que exercem a mesmaprofissão ou arte são pela própria naturezaimpelidos a formar colégios ou corporações ;tanto que muitos julgam estes organismosautónomos, senão essenciais, ao menos naturais àsociedade civil.

    E como a ordem, segundo egregiamenteexplica S. Tomás,49 é a unidade resultante dadisposição conveniente de muitas coisas, o corposocial não será verdadeiramente ordenado, se nãohá um vínculo comum, que una solidamente numsó todo os membros que o constituem. Ora esteprincípio de unidade encontra-se, – para cadaarte, na produção dos bens ou prestação dosserviços a que visa a actividade combinada depatrões e operários ocupados no mesmo ofício, –para o conjunto das profissões, no bem comum, aque todas e cada uma devem tender com esforçoscombinados. Esta união será tanto mais forte eeficaz, quanto mais fielmente se aplicarem os

    49 Cfr. S. Thomas, Contra Gentes 3, 71; Summa Theol. I, 9, 65 art. 2 i. c.

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  • indivíduos e as próprias profissões a exercitar asua especialidade e a assinalar-se nela.

    Do que precede é fácil concluir, que no seiodestas corporações estão em primeiro lugar osinteresses comuns à profissão ; entre os quais omais importante é vigiar por que a actividadecolectiva se oriente sempre para o bem comumde toda a sociedade. As questões, que se refiramaos interesses particulares dos patrões ouoperários poder-se-ão tratar e resolverseparadamente.

    Apenas é preciso recordar, que osensinamentos de Leão XIII sobre a forma dogoverno político se aplicam também na devidaproporção aos colégios ou corporaçõesprofissionais : é lícito aos seus membros eleger aforma que lhes aprouver, com tanto que atendamàs exigências da justiça e do bem comum.50

    E como os habitantes de um municípiocostumam formar associações autónomas parafins muito diversos, às quais cada um é livre dedar ou não o seu nome, assim os que exercem amesma profissão, conservam a liberdade de seassociarem para fins de algum modo relacionadoscom o exercício da sua arte. Mas porque o NossoPredecessor tratou distinta e claramente na suaencíclica destas associações livres, basta-Nosagora inculcar um ponto : os cidadãos podemlivremente não só instituir associações de direito e50 Cfr. Encícl. Immortale Dei, 1 de Novembro de 1885.

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  • carácter particular, mas ainda « eleger livrementepara elas aqueles estatutos e regulamentos, quejulgarem mais convenientes ao fim proposto ».51Idêntica liberdade deve reconhecer-se àssociedades, cujo objectivo ultrapassa os confinsdas diversas profissões. Proponham-se asassociações livres já florescentes e que tão bonsfrutos produzem, abrir caminho, segundo osprincípios da filosofia social cristã, a estescolégios ou corporações mais vastos de quefalamos, e ponham todo o empenho, cada uma namedida das suas forças, em atingir este ideal.

    Princípio directivo da economiaResta ainda outro ponto estreitamente ligado

    com o precedente. Como não pode a unidadesocial basear-se na luta de classes, assim a rectaordem da economia não pode nascer da livreconcorrência de forças. Deste princípio como defonte envenenada derivaram para a economiauniversal todos os erros da ciência económica« individualista » ; olvidando esta ou ignorando,que a economia é juntamente social e moral,julgou que a autoridade pública a devia deixar emplena liberdade, visto que no mercado ou livreconcorrência possuía um princípio directivocapaz de a reger muito mais perfeitamente, quequalquer inteligência criada. Ora a livreconcorrência, ainda que dentro de certos limites éjusta e vantajosa, não pode de modo nenhum51 Encícl. Rerum novarum, n. 42.

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  • servir de norma reguladora à vida económica. Aíestão a comprová-lo os factos desde que sepuseram em prática as teorias de espíritoindividualista. Urge por tanto sujeitar esubordinar de novo a economia a um princípiodirectivo, que seja seguro e eficaz. A prepotênciaeconómica, que sucedeu à livre concorrência nãoo pode ser ; tanto mais que, indómita e violentapor natureza, precisa, para ser útil a humanidade,de ser energicamente enfreada e governada comprudência ; ora não pode enfrear-se nemgovernar-se a si mesma. Força é portanto recorrera princípios mais nobres e elevados : à justiça ecaridade sociais. E preciso que esta justiça penetrecompletamente as instituições dos povos e toda avida da sociedade ; é sobre tudo preciso que esseespírito de justiça manifeste a sua. eficáciaconstituindo uma ordem jurídica e social queinforme toda a economia, e cuja alma seja acaridade. Em defender e reivindicar eficazmenteesta ordem jurídica e social deve insistir aautoridade pública ; e fá-lo-á com menosdificuldade se se desembaraçar daqueles encargos,que já antes declarámos não serem próprios dela.

    Mais : é muito para desejar que as váriasnações, pois que tanto dependem umas das outrase se completam economicamente, se dêem comtodo o empenho, em união de vistas e deesforços, a promover com prudentes tratados e

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  • instituições uma vantajosa e feliz cooperaçãoeconómica internacional.

    Se deste modo se restaurarem os membrosdo corpo social e se restabelecer o princípioregulador da economia, poder-se-lhe-á aplicar dealguma forma o que o Apóstolo dizia do corpomístico de Cristo : « todo o corpo organizado eunido pelas articulações de um mútuo obséquio,segundo a medida de actividade de cada membro,cresce e se desenvolve na caridade ».52

    Recentemente iniciou-se, como todos sabem,uma nova organização sindical e corporativa, àqual, vista a matéria desta Nossa carta encíclicanão podemos deixar de Nos referir, com algumaconsideração oportuna.

    O Estado reconheceu juridicamente o« sindicato », dando-lhe porém carácter demonopólio, já que só ele, assim reconhecido,pode representar respectivamente operários epatrões, só ele concluir contractos e pactos detrabalho. A inscrição no sindicato é facultativa, esó neste sentido se pode dizer, que a organizaçãosindical é livre ; pois a quota sindical e certas taxasespeciais são obrigatórias para todos os quepertencem a uma dada categoria, sejam elesoperários ou patrões ; como obrigatórios paratodos são também os contratos de trabalhoestipulados pelo sindicato jurídico. Verdade é quenas regiões oficiais se declarou, que o sindicato52 Eph., 4, 16.

    50

  • jurídico não exclui a existência de facto deassociações profissionais.

    As corporações são constituídas pelosrepresentantes dos sindicatos dos operários e dospatrões pertencentes à mesma arte e profissão, e,como verdadeiros e próprios órgãos e instituiçõesdo Estado, dirigem e coordenam os sindicatosnas coisas de interesse comum. É proibida agreve ; se as partes não podem chegar a umacordo, intervém a autoridade.

    Basta reflectir um pouco, para ver asvantagens desta organização, embora apenassumariamente indicada : a pacífica colaboraçãodas classes, a repressão das organizações eviolências socialistas, a acção moderadora de umamagistratura especial. Para não omitir nada emmatéria de tanta importância, e em harmonia comos princípios gerais acima recordados e com oque em breve acrescentaremos, devemos contudodizer, que não falta quem receie, que o Estado sesubstitua às livres actividades, em vez de selimitar à necessária e suficiente assistência eauxílio ; que a nova organização sindical ecorporativa tem carácter excessivamenteburocrático e político ; e que, não obstante asvantagens gerais acenadas, pode servir aparticulares intentos políticos mais que àpreparação e início de uma ordem social melhor.

    Nós cremos, que para conseguir este outrointento nobilíssimo, com benefício geral

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  • verdadeiro e duradoiro, é necessária antes de tudoe sobre tudo a bênção de Deus e depois acolaboração de todas as boas vontades. Cremostambém e por necessária consequência, que omesmo intento se conseguirá tanto maisseguramente, quanto maior for a contribuição dascompetências técnicas., profissionais e sociais, emais ainda da doutrina e prática dos princípioscatólicos por parte, não da Acção Católica (quenão pretende desenvolver actividade meramentesindical ou política), mas por parte d'aquelesNossos filhos a quem a Acção Católicaadmiravelmente forma naqueles princípios e noseu apostolado sob a guia e magistério da Igreja ;da Igreja, que mesmo no terreno supra acenado,como em qualquer outro onde se agitem eregulem questões morais, não pode esquecer oudescurar o mandato de guardar e ensinar, que lhefoi divinamente conferido.

    Tudo o que temos ensinado acerca darestauração e aperfeiçoamento da ordem social,de modo nenhum poderá realizar-se sem areforma dos costumes, como até a mesmahistória eloquentemente demonstra. De factohouve já uma ordem social que, apesar deimperfeita e incompleta, era, de algum modo,dadas as circunstâncias e exigências do tempo,conforme à recta razão. E se essa ordem já de hámuito se extinguiu, não foi de certo por serincapaz de evolucionar e alargar-se com as novas

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  • condições sociais ; mas porque os homens, ouobcecados pelo amor próprio se recusaram a abrircomo convinha, o seio das suas organizações àmultidão sempre crescente, que desejava entrarnelas, ou porque iludidos pela aparência de umafalsa liberdade e por outros erros, rebeldes a todaa sujeição, trabalharam por sacudir o jugo dequalquer autoridade.

    Só Nos resta por conseguinte citar de novo ajuízo o vigente sistema económico, e o seu maisviolento acusador, o socialismo, para sobre elesproferirmos uma sentença clara e justa ; e aomesmo tempo, indagada a última raiz de tantosmales, apontar o primeiro e mais necessárioremédio, que é a reforma dos costumes.

    III. NOTÁVEIS MUDANÇAS DESDE AENCÍCLICA DE LEÃO XIII

    Grandes foram as transformações, que desdeos tempos de Leão XIII sofreram tanto aeconomia, como o socialismo.

    1. - EVOLUÇÃO DA ECONOMIAE primeiramente todos vêem, quão mudada

    está hoje a situação económica. Sabeis, veneráveisIrmãos e amados Filhos, que o NossoPredecessor de feliz memória na sua encíclica sereferia principalmente àquele sistema, em queordinariamente uns contribuem com o capital, osoutros com o trabalho para o comum exercício daeconomia, qual ele próprio a definiu na frase

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  • lapidar : « Nada vale o capital sem o trabalho,nem o trabalho sem o capital ».53

    Foi esta espécie de economia, que Leão XIIIprocurou com todas as veras regular segundo asnormas da justiça ; donde se segue que de per sinão é condenável. E realmente de sua naturezanão é viciosa : só então viola a recta ordem,quando o capital escraviza aos operários ou àclasse proletária com o fim e condição de que osnegócios e todo o andamento económico estejamnas suas mãos e revertam em sua vantagem,desprezando a dignidade humana dos operários, afunção social da economia e a própria justiçasocial e o bem comum.

    Verdade é que mesmo hoje não é esta a únicaforma de economia, que reina por toda a parte ;há outra forma, que ainda abraça uma numerosa eimportante fracção da humanidade, como é porexemplo a classe agrícola, na qual a maior partedo género humano ganha honradamente a suavida. Também esta se vê a braços com estreitezase dificuldades, às quais alude Nosso Predecessorem muitos passos da sua encíclica e Nós nestaNossa já mais de uma vez Nos referimos.

    Mas o regime capitalista da economia, desdea publicação da « Rerum novarum », com opropagar-se da indústria alastrou em todas asdirecções, de tal maneira que se infiltrou e invadiucompletamente todos os outros campos da53 Encícl. Rerum novarum, n. 15.

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  • produção, cujas condições sociais e económicasafecta realmente e informa com suas vantagens,desvantagens e vícios.

    Por consequência não é só o bem doshabitantes das regiões industriais, mas o de todosos homens, que Nós procuramos, ao dirigirmos aNossa atenção principalmente para as mudanças,que sofreu a economia capitalista desde ostempos de Leão XIII.

    Despotismo económicoÉ coisa manifesta, como nos nossos tempos

    não só se amontoam riquezas, mas acumula-seum poder imenso e um verdadeiro despotismoeconómico nas mãos de poucos, que as mais dasvezes não são senhores, mas simples depositáriose administradores de capitais alheios, com quenegoceiam a seu talante. Este despotismo torna-se intolerável naqueles que, tendo nas suas mãoso dinheiro, são também senhores absolutos docrédito e por isso dispõem do sangue de que vivetoda a economia, e manipulam de tal maneira aalma da mesma, que não pode respirar sem sualicença. Este acumular de poderio e recursos,nota característica da economia actual, éconsequência lógica da concorrência desenfreada,à qual só podem sobreviver os mais fortes, isto é,ordinariamente os mais violentos competidores eque menos sofrem de escrúpulos de consciência.Por outra parte este mesmo acumular de poderiogera três espécies de luta pelo predomínio :

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  • primeiro luta-se por alcançar o predomínioeconómico ; depois combate-se renhidamentepor obter predomínio no governo da nação, a fimde poder abusar do seu nome, forças e autoridadenas lutas económicas ; enfim lutam os Estadosentre si, empregando cada um deles a força einfluência política para promover as vantagenseconómicas dos seus cidadãos, ou ao contrárioempregando as forças e predomínio económicopara resolver as questões políticas, que surgementre as nações.

    Funestas consequênciasAs últimas consequências deste espírito

    individualista no campo económico são essas quevós, veneráveis Irmãos e amados Filhos, vedes elamentais : a livre concorrência matou-se a siprópria ; à liberdade do mercado sucedeu opredomínio económico ; à avidez do lucroseguiu-se a desenfreada ambição de predomínio ;toda a economia se tornou horrendamente dura,cruel, atroz. Acrescem os danos gravíssimosoriginados da malfadada confusão dos empregose atribuições da pública autoridade e daeconomia, quais são : primeiro e um dos maisfunestos, o aviltamento da majestade do Estado, aqual do trono onde livre de partidarismos e atentasó ao bem comum e à justiça, se sentava comorainha e árbitra suprema dos negócios públicos,se vê feita escrava, entregue e acorrentada aocapricho de paixões desenfreadas ; depois, no

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  • campo das relações internacionais, dois riosbrotados da mesma fonte : de um lado oNacionalismo ou Imperialismo económico, dooutro o Internacionalismo ou Imperialismointernacional bancário, não menos funesto eexecrável, cuja pátria é o interesse.

    RemédiosNa parte doutrinal desta encíclica indicámos

    já os remédios, com que se pode combater ummal tão profundo. Agora basta recordar asubstância do Nosso ensinamento. Visto como oregime económico moderno se baseiaprincipalmente no capital e no trabalho, é precisoque as normas da recta razão ou da filosofia socialcristã, relativas a estes dois elementos e à suacolaboração, sejam melhor conhecidas e postasem prática. Para, evitar o escolho quer doindividualismo quer do socialismo, ter-se-á emconta o duplo carácter individual e social tanto docapital ou propriedade, como do trabalho. Asrelações mútuas de um com o outro devem serreguladas segundo as leis de uma rigorosa justiçacomutativa, apoiada na caridade cristã. A livreconcorrência contida dentro de justos e razoáveislimites e mais ainda o poderio económico devemestar efectivamente sujeitos à autoridade pública,em tudo o que é da sua alçada. Enfim as públicasinstituições adaptarão a sociedade inteira àsexigências do bem comum, isto é, às regras dajustiça ; donde necessariamente resultará, que esta

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  • função tão importante da vida social, qual é aactividade económica, se encontrará por sua vezreconduzida a uma ordem sã e bem equilibrada.

    2. - EVOLUÇÃO DO SOCIALISMONão menos profunda que a da economia, foi

    desde o tempo de Leão XIII a evolução dosocialismo, contra o qual principalmente terçouarmas o Nosso Predecessor. Então podia eledizer-se único, defendia uma doutrina bemdefinida e reduzida a sistema ; depois dividiu-seem duas facções principais, de tendências pelamaior parte contrárias, e irreconciliáveis entre si,conservando porém ambas o princípiofundamental do socialismo primitivo, contrário àfé cristã.

    O partido da violência ou comunismoUma das facções seguiu uma evolução

    paralela à da economia capitalista, que antesdescrevemos, e precipitou no comunismo, queensina duas coisas e as procura realizar, nãooculta ou solapadamente, mas à luz do dia,francamente e por todos os meios ainda os maisviolentos : guerra de classes sem tréguas nemquartel e completa destruição da propriedadeparticular. Na prossecução destes objectivos atudo se atreve, nada respeita ; uma vez no poder,é incrível e espantoso quão bárbaro e desumanose monstra. Aí estão a atestá-lo as mortandades eruínas de que alastrou vastíssimas regiões daEuropa oriental e da Ásia ; e então o ódio

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  • declarado contra a santa Igreja e contra o mesmoDeus demasiado o provam essasmonstruosidades sacrílegas bem conhecidas detodo o mundo. Por isso, se bem julgamossupérfluo chamar a atenção dos filhos obedientesda Igreja para a impiedade e iniquidade docomunismo, contudo não é sem uma dorprofunda, que vemos a apatia dos que parecemdesprezar perigos tão iminentes, e com desleixopasmoso deixam propagar por toda a partedoutrinas, que porão a sociedade a ferro e fogo.Sobretudo digna de censura é a inércia daqueles,que não tratam de suprimir ou mudar um estadode coisas, que, exasperando os ânimos, abrecaminho à subversão e ruína completa dasociedade.

    O socialismo propriamente dito, oumitigado

    Mais moderada é a outra facção, queconservou o nome de socialismo : porque não sóprofessa abster-se da violência, mas abranda elimita de algum modo, embora não as suprima detodo, a luta de classes e a extinção da propriedadeparticular. Dir-se-ia que o socialismo, aterradocom as consequências que o comunismo deduziude seus próprios princípios, tende para asverdades que a tradição cristã sempresolenemente ensinou, e delas em certa maneira seaproxima ; por quanto é inegável que as suasrevindicações concordam às vezes muitíssimo

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  • com as reclamações dos católicos que trabalhamna reforma social.

    Com efeito a luta de classes, quando livre deinimizades e ódio mútuo, transforma-se pouco apouco numa concorrência honesta, fundada noamor da justiça, que se bem não é aquela bem-aventurada paz social, por que todos suspiramos,pode e deve ser o princípio da mútuacolaboração. Do mesmo modo a guerra àpropriedade particular, afrouxando pouco apouco, chega a limitar-se a ponto de já nãoagredir a posse do necessário à produção dosbens, mas aquele despotismo social, que apropriedade contra todo o direito se arrogou. Ede facto um tal poder não pertence aos simplesproprietários mas à autoridade pública. Por estecaminho podem os princípios deste socialismomitigado vir pouco a pouco a coincidir com osvotos e reclamações dos que procuram reformara sociedade segundo os princípios cristãos. Estescom razão pretendem que certos géneros de benssejam reservados ao Estado, quando o poderioque trazem consigo é tal, que, sem perigo domesmo Estado, não pode deixar-se em mãos dosparticulares.

    Tão justos desejos e revindicações em nadase opõem à verdade cristã, e muito menos sãoexclusivos do socialismo. Por isso quem só poreles luta, não tem razão para declarar-se socialista.

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  • Mas não se vá julgar que os partidossocialistas, não filiados ainda no comunismo,professam já todos teórica e praticamente estamoderação. Em geral não renegam a luta declasses nem a abolição da propriedade, apenas amitigam. Ora se os falsos princípios assim semitigam e obliteram, pergunta-se, ou melhorperguntam alguns sem razão, se não será bem quetambém os princípios católicos se mitiguem emoderem, para sair ao encontro do socialismo econgraçar-se com ele a meio caminho ? Não faltaquem se deixe levar da esperança de atrair poreste modo os socialistas. Esperança vã ! Quemquer ser apóstolo entre os socialistas, é precisoque professe franca e lealmente toda a verdadecristã, e que de nenhum modo feche os olhos aoerro. Esforcem-se antes, se querem serverdadeiros arautos do Evangelho, por mostraraos socialistas, que as suas reclamações, na parteque tem de justas, se defendem muito maisvigorosamente com os princípios da fé e sepromovem muito mais eficazmente com as forçasda caridade.

    Contrasta com a doutrina católicaE se o socialismo estiver realmente tão

    moderado no tocante à luta de classes e àpropriedade particular, que já não mereça nisto amínima censura ? Terá renunciado por isso à suanatureza essencialmente anticristã ? Eis umadúvida, que a muitos traz suspensos. Muitíssimos

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  • católicos convencidos de que os princípioscristãos não podem jamais abandonar-se nemobliterar-se, volvem os olhos para esta Santa Sé esuplicam instantemente, que definamos se estesocialismo repudiou de tal maneira as suas falsasdoutrinas, que já se possa abraçar e quasebaptizar, sem prejuízo de nenhum princípiocristão. Para lhes respondermos, como pede aNossa paterna solicitude, declaramos : Osocialismo quer se considere como doutrina, quercomo facto histórico, ou como « acção », se éverdadeiro socialismo, mesmo depois de seaproximar da verdade e da justiça nos pontossobreditos, não pode conciliar-se com a doutrinacatólica ; pois concebe a sociedade de modocompletamente avesso à verdade cristã.

    Com efeito : segundo a doutrina cristã ohomem sociável por natureza é colocado nestaterra, para que, vivendo em sociedade e sob aautoridade ordenada por Deus,54 cultive edesenvolva plenamente todas as suas faculdades,para louvor e glória do Criador, e pelo fielcumprimento dos deveres da sua profissão ouvocação, qualquer que ela seja, grangeie afelicidade temporal e eterna. Ora o socialismo,ignorando por completo ou desprezando este fimsublime dos indivíduos e da sociedade, opina queo consórcio humano foi instituído só pelavantagem material que oferece. E na verdade do54 Cfr. Rom., 13, 1.

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  • facto que o trabalho convenientementeorganizado é muito mais produtivo que osesforços isolados, os socialistas concluem, que aactividade económica deve necessariamenterevestir uma forma social. Desta necessidadesegue-se, segundo eles, que os homens por amorda produção são obrigados a entregar-se esujeitar-se completamente à sociedade. Mais :estimam tanto os bens materiais, que servem àcomodidade da vida, que afirmam deverempospor-se e mesmo sacrificar-se quaisquer outrosbens superiores e em particular a liberdade àsexigências de uma produção activíssima. Estaperda da dignidade humana, inevitável no sistemada produção « socializada », julgam-na bemcompensada com a abundância dos bens que,produzidos socialmente, serão distribuídos pelosindivíduos, e estes poderão livremente aplicar auma vida mais cómoda e faustosa. Emconsequência a sociedade sonhada pelosocialism