CARTA A UM AMIGO A Festa do Divino em 1923chicoornellas.com.br/pdf/2010/05-16-2010.pdf · pais e...

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O DIÁRIO MOGI DAS CRUZES, DOMINGO, 16 DE MAIO DE 2010 CADERNO A 5 CHICO ORNELLAS DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE SÃO PAULO [email protected] CARTA A UM AMIGO MOGI DE A A Z O MELHOR DE MOGI A Festa do Divino em 1923 Para preservar a memória FOTOS REPRODUÇÃO O PIOR DE MOGI O exemplo de vida do dr. Nobolo Mori. O sorriso permanente com que saúda os interlocutores é, em seu caso, espelho d’alma A estrada de terra que começa em César de Souza e vai até Sabaúna. Faz muito tempo que a erosão comeu um trecho do velho caminho. Os que se atrevem a percorrê- lo são obrigados a ousar por um atalho. E ninguém parece se lembrar de sua existência .... ter proclama de casamento publicado no Diário de Mogi SER MOGIANO É.... MOMENTOS O prédio do Coronel Almeida em 3 momentos: no início do século passado, pouco após a construção; em uma vista com a antiga Matriz à direita e em foto mais recente Caro leitor Oportuníssima a cor- respondência que me envia Christina Noguei- ra de Mello – mogiana de quatro costados: é filha de Nazareth e José Honorato de Souza Mello (o veterinário Quita), neta de Maria Isabel e Francisco de Souza Mello (o professor Chico Mello). Escarafun- chando os guardados dos pais e avós descobriu o livro de ouro com o qual Chico Mello angariou recursos, na Cidade, para a realização da Festa do Divino Espírito Santo em maio de 1923. Faz 87 anos. Chico Mello era o festeiro. “A amizade é um sentimen- to que deve ser conservado de pais para filhos”, diz ela na correspondência que remete o precioso guardado. “Desta for- ma, seguindo os princípios de meus pais, venho manifestar a minha alegria por ocasião das proximidades da Festa do Divi- no Espírito Santo em Mogi das Cruzes. Este ano, o início da fes- ta dar-se-á em data importante e especial, o Dia da Abolição da Escravatura. Como descenden- te de escravos, fico emocionada entregando em suas mãos um relato e documento precioso Da série 45 sugestões para os 450 anos de Mogi Ele está na memó- ria de boa parte dos mo- gianos de cepa; dos que o viveram e dos que co- nheceram a sua história. Tombado pelo Conselho do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat), o prédio da atual Escola Estadual Co- ronel Almeida – antes Grupo Escolar – na praça do mesmo nome (para nós, ainda o Largo da Matriz), foi construído em 1901. É uma das primeiras es- colas do município, que guarda ainda as características origi- nais e é o único representante da Arquitetura Escolar Paulista do início do século XX na Cidade – teve apenas acréscimo do pá- tio coberto e sanitários em sua parte externa. O projeto é do ar- quiteto José Van Humbeeck. Para Mogi o edifício está como, para São Paulo, o do an- tigo Instituto de Educação Cae- tano de Campos na Praça da Re- pública. Passa por um processo de recuperação que custa, aos cofres estaduais, quase R$ 800 mil e hoje tem uma população discente de menos de 600 alu- nos, segundo informa a Secre- taria da Educação do Estado. Pois ali, próximo do seu marco zero, bem que a Cidade poderia ganhar, neste ano do seu 450º aniversário de fundação, um centro de cultura que abrigasse o museu que nunca teve. Quem passou por lá não es- quece. Como os dois últimos prefeitos daqui. Junji Abe, o anterior, já recordou que saía o para a história e devotos do Divi- no Espírito Santo”. No manuscrito que abre o li- vro de ouro, Chico Mello escre- ve: “Tendo sido sorteado para realizar as tradicionais festivi- dades em louvor ao Divino Espí- rito Santo a 19 e 20 do corrente mez, venho solicitar de V.S, um auxílio pecuniário em benefício da festa, esperando desse modo poder desempenhar a minha árdua quão honrosa missão com todo o brilhantismo possível”. O livro reúne autógrafos de 226 mogianos; alguns em dupli- cata. Começa pelas doações mais polpudas (100 mil contos de réis) encabeçadas por Francisco José de Almeida, Manuel de Melo Freire, Deodato Wertheimer, Leôncio Arouche de Toledo, Adelino Borges Vieira, Francisca de Mello Franco e Anna Elvira de Souza Mello. Seguem-se as de 50 mil contos de réis, outor- gadas, entre outros, por: Galdi- no Pinheiro Franco, Francisco Affonso de Mello, Alice de Souza Franco, Frederico Straube, Joa- quim de Mello Freire e Francisco Ferreira Lopes. As menores doa- ções foram de mil contos de réis. E há, ainda, outros autógrafos não acompanhados de valor; o caso de João Camillo de Mello e Carlos Alberto Lopes – estes de- vem ter optado por não revelar o quanto entregaram ao festeiro Chico Mello. Uma outra curiosidade: a Festa do Divino Espírito Santo, normalmente realizada por um casal de festeiros e outro de capitães do mastro, nesse ano de 1923 ficou a cargo exclusivo de Maria Isabel e Francisco de Souza Mello. O mesmo ocorreu em outras épocas: 1899, 1906, 1917, 1919, 1924, 1935, 1936, 1938 e 1941 tão não foram designados capitães do mastro. Grande abraço Chico sítio da família em Biritiba Ussu para frequentar o curso primá- rio no Grupo Escolar Coronel Almeida. O atual, Marco Ber- taiolli, lembrara-se há algum tempo que, quando meninote, “sem mesada e querendo uns trocados para as matinês nos ci- nemas locais, fazia ‘geladinho’ (refresco envolvido por um saco plástico e congelado) e os ven- dia na saída do Grupo Escolar Coronel Almeida, no Largo da Matriz”. Eu próprio, sem a impor- tância dos dignatários, o guardo nos escaninhos do passado: Cheguei ao Coronel Almei- da com 7 anos de idade. Para o segundo ano primário, depois de passar pela primeira ex- periência, no Instituto Dona Placidina, sob a tutela de uma professora que era, também, minha tia e madrinha de ba- tismo – Maria Cecília Arouche Ramos. Fui com medo para o primeiro dia de aula, levado por Adelina, a babá que meu avô me arrumou logo que nasci e que comigo ficou por 16 anos. Saiu porque casou, com Emílio, em festa que eu fiz questão de ajeitar. Mas o medo não foi além de um ou dois dias. A partir do pri- meiro momento, recebido pela professora Geralda Freitas, que a professora Nilcéia Cristófaro substituiu no ano seguinte, sen- ti-me em casa. Ainda hoje posso andar de olhos fechados pelo velho prédio do Largo da Ma- triz, sem tropeçar em degrau nenhum das centenárias esca- darias de madeira escura que levam às salas do andar supe- rior. As classes do curso primário eram reforça- das por aulas particulares que um professor loiro, baixinho e bravo me dava em sua casa na Rua Braz Cubas. Quando en- contro-me com ele e relembro esse período, me diz José Se- bastião Witter que eu era gago. Meus pais negam. Dizem que, na verdade, eu era preguiçoso e trocava letras. O “t” pelo “d”, o “g” pelo “c”, o “p” pelo “b” e assim por diante. Acho que era disléxico. De qualquer forma, por um ou outro motivo, tornei- me freguês dos professo- res particulares, que me acompanharam por mui- tos anos. Witter no primá- rio; Nyssia Freitas Meira e Nyllia Maritan Abbondanza no ginásio. As lembranças do Coronel Almeida vão muito além das aulas. Espalham-se pelo pá- tio onde, certa tarde, obriga- ram-me – para minha alegria – a um recital de acordeão. Sanfona mesmo. E em outra, na hora do recreio, quando vi aquela xícara de sagu espati- far-se no chão. Todos os dias eu levava, na lancheira de cou- ro onde guardava uma garrafa térmica com leite e café e um 1923 De próprio punho, a caligrafia do professor Chico Mello para abrir o livro de ouro da Festa do Divino Espírito Santos de 87 anos atrás sanduíche de queijo, dois cru- zeiros para o sagu. Foi o meu prêmio diário que se espatifou com a xícara de louça. Meus olhos devem ter-se lacrimeja- do. Por pouco, pouquíssimo tempo. Uma mão negra me estendeu uma outra xícara. Eu agradeci. E sorri. Até hoje sou grato àquela servente que me fez feliz. FOTOS ARQUIVO PESSOAL

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O DIÁRIOMogi das Cruzes, doMiNgo, 16 de Maio de 2010

CADERNO A 5CHICO ORNELLASdo iNsTiTuTo HisTÓriCo e geogrÁFiCo de sÃo PauLo [email protected]

CARTA A UM AMIGO

MOGI DE A A Z

O MELHOR DE MOGI

A Festa do Divino em 1923

Para preservar a memória

Fotos reProDução

O PIOR DE MOGI

O exemplo de vida do dr. Nobolo Mori. O sorriso permanente com que saúda os interlocutores é, em seu caso, espelho d’alma

A estrada de terra que começa em César de Souza e vai até Sabaúna. Faz muito tempo que a erosão comeu um trecho do velho caminho. Os que se atrevem a percorrê-lo são obrigados a ousar por um atalho. E ninguém parece se lembrar de sua existência

.... ter proclama de casamento publicado no Diário de Mogi

SER MOGIANO É....

MOMENTOS O prédio do Coronel Almeida em 3 momentos: no início do século passado, pouco após a construção; em uma vista com a antiga Matriz à direita e em foto mais recente

Caro leitorOportuníssima a cor-

respondência que me envia Christina Noguei-ra de Mello – mogiana de quatro costados: é filha de Nazareth e José Honorato de Souza Mello (o veterinário Quita), neta de Maria Isabel e Francisco de Souza Mello (o professor Chico Mello). Escarafun-chando os guardados dos pais e avós descobriu o livro de ouro com o qual Chico Mello angariou recursos, na Cidade, para a realização da Festa do Divino Espírito Santo em maio de 1923. Faz 87 anos. Chico Mello era o festeiro.

“A amizade é um sentimen-to que deve ser conservado de pais para filhos”, diz ela na correspondência que remete o precioso guardado. “Desta for-ma, seguindo os princípios de meus pais, venho manifestar a minha alegria por ocasião das proximidades da Festa do Divi-no Espírito Santo em Mogi das Cruzes. Este ano, o início da fes-ta dar-se-á em data importante e especial, o Dia da Abolição da Escravatura. Como descenden-te de escravos, fico emocionada entregando em suas mãos um relato e documento precioso

Da série45 sugestõespara os450 anos de Mogi

Ele está na memó-ria de boa parte dos mo-gianos de cepa; dos que o viveram e dos que co-nheceram a sua história. Tombado pelo Conselho do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat), o prédio da atual Escola Estadual Co-ronel Almeida – antes Grupo Escolar – na praça do mesmo nome (para nós, ainda o Largo da Matriz), foi construído em 1901. É uma das primeiras es-colas do município, que guarda ainda as características origi-nais e é o único representante da Arquitetura Escolar Paulista do início do século XX na Cidade – teve apenas acréscimo do pá-tio coberto e sanitários em sua parte externa. O projeto é do ar-quiteto José Van Humbeeck.

Para Mogi o edifício está como, para São Paulo, o do an-tigo Instituto de Educação Cae-tano de Campos na Praça da Re-pública. Passa por um processo de recuperação que custa, aos cofres estaduais, quase R$ 800 mil e hoje tem uma população discente de menos de 600 alu-nos, segundo informa a Secre-taria da Educação do Estado. Pois ali, próximo do seu marco zero, bem que a Cidade poderia ganhar, neste ano do seu 450º aniversário de fundação, um centro de cultura que abrigasse o museu que nunca teve.

Quem passou por lá não es-quece. Como os dois últimos prefeitos daqui. Junji Abe, o anterior, já recordou que saía o

para a história e devotos do Divi-no Espírito Santo”.

No manuscrito que abre o li-vro de ouro, Chico Mello escre-ve: “Tendo sido sorteado para realizar as tradicionais festivi-

dades em louvor ao Divino Espí-rito Santo a 19 e 20 do corrente mez, venho solicitar de V.S, um auxílio pecuniário em benefício da festa, esperando desse modo poder desempenhar a minha

árdua quão honrosa missão com todo o brilhantismo possível”.

O livro reúne autógrafos de 226 mogianos; alguns em dupli-cata. Começa pelas doações mais polpudas (100 mil contos de réis)

encabeçadas por Francisco José de Almeida, Manuel de Melo Freire, Deodato Wertheimer, Leôncio Arouche de Toledo, Adelino Borges Vieira, Francisca de Mello Franco e Anna Elvira de Souza Mello. Seguem-se as de 50 mil contos de réis, outor-gadas, entre outros, por: Galdi-no Pinheiro Franco, Francisco Affonso de Mello, Alice de Souza Franco, Frederico Straube, Joa-quim de Mello Freire e Francisco Ferreira Lopes. As menores doa-ções foram de mil contos de réis. E há, ainda, outros autógrafos não acompanhados de valor; o caso de João Camillo de Mello e Carlos Alberto Lopes – estes de-vem ter optado por não revelar o quanto entregaram ao festeiro Chico Mello.

Uma outra curiosidade: a Festa do Divino Espírito Santo, normalmente realizada por um casal de festeiros e outro de capitães do mastro, nesse ano de 1923 ficou a cargo exclusivo de Maria Isabel e Francisco de Souza Mello. O mesmo ocorreu em outras épocas: 1899, 1906, 1917, 1919, 1924, 1935, 1936, 1938 e 1941 tão não foram designados capitães do mastro.

Grande abraço

Chico

sítio da família em Biritiba Ussu para frequentar o curso primá-rio no Grupo Escolar Coronel Almeida. O atual, Marco Ber-taiolli, lembrara-se há algum tempo que, quando meninote, “sem mesada e querendo uns trocados para as matinês nos ci-nemas locais, fazia ‘geladinho’ (refresco envolvido por um saco plástico e congelado) e os ven-dia na saída do Grupo Escolar Coronel Almeida, no Largo da Matriz”.

Eu próprio, sem a impor-tância dos dignatários, o guardo nos escaninhos do passado:

Cheguei ao Coronel Almei-da com 7 anos de idade. Para o segundo ano primário, depois de passar pela primeira ex-periência, no Instituto Dona Placidina, sob a tutela de uma professora que era, também, minha tia e madrinha de ba-tismo – Maria Cecília Arouche Ramos. Fui com medo para o primeiro dia de aula, levado por Adelina, a babá que meu

avô me arrumou logo que nasci e que comigo ficou por 16 anos. Saiu porque casou, com Emílio, em festa que eu fiz questão de ajeitar.

Mas o medo não foi além de um ou dois dias. A partir do pri-meiro momento, recebido pela professora Geralda Freitas, que a professora Nilcéia Cristófaro substituiu no ano seguinte, sen-ti-me em casa. Ainda hoje posso andar de olhos fechados pelo velho prédio do Largo da Ma-triz, sem tropeçar em degrau nenhum das centenárias esca-darias de madeira escura que levam às salas do andar supe-

rior.As classes do

curso primário eram reforça-das por aulas particulares que um professor loiro, baixinho e bravo me dava em sua casa na Rua Braz Cubas. Quando en-contro-me com ele e relembro esse período, me diz José Se-bastião Witter que eu era gago. Meus pais negam. Dizem que, na verdade, eu era preguiçoso e trocava letras. O “t” pelo “d”, o “g” pelo “c”, o “p” pelo “b” e assim por diante. Acho que era disléxico. De qualquer forma, por um ou outro motivo, tornei-

me freguês dos professo-res particulares, que me

acompanharam por mui-tos anos. Witter no primá-

rio; Nyssia Freitas Meira e Nyllia Maritan Abbondanza

no ginásio.As lembranças do Coronel

Almeida vão muito além das aulas. Espalham-se pelo pá-tio onde, certa tarde, obriga-ram-me – para minha alegria – a um recital de acordeão. Sanfona mesmo. E em outra, na hora do recreio, quando vi aquela xícara de sagu espati-far-se no chão. Todos os dias eu levava, na lancheira de cou-ro onde guardava uma garrafa térmica com leite e café e um

1923 De próprio punho, a caligrafia do professor Chico Mello para abrir o livro de ouro da Festa do Divino Espírito Santos de 87 anos atrás

sanduíche de queijo, dois cru-zeiros para o sagu. Foi o meu prêmio diário que se espatifou com a xícara de louça. Meus olhos devem ter-se lacrimeja-do. Por pouco, pouquíssimo tempo. Uma mão negra me estendeu uma outra xícara. Eu agradeci. E sorri. Até hoje sou grato àquela servente que me fez feliz.

Fotos Arquivo PessoAl