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Universidade Estadual de Campinas Instituto de Artes Programa de Mestrado em Artes

Por conta do Abreu: comdia popular na obra de Lus Alberto de Abreu

Autor: Andr Carrico

Campinas, 2004

Universidade Estadual de Campinas Instituto de Artes Programa de Mestrado em Artes

Por conta do Abreu: comdia popular na obra de Lus Alberto de AbreuANDR CARRICO

Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado em Artes do Instituto de Artes da UNICAMP como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em Artes sob a orientao do Prof. Dr. Rubens Jos Souza Brito

Campinas, 2004

Carrico, Andr.C234p Por conta do Abreu : comdia popular na obra de Lus Alberto de Abreu / Andr Carrico. Campinas, SP : [s.n.], 2004.

Orientador: Rubens Jos Souza Brito.

Dissertao (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.1. Abreu, Lus Alberto de. 2. Fraternal Companhia de Arte e Malas-Artes. 3. Teatro brasileiro (Comdia). 4.Dramaturgia. I. Brito, Rubens Jos Souza. I. Ttulo.

Dedico este trabalho ao empenho de minha me, Lourdes, para que eu pudesse estudar. Espero com ele honrar seu esforo. E ao incentivo e entusiasmo de Janana, com amor.

AGRADECIMENTOS amiga Sara Lopes, pelo primeiro impulso e pelos toques, sempre. Ao prof. Rubens Jos Souza Brito (cuja tese inspirou este trabalho), por ter acreditado na minha viagem, e por tantas lies. A Joviniano Borges da Cunha, o J, meu primeiro e sempre mestre. A Jana, pela contribuio na apresentao visual e dicas de informtica. generosidade do mestre Lus Alberto de Abreu. gentileza de Aiman Hammoud, Ali Saleh, Edgar Campos, Lutti Angelelli, Mirtes Nogueira, e do velho bruxo Ednaldo Freire, o Nardo; fraternos atores na boa companhia das malas-artes. delicadeza da Profa. Neyde Veneziano, pelas preciosas dicas no Exame de Qualificao. A Csar Vieira, pela presteza com que me atendeu e por enviar-me um exemplar de seu j esgotado Em busca de um teatro popular. A Daniela Manini, pela reviso de Lngua Portuguesa. Agradeo ainda a Kety Freire, Profa. Ana Maria Peppi Moleta, Frederico Hunzicker, Talita Cardoso, Mrio Bolognesi, Ernesto Giovanni Boccara, Christiane R. Cacciari, aos funcionrios do Teatro Paulo Eir. A todos, saudaes fraternais.

E se mais no fosse pelo resultado da dissertao, valeria a pesquisa apenas por ter conhecido pessoas como Nardo, Abreu e os colegas da Fraternal Cia. Pela aula que me deu essa gente de teatro; ricos de experincias e insaciveis na busca pelo que querem: em permanente estado de aleluia.

RESUMOO principal objetivo da presente pesquisa mostrar como a potica cmica desenvolvida pelo dramaturgo Lus Alberto de Abreu para a Fraternal Companhia de Arte e Malas-Artes parte de sua continuada contribuio cena nacional. So objetos de nossa anlise: a relao desse autor com o grupo a que se destinam esses textos, a evoluo de sua potica cmica e o espao por ela ocupado na histria do teatro brasileiro. Para tanto, analisamos a atualizao dos elementos da tradio cmica brasileira feita por Abreu para o projeto Comdia Popular Brasileira. Assim, estudamos a maneira pela qual os princpios da comdia popular so inseridos nos textos montados pela Fraternal Companhia entre 1993 e 2002, e como os tipos fixados no imaginrio da Cultura Popular brasileira inserem-se nesse contexto. Debruamo-nos sobre as referncias tericas que Abreu declara utilizar em seu processo de construo do texto cmico, tais como as idias de Bakhtin (1987) sobre cultura popular, a teoria do riso de Bergson (2001), a estrutura dramtica da commedia dellarte e seus referentes na Cultura Brasileira, os arqutipos cmicos dos ndios Winnebagos divididos em ciclos hericos por Paul Radin (1964). Perquirimos ainda a coexistncia dos valores aristotlicos e brechtianos atravs da mscara tripla presente em parte da obra cmica de Abreu (Brito, 1999). Dividimos o repertrio do CPB em duas etapas, e apontamos como as peas de Abreu foram do jogo, no primeiro ciclo de quatro textos, para o pensamento das cinco obras do segundo ciclo. Nosso trabalho conclui que, por meio do sentimento do contrrio, o conceito de humor encontrado na potica cmica do autor do projeto CPB o mesmo que o estabelecido por Luigi Pirandello (1999).

ABSTRACT

The main objective of the present research is to show how the comic poetical developed by the playwright Lus Alberto de Abreu for the Fraternal Companhia de Arte e Malas-Artes is part of his continued contribution to the national scene. The relation of this author with the group to which his texts are destined, the evolution of his comic poetical and his space in the Brazilian theater history were the object of our analysis. To this end, we analyzed the updating of the Brazilian comic tradition elements made by Abreu to Comdia Popular Brasileira project. Thus, we studied the way through the principles of the popular comedy are inserted in the texts staged by Fraternal Companhia between 1993 and 2002, and how the types fixed in the imaginary of the Brazilian Popular Culture are inserted in this context. We studied the theoretical references that Abreu declares to use in his process of of the comic text construction, such as the ideas of Bakhtin (1987) on popular culture, the theory of the laughter of Bergson (2001), the dramatical structure of the commedia dellarte and its references in the Brazilian Culture, the comic archetypes of Winnebagos indians divided in heroic cycles for Paul Radin (1964). We still investigate the coexistence of the aristotelian and brechtnian values through the triple mask present in part of the comic workmanship of Abreu (Brito, 1999). We divided the repertoire of the CPB in two stages, and showed how the plays of Abreu changed from the game, in the first cycle of four texts, to the thought of the five ones of the second cycle. Our work concludes that, by means of the feeling of the the opposite, the concept of humour found in the comic poetical of the author of the CPB project is the same established by Luigi Pirandello (1999).

SUMRIO PRLOGO - INTRODUO CENA 1 SOBRE A OBRA DE LUS ALBERTO DE ABREU CENA 2 - A FRATERNAL CIA E O PROJETO COMDIA POPULAR BRASILEIRA 2. 1 Histrico do projeto 2.2 As peas 2.3 Prmios 2.4 Tipologia fixa a. Os ciclos de Paul Radin b. Arlequim e o Palhao brasileiro c. Tud, Teit e Matias d. Coronel, Capitan e companhia 2.5 - Tipologia e linguagem 2.6 - Referncias - Tradio da dramaturgia CENA 3 ANLISES DAS PEAS 3.1. O Parturio" 3.2. O anel de Magalo 3.3. Burundanga ou A Revoluo do Baixo-Ventre 3.4. Sacra Folia 3.5. Iepe 18 24 32 33 33 35 37 40 41 43 48 48 53 60 68 73 1 6 18

a. Mscara Tripla 3.6. Till 3.7 . Mastecl ou Tratado Geral da Comdia 3.8. Nau dos Loucos ou Stultfera Navis 3. 9. Auto da Paixo e da Alegria CENA 4 MESA REDONDA 4.2. Anlise da mesa redonda APOTEOSE CONCLUSO Da potica cmica de Abreu Do espao de Abreu na histria da Comdia Popular Brasileira Por conta do Abreu ANEXOS Fichas Tcnicas EPLOGO BIBLIOGRAFIA

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PRLOGO - INTRODUO

A cena contempornea brasileira tem demonstrado, por meio do trabalho de alguns grupos teatrais, uma retomada na vertente da comdia popular. Apoiando-se numa forte tradio preexistente e aproveitando personagens e situaes de criaes espontneas do povo, busca explorar um projeto de teatro brasileiro. Ao trilhar uma potica j percorrida por outros autores, desde Martins Pena e Artur Azevedo, passando por Oduvaldo Viana, Ariano Suassuna, Renata Pallotini, Chico de Assis, at Carlos Alberto Soffredini, novos grupos paulistanos procuram renovar a cena atravs de temas, gneros e formas populares tradicionais, buscando uma reaproximao do teatro com um pblico mais heterogneo. Em 1993, o diretor teatral Ednaldo Freire cria em So Paulo a Fraternal Companhia de Arte e Malas-Artes, uma das que mais tem se destacado nessa travessia. Com ela, ao lado do dramaturgo Lus Alberto de Abreu, inicia o projeto Comdia Popular Brasileira, cujo objetivo reintroduzir na cena tipos populares brasileiros. Depois de dez espetculos realizados, o Projeto tem contribudo para a formao de um pblico cada vez maior. E por meio dele, a obra dramtica de Lus Alberto de Abreu tem se revelado das mais profcuas na tentativa de explorar a potencialidade do riso como carter inerente ao teatro popular brasileiro. Nossa pesquisa pretende averiguar em que medida os objetivos propostos pelo Projeto CPB foram alcanados nesses dez anos. Para tanto, analisamos a atualizao dos elementos da tradio cmica brasileira feita pela Fraternal Companhia de Arte e MalasArtes no projeto Comdia Popular Brasileira por meio dos textos de Lus Alberto de Abreu. Assim, estudamos a maneira pela qual os princpios da comdia popular so inseridos nos textos j montados por essa companhia e como os tipos fixados no imaginrio da Cultura Popular Brasileira inserem-se nesse contexto.

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Debruamo-nos sobre as referncias tericas que Abreu declara utilizar em seu processo de construo do texto cmico, tais como as idias de Bakhtin (1987) sobre cultura popular, a teoria do riso de Bergson (2001), a estrutura dramtica da commedia dellarte e seus referentes na Cultura Brasileira, os arqutipos cmicos dos ndios Winnebagos divididos em ciclos hericos por Paul Radin (1964). Apontamos tambm como o Palhao do circo tradicional brasileiro pode influenciar nesse processo (Bolognesi, 2002). Perquirimos ainda a coexistncia dos valores aristotlicos e brechtianos atravs da mscara tripla presente em parte da obra cmica de Abreu (Brito, 1999). Assinalamos como o conceito de humor estabelecido por Pirandello (1999) reflete-se na potica cmica do autor do projeto CPB. Nosso intuito tambm precisar como o modelo desenvolvido por Abreu para a Fraternal Cia parte de sua continuada contribuio cena nacional. Um dos objetos de nossa anlise a maneira como o texto de Lus Alberto de Abreu serve cena. Acompanhamos o estgio atual do Projeto da Fraternal Companhia, participando de ensaios e tomando o depoimento de seus integrantes. Pudemos ainda averiguar a receptividade do CPB perante o pblico. Por conta do Abreu, dito popular utilizado nas mesas de botequim na hora de decidir quem vai pagar a conta, foi nosso ttulo. Ele revela, alm do assunto desta dissertao (a obra de Lus Alberto de Abreu), o carter jocoso da parte da obra desse dramaturgo a que nos propomos a analisar: sua comicidade. E por ser popular, integra o universo de nossa anlise. No primeiro captulo analisamos a obra de Lus Alberto de Abreu contextualizandoa na cena paulistana contempornea. Levamos em conta seu mtodo de incorporar ao ato criativo tanto as sugestes dadas pela companhia e pelo encenador quanto a relao de eficcia do texto com o pblico. Fizemos ainda uma reviso das teorias utilizadas por Abreu na construo de sua potica cmica. No segundo captulo, apresentamos um histrico da Fraternal Cia de Arte e Malas-Artes; de como se deram, ao longo desses dez anos, as temporadas das nove peas analisadas. Tambm examinamos os tipos fixos criados pelo autor para a primeira

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tetralogia de peas, bem como a linguagem utilizada pelos mesmos. Levantamos tambm as referncias da dramaturgia nacional e universal nos textos criados para o CPB. No Captulo 3, analisamos os textos das peas escritas para a Fraternal Cia entre 1993 e 2002, quais sejam: O Parturio, O Anel de Magalo, Burundanga ou A Revoluo do Baixo Ventre, Sacra Folia, Iepe, Till, Mastecl, Nau dos Loucos e Auto da Paixo e da Alegria, dispostos por ordem cronolgica de estria. Focalizamos o universo de nossa investigao, apontando teorias que integraram o processo de criao do autor. Reunimos tambm as anlises dessas peas feitas pelos crticos teatrais. A opinio dos especialistas acerca da encenao dos textos da Fraternal Cia concorre para que se esclarea, de outro ponto de vista, o processo criativo do comedigrafo. At porque, ao produzir um novo trabalho, Abreu parece levar em conta as observaes que esses especialistas fazem acerca de sua produo imediatamente anterior. No penltimo captulo, editamos um debate a partir da justaposio dos depoimentos, tomados separadamente, dos membros da Fraternal Cia de Arte e MalasArtes e de Lus Alberto de Abreu. Com esses depoimentos, procuramos problematizar a relao entre dramaturgo/atores e dramaturgo/encenador. Na sexta parte, finalizamos o trabalho com as concluses levantadas ao longo de nossa pesquisa. Utilizamos o termo fbula, j designado na Arte Potica por Aristteles (1998), para indicar a sucesso de acontecimentos que constituem a ao das peas. Valemo-nos do significado adjetivo dos termos lrico, pico e dramtico, explanados por Rosenfeld (1965), para nomear elementos da obra de Abreu. Tal qual o mtodo estabelecido pelo torico alemo no livro O Teatro pico, pretendemos fazer da literatura dramtica o ponto de partida de nossa pesquisa. Entretanto, uma vez que o texto deve completar-se cnicamente (sobretudo o texto de Lus Alberto de Abreu, escrito para a cena), o ponto de chegada de nossa dissertao o espetculo teatral em sua plenitude. Os elementos cnicos, portanto, encontram-se amplamente expostos ao longo deste trabalho. Assim, no somente os dilogos mas ainda as rubricas do dramaturgo so objeto de nosso exame.

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Quanto citao de trechos das peas de Abreu analisadas, quando supranomeadas, no colocamos notas de referncia, conquanto esses trechos apaream sempre entre aspas. Quando nos referimos ao Projeto Comdia Popular Brasileira utilizamos a sigla CPB, em negrito, ou apenas a palavra Projeto, com letra maiscula. Ao utilizarmos o termo Companhia, tambm iniciado por caractere maisculo, referimo-nos Fraternal Companhia de Arte e Malas-Artes. Em nosso trabalho, optamos por grifar as palavras estrangeiras em itlico, com exceo daquelas que evocam tipos fixos ou nomes de personagens. Quando o nome de uma pea for igual ao de um personagem, este aparecer entre aspas, como de resto nos referimos a todos os ttulos de textos teatrais. Personagens homnimos a peas estaro grifados sem aspas.

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CENA 1 SOBRE A OBRA DE LUS ALBERTO DE ABREUDepois de um longo perodo, a partir de Antunes Filho, e sobretudo durante a dcada de 1980, em que preponderou no Brasil o reinado do encenador, Lus Alberto de Abreu foi um dos autores que mais colaborou para restabelecer o papel da dramaturgia na organizao da cena brasileira. Sua obra plena de teatralidade, conquanto suas sugestes e as imagens de sua narrativa constituam um rico manancial para a criatividade do encenador. Seu trabalho veio reafirmar a importncia do dramaturgo cuja funo, mesmo que compartilhada por um projeto de equipe, primordial. Texto e encenao so, portanto, dois eixos essenciais na constituio da obra de Lus Alberto de Abreu. Sua escrita planejada para a cena. um dramaturgo que leva em considerao as necessidades dos artfices da cena e do espetculo em si1. Nesse ponto, seu trabalho assemelha-se ao de outro autor brasileiro de comdias populares, Artur Azevedo. Tendo sido um dos introdutores do conceito de encenao no Brasil, o autor de O Mambembe2, que atuou da segunda metade do sculo XIX a princpios do sculo XX, tambm escrevia sob encomenda, acompanhava os ensaios e, se necessrio, fazia alteraes no texto aps a estria. Antes de pousar a pena sobre o papel, Abreu prepara o que chama de encenao precria, na qual considera sempre o local onde a pea ser apresentada. A partir dessa concepo mental preliminar, comea a construir o texto. A encenao precria prev o espao. Trata-se de uma maquete, estabelecida efetivamente como miniatura fsica em alguns casos, ou apenas uma imagem mental em outros. Nela, os personagens so dispostos, e as possveis combinaes de seus movimentos e marcaesBRITO, Rubens Jos Souza. Dos pees ao rei: o teatro pico-dramtico de Lus Alberto de Abreu.. Tese de doutorado apresentada Escola de Comunicao e Artes da USP, So Paulo. 1999, 226 f.2

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BRITO, Rubens Jos Souza. A linguagem teatral de Artur Azevedo. Dissertao de mestrado apresentada Escola de Comunicao e Artes da USP, So Paulo. 1989, 434f.

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so relevadas, experimentadas. Foi isso que deu a Abreu a possibilidade de organizar a dramaturgia de trabalhos como A Grande Viagem de Merlin, espetculo itinerante, dirigido por Ricardo Karman. Nessa experincia, a platia era conduzida no ba de um caminho, onde aconteciam as primeiras cenas, para as tochas do aterro sanitrio da Rodovia dos Bandeirantes, at s runas do teatro Polytheama e a um lago, em Jundia, onde o espetculo terminava. Bar, Doce Bar foi encenada pelo grupo Zambel dentro de um bar da capital paulista, e O Livro de J nas dependncias do hospital Umberto I. Assim, o edifcio teatral muitas vezes um componente da matriz de criao do autor. O elenco e a linguagem do encenador so tambm atributos fundamentais nessa construo. Abreu percorre um caminho que vai da cena (concepo teatral) para a escrita. Os dilogos de suas peas derivam de um planejamento cnico. Entretanto, ainda que venha ao longo do processo de encenao, o texto de Abreu ainda sistema gerador de signo teatral. O autor dispe todos os seus textos em forma de quadros, atribui um nome a cada um deles, organiza os acontecimentos dramticos em funo desta nomeao, desenvolvendo, desta maneira, o enredo da pea3. Para Lus Alberto de Abreu, a platia representa um papel primordial no seu processo de criao: (Estar) sintonizado com o pulso do pblico o mais importante. Teatro para eles.4 Os objetivos declarados pelo autor de O Parturio passam longe das ambies literrias. Entretanto, para Mariangela Alves de Lima (1997), o apuro da forma dialgica, a preciso e a espirituosidade do vocabulrio podem fazer da obra de Abreu peas literrias e no apenas teatrais:

So as decises de nvel estilstico, a preciso do vocabulrio e o achado espirituoso que fazem destas peas realizaes literrias, e no s cmicas. Lus Alberto de Abreu no parece interessar-se muito pela velha polmica sobre a predominncia do texto no teatro, ou , ao contrrio, sua irrelevncia. Estas quatro peas abrem para os Idem. Relato de Lus Alberto de Abreu para BRITO na tese Dos pees ao rei: o teatro pico-dramtico de Luis Alberto de Abreu. So Paulo: USP, 1999.4 3

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intrpretes incontveis possibilidades de elocuo e jogos corporais. Mas so tambm leituras prazerosas como foram, a seu tempo, a novela e o romance destinados ao pblico letrado.5

Ao construir sua obra em funo de grupos ou projetos, Abreu escreve para o ator, oferecendo-lhe material para que possa lanar mo de tcnicas de atuao. O texto de Abreu , assim, partitura; pretexto para que o ator ponha em cena vozes, movimentos e gestos diversos; oportunidade para que exercite seu potencial interpretativo. Essa prtica difere da de outros dramaturgos que ressaltam a estrutura literria ou a linguagem verbal em detrimento da resoluo cnica. Muito alm de ser instrumento para o ator, a produo de Abreu uma rica fonte para a criao do encenador, conquanto suas fbulas situem-se em mltiplas pocas e lugares, abrindo um vasto leque de possibilidades de mise-en- scne. Outro fator que d margens atuao do encenador a dimenso mtica de seus enredos, encontrada a partir de O Homem Imortal e sobretudo em textos como A Guerra Santa, O Livro de J e Maria Peregrina, alm das peas do CPB, como veremos mais adiante. Abreu pertence a uma gerao de dramaturgos que iniciou sua produo na poca que sucedeu o perodo repressor da censura do regime militar. A influncia do teatro de Augusto Boal em sua obra ntida. Nos anos 1970, em So Bernardo do Campo, segundo nos revelou em depoimento, Abreu participou como ator de uma montagem de A Exceo e a Regra, de Bertolt Brecht. Tambm tomou parte, na mesma cidade, numa oficina de teatro ministrada por Edson Santana, ator do Teatro de Arena de So Paulo. Essas experincias seriam cruciais na definio de sua prtica dramatrgica posterior. A partir delas, e baseado no mtodo de teatro jornal, de Boal, Abreu escreveu sua primeira cena. Isso j denota, desde sempre, o carter da funo de sua tarefa: um dramaturgo que escreve para o coletivo. No toa, desde Foi Bom, Meu Bem?, sua primeira pea, at suas mais recentes produes, Abreu divide seus textos em quadros ao invs de cenas, nomeados um5

LIMA, Mariangela Alves de. Apresentao in Comdia Popular Brasileira. So Paulo: Siemens, 1997.

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a um. A primeira pea no Brasil a utilizar esse recurso foi Revoluo na Amrica do Sul, de Augusto Boal, montada pelo teatro de Arena em 1960. Alm disso, a diviso da pea por unidades tituladas uma das propostas de Brecht em seu Organon, onde prope que cada cena se realize por si, sem a necessidade de um encadeamento seqencial. Mas a despeito do paradigma brechtiano, o teatro de Abreu envolve o espectador, permite-lhe emocionar-se e no tem como prerrogativa despertar-lhe a atividade ou for-lo a tomar decises. Assim, a estruturao das peas em quadros um dos elementos do processo de criao de Abreu, uma deciso tomada a priori pelo autor, antes de comear a escrever os dilogos. Sendo um escritor que tem por base a funo coletiva de seu trabalho, os dilogos das peas de Lus Alberto de Abreu so, via de regra, resultantes de uma concepo cnica. Mas Abreu vai alm do distanciamento de Brecht. Sua obra sintetiza os valores aristotlicos e os brechtianos. Nela coexistem a emoo dramtica e a conscincia pica. Ao hic et nunc do drama, ele soma o logus do pico. Um nico ator veculo, a um s tempo, de personagens que narram e sofrem a ao do que narraram, conflitando entre si. o que chamamos de mscara tripla e cuja anlise faremos no captulo trs. Um mesmo ator representa mais de um personagem sem sair de cena ou trocar de roupa. O texto se encarrega de produzir essa mudana, sem confundir o pblico. No nvel lexical, uma frase que comeou na terceira pessoa pode terminar narrada em primeira pessoa. O recurso utilizado por Abreu, nesse caso, o de no se ater concordncia verbal, ou seja, do verbo com o sujeito da orao:

BENECASTA E Joo Teit, que sou eu, vai tambm discutir filosofia, esttica, moral, enquanto saboreio caldas, compotas, queijo com marmelada. (...)

A estrutura formal de cada texto de Abreu outro componente definidor de sua matriz criadora. Mais do que pela fala, seus personagens instalam-se pelas estruturas que os aliceram. A carpintaria dramtica na qual se desenvolvem suas fbulas e personagens parece ser mais relevante do que a linguagem ou a fbula, e caracteriza sobremaneira a

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potica particular desse autor. No toa constatarmos que os textos de Abreu adaptam-se melhor aos grupos e companhias que elegem a dramaturgia como eixo condutor de seus espetculos. A pesquisa outra caracterstica intrnseca a seu processo de criao. E o teatro N tem sido um dos focos de sua pesquisa mais recente. Nesse gnero oriental, o personagem o centro da ao dramtica. Portanto as ltimas produes de Abreu tm relevado mais a fbula posta em cena pela narrativa do contador, do que o enredo levado a cabo pelo ator. Uma vez que inclui o dilogo estabelecido com o grupo em seu processo criativo, na obra de Abreu o ator parte integrante da narrativa6. Por meio dela, o intrprete tambm contador. Desde o comeo da dcada de 1990, o autor tem se preocupado em reabilitar a funo da palavra na cena por meio da narrativa. Para tanto tem se pautado por pesquisas que atravessam o campo da semitica, da potica, da poesia e da eloqncia. Ao criar as situaes e o discurso de seus personagens, h uma escolha ideolgica em Abreu, sempre em busca da chave certa para saber como falar a seu pblico. A influncia de Brecht, nesse sentido, mais uma vez inegvel. Sem ser didtica ou panfletria, e mesmo situando suas fbulas no espao longnquo e no tempo pretrito, a potica de Abreu no deixa de refletir sobre sua poca. Formado numa poca em que o discurso era mais importante, Abreu deu-se conta de que, at pela preponderncia das experincias fsico-corporais na cena contempornea, teatro ao. E muito cedo percebeu que sua cena deveria voltar-se, cada vez mais, para ela. Segundo depoimento a Brito (1999), alm de ter se criado e viver ainda hoje no ABC paulista, regio eminentemente operria, Abreu chegou a trabalhar em fbrica. E, desde Cala Boca, j Morreu at Borand, inegvel a influncia de suas experincias6

A maneira como lida com a pea, o elenco ao qual ela destinada so relevantes na produo final do texto.

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operrias na constituio de sua obra; da linguagem e do vocabulrio dos tipos, passando pelas histrias narradas, at aquilo que sua obra talvez tenha de mais rico: a capacidade de retratar a alma dos personagens proletrios. A fragmentao do sujeito, vtima das mazelas do meio urbano contemporneo, outro mote das fbulas articuladas pelo autor. O reclamo de uma populao inserida numa sociedade estruturada contra seus interesses, forada desde sempre a servir os desgnios opostos aos seus, faz-se presente pela voz dos personagens cmicos de Abreu. O autor liga as aspiraes sociais do povo brasileiro ao futuro promissor identificado por Bakhtin nas imagens populares universais. A baixa auto-estima, caracterstica de grande parte da populao brasileira (Ribeiro, 1997), denunciada na maior parte das peas do autor de Burundanga. Lus Alberto de Abreu tem uma relao particular com o exerccio de sua profisso. um dramaturgo que vive de seu ofcio, diferente de outros autores que so tambm atores, diretores, produtores ou escrevem para a televiso.7 Alm disso, um dos nicos que leva cena, anualmente, mais de um texto indito. Dos que no contam com o respaldo televisivo o nico certamente. Ainda que submeta sua produo s solicitaes alheias, Abreu permite-se a liberdade de escrever sempre sobre o que lhe toca a sensibilidade. E da conciliao entre as propostas da demanda coletiva e sua vontade pessoal que se realiza profissionalmente. Aliado ao fato de ser um dramaturgo profissional, compondo sempre pautado pelas circunstncias, Abreu constri uma obra coerente. Dos temas e propostas das peas que lhe so encomendadas, o autor tece a teia de sua obra. Sua multiplicidade temtica no apenas um exerccio de estilo, mas antes produto da relao pragmtica que o autor estabelece com sua profisso. Ele no , portanto, um artista que conta apenas com a inspirao para criar. Antes, um trabalhador que tem no pragmatismo sua principal ferramenta. Podemos tomar sua atividade criativa como um exerccio de Criatividade

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Ressalte-se que Abreu escreveu o roteiro dos filmes Kenoma e Narradores de Jav, ambos dirigidos por Eliana Caff;alm disso, como professor de dramaturgia, j est sistematizando uma pesquisa acadmica na Universidade de So Paulo.

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Situacional (Goswami, 1999), no qual o criador percebe um novo significado num velho contexto ou numa combinao de velhos contextos. No , portanto, um dramaturgo procura de novos contextos de significado. Para a crtica Mariangela Alves de Lima, a obra de Abreu no se alia a um gnero inovador de teatro, assim por ela caracterizado:

Prestigiado e bastante encenado no teatro paulista, Abreu dificilmente pode se alinhar entre os inovadores da dramaturgia brasileira. At o momento, sua peas tm sido uma lenta e segura explorao das vertentes tradicionais da escrita cnica.8

Ainda que essa articulista no expresse, em particular, nenhum juzo de valor, para parte da crtica contempornea qualquer experimentalismo em teatro, de natureza vanguardista, , a priori, meritrio; tido como uma virtude artstica; os autores que no se alinham s propostas iconoclastas no merecem muita ateno.9 Mas a dramaturgia de Lus Alberto de Abreu vai alm da simples dicotomia convencionalismo X vanguardismo. Mais do que pela preciso verbal de sua linguagem ou pela riqueza de imagens de suas fbulas, sua dramaturgia impe-se pelas estruturas. E so essas complexas estruturas, aliadas a uma extraordinria capacidade de sntese cada vez mais desenvolvida pelo autor, que denotam o carter de vanguarda de seu teatro. O que falta talvez crtica aquilatar a contribuio de Abreu comediografia nacional, no seu empenho de estender o caminho aberto por Martins Pena, trilhado por Ariano Suassuna e tantos outros. Contribuio que ampliada nas obras compostas para o projeto Comdia Popular Brasileira. A fuso de estruturas, complexa e amadurecida, emparelha a obra de Abreu s mais recentes pesquisas que conduzem a cena contempornea. Ao delegar ao encenador papel chave na constituio da obra teatral, o autor de Sacra Folia mostra-se hbil em cumprir as tarefas exigidas de um dramaturgo nos dias de hoje. A reside, portanto, a dimenso contempornea das peas de Abreu.LIMA, Mariangela Alves de. Burundanga mistura requinte e simplicidade. O Estado de S. Paulo, 2 de agosto de 1996. 9 Basta aferir o espao que as manifestaes de Cultura Popular ocupam na imprensa escrita, televisiva, e demais meios de divulgao em massa no Brasil, como prova inequvoca do desprezo que grande parte da intelligentzia vota a essas manifestaes.8

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A potica que Lus Alberto de Abreu compe para a Fraternal Companhia de Arte e Malas Artes, ao mesmo tempo em que mistura a alta e a baixa cultura, nega o realismo psicolgico desenvolvendo recursos narrativos para o teatro pico. Alm disso, perpetua e conjuga meios e elementos da comdia popular brasileira e da comicidade universal, estabelecendo um dilogo vibrante e particular entre o teatro tradicional e as correntes contemporneas da linguagem teatral. No obstante, sua obra cmica alcana grande empatia junto ao pblico. Se seus temas vo de fbulas europias medievais ao imaginrio popular nordestino, a contextualizao dos mesmos nos dias atuais que faz com que eles dialoguem com um amplo pblico no sculo XXI. Entretanto, o pluralismo temtico do teatro de Lus Alberto de Abreu resulta na possvel incompreenso que parte da crtica tem a respeito de seu estilo. Esta possvel incompreenso ou falta de entendimento pleno da obra do artista constatada a partir da leitura das crticas publicadas em jornais, sobretudo por Alberto Guzik, Mariangela Alves de Lima e Sbato Magaldi. Autor dramtico no apenas aquele que cria fbulas, mas tambm aquele que imprime sobre as fbulas sua marca pessoal. E seria a dramaturgia de Abreu possuidora de um estilo definido? A primeira constatao a ser feita, analisando-se sua produo dramatrgica, justamente o carter de obra pluralista, multifacetada. Sua realizao explora um diversificado universo de gneros e linguagens, tendo sido Abreu autor de textos, se comparados entre si, to dspares quanto A Guerra Santa, Bella Ciao ou as peas do projeto CPB que nos propusemos a analisar. A abrangncia de temas e gneros, numa obra que j serviu a grupos como Macunama (Xica da Silva), Galpo (Um Trem Chamado Desejo) ou Teatro da Vertigem (O Livro de J), e foi conduzida por encenadores como Gabriel Vilela (A Guerra Santa), Aderbal-Freire Filho (Lima Barreto ao Terceiro Dia), Antunes Filho (Xica da Silva), Antnio Arajo (O Livro de J) e Ednaldo Freire (Comdia Popular Brasileira), dificulta a delimitao de uma nica caracterstica, particular e freqente.

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Segundo Brito (1999), a pluralidade de linguagens e temas que compe o seu estilo. Em sua produo, so mais relevantes as matrizes formadoras do texto do que a repetio de um estilo j sedimentado. Importa sua tarefa criativa a finalidade da pea, o pblico a que se destina, o edifcio onde ser apresentada, a linguagem do grupo ou encenador que vai represent-la, o gnero teatral que a companhia se dedica a pesquisar, o elenco que ir compor cada um dos personagens. Ainda assim, pode-se pensar em certas caractersticas comuns aos ltimos textos do autor, independente de seu gnero. A primeira dessas caractersticas a narrao, o ator como instrumento no apenas de identificao ou representao do personagem, mas tambm como o veculo que, ao longo da fbula, ir narrar os episdios pelos quais o personagem passou ou passar. O personagem outro elemento determinante na estrutura dos textos do autor. O personagem que se auto-apresenta, e refere-se a si mesmo todo o tempo, resultado de um jogo metateatral, que enquanto se faz se mostra para a platia, como se as regras do jogo que definem a combinao dos elementos na pea fossem escancaradas a todo momento.10 Tambm como leitmotiv freqente, nos mais recentes trabalhos de Abreu est a dimenso da saga, a fbula construda para relatar a trajetria da vida de um heri ou antiheri, dividida em episdios repletos de incidentes. Ressalte-se ainda a Cultura Popular como tema presente na maioria dos projetos do dramaturgo. Desde quando escreveu para o Teatro Popular do Sesi em 1985 O Rei do Riso, at seus trabalhos mais recentes, como Um Trem Chamado Desejo e Maria Peregrina, o popular chave para as montagens sejam da Cia Teatro da Cidade, de So Jos dos Campos, ou do Grupo Galpo, de Belo10

Abreu no assiste mais do que estria das montagens das peas que escreve. Vendo em cena o

resultado daquilo que criou fica tenso, no consegue assimilar a cristalizao ou sedimentao do trabalho do ator ao longo das temporadas, segundo nos revelou. Mesmo nas estrias, estar na platia no papel de espectador para ele uma experincia torturante.

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Horizonte. Mais do que tema, a Cultura Popular o principal componente matricial de todas as peas do Projeto Comdia Popular Brasileira da Fraternal Cia de Arte e MalasArtes, de So Paulo. Um dos objetivos expressos pelo autor na produo do Projeto CPB o de fixar a vertente da comdia popular no mesmo grau de importncia de outros gneros na renovao da cena contempornea. At o final desta pesquisa, a obra dramtica de Lus Alberto de Abreu totalizava 43 textos, quais sejam: A Guerra Santa, Auto da Paixo e da Alegria, A Questo Qualidade, Burundanga ou A Revoluo do Baixo Ventre, O Parturio, O Anel de Magalo, Sacra Folia, Iepe, Nau dos Loucos ou Stultfera Navis, Mastecl ou Tratado Geral da Comdia, O homem imortal, Till, O Livro de J, Maria Peregrina, Um Trem Chamado Desejo, pera Bufa para Dois Fulanos, um Amante, Garom e Circunstantes, Bella Ciao, A Troco de Nada, Grande Serto, Rosa de Cabrina, Nonoberto Nonemorto, Quem no se Comunica..., Clera, no!, Em Fbrica que no Tem Preveno, Todos Brigam e Ningum Tem Razo!, Gente que no se Cuida no Leva Vida Segura, O Pum de Micura, Bar, Doce Bar, Foi Bom, Meu Bem ?, Lima Barreto, ao Terceiro Dia, O Rei do Brasil, Nosso Cinema,

Francesca, O Brando, ... E Morrem as Florestas, A Morte de Lorca, Crculo de Cristal, A Quarta Estao, Ladro de Mulher, O Rei do Riso, A Grande Viagem de Merlin, Xica da Silva; contando-se suas mais recentes produes Borand e Merlin, realizadas em 2003. O reconhecimento dessa obra explicitado pela opinio da crtica impressa e pelos prmios acumulados, desde quando, no incio da carreira, foi aclamado como autor revelao de 1980 pela Associao Paulista de Crticos de Arte (APCA). Lus Alberto de Abreu recebeu como dramaturgo, ao longo de 24 anos de profisso, mais trs prmios da APCA, dois Mambembes, um Molire, um Apetesp, um Panamco. Obteve o primeiro lugar no Concurso Nacional de Dramaturgia Sesc/Apart 1990, alm de inmeras indicaes e prmios-estmulo de dramaturgia. Por meio de sua parceria com grupos teatrais

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prestigiados, seus textos j foram levados para cidades como Seul, Copenhague, Londres e Moscou.

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CENA 2 - A FRATERNAL CIA E O PROJETO COMDIA POPULAR BRASILEIRA

2. 1 Histrico do projeto A partir de um grupo de teatro amador formado por scios da ADC SIEMENS,11 em So Paulo, o diretor teatral Ednaldo Freire cria, em 1993, a Fraternal Companhia de Arte e Malas-Artes. A palavra fraternal uma aluso s antigas companhias de commedia dellarte, que se organizavam em torno de uma estrutura familiar. Com ela, ao lado do dramaturgo Lus Alberto de Abreu, Freire inicia o projeto Comdia Popular Brasileira. O objetivo da proposta reintroduzir na cena tipos populares do pas. Aproveitando personagens e situaes de criaes espontneas do povo, busca retomar um projeto de teatro brasileiro. O programa almejava uma coordenao esttica de movimentos, gestos e interpretao que pensasse e estruturasse novamente o espetculo popular e, principalmente, de atores dispostos, geis e atentos voz e ao ritmo das ruas.12 A Fraternal Cia de Arte e Malas-Artes aproveitou um momento em que parte da cena paulistana, por meio do trabalho de alguns grupos teatrais, procurou retomar a vertente da comdia popular, apoiando-se numa forte tradio preexistente e na reapropriao modernista que se fez dessa comicidade. Em que pese o ecletismo prevalecer nas produes teatrais brasileiras dos anos 9013, o trabalho de encenadores como, por exemplo, Cac

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Associao Desportiva Classista Siemmens. O grupo existia desde 1981.

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ABREU, Luis Alberto de, FREIRE, Ednaldo. Prefcio, in Comdia Popular Brasileira. So Paulo: Siemens, 1997.

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Um ecletismo desconsertante, pelo menos para a observao crtica, parece ser o nico sinal recorrente da cena paulistana., LIMA, Mariangela Alves de. Apresentao, in Comdia Popular Brasileira. So Paulo: Siemens, 1997.

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Rosset, Romero de Andrade Lima, Hugo Possolo, Gabriel Vilela e do agitador cultural polimrfico, o brincante Antnio Nbrega (que militava nessa causa h alguns anos em So Paulo) comeou a ganhar a ateno da crtica e do pblico. Ao promover programas isolados ou participando do projeto de grupos como Ornitorrinco, Galpo, Circo Branco, Parlapates, Patifes e Paspalhes, Brincante, Companhia de Mistrios, esses diretores engajaram-se no objetivo de povoar a cena de temas, gneros e formas populares tradicionais, ou de recriaes das mesmas. Some-se a essa fase o trabalho de um grupo amador que j atuava na capital paulista desde 1967, o Teatro Unio e Olho Vivo (TUOV)14, orientado pela perseverana do diretor e dramaturgo Csar Vieira. A Fraternal Companhia de Arte e Malas-Artes no apenas integrou-se a esse empenho coletivo de um dos segmentos dos palcos paulistanos, como talvez tenha sido uma das nicas cuja empreitada permanece at hoje. E foi a nica certamente que teve a caracterstica de filiar-se a um dramaturgo em seu projeto, o qual, por meio de seu trabalho, pde prever a manuteno e o desenvolvimento de uma linguagem no nvel textual. Vale tambm concluir que a Fraternal Cia de Arte e Malas-Artes talvez seja um dos nicos grupos teatrais no Brasil que leva cena todos os anos, no mnimo, uma pea indita de autor nacional.15 Alm disso, ao longo de seus dez anos de existncia, o projeto CPB pde afirmar sua presena na cena de So Paulo, conquistar uma platia, sempre na busca de uma reaproximao do teatro com um pblico mais heterogneo. Mas o grupo no se acomodou em uma frmula. Cada nova pea um vo para o desconhecido.

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O TUOV continua atuando em So Paulo, levando suas peas para ruas, praas e escolas da periferia, alm de participar de festivais por todo o mundo. Hoje com 38 anos, o grupo teatral com mais tempo de existncia no Brasil. 15 Em 2002, por exemplo, foram trs textos inditos: Nau dos Loucos, Auto da Paixo e da Alegria e a segunda verso de Sacra Folia.

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A proposta do CPB explicitada por seus prprios mentores, Ednaldo Freire e Lus Alberto de Abreu, no prefcio do livro Comdia Popular Brasileira, editado pela empresa que patrocinou o projeto:

Por sua extenso e ambio, um projeto como o Comdia Popular Brasileira no feito, iniciado e nem ao menos pensado por uma s pessoa. Na verdade, a vertente da comdia popular estava a, existindo como necessidade, pedindo para ser retomada, repensada, aprofundada. (...) A necessidade e a ambio de continuar os caminhos j trilhados por Ariano Suassuna, Arthur Azevedo e Martins Pena para o desenvolvimento do projeto nos levou a criar a Fraternal Companhia de Arte e Malas-Artes, tendo como base o elenco da ADC Siemens, que h dezesseis anos, dirigido por Ednaldo Freire, realizava trabalho bem-sucedido no campo da interpretao cmica. O ponto de partida do projeto foi dar vida e desenvolver os tipos j fixados no imaginrio da cultura brasileira e estrutur-los segundo alguns princpios da comdia popular: inveno, ambivalncia, simplicidade e requinte artesanal, inteligncia, riso farto e regenerador. Para isso foi fundamental a pesquisa de idias de Mikhail Bakhtin acerca do universo do riso na cultura popular, de um lado; de outro, pesquisadores indispensveis como Luis da Cmara Cascudo, Amadeu Amaral e Cornlio Pires nos conduziram no manancial inesgotvel da cultura brasileira. (...) O universo da cultura popular um oceano que mal comeamos a atravessar. H que se pesquisar, renovar e trazer contemporaneidade uma infinidade de temas, gneros e formas populares extremamente eloqentes e j esquecidos, como o ciclo de autos, a revista, o verso pico, o melodrama, o pastoril, o teatro de bonecos, o musical, a pera popular e todo um riqussimo manancial que pode contribuir para estimular e renovar a atual cena brasileira. Afinal, as grandes renovaes da cena mundial tiveram como base a tradio popular. Obviamente, este um oceano imenso para um s barco atravessar. E se o projeto Comdia Popular Brasileira teve alguma ambio acima de suas possibilidades foi a de fixar a vertente da comdia popular no mesmo grau de importncia de outros gneros na renovao da cena contempornea. Lanamos nosso barco neste oceano. Mas este um imenso, profundo e risonho oceano para um barco s.16

Conforme aponta a crtica, a companhia tem conseguido fazer de cada novo espetculo um avano em relao ao anterior. Alberto Guzik escreve: medida que avana em sua pesquisa, a Fraternal Cia tambm cresce. Seus textos e espetculos adquirem propsitos e contornos mais ntidos.17 Para Mariangela Alves de Lima, (...) no

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No prefcio de Comdia Popular Brasileira. So Paulo: Siemens, 1997. GUZIK, Alberto. Ao alm do necessrio . Jornal da Tarde, So Paulo, 13 de julho de 1998.

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entanto, (ela) prova mais uma vez que, sejam quais forem as condies de produo, a estabilidade se garante quando h densidade no projeto artstico e disciplina na investigao dos meios expressivos.18 Na primeira fase do Projeto, com a tetralogia formada por: O Parturio, O Anel de Magalo, Burundanga e Sacra Folia, a companhia pde depurar sua linguagem, enfocar um pblico e estabelecer personagens fixos. A partir de Iepe, a Fraternal Cia partiu em busca de desenvolver a narrativa pica. Alcanados esses dois objetivos, o saldo alcanado pelo grupo nos ltimos anos tem sido a conquista de um espao fixo para a realizao de seus ensaios e apresentaes. Outra caracterstica que chama a ateno na Fraternal Cia a relativa estabilidade de sua equipe. De seu elenco inicial de dez atores, hoje composto por cinco, dois ainda so remanescentes da estria do grupo, em 1993. Dos outros trs, dois entraram h seis anos, a partir do segundo ciclo de peas, e apenas um incorporou-se trupe h dois anos. A preparao corporal dos atores, que desde O Parturio vinha sendo realizada por Augusto Pompeo, a partir de Iepe passou a ser coordenada pelo ator Julio (Wilson Julio Silva Jr). Desde a primeira pea tambm est com o grupo o cengrafo, figurinista e aderecista Luis Augusto dos Santos. E j h algum tempo o grupo conta com a colaborao permanente do iluminador e operador de luz Ricardo Gomes. Essa estabilidade colabora com a unicidade do desenvolvimento do Projeto. Embora tenha perdido o incentivo da empresa que vinha patrocinando seus espetculos desde 1993, a partir de 2001 o grupo conseguiu firmar uma parceria com a Secretaria de Cultura do Municpio de So Paulo, visando ocupao do Teatro Paulo Eir, no bairro de Santo Amaro. Filiada Cooperativa Paulista de Teatro, a partir de 2001 a Fraternal Companhia de Arte e Malas Artes includa no Projeto Cidadania em Cena, da Secretaria da Cultura da Cidade de So Paulo, e passa a ocupar o Teatro Paulo Eir, estreando com o espetculo18

LIMA, Mariangela Alves de. Montagem revigora a tica crist com o sopro da imaginao. O Estado de S. Paulo, So Paulo, 31 de agosto de 2002.

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"Mastecl - Tratado Geral da Comdia". Nesse local, desenvolve sua programao artstica, alm das oficinas gratuitas de interpretao cmica, dana e mscaras, cedidas para a comunidade no prprio edifcio do teatro. A partir de 2002, a Fraternal uma das companhias agraciadas com o Programa Municipal de Fomento ao Teatro. No mesmo ano, recebe o Prmio EnCena Brasil, do Governo Federal, por meio do Ministrio da Cultura para a montagem da pea "Auto da Paixo e da Alegria". O espetculo integra no Teatro Paulo Eir o Projeto Formao de Pblico 2003 da Secretaria Municipal da Cultura, pelo qual foi possvel realizar uma nova temporada com ingressos gratuitos. Esses projetos fazem com que a companhia, paralelamente s temporadas noturnas e abertas ao pblico, realizadas de quinta-feira a domingo, receba escolas e entidades em sesses matutinas e vespertinas, ao longo da semana. Com a possibilidade de escrever voltado para um projeto que visava estender-se a longo prazo, Abreu pde ir acompanhando, em cena, o progresso de sua potica, prever e desenvolver constantes no plano da linguagem, ao lado do grupo e do diretor Ednaldo Freire. Essa experincia, rara como hbito teatral no Brasil, fortaleceu o trabalho dos atores na criao e desempenho de seus personagens, pois se sentiam seguros com a possibilidade de ir testando suas construes paralelamente ao acompanhamento do dramaturgo. Alm disso, a oportunidade enriqueceu a prpria obra dramtica de Abreu. Para o projeto Comdia Popular Brasileira, Lus Alberto de Abreu passa a investigar os fundamentos do riso, as narrativas cmicas e fantsticas presentes na Cultura Popular universal, e em especial na Cultura Popular brasileira. Para tanto, vale-se sobretudo do pensamento do crtico literrio russo Mikhail Bakhtin (1895-1975), apresentado no livro A Cultura Popular na Idade Mdia e no Renascimento: o contexto de Franois Rabelais. Abreu tambm toma como referncia para seu processo de criao as pesquisas acerca da Cultura Popular de Cornlio Pires, Amadeu Amaral, Lus da Cmara Cascudo, alm da estrutura dramtica da commedia dellarte, dos arqutipos cmicos dos ndios Winnebagos pesquisados e divididos em ciclos hericos pelo dr. Paul Radin, e de

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personagens conhecidos da Cultura brasileira. Outra referncia para Abreu a teoria do riso estabelecida pelo filsofo francs Henri Bergson (1859-1941).

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2.2 As peas

QUADRO CRONOLGICO DE PEAS E TEMPORADAS

ANO 1993/1997 1994/1995/1997 1996/1997

PEAS O Parturio O anel de Magalo Burundanga ou A Revoluo do Baixo Ventre

TEATROS Naes/Arena Naes/Arena Arena

1997/2002 1998/1999 2000 2001

Sacra Folia Iepe Till Mastecl

Arena/Paulo Eir Ruth Escobar Ruth Escobar Centro Cultural So Paulo/Paulo Eir

2002 2002/2003

Nau dos Loucos ou Stultfera Navis Auto da Paixo e da Alegria

Paulo Eir Paulo Eir

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GENEALOGIA DOS CICLOS DE PEAS

1 CICLO (Tetralogia publicada em livro pela Siemmens, Personagens Fixos)

O Parturio

O anel de Magalo

Sacra Folia

Burundanga ou A Revoluo do Baixo Ventre 2 CICLO (Mscara Tripla, Narrativa pica) Iepe

Mastecl

Till

Nau dos Loucos ou Stultfera Navis

Auto da Paixo e da Alegria

O projeto, na sua primeira fase, ao longo de quatro anos, leva cena, respectivamente, os textos: O Parturio, O Anel de Magalo, Burundanga e Sacra Folia.

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O Parturio estreou no Teatro das Naes em 1993. O texto apresenta Joo Teit e Matias Co, criados submetidos s duras ordens de Man Marru e Tabarone, seus patres, respectivamente. Os dois esto apaixonados pela jovem Matesa, servial da filha de Marru, Rosaura. Esta, por sua vez, tem um caso de amor com Fabrcio, filho de Tabarone, revelia de seus pais. Assim, o casal ajudado pelos criados a realizarem seu amor. Entretanto Teit, aproveitando da confiana que Rosaura lhe devota, disfara-se de Fabrcio e, em seu lugar, vai ao encontro da donzela, mas no escuro depara com Tabarone, sem reconhec-lo. O mesmo se d com Tabarone, que, no escuro, ao ouvir a voz de Teit, pensa tratar-se da mulher amada, Boracia, mulher de Marru, com quem se encontraria secretamente. Os dois trocam palavras de amor, confundidos, e so descobertos pelos demais personagens nesse ato. Fabrcio e Rosaura so obrigados a confessar o encontro fracassado e todos desmascaram as intenes de Teit ao fazer-se passar por Fabrcio para encontrar a filha do patro. Essas e outras artimanhas so engendradas pela dupla de servos ao longo da pea. Matias, por exemplo, disfarado de mdico, examina Marru, afirmando ser ele um parturio. Crendo na peleja do criado, o patro pensa entrar em trabalho de um parto imaginrio e sofre dores, com dificuldades para parir. Ao fim, depois do castigo, coagido a aceitar a rejeitada unio de sua filha com Fabrcio. Aproveitando-se da situao, Matias coage Tabarone a pagar seus atrasados e convida Matesa a fugir com ele, sem sucesso pois, ainda na esperana pelo corao de Teit, Matesa pede a este uma deciso. Joo, entre ela e o ovo frito, ouve a voz do corao, e no a da barriga, e decide pela criada.

A temporada de O Anel de Magalo deu-se entre 1994 e 1995, tambm no Teatro das Naes. No segundo texto do Comdia Popular Brasileira, Marru pede a ajuda de seu empregado Teit para livrar-se de sua mulher megera, Boracia. Tabarone, desta vez um comerciante italiano, continua apaixonado por ela, ao mesmo tempo em que probe Fabrcio, seu filho, de nutrir tal espcie de sentimento. Matias Co sugere a Teit que mantenha Marru sempre bbado para beneficiar-se da benevolncia que o lcool nele

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imprime. Enquanto embriagam Marru, Rosaura, filha do patro, e Matesa, sua criada, chegam cidade. Matias as pe a par da situao de subjugo a que Marru est submetido por Boracia. Rosaura decide acabar com a madrasta. Tia Beralda, uma vidente, entrega um anel e um escapulrio a Teit e diz que quem estiver usando o anel ficar sob o poder de quem carregar o patu. Mas, enganada, no momento do ritual, ao invs da orao do poder, reza a ladainha da paixo. A partir de ento, toda vez que Teit vende seus favores valendo-se do poder do anel, mal sucedido. D ento o anel de presente Matias, e descobre que um cavalo comeu o anel com aveia. Joo perseguido pelo alaso, por ele enamorado, e s quando o animal defeca, recupera sua ferramenta mgica. Mas decepcionado com as confuses de seu poder encantatrio, d o patu Matesa. Esta presenteia-o Rosaura, colocando o escapulrio em Fabrcio. Os dois, finalmente, podem entregar-se sua paixo, e Marru, novamente bbado, anuncia que em seu testamento legou todos os seus bens a Teit

No Teatro de Arena Eugnio Kusnet, teve lugar, em 1996, Burundanga ou A Revoluo do Baixo Ventre, reprisada em 1997. Aps o xito da segunda temporada de Burundanga ou A Revoluo do Baixo Ventre, em 1997, as duas peas anteriores foram reapresentadas para um pblico maior, nesse mesmo teatro, quando passaram a ter maior ateno por parte da crtica especializada. Em Burundanga, Teit e Matias, disfarados de militares, chegam a uma cidadezinha onde um golpe de Estado aguardado da capital. O lugar est isolado do resto do pas devido a uma tempestade. Ali, Boracia quer que Matesa, sua sobrinha, case-se com o Deputado Tabarone, enquanto aguarda a herana que vir com a aproximao da morte de seu sogro, coronel Marru, um moribundo. Boracia est mancomunada com Tabarone, seu amante em segredo, pois o coronel deixou um testamento em favor de Matesa. Co e Teit, tomados por oficiais revolucionrios, logo ganham a adeso da Prefeita municipal e do Deputado sua falsa causa e tiram todo tipo de proveito da

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situao. Benedita, a criada da casa, descobre em Joo um filho seu que fugiu, mas no tomada a srio pelos patres. A cidade reveste-se de balbrdia social, sob a qual Teit, investido do posto de comandante, pe-se a mandar e desmandar, ordenando prises e suntuosos banquetes para si. Reestabelecida a comunicao da cidade com o resto do pas, a dupla de falsos comandantes perseguida. E Benedita pode, enfim, aplicar o castigo a seu filho fujo.

Sacra Folia foi levada ao pblico pela primeira vez no final de 1997, no Teatro de Arena Eugnio Kusnet. A pea foi reapresentada com o texto revisto pelo autor, numa nova verso adaptada para cinco atores por meio da narrativa pica, em dezembro de 2002, no Teatro Paulo Eir. Um Anjo faz a apresentao dos personagens da histria: Marru viver Herodes, Boracia sua mulher, o soldado ser interpretado pelo general Euriclenes, Aristbulo ser o demnio, Matesa a criada, Rosaura e Fabrcio encarnaro o casal Maria e Jos, enquanto Benedita viver o anjo Gabriel. Na fbula, Herodes e sua esposa so prevenidos pelo demnio de que um novo rei se aproxima, e planejam execut-lo. O anjo vai ento a Matias Co pedir sua ajuda para guiar a Sagrada Famlia de volta a Belm. Teit, que ouviu o pedido angelical e havia sido preterido por Matias como scio numa firma de transportes, tenciona chegar primeiro que o colega na empreitada. Assim, oferece-se ao santo casal para gui-los em troca de comida. Matias Co, por sua vez, encontra Herodes e seu squito e se oferece a ajudar-lhes a trazer a famlia na qual nasceu o novo rei em troca de dinheiro, mas Matesa lhe revela o propsito infanticida de Herodes. Dissuadido por ela, Matias combina com a criada de salvar o menino-deus da atrocidade do tirano. Enquanto Maria e Jos esto concentrados no trabalho, Teit lhes rouba Jesus e vai lev-lo para Herodes, mas acaba entregando um boneco nas mos do demnio, que vem em seu calo, a fim de faz-lo pagar pela armadilha. Teit ento faz de Maria sua advogada e o diabo rosna, desiste e sai. Joo cobra dos pais de Jesus seus honorrios pelo salvamento da criana. Como no recompensado,

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mostra que nesse tempo registrou o menino em seu nome, no Brasil, a fim de que ele realizasse um pouco da fartura prometida por sua existncia. As quatro peas, tomadas em conjunto, estabelecem um padro comum da linguagem cnica do projeto. Patrocinada por uma grande empresa, a Fraternal Companhia manteve temporadas a preos populares para cada uma das montagens, levando grande quantidade de espectadores ao teatro, com os quais estabeleceu uma relao de empatia e prestgio. A crtica confirma o sucesso do pblico, elogiando seus espetculos e concedendo prmios para a companhia.

Em 1998, Abreu escreve Iepe, a quinta pea do projeto, cuja montagem estreou no Teatro Ruth Escobar, em 1998. A pea comea com a mal-humorada Nli, esposa do beberro Iepe, dando-lhe uma moeda para comprar sabo. No caminho, ao deparar com o bar de Jar, Iepe no se contm diante do desejo de beber e gasta o dinheiro com lcool. Ao deixar claro que no consegue se reger pela cabea mas pela goela, Iepe cai de sono. encontrado por um Baro e seu squito. O secretrio do Baro, Gregaro, a fim de divertirse, sugere disfararem Iepe com as roupas do nobre, lev-lo para o palcio, coloc-lo em sua cama e, quando ele acordar, convenc-lo de que ele o prprio Baro. Ao acordar no palcio, Iepe, confuso, acaba sendo obrigado a acreditar em sua nova identidade, graas ao empenho de mdicos inescrupulosos. Investido do papel de senhor feudal, converte-se em violento tirano: manda enforcar o Baro, rouba a mulher do tesoureiro, invade reinados amigos. Duvidosos e divididos entre debandarem para o lado de Iepe, desconsiderando o plano original de Gregaro, ou serem fiis ao verdadeiro Baro, os ministros decidem embebedar Iepe e ajudar seu antigo patro a retomar o poder. Revestem Iepe de suas roupas antigas e o largam no mesmo caminho em que o encontraram, onde ele despertado por uma surra de Nli. Procurado pela Justia, Iepe submetido a um falso tribunal. Depois de preso e absolvido, volta a beber e dormir. Restalhe, assim, a nica coisa que era verdadeiramente sua: o sonho.

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Em 2000, a Fraternal Cia leva cena Till, no teatro Ruth Escobar. Com esse trabalho, o grupo realiza algumas viagens pelo interior de So Paulo, a exemplo do que j acontecera em montagens anteriores. O texto narra a trajetria de Till Eullesnpiegel, uma alma voluntria que desceu do firmamento para provar que, se tirassem algumas qualidades do homem, ele se perderia no espao, desesperado. Desde o nascimento, a vida do antiheri sofrimento. Seu parto difcil e, uma vez parido, quer voltar ao tero materno. Abandonado numa praa, o menino preso por ter dado uma gorjeta. Till d ento sua conscincia ao diabo em troca da liberdade e, uma vez sem culpa, passa a envolver-se em diferentes confuses para safar-se das agruras de um campons desvalido em plena Idade Mdia: vende estrume por sebo, recebe comida em troca da promessa de que todos o vero voar, opera falsas curas em doentes que encontra. Till vai procurar o diabo a fim de restituir a conscincia tomada. Este lhe prope charadas em troca da devoluo. Ao acertar as questes demonacas, Till ganha sua aposta. Mas a conscincia readquirida s lhe traz problemas, cobrando-lhe pelas safadezas

cometidas e arriscando-lhe ir preso, uma vez que o incita a conclamar o povo a uma revoluo. beira da morte, num final potico, Till deixa Deus e o diabo discutindo para saber quem no iria ficar com sua alma, e parte em busca de sua conscincia, que agora lidera guerras perdidas. Assim, sua alma continuou a vagar.

Em 2001, a Companhia monta Mastecl ou Tratado Geral da Comdia, levada inicialmente no Centro Cultural So Paulo e, em segunda temporada, no Teatro Paulo Eir. Na aula sobre o Tratado da Comicidade, um Acadmico mau humorado e que no gosta de comdia, procura apresentar algumas das imagens que compem o universo do cmico. Em cena, exibe um homem de falo gigante, recebe cartas de Martins Pena e Pirandello; quer demonstrar a ilgica dos personagens cmicos e como na comdia o baixo e o sublime se unem. A todo momento interrompido pelos personagens das peas anteriores da Fraternal Cia: Iepe, Nli, Bica-aberta, Benedita, Teit, e ajudado pelo zelador autoritrio

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do teatro, Bocarro, a colocar ordem no palco e na platia. Em meio ao caos em que se torna sua palestra, o Acadmico desiste de sua contradio, passa a elogiar a comdia, revela estar farto da condio de personagem canhestro. Mas, por fim, Bocarro declara que j no quer confuso em seu teatro, pe o professor e os atores para fora, fecha as cortinas, ordena platia que aplauda e saia, antes que tome atitudes mais drsticas, esperando nunca mais rev-los. O passo seguinte do Projeto CPB, novamente no Paulo Eir, no incio de 2002, foi encenar uma pea que remetesse efemride dos 500 anos de colonizao do Brasil. Assim surgiu Nau dos Loucos ou Stultfera Navis. A fbula comea quando, do alto de uma montanha nrdica, Peter Askalander v passar uma nau na qual Lacrau, um ndio canibal, leva aprisionados um padre, para perdoar seus pecados, e Joaquim, um portugus do sculo XXI. Peter resolve seguir com a expedio e, a caminho das ndias, perdem-se em meio ao oceano. Abarcando as outras naus que encontram pelo Tempo, em meio insanidade tirana de Lacrau, acabam naufragando. Peter prope a Lacrau que o ajude na construo de um imprio que planeja. O ndio, seguindo a lgica de seu apetite sexual, negocia sua tarefa a partir da possibilidade de possuir sexualmente Askalander. Mas o projeto de ambos fracassa em terra firme. Desiludidos, os personagens voltam Nau dos Loucos. Mais uma vez na embarcao, Peter experimenta reerguer seu projeto. Lacrau encontra Deus no convs e o revela para a tripulao subjugada. Esta, liderada por uma Figura de Negro, arma uma revoluo dentro da nau, fundamentada na ordem. O lder dessa revoluo comea a perseguir a todos, e a todos condenar num julgamento arbitrrio: negros, pobres, descamisados, mal-vestidos... at Deus condenado. Temeroso por seu destino, Lacrau foge com Joaquim e Peter. Na fuga, reencontram Deus. Este, decepcionado com o homem, resolve subir ao cu e abandonar aquela nau de loucos. Auto da Paixo e da Alegria a estria levada a cabo pela Fraternal Cia no segundo semestre 2002, e reprisada no ano seguinte no teatro Paulo Eir. Com a pea, o grupo abriu o VIII Festival de Teatro de Curitiba, Paran, em maro de 2003. No prlogo

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do auto, Amoz, Abu, Wellington e Benecasta, quatro saltimbancos, anunciam que eles mesmos faro todos os personagens da histria que contaro. Assim, travestem-se de Teit e Matias Co, scios numa transportadora de jegues. Teit vende a alma do companheiro ao diabo, para salvar a firma. Por esse motivo, os dois fogem do demnio e cruzam com peregrinos a caminho do encontro de Cristo, que veio parar no serto do Brasil. Os contadores Benescasta e Abu, ao longo da pea, discutem o tempo todo com Wellington, pois s querem narrar os milagres cannicos, enquanto este insiste em contar os causos da Paraba. Joo Teit quer encontrar o Nazareno para lhe oferecer sociedade numa igreja. Seu plano fracassa, e acaba, junto com Matias, tendo de lavar os pratos da ltima Ceia, enquanto criticam o sequioso cardpio oferecido. passagem de Cristo carregando sua cruz, Teit v frustrado seu reino de fartura. Cristo morre no Calvrio, mas, depois de longa espera, Madalena volta do tmulo do qual Jesus ressuscitou. O Messias reaparece, conclama todos a no se acomodarem e pede que, agora, depois do sacrifcio, novo homem saia a construir um mundo novo. Ele diz subir s nuvens no seu derradeiro movimento terrestre, mas Wellington continua a insistir que Jesus ficou no mundo, na Paraba, segundo ouviu de testemunhas.

2. 3 Prmios A primeira conquista da Fraternal Cia foi o Prmio Estmulo de Dramaturgia da Secretaria de Estado da Cultura, em 1994, para o desenvolvimento futuro do projeto Burundanga. O projeto Comdia Popular Brasileira recebeu o Prmio Especial da Associao Paulista dos Crticos de Arte (APCA), em 1996. A Companhia recebeu uma indicao para o prmio Apetesp por Burundanga, em 1997. E, por Iepe, Lus Alberto de Abreu foi indicado para o prmio Shell, em 1998.

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Em 2000, a Fraternal conquistou o Prmio Estmulo Flvio Rangel para a realizao de Nau dos Loucos no ano seguinte. Em 2003, Auto da Paixo e da Alegria recebeu cinco indicaes para o Prmio Panamco no Teatro, tendo sido premiada nas categorias de melhor autor, direo, ator (Lutti Angelelli) e espetculo jovem. Por ele, Lus Alberto de Abreu recebeu novamente indicao para o Prmio Shell de melhor autor.

2. 4 Tipologia fixa

REFERNCIAS PARA CONSTITUIO DA TIPOLOGIA FIXA Ciclos mticos do heri Personagens da commedia dellarte O Palhao brasileiro

Foi depois de participar de uma oficina sobre commedia dellarte,ministrada por Beth Rabetti na Escola Livre de Santo Andr, em 1993, que Abreu comeou a imaginar pontes entre a Cultura Popular brasileira e o processo cultural do Renascimento. Como parte desse processo, e aproveitando estruturas e elementos da comdia italiana, fixou os personagens que se repetem nos enredos das quatro primeiras peas do Projeto CPB (dois deles voltam no Auto da Paixo).

a. Os ciclos de Paul Radin O primeiro desses personagens, Joo Teit, um mineiro, estabelecido, em certa medida, a partir do arqutipo cmico denominado trickster por Paul Radin (1964). Seu estudo citado por Joseph L. Henderson, no captulo Os mitos antigos e o homem

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moderno do livro O Homem e seus smbolos, organizado por Carl G. Jung. Radin descreve suas pesquisas numa tribo de ndios Winnebagos no Novo Mxico, EUA. Segundo Henderson, a partir das histrias dessa tribo, pode-se notar a progresso do mito do heri desde seu conceito primrio at o mais elaborado. As funes simblicas dos ciclos elencados por Radin so comuns a ciclos hericos de diferentes povos. Em seu estudo, Radin (1964) apresenta no primeiro ciclo o arqutipo trickster, cuja imagem correspondente no mundo animal seria a da raposa. Trata-se de um personagem assanhado, sem cerimnia, irresponsvel, aculturado e conduzido apenas pelos sentidos, nunca pela moral. O segundo personagem das narrativas Winnebagos Hare, a lebre, ou coiote. No tendo ainda alcanado a plenitude da estatura humana surge, no entanto, como o fundador da cultura o transformador.19 De instintos mais controlados, Hare um personagem mais civilizado. O personagem seguinte, Red Horn, ambguo e vence todas as batalhas lanando mo de sua astcia (no jogo de dados) ou de sua fora (na luta corporal). J com dimenso humana, Red Horn prescinde, no entanto, de poderes sobre-humanos e de deuses para garantir-lhe a vitria. Ao final de sua saga, o heri-deus se vai, deixando Red Horn na Terra, fazendo com que os perigos que ameaam a felicidade e a segurana do homem nasam, agora, do prprio homem. Os gmeos Twins vm a constituir-se numa s pessoa. Flesh, um deles, o conciliador, tranqilo e sem iniciativas. J sua outra metade, Stump, rebelde e dinmico. Juntos, formam um mito invencvel. Em muitas dessas lendas, esses personagens tornamse, eventualmente, vtimas do abuso que fazem de sua prpria fora. Esses quatro ciclos so uma das referncias na constituio das sagas dos heris de Abreu.

19

JUNG, Carl G. (Org.). O homem e seus smbolos. So Paulo: ed. Nova Fronteira, 1964.

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b. Arlequim e o Palhao brasileiro Teit, que em lngua tupi significa coitado, fala alto e gesticula muito. Em nossa cultura, poderia fazer referncia ao arqutipo do macaco o mesmo do Arlecchino da commedia dellarte italiana20. Sonolento e faminto, Arlecchino (cuja etmologia pode ter origem nas diabruras dos pequenos bufes Herlequins do teatro medieval francs ou do anglo-saxo Hellecin raa do inferno) exibe na testa um pequeno lombo, que pode ser tomado por um chifre, signo de sua faceirice diablica. Arlequim o campons que passa a viver da servido na cidade, mantendo de sua vida pregressa a ingenuidade e a fora da natureza. composio de Teit integram-se ainda alguns elementos de Macunama, o heri sem carter, um Arlequim brasileira, de instinto irrefrevel, imortalizado pela obra homnima de Mrio de Andrade. O protagonista das histrias do CPB pode se aproximar de outra vertente histrica na tradio do circo brasileiro, o Augusto. O Augusto cumpre no picadeiro a funo do palhao rstico, ingnuo e grosseiro. Serve-se da escada preparada pelo Clown Branco, dominador e elegante. Ele o palhao inapto para acompanhar as mais simples tarefas e cuja ineficincia, num universo racional voltado eficcia, suscita o riso (Bolognesi, 2002).

A partir de 1880, o Augusto se imps como estilizao da misria, em meio a um ambiente social que prometia sua erradicao. Pelo menos no aspecto ideal, no discurso sobre o real, a sociedade industrial procurou integrar o indivduo ao progresso. No deveria haver mais lugar para a marginalidade. O discurso ideal, contudo, obscurecia o desemprego em massa e a revoluo industrial no conseguiu superar a superpopulao, a fome e as guerras, motivos que fizeram com que milhes de europeus abandonassem o Velho Mundo. Assim, no circo brasileiro, formado sobretudo pelas influncias das companhias estrangeiras, a dupla de palhaos veio solidificar as mscaras cmicas da sociedade de classes. O Branco seria a voz da ordem e o Augusto, o marginal, aquele que no se encaixa no progresso, na mquina e no macaco do operrio industrial (no geral, a roupa do Augusto um macaco bastante largo) ".21

20 21

A mscara do Arlecchino tambm pode assemelhar-se a um gato ou porco. BOLOGNESI, Mrio F. Palhaos. No prelo, 2002.

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Essa relao com a funo social do palhao tambm pode ser corroborada pela assertiva do dramaturgo italiano Dario Fo, citado pelo pesquisador Mrio Bolognesi (2002) em sua tese Palhaos: Os palhaos sempre falam da mesma coisa, eles falam da fome: fome de comida, fome de sexo, mas tambm fome de dignidade, fome de identidade, fome de poder (...).22 A figura do Palhao ope-se imagem do corpo sublime, perfeito e acabado dos atletas do trapzio, acrobatas e malabaristas. Seu corpo est ligado ao corpo grotesco apontado na obra de Bakhtin (1987): o nariz vermelho e inchado, a boca escancarada, os traos avantajados do rosto, os ps e o pescoo gigantes, o andar desajeitado. Sua roupa contrape-se elegncia do mestre-de-pista e dos mgicos, partners e bailarinas. Suas vestes so largas, fora de medida, ressaltadas por movimentos deselegantes. Seus gestos sutis podem reportar s imagens grotescas universais: a bengala que remete velhice, o palhao travestido de grvida exibindo a gestao, os movimentos que se reportam ao coito, os efeitos e aparelhos que utiliza em cena a revelar seu despedaamento corporal. Seu grotesco no aterroriza, mas antes faz o mundo aproximar-se do homem, corporifica-o, reintegra-o por meio do corpo vida corporal23. Nada est fechado, acabado, mas aberto para amoldar-se conforme a audincia, em permanente mutao. O Palhao tambm , a um s tempo, ator e dramaturgo. Ator porque sujeito de sua dramaturgia. Todos os dias, s vezes em duas, trs, at quatro funes, pinta a cara e entra no picadeiro para cumprir a difcil tarefa de extrair gargalhadas da mesma cena repetida h anos. E a que entra sua maior habilidade, dando as caractersticas particulares ao quadro por meio de seu toque pessoal. Dramaturgo conquanto crie suas entradas e reprises24 no ensaio, e as recrie com base em outras j de domnio comum. E no picadeiro onde cria eIdem. BAKHTIN, Mikail. A cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento: o contexto de Franois Rabelais. So Paulo: ed. Hucitec, 1987. 24 Entrada: esquete cmico circense, de curta durao e apresentada pelos palhaos. A origem do termo pode referir-se ao momento em que, em dcadas passadas, os artistas exibiam uma sntese de seus talentos na porta de entrada dos circos franceses, para atrair o pblico. Reprise: pardia dos nmeros sensacionalistas do circo, desenvolvida por um ou mais clowns, referindo-se geralmente ao nmero artstico precedente. A atrao reprisada s avessas, servindo como intervalo cmico entre duas atraes srias. (Bolognesi, 2002)23 22

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recria ainda mais, intrprete e diretor de uma cena aberta e improvisada, sem dilogo escrito. O Palhao veculo desse carter aberto da Cultura Popular, de arte no-oficial, em permanente estado de transformao: alegre e subversivo, que nega e afirma, amortalha e ressuscita, critica e refora. 25 As luzes acesas na arquibancada do circo tradicional despertam no pblico o ridculo de si, o tempo todo. Essa dualidade entre sonho e realidade, inerente Cultura Popular, acesa por meio do clown, o clown que temos em ns mesmos. Na platia do circo, o pblico come, gargalha, mastiga, fala, vaia e aplaude quando quer, como, de maneira geral, comporta-se na maior parte das manifestaes dramticas populares. Uma vez que um dos objetivos do Projeto Comdia Popular Brasileira seja recuperar o tom particular da fala e do carter da interpretao cmica no pas, ao pensarmos o Palhao como prottipo do ator cmico brasileiro, como uma das matrizes formadoras do modus operanti de atuao teatral no Brasil, podemos afirmar que para esse Palhao que Abreu escreve.

c. Tud, Teit e Matias A dupla de personagens Joo Teit e Matias Co, bem como o patro Man Marru, foram aproveitados de uma das peas que Abreu produziu sob encomenda de uma empresa, para servir como instrumento de conscientizao. Foi num desses textos didtico-utilitrios que surgiram os personagens. Presente numa pea escrita para ser representada com bonecos, os mamulengos, Joo cumpre inclusive a funo de outro tipo fixo da tradio mamulenga, o atrevido Benedito. O Teit que aparece em Em fbrica que no tem preveno, todos brigam e ningum tem razo! j apresenta sua fome irrascvel desde a gnese. Nesse texto, alis, o personagem chamava-se Joo Tud. Matias Co o mulherengo da histria, enquanto para Tud, mulher boa aquela que sabe cozinhar. NaTo diferente do pierrot de prateleira de barraca-de-quermesse que se v no Cirque du Soleil, cujo poder de provocao e derriso foi tolhido, cujo dilogo com a platia talvez tenha silenciado. O clown canadense, em meio a um espetculo escuro e tecnolgico, enquadrado pelo foco do refletor, j no assusta. Sabe-se o tempo todo que aquilo iluso.25

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fbula, que adverte o pblico a que se destina sobre a importncia da utilizao de equipamentos de proteo no trabalho, a dupla aparece como dois operrios espertos, enquanto Marru um patro italiano, mando. Guiado pelo estmago, Joo s pensa em comer. Em algumas peas, seu desejo irrefrevel pode estender-se ganncia por dinheiro. o que se passa em O Anel de Magalo. fome biolgica universal, caracterstica das populaes marginais e miserveis, soma-se a fome poltica, a sede de poder; como o que ocorre na fbula de Burundanga ou A revoluo do Baixo Ventre. Apesar dos resqucios de uma pretensa esperteza despertada em alguns momentos pela lgica de Teit (o que o distanciaria da ingenuidade exacerbada do Arlequim ou do Augusto), no final das peas seus planos so sempre mal sucedidos. Para Abreu, segundo depoimento a Brito (1999), essas pequenas variaes de temperamento so necessrias a fim de se evitar a repetio ou o desgaste de um personagem fixo. Matias Co, nordestino e companheiro de desventura de Teit, evoca um tipo tradicional dos causos narrados pelos contadores de histrias da Cultura Caipira, o Pedro Malasartes. Oriundo do fabulrio ibrico, onde aparecia como tolo e raramente velhaco, Para o Brasil diz Cmara Cascudo, no emigrou Malas Artes nessa acepo desavisada e pulha. O nosso um Malasarte vivo, inquieto, vido de aventuras, inesgotvel de recursos e de tramas, vencedor infalvel de todos e de tudo26. Com seu temperamento aparentemente pacfico e sossegado, Malasartes dissimula sua esperteza ancestral. Qual uma Atena, Minerva ou Xang da mitologia caipira, no perde ocasio de vingar as injustias dos fazendeiros cometidas contra seus empregados da lavoura. Assim, Malasartes inscreve-se como heri no imaginrio caipira. Para Roberto Damatta (1991), Malasartes est na categoria dos reunciadores de nossas narrativas populares. Assim como Antnio Conselheiro e Lampio, uma dessas

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NASCIMENTO, Brulio. Conto popular e teatro. O Percevejo (Revista de Teatro, Crtica e Esttica da UNIRIO), n 8, 2000.

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figuras que acenam com a promessa de um universo social alternativo. Vivendo nos interstcios da sociedade, recusa prestgio e poder por suas faanhas. Segundo o antroplogo, o trabalhador, nas crnicas rurais do Malasartes, aparece no como uma pessoa, mas como pea na engrenagem econmica. Havendo mais oferta de mo-de-obra do que demanda por fora de trabalho, no meio rural brasileiro o mercado est do lado do fazendeiro que, aproveitando-se dessa vantagem, no honra com suas dvidas e explora seus empregados. Surge ento a figura do heri caipira para mediar essa relao pela vingana, provando que a felicidade no determinada somente pela riqueza e pelo trabalho, preciso algo mais para goz-la plenamente.27 No entender de Damatta, o mito caipira no usa a violncia fsica; destri moralmente os patres pelos mesmos instrumentos legais por eles empregados. Malasartes no tem a obsesso dos renunciadores totais, como Conselheiro e Augusto Matraga, espera da rendeo total no futuro (...): aproveita as circunstncias do presente para transformar sua situao.28 As traquinagens de Malasartes podem remeter ainda outra lenda do universo afro-caipira, a do Saci, cuja personalidade matreira, gil e ardilosa tem como uma das fontes o arqutipo africano do orix Exu, mensageiro dos deuses. O nome Malasartes inspira inclusive o nome da companhia: Fraternal Cia de Arte e MALAS-ARTES. Alm desta fonte, Matias pode ser ainda o valente Brighela italiano, correlato ao zanni ingnuo, o Arlecchino. Vivaz e insolente com as mulheres, Brighela (cujo nome deriva de briga) bom de lutas, corajoso com os patres, fazendo de sua capa uma arma contra quem o irrita. Brighela fantico por dinheiro. Prova disso o saquinho de moedas que carrega e do qual no se separa. Por isso, mostra-se um servidor exemplar com o patro que o recompensa adequadamente. ele quem tem as idias, sendo quase sempre o articulador das peripcias em que se envolvem esses personagens cmicos. Sua mscara lembra as feies de uma raposa ou mesmo de um cachorro.27 28

DAMATTA, Roberto. Carnaval, malandros e heris, RJ: ed. Guanabara, 1991, 287 p. Idem.

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A dupla de desvalidos tambm remete a Joo Grilo e Chic, protagonistas da obra mxima de Ariano Suassuna, Auto da Compadecida. A obra de Suassuna , alis, um dos referenciais da Fraternal Cia de Arte e Malas-Artes no seu objetivo de reabilitar a tradio do teatro popular nacional. A ela Abreu se reporta com frequncia. Em resumo, Matias e Teit so uma somatria de caractersticas de inmeras fontes distintas. Talvez da advenham a riqueza e o vigor que o texto de Abreu imprime nesses personagens.

d. Coronel, Capitan e companhia Outros papis no repertrio da Fraternal Cia tambm nos lembram tipos da comdia medievo-renascentista europia. Coronel Marru, por exemplo, tem em seus gestos e atitudes caracatersticas claras do Pantaleo, o rico mercador veneziano que piantava leone nas ilhas mediterrneas sobre as quais expandia seus domnios. Pantalone, ou planta-leo, fazia-se smbolo da repblica veneziana em nome da qual adquiria novas terras em proveito prprio. Marru o nome de um touro da tradio popular portuguesa, e nas montagens da Fraternal era sempre representado por um ator obeso (Gilmar Guido). Boracia pode ser uma contrapartida feminina do aristocrata sovina e intransigente. Tabarone revela traos do Dottore, excetuando-se o aspecto bufo; faz de tudo para agradar s mulheres, no obstante sua idade e o ventre avantajado. Matesa, alm de ser a Arlecchina, companheira de seu homnimo e empregada sagaz, repete tambm a figura da Colombina; freqentemente uma sobrinha do vilo, segura de si, astuciosa e experiente na arte da seduo. Os Innamoratti tm sua funo representada pelas figuras dos apaixonados Rosaura e Fabrcio. General Euriclenes e seu imediato, Major Aristbulo, em que pese a relao de subservincia do segundo com o primeiro, fazem a vez de um nico personagem, o Capito: um soldado metido a valento mas de temperamento

covarde. Representante da ordem instituda, o Capitan, quase sempre estrangeiro, vangloria-se de seus feitos mas fracassa sempre em suas estratgias, escondendo-se ao primeiro sinal de fasca. A Prefeita e o Deputado, ao que tudo indica, no tm relaes

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diretas com a commedia dellarte, no obstante sejam fiis retratos da imagem que a populao brasileira tem de suas figuras polticas, a de oportunistas, demagogos e corruptos. Benedita lembra a personalidade das velhas sbias e cnicas que aparecem nos qiproqus italianos e nas farsas vicentinas.

2.5 Tipologia e linguagem Tal qual o que ocorre na commedia dellarte, na primeira tetralogia do Projeto Comdia Popular Brasileira, Abreu pretende envolver os mesmos personagens em situaes dramticas diferentes. Essa uma das tentativas do Projeto: criar uma tipologia que se fixe na memria da platia. Mastecl e Auto da Paixo e da Alegria vo retomar a dupla principal de personagens da primeira tetralogia do Projeto CPB, Joo Teit e Matias Co. O ritmo dos dilogos e o vocabulrio empregado pelos personagens nos remete aos lazzi, apartes jocosos utilizados pelas mscaras da commedia dellarte, no sculo XVII. A essa poca, na Itlia, diferentes lnguas cruzavam-se no palco. Cada personagem se expressava no dialeto de sua terra natal (napolitano, vneto, genovs, piemonts, bolonhs, lombardo). Era desse recurso que muitas vezes extraam sua graa. Semelhantes a esses arqutipos, os personagens de Abreu tambm defrontam ritmos e sintaxes diversas nos textos do CPB. Pela fala identificamos, por exemplo, a provenincia mineira de Teit, a nordestina de Matias Co, o acento talo-paulistano de Tabarone, as grias pernambucanas de Major Aristbulo. Eles tambm valem-se de frases feitas e jarges para reclamar da vida, xingar ou louvar seus interlocutores. Os personagens se denominam por imagens nada sutis, s vezes metafricas. O carter ridculo das frases surte efeito, conquanto sejam imagens bastante familiares ao pblico. Esses jarges em alguns casos foram recolhidos nas ruas pelo prprio autor. Em muitos casos so frutos da criao de seu prprio jogo com as palavras. Sobretudo na primeira tetralogia do Projeto, Abreu nos apresenta um inventrio de adjetivos e frases feitas. Esses termos tanto podem ser pejorativos:

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- Bolha do meu calcanhar; - Espinha da minha garanta; - Cisco do meu olho; - Bosta do meu sapato; - Pesadelo do meu sono; - Fio puxado da minha meia; - Formiga da minha lavoura; - Cruz do meu calvrio; - Joanete dos meus artelhos; - Nervo exposto do meu dente; - gua fria do meu fogo; - Capivara do meu milharal; - Traa da minha roupa; - Rachadura do meu calcanhar; - Unheiro do meu polegar; - Barata do meu armrio; - Formiga da minha cozinha; - Rs do meu sapato; - Pedreiro da minha reforma; - Esterco do meu curral; - Purgante da minha priso-de-ventre; - Salada de nabo da minha dieta; - Caruncho do meu feijo; - Bigato da minha goiaba; - Pedra do meu rim; - Blis do meu fgado; - cido clordrico da minha gastrite; - Escorpio da minha cama; - Bursite do meu cotovelo.

Como podem, muitas das vezes, aparecerem como alcunhas elogiosas:

- Macarro do meu domingo; - Alcatra do meu churrasco; - Uva do meu cacho; - Brigadeiro da minha festa; - General do meu regimento.

Abreu exercita assim, no vocabulrio de seus personagens, a ambivalncia da linguagem popular, a que se refere Bakhtin (1987), injuriando e elogiando. Nos dilogos, h ainda uma relao entre expresses idiomticas ultrapassadas e sua correspondncia contempornea, como ressalta Mariangela Alves de Lima (1987) no prefcio do livro

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Comdia Popular Brasileira. Revela-se, por meio dessa analogia, a hipocrisia no discurso dos personagens que detm o poder poltico e econmico um discurso, muitas vezes, repleto de modismos, mas cujo sentido vazio ou duvidoso, dando margem ambivalncia. E esse discurso , em vrios momentos, confrontado pela fala dos empregados anti-heris:BORACIA Voc no tem um pouco de senso esttico? BENEDITA Senso esttico igual vergonha na cara? Se for, tenho tudo o que falta nesta casa.

Da mesma forma, tal qual Guimares Rosa, Abreu dedica grande importncia aos nomes dos personagens, por acreditar que o nome j comea indicando o carter e o esprito da persona, alm do jogo potico e das referncias que podem ser estabelecidas a partir dos nomes. da fixao da personalidade dos personagens e do movimento destes dentro das confuses da fbula que se d o eixo de criao de Abreu nas peas que escreve para a Fraternal Cia. Alm disso, ao apoiar essa tipificao em arqutipos da cultura universal, seus personagens podem surgir das mais diversas tradies populares, como no caso de Iepe ou Till Eulenspiegel, oriundos de fbulas populares europias. A partir do segundo ciclo de peas, a linguagem e os recursos narrativos dos contadores populares tambm faro parte dos elementos utilizados pelo autor na construo da comicidade.

2. 6 - Referncias - Tradio da dramaturgia

Em todos os textos do Projeto CPB aparecem referncias a episdios clssicos da dramaturgia brasileira e da ocidental. Em Burundanga ou A Revoluo do Baixo Ventre, a dupla de trambiqueiros, disfarada de militares, tira proveito da confuso que se estabelece entre os cidados, que os tomam por chefes de uma revoluo em curso na capital. O acontecimento remete a O Inspetor Geral, de Nikolai Gogol, pea que relata as aventuras de um viajante numa cidade russa cujos habitantes o confundem com um inspetor geral que aguardado.

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Outra fonte para os equvocos do texto pode ser O Juiz de Paz na Roa, de Martins Pena, quando Joo Teit, a certa altura da trama, a exemplo do que acontece com o juiz na comdia romntica, assume arbitrar as querelas entre os reclamantes. Em O Anel de Magalo, o fato do patro Man Marru, sob efeito do lcool, tornar-se benevolente dando ordens que desconhece quando de volta sobriedade, lembranos a linha condutora da fbula de O Sr. Puntila e seu criado Matti, de Bertolt Brecht. Em Sacra Folia, Teit repete a atitude de Joo Grilo no episdio final do Auto da Compadecida, quando recorre Maria, a Compadecida, para faz-la sua advogada de defesa e, assim, salvar-se das garras do demnio. A fbula de O Parturio baseia-se num mote tradicional da Idade Mdia, o do tolo que se convence que est grvido, explorado na pea medieval italiana O Arranca Dentes e presente num dos espisdios do Decameron de Boccacio. Iepe tem um episdio que pode aproxim-la de Os Trs mdicos de Martins Pena. Um dos serviais encarregados de praticar o plano de disfarar Iepe de Baro traz trs mdicos para convenc-lo de sua nova identidade: um alopata, um naturalista e um hipnotista. Os trs concorrem por apresentar o melhor diagnstico ao paciente, e seus procedimentos clnicos so pouco ortodoxos e bastante truculentos. Alm de ser uma recriao de um clssico da dramaturgia dinamarquesa, de autoria de Ludwig Holberg, a pea tambm lembra A vida Sonho de Caldern de la Barca, em sua reflexo acerca do mundo como constructo mental, a natureza efmera do real e o limite sutil entre aparncia e realidade. Iepe pode repetir a aventura de Sly, o funileiro bbado que, inadvertidamente, disfarado de lorde guisa de divertir os nobres no prlogo de A Megera Domada de Willian Shakespeare. O procedimento do lorde ao preparar para Sly uma mascarada na qual seus criados tomam parte o mesmo do Baro com Iepe. A citao de Seis personagens a procura de um autor de Pirandello em Mastecl explicitada pela boca da personagem Bica-Aberta, no momento em que os vrios personagens interferem no discurso e na ao da aula-magna do Acadmico:

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BICA-ABERTA A cena uma citao a Pirandello, um autor que levou a comdia aos limites do nonsense. Ele criou uma lgica para seus personagens, desvinculada do realismo cmico por si s absurdo.

Ainda em Mastecl , na cena denominada Um telegrama a Martins Pena, a funo da carta a de interferncia do acaso a modificar completamente a situao, tal qual acontece em muitos dos qiproqus apresentados nas comdias do autor fluminense. Na mesma cena, Teit chega a deixar claro o referencial de suas origens:

TEIT Sou Joo Teit, primo de Macunama, colega de Chic, sobrinho de Ariano Suassuna, parente de uns filhos de criao de Renata Pallotini e de Chico de Assis. E sou descendente de Arlequim.

Escrita como reflexo pela passagem dos 500 anos de invaso do Brasil, Nau dos Loucos talvez seja a pea menos estritamente delimitada pelos parmetros da Cultura Popular. H nela elementos que evocam, sobretudo, o teatro do absurdo, remetendo, por exemplo, obra de Fernando Arrabal. Pode-se destacar neste caso a combinao de personagens dos mais contrastantes matizes: o Homem de Negro, Deus, um ndio, um Padre, um homem nrdico. Numa cena, o ndio Lacrau encontra-se com Estragon, numa aluso ao Esperando Godot de Samuel Beckett. H ainda cenas estruturadas em gneros to dspares quanto a comdia de costumes ou o auto litrgico, no momento em que Deus submetido a uma corte e julgado, tendo homens do povo por algozes. Nau dos Loucos trama, numa complexa e erudita estrutura, elementos das representaes do medievo, do teatro humanista do Renascimento e das reformulaes modernas do teatro pico.29 De Michel de Ghelderode podemos identificar referncias em Till. No texto, que combina a procura verbal, o carter popular e o sentido do trgico s imagens fantsticas, encontramos o trio de cegos narradores Alceu, Borromeu e Doroteu, numa meno pea

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LIMA, Mariangela Alves de. Nau dos Loucos vence todos os desafios do texto, in O Estado de So Paulo, So Paulo, 18 de janeiro de 2002.

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Os Cegos. diferena do trio de peregrinos apresentados no texto de Ghelderode, os deficientes visuais de Abreu, alm de atrapalhados, rumam a Jerusalm e no a Roma. Tal como fez o dramaturgo belga, Abreu procura aproximar seu texto de umestilo prximo dos mistrios e soties, numa linguagem que se entrega, na sua extravagncia, como veculo do esprito atormentado e do corpo torturado. A violncia do tom, a metfora descarnada, a atuao arrebatada dos atores tentam reencontrar a exaltao dos autos-de-f, o delrio mstico dos grandes momentos de destruio.30

Numa das cenas da pea, tal qual o que ocorre em Macbeth,

trs bruxas

preconizam em versos o infortnio de Till, numa clara citao s feiticeiras que prevem a trgica runa do heri shakespereano.

FAVROD, Charles-Henri. O Teatro Coleco Enciclopdia do Mundo Actual. Lisboa: Publicaes Dom Quixote 1977.

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CENA 3 ANLISES DAS PEAS

3.1. O Parturio", farsa

O conflito na escolha entre o amor ou a comida uma constante nas desventuras vividas por Joo Teit n O Parturio. A pea j comea, alis, com seu protagonista pedindo aumento de salrio ao patro, o que, como salienta Mariangela Alves de Lima31, faz Sganarello a D.Juan, seu amo, ao segui-lo at a porta do inferno na ltima cena do Don Juan de Molire. A fbula d O Parturio surge de um mote literrio tradicional da Idade Mdia, o do tolo que levado a crer que est gestando um filho. A prpria figura masculina com a barriga inchada, remete imagem do corpo grotesco, no-acabado, aberto a um constante dilogo com o mundo, como Mikhail Bakhtin (1987) aponta no imaginrio popular e nas imagens rabelaisianas. Este corpo jamais est pronto nem acabado: est sempre em estado de construo, de criao, e ele mesmo constri outro corpo; alm disso, esse corpo absorve o mundo e absorvido por ele...32 No sistema de imagens da Cultura Popular, Bakhtin (1987) apresenta a um s tempo uma ligao indissolvel entre sofrimento e satisfao. Essa ligao entre o esforo fsico demandado pelas necessidades naturais e o prazer advindo da realizao dessas necessidades explorada em todos os textos do Comdia Popular Brasileira, como mostra esta tirada dO Parturio :

LIMA, Mariangela Alves de. Apresentao, in Comdia Popular Brasileira. So Paulo: Siemens, 1997. BAKTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento : o contexto de Franois Rabelais. So Paulo: ed. Hucitec, 1987, 419 p.32

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JOO TEIT Quero aumento de salrio pra comer