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Anais do SITED Seminário Internacional de Texto, Enunciação e Discurso Porto Alegre, RS, setembro de 2010 Núcleo de Estudos do Discurso Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul ENUNCIAÇÃO E ESTUDO DO TEXTO: UM ESBOÇO DE PRINCÍPIOS E DE CATEGORIAS DE ANÁLISE Carolina Knack 1 Introdução É sabido que, no Brasil, embora Benveniste seja frequentemente citado em bibliografia especializada, o campo de estudos em torno de sua teoria enunciativa carece de uma sistematização, sobretudo em relação à sua aplicabilidade aos estudos do texto. O texto, como objeto de análise, recebe especial atenção por parte de teorias como a Linguística Textual, a Análise do Discurso e a Semiótica, por exemplo, as quais têm desenvolvido, ao longo dos tempos, um aparato teórico-metodológico que busque dar conta da análise dos diversos aspectos que estruturam esse objeto. No que se refere às Teorias da Enunciação, podemos dizer que estas não visam a teorizar especificamente sobre a categoria texto, de modo que, ao abordá-la, deve-se operar um deslocamento dos conceitos teóricos, bem como elaborar um aparato metodológico específico para a análise textual. Dentre os estudos realizados no Brasil, em relação à enunciação e ao texto, recorre-se ao trabalho de Eduardo Guimarães. No entanto, as reflexões desse autor não se circunscrevem ao campo enunciativo; de certo modo, há apropriação da terminologia e dos conceitos do campo, sem, contudo, haver efetiva apropriação da teoria subjacente o que se evidencia pela clara intertextualidade com a Análise do Discurso, sobretudo com a perspectiva desenvolvida por Eni Orlandi. Nesse sentido, Flores et al. (2009) argumenta que os estudos enunciativos no Brasil realmente se desenvolveram via outras disciplinas do estudo da linguagem, identificando-se ora às perspectivas discursivas, ora à pragmática. Entretanto, pensamos ser possível trabalhar com texto e enunciação apenas sob o quadro teórico benvenistiano, sem considerar tais interfaces com outras áreas de estudos do texto. Conforme inicialmente destacado, na obra do linguista da enunciação não há uma preocupação com a teorização acerca da categoria texto; Benveniste tampouco postula explicitamente um modelo de análise de língua; o que temos, em sua obra, dentre outros aspectos, são reflexões acerca da presença do homem na língua, a partir das quais se delinearam as bases de um modelo de análise de língua voltado à enunciação, isto é, às marcas do homem na língua o que se convencionou chamar de teoria da enunciação. Assim, propomos a leitura de alguns artigos de Problemas de lingüística geral I e de Problemas de lingüística geral II, a saber: Estrutura das relações de pessoa no verbo (1946), A natureza dos pronomes (1956) e Da subjetividade na linguagem (1958) de PLG I; A forma e o sentido na linguagem (1967), Semiologia da língua (1969) e O aparelho formal da enunciação (1970) de PLG II 2 . A partir desses artigos pensamos ser 1 Possui Graduação em Licenciatura em Letras (2007) e Especialização em Estudos Linguísticos do Texto (2009) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente, é mestranda em Estudos da Linguagem Teorias do Texto e do Discurso (UFRGS). Atua como professora (bolsista CAPES/REUNI) junto ao Programa de Apoio à Graduação (PAG), projeto Língua Portuguesa na UFRGS. E-mail: [email protected] 2 Há outros artigos de Benveniste que possibilitam pensar a relação enunciação-texto; nossa reflexão inicial, no entanto, circunscreve-se aos seis artigos aqui mencionados. 94

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Artigo da área da linguística de excelente qualidade.

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    Ncleo de Estudos do Discurso

    Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul

    ENUNCIAO E ESTUDO DO TEXTO:

    UM ESBOO DE PRINCPIOS E DE CATEGORIAS DE ANLISE

    Carolina Knack1

    Introduo

    sabido que, no Brasil, embora Benveniste seja frequentemente citado em

    bibliografia especializada, o campo de estudos em torno de sua teoria enunciativa carece

    de uma sistematizao, sobretudo em relao sua aplicabilidade aos estudos do texto.

    O texto, como objeto de anlise, recebe especial ateno por parte de teorias

    como a Lingustica Textual, a Anlise do Discurso e a Semitica, por exemplo, as quais

    tm desenvolvido, ao longo dos tempos, um aparato terico-metodolgico que busque

    dar conta da anlise dos diversos aspectos que estruturam esse objeto. No que se refere

    s Teorias da Enunciao, podemos dizer que estas no visam a teorizar

    especificamente sobre a categoria texto, de modo que, ao abord-la, deve-se operar um

    deslocamento dos conceitos tericos, bem como elaborar um aparato metodolgico

    especfico para a anlise textual.

    Dentre os estudos realizados no Brasil, em relao enunciao e ao texto,

    recorre-se ao trabalho de Eduardo Guimares. No entanto, as reflexes desse autor no

    se circunscrevem ao campo enunciativo; de certo modo, h apropriao da terminologia

    e dos conceitos do campo, sem, contudo, haver efetiva apropriao da teoria subjacente

    o que se evidencia pela clara intertextualidade com a Anlise do Discurso, sobretudo

    com a perspectiva desenvolvida por Eni Orlandi. Nesse sentido, Flores et al. (2009)

    argumenta que os estudos enunciativos no Brasil realmente se desenvolveram via outras

    disciplinas do estudo da linguagem, identificando-se ora s perspectivas discursivas, ora

    pragmtica.

    Entretanto, pensamos ser possvel trabalhar com texto e enunciao apenas sob o

    quadro terico benvenistiano, sem considerar tais interfaces com outras reas de estudos

    do texto. Conforme inicialmente destacado, na obra do linguista da enunciao no h

    uma preocupao com a teorizao acerca da categoria texto; Benveniste tampouco

    postula explicitamente um modelo de anlise de lngua; o que temos, em sua obra,

    dentre outros aspectos, so reflexes acerca da presena do homem na lngua, a partir

    das quais se delinearam as bases de um modelo de anlise de lngua voltado

    enunciao, isto , s marcas do homem na lngua o que se convencionou chamar de

    teoria da enunciao.

    Assim, propomos a leitura de alguns artigos de Problemas de lingstica geral I

    e de Problemas de lingstica geral II, a saber: Estrutura das relaes de pessoa no

    verbo (1946), A natureza dos pronomes (1956) e Da subjetividade na linguagem (1958)

    de PLG I; A forma e o sentido na linguagem (1967), Semiologia da lngua (1969) e O

    aparelho formal da enunciao (1970) de PLG II2. A partir desses artigos pensamos ser

    1 Possui Graduao em Licenciatura em Letras (2007) e Especializao em Estudos Lingusticos do Texto (2009) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente, mestranda em Estudos

    da Linguagem Teorias do Texto e do Discurso (UFRGS). Atua como professora (bolsista

    CAPES/REUNI) junto ao Programa de Apoio Graduao (PAG), projeto Lngua Portuguesa na

    UFRGS. E-mail: [email protected] 2 H outros artigos de Benveniste que possibilitam pensar a relao enunciao-texto; nossa reflexo

    inicial, no entanto, circunscreve-se aos seis artigos aqui mencionados.

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    mailto:[email protected]

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    possvel derivar reflexes, princpios e categorias de anlise para o estudo do texto

    movimento que representa, aqui, um primeiro esboo de reflexo; de certo modo,

    buscamos uma sistematizao do campo no que se refere ao estudo do texto.

    O presente artigo, portanto, objetiva destacar e sistematizar certos conceitos-

    chave da teoria benvenistiana que possibilitam pensar alguns princpios e categorias de

    anlise para o estudo do texto. Para tanto, inicialmente propomos a leitura dos artigos

    supracitados para, em seguida, articular as relaes destes com o objeto texto e tecer

    algumas concluses.

    Um percurso terico pelos conceitos-chave da teoria benvenistiana

    Em Estrutura das relaes de pessoa no verbo, Benveniste (2005, p.247) prope

    definir a estrutura das relaes de pessoa, buscando compreender como e por quais

    princpios tais pessoas se opem. Para tanto, o autor recorre primeiramente a noes da

    gramtica rabe e, ento, explica: eu designa aquele que fala e, ao dizer eu, no posso

    deixar de falar de mim (ibid., p.250); tu designado por eu e no pode ser pensado

    fora de uma situao proposta a partir do eu (ibid., p.250); j a terceira pessoa

    enuncia algo sobre alguma coisa ou algum, mas no se referindo a uma pessoa

    especfica o elemento pessoal falta na terceira pessoa, a qual exprime justamente a

    no-pessoa. De fato, Benveniste aponta que as caractersticas de unicidade e de

    inversibilidade especificam a categoria de pessoa.

    Desse modo, buscando averiguar o que distingue as duas primeiras pessoas da

    terceira, Benveniste conclui que elas se opem como os membros de uma correlao, a

    qual denomina correlao de pessoalidade: eu-tu possui marca de pessoa e ele no.

    Contudo, eu e tu se opem um ao outro, o que se d atravs de uma correlao especial

    que Benveniste denomina correlao de subjetividade o tu definido como pessoa

    no subjetiva, em face da pessoa subjetiva que eu representa (ibid., p.255, grifo do

    autor).

    No artigo A natureza dos pronomes (ibid., p.277), Benveniste objetiva mostrar

    que os pronomes no constituem uma classe unitria e j no pargrafo inicial do artigo

    afirma que uns pertencem sintaxe da lngua e outros s instncias de discurso

    definidas como os atos discretos e cada vez nicos pelos quais a lngua atualizada em

    palavra por um locutor (ibid., p.277).

    A partir da anlise da primeira pessoa, Benveniste define as categorias de

    pessoa: eu o indivduo que enuncia a presente instncia de discurso que contm a

    instncia lingstica eu (ibid., p.279). E, inserindo a situao de locuo, tem-se o tu

    como indivduo alocutado na presente instncia de discurso contendo a instncia

    lingstica tu (ibid., p.279).

    Em virtude da referncia necessria instncia de discurso, unem-se ao eu-tu

    alguns indicadores (de pessoa, tempo, lugar, objeto mostrado), os quais delimitam

    tempo, espao e a prpria pessoa contemporaneamente instncia de discurso que

    contm o eu. J os enunciados que pertencem ao domnio da no-pessoa podem ter um

    referente objetivo que independe da instncia de discurso, servindo, pois, como

    substitutos abreviativos.

    Portanto, a diferena essencial entre as categorias de pessoa e no-pessoa

    consiste no tipo de referncia que tais categorias estabelecem: a de pessoa, situada no

    nvel pragmtico da linguagem, define-se na prpria instncia de discurso, remetendo a

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    realidades sempre nicas; j a categoria de no-pessoa pertence ao nvel sinttico da

    linguagem e tem um referente objetivo que independe da instncia de discurso.

    Em Da subjetividade na linguagem, Benveniste (2005, p.284) problematiza,

    inicialmente, a noo de linguagem como instrumento de comunicao para defender

    que pens-la de tal modo implica opor o homem sua prpria natureza. a linguagem,

    pois, que possibilita a constituio do sujeito, porque s a linguagem fundamenta na

    realidade, na sua realidade que a do ser, o conceito de ego (ibid., p.286).

    Assim, ao propor abordar a subjetividade na linguagem, Benveniste a define

    como a capacidade do locutor para se propor como sujeito (ibid., p.286). Isso

    somente se torna possvel diante da condio dialgica, isto , intersubjetiva. A

    linguagem est, ento, organizada de modo que cada locutor possa apropriar-se da

    lngua toda se designando como eu. Portanto, o primeiro ponto de apoio para a

    revelao da subjetividade na linguagem consiste nos pronomes pessoais. Assim como

    estes, os indicadores da dixis e tambm a temporalidade revelam a subjetividade, visto

    que organizam as relaes de espao, tempo etc., em torno do sujeito que enuncia.

    A linguagem, ento, consiste na possibilidade da subjetividade pois prope as

    formas ditas vazias das quais o locutor pode apropriar-se e referir sua pessoa ,

    enquanto o discurso provoca a emergncia da subjetividade. Benveniste ressalta que a

    intersubjetividade, pois, que possibilita a comunicao lingustica atravs do discurso,

    que a lngua enquanto assumida pelo homem que fala (ibid., p.293).

    Em A forma e o sentido na linguagem (id., 2006, p.220), o autor prope

    reinterpretar a oposio forma-sentido, posicionando-se contrariamente queles

    linguistas que rejeitam o sentido; Benveniste parte do pressuposto de que forma e

    sentido so noes gmeas. Seu objetivo consiste em discutir a significao: a

    linguagem est ligada ao exerccio do discurso e, antes de qualquer coisa, a linguagem

    significa (ibid., p.222).

    Aps discutir noes em torno do signo, Benveniste passa frase, questionando-

    se sobre sua funo comunicativa. O autor ressalta que signo e frase pertencem a dois

    mundos distintos, fato que instaura uma diviso fundamental na lngua: h para a

    lngua duas maneiras de ser lngua no sentido e na forma (ibid., p.229): a lngua como

    semitica e a lngua como semntica.

    Enquanto a semitica se caracteriza como uma propriedade da lngua, a

    semntica resulta de uma atividade do locutor que coloca a lngua em ao (ibid.,

    p.230). No nvel semntico, Benveniste afirma ser necessrio considerar o referente:

    a referncia da frase o estado de coisas que a provoca, a situao de discurso ou de

    fato a que ela se reporta e que ns no podemos jamais prever ou fixar (ibid., p.231).

    Benveniste destaca que tanto o semitico quanto o semntico esto em jogo na lngua

    quando a utilizamos: na base, h o semitico, sobre o qual a lngua-discurso constri

    sua semntica prpria.

    No artigo Semiologia da lngua (ibid., p.43), Benveniste discute, na primeira

    parte, a possibilidade de uma cincia dos signos, a Semiologia, questionando-se acerca

    do lugar que a lngua ocupa dentre os sistemas de signos o que ser detidamente

    discutido na segunda parte. Nesta, o autor parte de exemplos de diversos sistemas de

    signos, para ento definir o que liga esses sistemas Semiologia, a saber, a propriedade

    de significar ou significncia e a composio em unidades de significncia ou

    signos. O linguista destaca que a particularidade da lngua no universo dos signos

    consiste em ser ela o interpretante de todos os sistemas lingusticos e os no-

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    lingusticos, e inclusive dela prpria. A lngua significa de uma maneira especfica e

    que no est seno nela (ibid., p.64); ela possui uma dupla significncia: combina o

    modo semitico e o modo semntico.

    O semntico, modo especfico de significncia engendrado pelo discurso, toma

    necessariamente a seu encargo o conjunto dos referentes (ibid., p.65), identificando-se

    ao mundo da enunciao e ao universo do discurso. Alm disso, enquanto o semitico

    (o signo) deve ser reconhecido, o semntico (o discurso) deve ser compreendido (ibid.,

    p.66). Benveniste destaca que este o privilgio da lngua: comportar simultaneamente

    a significncia dos signos e a significncia da enunciao. Por isso, segundo aponta,

    torna-se necessrio ultrapassar a noo saussuriana de que do signo dependeria

    simultaneamente a estrutura e o funcionamento da lngua.

    Em O aparelho formal da enunciao, Benveniste (2006, p.81) argumenta que

    as condies de emprego das formas e as condies de emprego da lngua constituem

    dois mundos, duas maneiras de descrever e interpretar as coisas. No que se refere ao

    emprego da lngua, Benveniste afirma tratar-se de um mecanismo que a afeta

    inteiramente, visto que a enunciao este colocar em funcionamento a lngua por um

    ato individual de utilizao (ibid., p.82), sendo o discurso uma manifestao da

    enunciao. Este ato individual introduz o locutor como parmetro das condies da

    enunciao, a qual pode ser definida, em relao lngua, como um processo de

    apropriao (ibid., p.84) isso porque o locutor apropria-se do aparelho formal e

    enuncia-se por meio dos ndices especficos e dos procedimentos acessrios. Essa

    relao que o locutor estabelece com a lngua determina os caracteres lingsticos da

    enunciao (ibid., p.82); h formas especficas que o instanciam, isto , colocam-no em

    relao constante e necessria com a sua enunciao. Benveniste lista as formas

    especficas, as quais se constituem pelos ndices de pessoa, ndices de ostenso e

    paradigma das formas temporais. A enunciao tambm fornece as condies para as

    grandes funes sintticas, isto , os procedimentos acessrios, que compreendem a

    interrogao, a intimao, a assero e a modalizao.

    Texto e enunciao: articulando conceitos

    A partir da leitura de apenas esses seis artigos de Benveniste, o que podemos

    dizer sobre o estudo do texto sob tal ponto de vista terico? Em que consiste analisar

    um texto para a enunciao? Que aspectos devem-se observar quando da anlise sob tal

    perspectiva?

    Inicialmente, preciso relembrar que Benveniste no prope um modelo de

    anlise voltado ao texto. Portanto, na leitura dos artigos, buscamos dar relevo a noes

    que, de certa forma, podem ser deslocadas de seu quadro terico e empreendidas em

    uma reflexo acerca do objeto texto.

    De fato, pensamos ser possvel, a partir de certos conceitos-chave da teoria de

    Benveniste, formular alguns princpios tericos e categorias de anlise para o estudo do

    texto. Primeiramente, em relao aos princpios, entendemos que estes se elaboram a

    partir de concepes que perpassam e/ou fundamentam a teoria benvenistiana e,

    portanto, ancoram as anlises empreendidas a partir de determinadas categorias.

    Um primeiro princpio a ser estabelecido consiste no fato de a teoria da

    enunciao benvenistiana sustentar-se desde um ponto de vista lingustico. As anlises

    propostas por Benveniste buscam explicitar os mecanismos da lngua e seu

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    funcionamento, a partir da apropriao desta pelo locutor. Assumir um ponto de vista

    lingustico no significa restringir os estudos enunciativos anlise descritiva das

    formas lingusticas; as unidades da lngua devem ser observadas em seu emprego e,

    segundo aponta o autor, analisadas sob a forma e o sentido. Benveniste, sobretudo, pe

    em relevo a questo da significao, pois, para ele, o prprio da linguagem , antes de

    tudo, significar (Benveniste, 2006, p.222). Assim, cumpre verificar como a linguagem

    articula-se para produzir sentidos e que mecanismos possibilitam a semantizao da

    lngua. Flores et al. (2009, p.20) argumenta que estudar a linguagem do ponto de vista

    da enunciao estud-la do ponto de vista do sentido o ncleo o sentido, o qual

    perpassa todos os nveis de anlise lingustica outro princpio.

    Tal postura ser empreendida em relao anlise do texto. Mas, antes disso,

    preciso explicitar o que podemos entender por texto no quadro terico benvenistiano. O

    linguista afirma que o ato de enunciao gera um enunciado: o discurso. Logo, podemos

    conceber texto como discurso, ou seja, como produto da enunciao. Desse modo, as

    consideraes em relao frase3, expresso semntica por excelncia (Benveniste,

    op.cit., p.229), podem ser estendidas ao texto, visto ser a frase um produto da

    enunciao.

    Quanto ao seu objeto, Benveniste esclarece que no se trata do texto do

    enunciado, mas o prprio processo de enunciar. O enunciado, por sua vez, fornece os

    elementos necessrios para o acesso ao processo de enunciao, visto que a relao que

    o locutor estabelece com a lngua determina os caracteres lingusticos da enunciao.

    De fato, so esses caracteres, isto , marcas, que devem ser observados quando do

    estudo do texto; parte-se do que est posto textualmente no enunciado para tambm

    chegar ao processo de enunciao e explicitar os mecanismos pelos quais o locutor

    produz sentidos. Ento, o que permite ao locutor inscrever-se e marcar-se na lngua?

    Vejamos.

    Ao analisar a estrutura das relaes de pessoa no verbo, Benveniste conclui que

    todas as lnguas comportam, cada qual sua maneira, a categoria de pessoa (eu-tu) e a

    de no-pessoa (ele), de modo que eu, postulando um outro diante de si, assume e situa a

    lngua toda. Cumpre verificar, quando da anlise textual, como a categoria de pessoa

    subjetiva eu instaura-se e como instancia o outro, categoria de pessoa no-subjetiva tu,

    em seu dizer.

    Benveniste acrescenta: toda enunciao uma alocuo; logo, este outro est

    sempre presente. essa realidade dialtica (eu-tu) que, segundo o autor, constitui o

    fundamento lingustico da subjetividade, entendida como a capacidade do locutor para

    se propor como sujeito (Benveniste, 2005, p.286). Eis o princpio da

    intersubjetividade, condio para a subjetividade.

    Tal subjetividade pode revelar-se na lngua por meio de inmeros mecanismos

    e/ou categorias lingusticas. Primeiramente, podem-se observar os pronomes. Segundo

    Benveniste, os pronomes dividem-se em duas modalidades: uns pertencem s instncias

    de discurso e apenas nestas podem ser identificados so, por exemplo, os pronomes

    relativos categoria de pessoa e os demonstrativos; outros pertencem sintaxe da

    lngua e tm um referente objetivo que independe da instncia de discurso so os do

    3 Frase, em Benveniste, deve ser entendida como unidade do discurso. A frase no tem extenso limitada

    por critrios externos enunciao: pode ser constituda por uma ou mais palavras; ou por um conjunto

    de frases, representando, na escrita, um pargrafo; ou ainda estender-se por mais de um pargrafo (Flores

    et al., 2009, p.67).

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    domnio da no-pessoa. Cabe observar como tais relaes referenciais instituem-se no

    texto.

    Tambm as formas verbais e as variaes de seu paradigma, como aspecto,

    tempo, gnero, pessoa etc. so solidrias da instncia individual de discurso: so nela

    atualizadas e dela dependem, de modo que a temporalidade humana com seu aparato

    lingustico revela a subjetividade inerente ao exerccio da linguagem.

    preciso esclarecer que a teoria enunciativa de Benveniste no objetiva estudar

    o sujeito em si, mas justamente tais marcas lingusticas que, inscritas no enunciado,

    permitem reconstruir o processo de enunciao pelo qual o locutor passa a sujeito.

    Importa, pois, verificar o modo de dizer e no o dito, isto , como o locutor mobiliza a

    lngua, repertrio de signos que possibilita combinaes, e a engendra num discurso

    particular.

    A lngua, conforme argumenta Benveniste, possui uma maneira especfica de

    significar, uma dupla significncia, que engloba os modos semitico e semntico. Na

    produo do discurso, ambos esto em jogo: sobre o semitico, a lngua-discurso

    constri uma semntica prpria (id., 2006, p.233). Assim, enquanto no nvel semitico

    o sentido define-se numa relao paradigmtica, no nvel semntico realiza-se por uma

    forma especfica, ou seja, num sintagma, de modo que no interessa mais o significado

    do signo valor genrico e conceitual que este possua no modo semitico , mas, sim,

    da palavra que, no texto, assume um sentido particular. O sentido da frase a ideia que

    ela exprime e que se realiza formalmente, ou seja, se d pelo agenciamento das

    palavras, pela organizao sinttica, pela ao de uma palavra sobre as outras. E, alm

    disso, o sentido da frase implica referncia situao e atitude do locutor (ibid.,

    p.230).

    Aqui, cabe uma observao: por vezes, atribui-se teoria da enunciao a

    contribuio em relao abordagem de aspectos que excedem o lingustico, a saber,

    sujeito/locutor, alocutrio e contexto situacional, na medida em que estes elementos

    seriam exteriores ao sistema da lngua o que, por exemplo, poderia ser reforado por

    proposies tais como com a frase, liga-se s coisas fora da lngua (ibid., p.230). No

    entanto, o que se pode depreender da leitura dos artigos que essas categorias locutor,

    alocutrio e contexto situacional , embora, de certo modo, externas lngua, passam a

    ter existncia somente na e pela lngua.

    Ao mobilizar e apropriar-se da lngua, o locutor estabelece relao com o outro e

    com o mundo via discurso, marcando na lngua sua subjetividade e constituindo-se

    como sujeito. A noo de instncia de discurso essencial nesse sentido, pois a

    realidade a que se refere a enunciao sempre uma realidade de discurso, marcada

    linguisticamente, e no uma realidade do mundo na medida em que a lngua comporta

    os mecanismos que permitem a enunciao, logo, sujeito/locutor, alocutrio e situao,

    bem como referncia, esto inscritos na prpria estrutura da lngua e instituem-se no uso

    da lngua; importa a realidade instaurada no e pelo texto/discurso. Por isso, o

    extralingustico no encontra lugar na teoria benvenistiana. Diante disso, a anlise

    textual deve circunscrever-se materialidade lingustica, considerando-se a realidade

    instaurada pelo texto, sem fazer intervir elementos externos extratexto, se assim

    podemos dizer.

    Ainda quanto referncia, Benveniste esclarece: a referncia da frase o

    estado de coisas que a provoca, a situao de discurso ou de fato a que ela se reporta e

    que ns no podemos jamais prever ou fixar (ibid., p.231). Isso porque as condies

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    intersubjetivas da enunciao so sempre nicas: o eu e o tu definem-se a cada

    instncia; essa referncia instncia de discurso une ao eu-tu uma srie de indicadores,

    como os demonstrativos, os advrbios, os adjetivos indicadores da dixis , o

    paradigma das formas temporais e verbais e outros termos que se organizam em torno

    do eu, sempre se definindo em relao ao momento da enunciao. Conforme j

    mencionado, cumpre verificar como se engendram tais categorias para a construo dos

    sentidos no texto.

    O artigo O aparelho formal da enunciao (ibid., p.81) sintetiza, de certa forma,

    muitos dos conceitos elaborados ao longo dos artigos de Benveniste e, portanto,

    condensa alguns dos aspectos que devem ser observados quando da anlise de um texto.

    Benveniste argumenta que as lnguas possuem um aparelho do qual o locutor apropria-

    se para enunciar, fazendo uso, para tanto, de ndices especficos e de procedimentos

    acessrios e, assim, constituindo-se como sujeito. No que se refere ao processo de

    enunciao e, aqui, tambm no que refere ao texto , preciso considerar: o prprio

    ato, a situao em que este se realiza e os instrumentos de sua realizao. Tais aspectos

    constituem categorias a ser observadas na anlise textual.

    Em relao aos ndices especficos e instrumentos acessrios, cabe ressaltar que

    estes merecem especial ateno quando da anlise textual. Os ndices especficos

    comportam os ndices de pessoa eu-tu, que instanciam locutor e alocutrio; de ostenso,

    que situam e/ou designam um objeto ao mesmo tempo em que se enuncia a instncia de

    discurso; e de tempo, cuja forma axial o presente, visto que coincide com o momento

    da enunciao. Estes ndices nascem a cada enunciao e, assim, referem algo novo a

    cada vez que so enunciados. J os instrumentos acessrios consistem no aparelho de

    funes: a interrogao consiste em uma enunciao construda para suscitar uma

    resposta, o que pode dar-se por formas lexicais, sintticas, partculas, pronomes etc.; a

    intimao contm formas que implicam ordens, como o imperativo ou o vocativo; a

    assero visa a comunicar uma certeza; e, por fim, a modalizao, que inclui os modos

    verbais, como o optativo e o subjuntivo, os quais enunciam atitudes do enunciador em

    relao ao que enuncia (expectativa, desejo, apreenso), e tambm formas pertencentes

    fraseologia, como talvez, sem dvida, provavelmente, podendo indicar

    incerteza, possibilidade, indeciso etc.

    O aparelho formal, de fato, constitui-se num mecanismo que corrobora para

    colocar a lngua em uso; atravs desse aparelho, o locutor apropria-se da lngua e a

    semantiza, convertendo-a em discurso. Tal discurso ser sempre particular, nico,

    porque jamais pessoa/tempo/espao podero repetir-se.

    A unicidade das categorias de pessoa, tempo e espao instaura o princpio da

    irrepetibilidade da enunciao, conferindo singularidade ao processo enunciativo, tanto

    de produo quanto de leitura de um texto. No que se refere anlise do texto, a

    singularidade do ato enunciativo de leitura refuta uma interpretao definitiva dos

    enunciados. O prprio analista produz uma leitura nica, singular e, ao buscar

    reconstruir os sentidos do enunciado a partir das marcas nele presentes, produz uma

    anlise tambm singular. O texto sempre espera por uma interpretao locutor e

    alocutrio referem e co-referem. Benveniste quem ressalta: o que escreve se enuncia

    ao escrever e, no interior de sua escrita, ele faz os indivduos se enunciarem (ibid.,

    p.90).

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  • Anais do SITED Seminrio Internacional de Texto, Enunciao e Discurso

    Porto Alegre, RS, setembro de 2010

    Ncleo de Estudos do Discurso

    Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul

    Algumas concluses

    Conforme destacamos inicialmente, o texto tem sido objeto de teorias que, de

    longa data, tm buscado sistematizar aparatos terico-metodolgicos para abordar a

    estruturao desse objeto. Quanto teoria da enunciao benvenistiana,

    especificamente, no podemos dizer o mesmo, pois no h, no escopo dessa teoria, uma

    preocupao com o estudo do texto. Cabe ressaltar, no entanto, que o vis enunciativo

    tem oferecido uma perspectiva de anlise que, em se considerando o ponto de vista

    lingustico, muito tem a contribuir para abordagem dos mecanismos e funcionamento da

    lngua em uso.

    Assim, a partir da leitura dos seis artigos de Benveniste, buscamos destacar

    alguns conceitos-chave que, em nosso entendimento, permitem derivar reflexes em

    relao ao objeto texto. Vale ressaltar que tais reflexes consistem num primeiro

    movimento de leitura, a qual objetivamos aprofundar.

    Os princpios e categorias de anlise aqui apenas esboados no visam a elaborar

    um modelo de anlise a ser seguido e, sim, a sistematizar um aparato terico-

    metodolgico que, em certa medida, est presente na obra de Benveniste. Cumpre

    destacar que cada analista, quando do estudo de um determinado texto, precisa compor

    seu aparato terico-metodolgico. O que isso significa? Cada texto, sendo singular,

    suscita no analista um aparato tambm singular; determinados aspectos enfatizados

    numa anlise x, por exemplo, podem ser completamente irrelevantes para uma anlise

    y. Ou seja, os princpios e as categorias, de certa forma, esto postos, mas o modo

    como o analista os mobiliza particular a cada novo objeto de anlise.

    De fato, defendemos que a teoria enunciativa benvenistiana fornece elementos

    que sustentam o trabalho com texto atividade que assume relevncia no que se refere

    ao ensino de lngua, j que o texto tem ocupado, crescentemente, papel de destaque em

    aulas de Lngua Portuguesa.

    Referncias

    BENVENISTE. E. Problemas de lingstica geral I. Maria da Glria Novak e Maria

    Luisa Neri. Campinas, SP: Pontes Editores, 2005.

    BENVENISTE. E. Problemas de lingstica geral II. Trad. Eduardo Guimares et al.

    Campinas, SP: Pontes Editores, 2006. FLORES, Valdir do Nascimento; BARBISAN, Leci Borges; FINATTO, Maria Jos

    Bocorny; TEIXEIRA, Marlene. Dicionrio de lingustica da enunciao. So Paulo:

    Contexto, 2009.

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