Carne e Bits

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA CARNE E BITS: REFLEXÕES SOBRE A INDISCERNIBILIDADE DAS FRONTEIRAS ENTRE MENTES E MÁQUINAS E OS SISTEMAS COGNITIVOS HÍBRIDOS André Sathler Guimarães

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Excelente tese de doutorado que explora a parabiose, ou seja, a mistura de seres humanos com partes artificiais (protéticas). Defendida no Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal de São Carlos.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO CARLOS

CENTRO DE EDUCAO E CINCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIACARNE E BITS: REFLEXES SOBRE A INDISCERNIBILIDADE DAS FRONTEIRAS ENTRE MENTES E MQUINAS

E OS SISTEMAS COGNITIVOS HBRIDOS

Andr Sathler Guimares

SO CARLOS

2008CARNE E BITS: REFLEXES SOBRE A INDISCERNIBILIDADE DAS FRONTEIRAS ENTRE MENTES E MQUINAS

E OS SISTEMAS COGNITIVOS HBRIDOS

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO CARLOS

CENTRO DE EDUCAO E CINCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIACARNE E BITS: REFLEXES SOBRE A INDISCERNIBILIDADE DAS FRONTEIRAS ENTRE MENTES E MQUINAS

E OS SISTEMAS COGNITIVOS HBRIDOS

Andr Sathler Guimares

Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Universidade Federal de So Carlos, como requisito parcial para obteno do Ttulo de Doutor em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Joo de Fernandes Teixeira

SO CARLOS

2008ANDR SATHLER GUIMARESCARNE E BITS: REFLEXES SOBRE A INDISCERNIBILIDADE DAS FRONTEIRAS ENTRE MENTES E MQUINAS

E OS SISTEMAS COGNITIVOS HBRIDOS

Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Universidade Federal de So Carlos, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Doutor em Filosofia.

Aprovado em __________________ .

BANCA EXAMINADORA

Presidente: _________________________________________________________

Prof. Dr. Joo de Fernandes Teixeira, orientador.

1. Examinador: _____________________________________________________

Instituio:2. Examinador: _____________________________________________________

Instituio:3. Examinador: _____________________________________________________

Instituio:4. Examinador: _____________________________________________________

Instituio:Ao meu paiAntonio Maurlio Guimares

minha me

Marlussi Sathler Rosa Guimares

Pintura rupestre chapada e lisa, em vermelho escuro. Antropomorfo segurando lana serrilhada. Toca das Coras. (Agradecimentos)

(Resumo)

(Abstract)

SUMRIO

INTRODUO

A. Consideraes Iniciais

A tcnica nos amplia. A pintura rupestre aposta como epgrafe apresenta uma figura de traos homindeos, segurando uma lana, tanto avantajada em tamanho em relao ao seu portador, quanto a ele plasmada, pela indistino com que a pintura retrata a juno entre mo e lana, sujeito e objeto. Nos primrdios, a tcnica estava na natureza. Mas no era natural. Foi criada pelo homem, quando este descobriu que podia usar a natureza para alterar a prpria natureza, conformando melhor o mundo (Welt) s suas necessidades de sobrevivncia. No se trata simplesmente do uso de artefatos, mas da forma como o homem trabalha. Trabalho entendido como o processo mediante o qual o homem extrai sua subsistncia do meio-ambiente. Como uma extenso do homem, a tcnica configura uma determinada forma de ser-no-mundo e mudanas tecnolgicas determinam mutaes antropolgicas. A tcnica no neutra. Trouxe mudanas significativas na vida humana, em todos os seus mbitos. Postman alega que as novas tecnologias alteram a estrutura de nossos interesses: as coisas sobre as quais pensamos. Alteram o carter de nossos smbolos: as coisas com que pensamos. E alteram a natureza da comunidade: a arena na qual os pensamentos se desenvolvem (Postman, 1992, p. 29). A tcnica implica mudanas materiais no meio em que vivemos do Umwelt produz o Lebenswelt. Este ltimo povoado por novos signos e smbolos, no mais adstritos aos elementos disponveis na natureza. Vivendo e convivendo nesse espao ampliado, o homem haure novos pensamentos e ascende nveis diferenciados de sociabilidade. Concorda com essa posio Mumford, historiador da tecnologia, ao afirmar que atravs do hbito de usar a escrita e o papel, o pensamento perdeu algo de seu carter de fluxo, quadridimensional, orgnico, e se tornou abstrato, categrico, estereotipado, seu contedo passou a ter formulaes puramente verbais e solues verbais para problemas que nunca tinham se apresentado em seus inter-relacionamentos concretos (Mumford, 1963, p. 137). Ambas as formulaes, de Postman e Mumford, sinalizam a penetrao da tcnica na intimidade ontolgica do homem, transformando-o naquilo que ele tem de mais privado seu prprio processo de pensamento.A tcnica se tornou o ambiente que nos cerca e nos constitui. Para Galimberti, a tcnica no neutra, porque cria um mundo com determinadas caractersticas com as quais no podemos deixar de conviver e, vivendo com elas, contrair hbitos que nos transformam obrigatoriamente (Galimberti, 2006, p. 8). Nos primrdios do processo civilizatrio, a tcnica tinha forte vis teleolgico um meio aplicado com o fim de dominar a natureza hostil. Com o tempo, ao criar um ambiente permeado de artefatos um mundo com determinadas caractersticas artificiais a tcnica se tornou o ambiente do homem, aquilo que o rodeia e o constitui. Com isso, parafraseando Nietzsche, o homem supostamente descansaria de sua angstia existencial pois passa a poder compreender perfeitamente um universo criado por ele mesmo. Moles tambm tratou do assunto, afirmando que

o objeto, inicialmente um prolongamento do ato do ser humano, numa funcionalidade essencial, ferramenta generalizada (a casa, mquina de habitar, de Gropius), desprende-se desta insero na ao para passar ao nvel de uma parte do Umwelt, pois se transformar num elemento do sistema, resultado do condicionamento do ser humano pelo ambiente (Moles, 1981, p. 11).

Uma compreenso global do fenmeno tcnico fundamental para qualquer anlise da cultura, sobretudo quando se almejam interpretaes da realidade atual. Para Galimberti, o homem, para viver, obrigado biologicamente a dominar a natureza, e a tcnica, mdium desse domnio, pertence essncia do homem como condio imprescindvel da sua existncia (Galimberti, 2006, p. 104). O estado da tcnica reflete o estado do homem.As vises que defendem a neutralidade da tcnica partem de uma concepo exclusivamente instrumental, o que , paradoxalmente, um posicionar-se pr-tecnolgico, remetendo ao perodo em que o ser humano agia com vistas a objetivos inscritos em um horizonte de sentido. Na atualidade, a tcnica vista como autotlica, ou seja, se tornou seu prprio fim. Houve, particularmente a partir do sc. XIX (ps-Iluminismo e ps-Revoluo Industrial) uma mudana notvel no tipo de pensamento: do se algo devia ser inventado, poderia ser inventado, para o se algo podia ser inventado, deveria ser inventado. Inovao virou uma palavra-fora. As conseqncias da primazia do fenmeno tcnico j so sentidas. E trazem preocupaes. Bauman um dos autores a alertar sobre o assunto:

mesmo que observemos escrupulosamente essas regras [normas ticas herdadas do passado], mesmo que todos ao nosso redor tambm as observem, estamos longe da certeza de que se evitaro conseqncias desastrosas. Nossas ferramentas ticas o cdigo de comportamento moral, o conjunto das normas simples e prticas que seguimos simplesmente no foram feitos medida dos poderes que atualmente possumos (Bauman, 1997, p. 25).

Procuramos chamar a ateno, com essas palavras introdutrias, para a dimenso da profundidade qualitativa das mudanas causadas no homem pelo fenmeno tcnico. Transformaes que se reforam em processos retro-alimentados, as quais aceleraram-se sobremaneira nos ltimos sculos, a partir de dois grandes acontecimentos: a Revoluo das Luzes e a Revoluo Industrial. O primado da Razo e o mtodo cientfico, princpios Iluministas, descortinaram a evoluo exponencial da cincia aplicada, posicionando os cientistas na vanguarda intelectual da sociedade. J a insero plena da mquina nos processos produtivos, fruto do industrialismo, significou uma alterao radical nos processos de trabalho, nos meios de subsistncia e nos relacionamentos sociais da humanidade. Muitas vezes, a presente poca qualificada como uma terceira revoluo industrial. O uso do termo revoluo aponta para mudanas rpidas e de grandes propores. Indica aqueles momentos na histria em que eventos importantes ocorrem com grande rapidez e contribuem para estabelecer uma nova era. Um dos autores a apoiar a tese de que atravessamos um momento revolucionrio Castells, que afirma: estamos vivendo um desses raros intervalos na histria. Um intervalo cuja caracterstica a transformao de nossa cultura material pelos mecanismos de um novo paradigma tecnolgico que se organiza em torno da tecnologia da informao (Castells, 1999, p. 49).

No modo agrrio de desenvolvimento, a principal fonte de ampliao da renda era o aumento da mo-de-obra disponvel e da terra (recursos naturais). J no modo de desenvolvimento industrial, a principal fonte de produtividade se originava do uso de novas fontes de energia e na capacidade de descentralizao desse uso ao longo das cadeias produtivas e de circulao dos produtos. A diferena, quando se alcana o modo informacional de desenvolvimento, est no fato de que a fonte de produtividade encontra-se na tecnologia de gerao de conhecimentos, de processamento da informao e de comunicao de smbolos. A principal mudana, portanto, no foi o tipo de atividades em que a humanidade est envolvida, mas sim sua capacidade tecnolgica de utilizar, como fora produtiva direta, aquilo que distingue a espcie humana: o fato de sermos analistas simblicos.

A histria dessa revoluo j est devidamente narrada em vrias obras, tratando-se essencialmente do surgimento do computador digital, baseado em chips de silcio, com alto poder de processamento e um aumento exponencial da capacidade, a cada 18 meses, mantidos os custos constantes. Outro elemento dessa revoluo, mais recente, foi a utilizao desses computadores de forma interconectada, em rede, o que veio a propiciar, posteriormente, a Internet, uma rede de redes, conectando centenas de milhares de computadores em todo o mundo e disponibilizando um oceano de informaes.

A revoluo informtica e a Internet esto alterando a vida das pessoas em praticamente todas as suas dimenses, inclusive na forma como trabalham, incorporando novos hbitos e novas formas de executar antigas rotinas. Muitas das tarefas foram transferidas para os computadores, automatizadas, deixando mais tempo e possibilidades para o trabalho criativo do ser humano.

Vive-se um perodo sem precedentes de mutaes aceleradas em praticamente todos os campos da existncia. Processos como a revoluo nos transportes, na tecnologia e a globalizao transformaram absolutamente a vida cotidiana das pessoas. De forma ilustrativa, o historiador Hobsbawm afirmou que hoje se pode "levar a cada residncia, todos os dias, a qualquer hora, mais informaes e diverso do que dispunham os imperadores em 1914" (HOBSBAWN, ____, p. ___). Pesquisador da rea, Wurman, afirma que a uma edio do The New York Times em um dia da semana contm mais informao do que o comum dos mortais poderia receber durante toda a vida na Inglaterra do sc. XVII (Wurman, 1991, p. 36). Esse excesso de informao tem levado a uma crescente preocupao com a overdose de informaes a incapacidade do ser humano de lidar com essa massa descomunal de informaes e absorv-las apropriadamente, transformando-as em conhecimento. Para Santaella,

uma mquina que estava destinada a mastigar nmeros, comeou a mastigar tudo: da linguagem impressa msica, da fotografia ao cinema. Isso fez da ciberntica a alquimia do nosso tempo e do computador seu solvente universal. Neste, todas as diferentes mdias se dissolvem em um fluxo pulsante de bits e bytes (Santaella, 2003, p. 20).

Capacidade cria inteno. Cada nova melhoria no sistema de transportes aumentou a rea pela qual as pessoas se sentem compelidas a viajar. Cada nova possibilidade desvendada pela informtica, traz novas possibilidades de ao aos indivduos. A sociedade informacional, configurada de modo a ter a informao como seu eixo central, faz com que seu aparato tcnico computador, internet se tornem referncias fixas para a inteira vida psquica da comunidade.

Cada tecnologia acaba por impor uma pr-disposio mental uma forma de pensar sobre ela e suas funes que logo invade as pessoas que a utilizam. Quanto mais bem-sucedida uma tecnologia, maior seu impacto nos padres de comportamento de seus utilizadores, e, conseqentemente, maior o impacto na sociedade.

Partimos dessa configurao dinmica e integrada do fenmeno tcnico na atualidade para propor reflexes sobre as formas e os efeitos da crescente interao do ser humano com mquinas complexas, notadamente as informacionais. A mudana seminal no processo evolutivo humano, ocorrida com o uso de artefatos com propsitos de dominar a natureza objetos com finalidade tcnica ou objetos-tcnicos , conforme estampado na epgrafe da tese, alcanou novos patamares, verdadeiramente revolucionrios. Os ambientes tcnicos cavernas, aldeias, vilas, cidades deixaram de ser enclaves diante da natureza e, inversamente, os ambientes naturais passaram a ser enclaves em um mundo regido pela tcnica. Dos objetos-tcnicos, utilizados como prteses que expandem as possibilidades motoras e musculares do homem, passamos aos objetos-tcnicos que alteram e ampliam as suas capacidades cognitivas as prteses mentais. B. Propostas de reflexo

O trabalho surgiu do desejo de se refletir sobre os programas que vm sendo chamados genericamente de agentes inteligentes (smart agents), buscando entender os princpios que orientam sua concepo (lgica de programao) e suas possibilidades de atuao. As abordagens iniciais ao tema, contudo, levaram uma ampliao da discusso para incorporar reflexes quanto interao do homem com o objeto-tcnico, em suas mltiplas formas e instncias.

Notadamente, percebemos, desde o incio, que os softwares, apesar de carregarem no prprio nome, como uma petio de princpio, a caracterstica da intangibilidade, so tratados, pelo homem, como um objeto-tcnico. O tipo de relao estabelecido pelo homem com o software mimetiza o tipo de relao do homem com o artefato.. Essa constatao levou-nos a propor uma reflexo, anterior dos agentes inteligentes, sobre o processo de apropriao e uso dos artefatos como objetos-tcnicos.

As reflexes sobre os agentes inteligentes tambm descortinaram um olhar para a frente, na tentativa de compreenso dos desdobramentos possveis da eventual literalizao da denominao agentes inteligentes, hoje assim reputados apenas a ttulo metafrico. Essa percepo nos aproximou do campo de estudos da Inteligncia Artificial (IA). O estado da arte dessa rea de pesquisa permeado por tenses entre entusiastas e pessimistas, digladiando-se em torno de assumir ou no a possibilidade de um objeto-tcnico autnomo e singular a tcnica finalmente desprendida do homem. Essas tenses refletem-se no trabalho, que busca conservar um certo equilbrio entre vises dos tecnfilos e dos tecnfobos. Conforme Beiguelman,

impe pensar em um dos mais desconcertantes temas da contemporaneidade: os tnues limites que hoje se colocam entre homens, objetos que incorporam qualidades e seres vivos codificados por informaes digitais (Beiguelman, 2005, p. 14).

Presena recorrente ao longo das outras reflexes, o ambiente aparece como catalisador das mudanas. Usamos a tcnica para modificar o ambiente e esse novo ambiente requer novas tcnicas para ser alterado. A lana do homindeo no muito apropriada para abrir uma lata de sardinha. Longe de ser um envoltrio passivo, o ambiente um professor ativo, exigindo adaptaes permanentes do homem. Essa percepo levou-nos a propor, inicialmente, reflexes sobre o ambiente, a partir do conceito de espao e suas mudanas qualitativas.

Como pano de fundo da discusso, encontra-se uma interrogao sobre os modos de apropriao (significao) e expropriao (ressignificao) que o homem adota em relao ao objeto tcnico ao longo de sua evoluo. Identificamos um padro nesse processo, seja quando ele se d em relao a um artefato fsico, seja quando ocorre em relao a um objeto imaterial. Percebemos, igualmente, que na medida em que ocorre esse movimento de apropriao/expropriao, a relao dos seres humanos com os objetos-tcnicos muda de patamar, tornando-se indiscernveis as fronteiras entre homens e objetos, mentes e mquinas. Com isso, esto lanadas as bases para pensarmos em sistemas cognitivos hbridos coletivos de sujeitos e objetos-tcnicos, em relaes parabiticas, cujo resultado transcende em muito a capacidade do homem tomado isoladamente.

C. Panorama da teseNo Captulo 1, fazemos uma anlise do espao e suas mudanas qualitativas na atualidade. Partimos de um conceito do espao como produo humana, baseado na obra de Lefebvre, para analisar como as transformaes em curso no ambiente afetam nossas subjetividades e, reciprocamente, como afetamos nossos ambientes. Discutimos as possibilidades de sobrevivncia do homem nu nesses novos espaos, sem que esteja devidamente atualizado com as ltimas novidades tecnolgicas prteses sensoriais e motoras. Em uma transio de nvel crescente de abstrao, passamos por uma discusso quanto ao pensamento que se utiliza do espao como elemento constituinte do prprio pensamento (pensar sobre as coisas e com as coisas), e chegamos a algumas reflexes sobre o espao abstrato por excelncia, os mundos virtuais.

No Captulo 2, situamos reflexes sobre o corpo que vai se inserir nesses novos espaos. De uma noo rgida e fechada de corpo (cartesiana), discutimos como se est trabalhando, na atualidade, com noes permeveis e intercambiveis para os corpos individuais. Nesse captulo comea um tema importante e recorrente na obra, em diversos planos, que a questo da apropriao de artefatos pelo homem e seus efeitos na subjetividade humana. O corpo que se apropria crescentemente dos objetos tcnicos, corpo prottico, estabelece novas relaes com a tecnologia, constituindo-se em um sistema parabitico, que surge como uma esperana (ou pretenso, talvez) de que o homem assuma as rdeas de seu processo evolutivo, galgando, por seus mritos, novos degraus na escada evolucionria.

O Captulo 3 remete questo originria do presente trabalho, ao discutir os agentes inteligentes e seus efeitos sobre o ser humano, a partir de uma anlise das formas e mecanismos de apropriao dos mesmos pelo sujeito, em muito similares s formas de apropriao do objeto-tcnico tangvel. Reinserimos o tema da espacialidade, em outro nvel de abstrao, quando discutimos as formas de expanso do pensamento no espao, com o chamado processamento mental distribudo. Retomamos a noo dos sistemas parabiticos, transcendendo, contudo, o plano do fsico e adentrando o nvel do mental, com a anlise dos sistemas cognitivos hbridos que surgem das relaes cognitivas entre mentes e mquinas. No Captulo 3 apresentamos duas propostas conceituais inovadoras. A primeira a de que os agentes inteligentes, como entidades incorpreas e autnomas, ao serem apropriados pelo sujeito, podem se constituir como uma das camadas da conscincia, no mbito do modelo dennettiano de uma conscincia com mltiplas camadas (multiple drafts model). A segunda, similar na abordagem, postula que os agentes inteligentes possam se configurar como mdulos (faculdades verticais) no mbito do modelo de conscincia de Fodor.

O Captulo 4 traz reflexes sobre a possibilidade de autonomizao completa dos agentes inteligentes e a sua instituio, ipso facto, como agentes a chamada Inteligncia Artificial. H, nesse captulo, um elemento de inconclusividade, uma vez que so apresentados argumentos favorveis e contrrios possibilidade de compreenso do termo agentes inteligentes de forma literal e no somente metafrica. Tambm nesse captulo, apresentamos uma proposta conceitual original, que a definio de estados objetais no objetivveis como, possivelmente, uma primeira raiz para que se comece a discutir as possibilidades de individualizao das mquinas computacionais. Caso isso seja possvel, estaramos, de fato, diante de um Outro, uma nova entidade, ainda a ser devidamente definida e categorizada. Como reflexo final, diante dessa assombrosa possibilidade, retomamos uma discusso clssica de Freud sobre nosso estranhamento diante de autnomos que parecem vivos.

D. Uma nota sobre o mtodo

Os captulos, e os temas no interior dos captulos, so abordados de modo recursivo. A diferena entre a recurso e a repetio que no processo recursivo os elementos so reiterados, porm incorporam os resultados do ciclo anterior, em um processo de acumulao dinmica.

Em seu plano geral, o trabalho se inicia com a insero concreta de homens e mquinas, que se d, necessariamente, de forma situada (espacial). Vivemos e encontramos o sentido para nossas vidas em um determinado espao, que afetado por ns e nos afeta. Os artefatos e as mquinas coabitam esse espao, tambm exercendo sobre ele transformaes profundas.

No segundo momento, analisamos as aes humanas no espao e as nossas interaes com tudo que nos exterior os ob-jetos, mas ainda situados em uma concretude espacial e imersos no universo material. Contudo, j nesse instante da pesquisa, abre-se uma brecha para o terreno do imaterial, quando se analisa as formas como os objetos-tcnicos so apropriados pelo humano.

A terceira etapa compreende um passo alm no caminho rumo imaterialidade, ao se propor como tema as formas de relao e apropriao que o humano mantm com artefatos intangveis os softwares. Mais especificamente, os agentes inteligentes. No momento seguinte, adentramos o mundo puro da imaterialidade, ao discutirmos as possibilidades relacionadas ao campo de pesquisa da Inteligncia Artificial. A Inteligncia Artificial manifesta-se, em uma primeira aproximao, como entidade incorprea, tal qual a Mquina de Turing, como conceitualmente proposta. Recursivamente, contudo, nesse momento (Captulo 4) avanamos para uma insero da Mquina de Turing, abstrata no plano da materialidade, analisando-se as conseqncias de sua instanciao fsica. O Captulo 4 culmina com uma reflexo, inspirada em Freud, sobre os efeitos da convivncia do humano com autnomos inteligentes, corporificados e identificados como o Outro. E assim retornamos ao plano material e aos contextos espaciais nos quais se do as relaes entre os homens e os artefatos.

No interior dos captulos, h movimentos recursivos similares. O Captulo 1 iniciado com uma discusso sobre os significados atribudos pelos seres humanos s suas materialidades espaciais. Prossegue avaliando as mudanas nessas materialidades e seus efeitos sobre os homens, bem como, reciprocamente, os impactos do humano nos espaos. O captulo culmina com uma transcendncia da materialidade espacial a realidade virtual que, recursivamente, se fecha nas possibilidades imaginadas pelo programador exploso de finitudes mascarada de abertura ao infinito.

O Captulo 2 comea com anlises de cunho antropolgico sobre a ao instrumental humana e as formas peculiares da nossa espcie para a apropriao dos ob-jetos. Continua com interpretaes possveis sobre o agir instrumental humano e processos definidores de nossa relao com os artefatos. Seu pice se d com a anlise de como o artefato se insere definitivamente no mapa mental do humano que, nesse momento, passa at mesmo a prescindir do ob-jeto. Esse final nos coloca novamente no ponto da relao entre o homem e os artefatos, porm em um outro plano (reiterao recursiva do argumento), que vai propiciar a passagem ao prximo captulo.

No Captulo 3, discutimos a apropriao do artefato intangvel o software. Avanamos analisando aspectos conceituais e tcnicos sobre os agentes inteligentes, discutindo ambos os plos de sua denominao: em que medida so agentes e em que medida so inteligentes. Essas reflexes levam s concluses do captulo, que sinalizam para um novo estgio de relao com os agentes inteligentes, com a necessidade de se repensarem as formas de apropriao, medida em que os mesmos forem ficando cada vez mais agentes e mais inteligentes.

Essa anlise nos deixa no ponto de partida do Captulo 4, que aberto com uma reflexo sobre a possibilidade de uma Inteligncia Artificial como entidade independente e autnoma. O captulo trata do campo de pesquisa, levantando diversas interrogaes e especulaes a partir dos conceitos cientficos. Seu ponto mais importante a discusso sobre a possibilidade de pensarmos em caractersticas fsicas no-reprodutveis que possam servir como uma possvel base para se definir a individualidade maqunica. Se isso for possvel, conforme j exposto, o homem estar diante de uma nova entidade, qual precisar entender, categorizar e definir formas de convivncia. Essa convivncia, por sua vez, se dar em um espao situado e voltamos ao incio do trabalho, abrindo-se para novo percurso, o qual, contudo, ainda no possvel de ser vislumbrado.

A tese est circunstanciada no campo de estudos da filosofia da mente. Se, em sua vertente positivista, a relao entre o mundo-em-si e a filosofia territorialista, com o primeiro cedendo espao diante dos avanos da ltima, no campo da filosofia da mente ocorre uma interpenetrao fecundante entre ambos. Cada passo da filosofia da mente explode uma poro do real, fazendo nascer, em cada fragmento, novos mundos-em-si. Como reagentes qumicos e nucleares dessa exploso interagem as mltiplas perspectivas cientficas que convergem ao dilogo com a filosofia da mente: as cincias cognitivas, a psicologia, as neurocincias, etc. A filosofia da mente se constitui, atualmente, um frtil terreno especulativo, que abre novos olhares e perspectivas para as outras cincias. No foi pretensiosa, portanto, a afirmao de Winston Churchill de que os imprios do futuro so os imprios da mente.

Na preparao e elaborao do trabalho foi feita uma vasta leitura que comps, valendo-nos de uma metfora biolgica, um substrato fungiforme com a unio de diversos pontos nodais, de mltiplas origens e fontes. Nos momentos em que h uma condensao entre os diversos pensamentos e o pensamento desse autor, brotam, do miclio, hifas, que se materializam em citaes ou em proposituras de novos conceitos. Consideramos a abordagem proposta micelial ou rizomtica apropriada para abarcar a complexidade de um tema fractalizado, disperso em mltiplas disciplinas e permeado por tenses interpretativas. O texto que resulta to verstil quanto escorregadio, mas profundamente coeso em sua estrutura, desenvolvendo-se como teia complexa e multiplicando-se em ensimas direes. Nesse contexto rizomtico, orientado pela complexidade, constantemente ocorrem acoplamentos e retroalimentaes. Os pontos de inflexo acontecem nos cruzamentos em ndulos dessa teia que atravessa territrios disciplinares, mas com tessitura de rede multirreferencial, que se multiplica sem apontar o final, mas indicando novos e instigantes desenvolvimentos para a argumentao.Diferentemente da filosofia tradicional, na qual se analisa um texto clssico, ou a obra de um pensador, o presente trabalho faz um comentrio polifnico, buscando dialogar com mltiplas vozes, de origens filosficas e no-filosficas. O uso que se faz das citaes, ao longo do trabalho, duplo: no sentido tradicional, como pontos de apoio a partir dos quais se desenvolvem ou contrapem argumentaes; mas tambm como expresses literais cujos termos no quisemos alterar, por consider-los fiis ao nosso prprio pensamento. Nesse segundo modo de utilizao, as citaes so tanto uma demonstrao de respeito para com os autores originais, quanto uma tentativa de desvelar o percurso da pesquisa e o nosso tateamento conceitual, ao tecer a trama da tese. Acreditamos que a proposta alcana esse resultado, bem como d conta da complexidade do tema abordado. Sobretudo, tentamos no esquecer a advertncia de Wittgenstein: o fim da filosofia o esclarecimento lgico dos pensamentos. A filosofia no uma teoria, mas uma atividade (Wittgenstein, 2001, p. 179).

1. O ESPAO EXPANDIDO 1.1. O espao sem fronteiras

Espao significado. A mente se vale de metforas espaciais para visualizar suas estruturas conceituais. Partimos de uma proposio fundante de Lefebvre:

o organismo vivo no tem sentido nem existncia quando considerado isolado de suas extenses, do espao que alcana e produz (ie, seu milieu para usar um termo da moda que tende a reduzir a atividade ao nvel de uma mera inserao passiva na esfera material do natural). Cada organismo refletido e refratado nas mudanas que ele produz no seu milieu ou ambiente em outras palavras, no seu espao (Lefebvre, 2005, p. 196).

A analtica do espao de Lefebvre se resolve em uma trade complexa: o espao material, percebido e praticado das coisas, objetos, movimentos e atividades; o espao abstrato, conceituado, representado; o espao vivido, as concepes de realidade que condicionam as aes. No se pretende uma enumerao dos elementos constituintes do espao, mas uma estratificao, que resulta em uma descrio fenomenolgica do espao em ato.

A partir das noes de concebido, percebido e vivido, o conceito de espao transcende a dimenso do geomtrico (espao mental concebido pela matemtica e pela filosofia) e a dimenso do fsico (prtico-sensvel, perceptual). O concreto o particular, o abstrato o geral, campo dos planos e das ordenaes. Lefebvre trabalha com a premissa essencial de que relaes sociais somente se concretizam enquanto relaes espaciais, o que traz, como conseqncia, a noo de espao como espao social. Pode-se afirmar que Lefebvre realiza uma slida ontologia da complexidade do espao, colocando essa categoria no centro das construes sociais. Instaura-se, na contemporaneidade, uma outra forma de relao com o mundo, fundamentalmente indefinida e aberta, processual e, portanto, imprecisa, turbulenta e oscilante, fundadora de uma organizao repleta de complexidades. Diante desse quadro, Lefebvre postula que a arquitetura deveria renunciar ao desenho de objetos arquitetnicos e se dedicar produo de interfaces. Em lugar de pr-determinar espaos, os arquitetos deveriam criar instrumentos para que os usurios possam determin-los por si mesmos. So as aes e os pensamentos humanos que do sentido a uma poro qualquer do espao e a territorializam. A expresso humana da territorialidade, portanto, nasce dos sentimentos de desejo e de controle, posse e codificao, ou, no fundo, da delimitao do espao.A partir dessas novas premissas, o espao do modernismo implodiu. Houve uma mutao no objeto, qual ainda no se seguiu uma mutao equivalente no sujeito. Para Frank

a convenincia (no a existncia) das formas de intuio apriorsticas do espao euclidiano e do tempo unidimensional de Newton, como igualmente a convenincia dos princpios da razo pura como pressupostos de todo conhecimento todos eles pontos centrais da filosofia kanteana tornaram-se questionveis justamente graas teoria da relatividade (curvatura do espao, equivalncia de massa e energia) e teoria dos quanta (relao de incerteza de Heisenberg) (Frank, 1970, p. 12). Espao, como significado, processo. Processo que inclui os fluxos abstratos e vai determinar todo um novo modo de pensamento. Os novos espaos informacionais globais resultam da desterritorializao mais fundamental, a do prprio territrio - a abstrao da terra: como abstraes concretas, contudo, eles alcanam existncia real por meio de redes e caminhos, feixes ou aglomerados de relacionamentos (Lefebvre, 2005, p. 86).

Jameson (JAMESON, 2006, p. 37) nos alerta que esse novo espao, chamado por ele de hiperespao ps-moderno, transcende as capacidades do corpo humano de se localizar, organizando perceptualmente o seu entorno e mapeando cognitivamente a sua posio em um mundo exterior mapevel. Segundo Jameson, a esse novo espao total corresponde uma nova prtica coletiva, um novo modo no qual os indivduos se movem e se renem, algo como a prtica de um noto tipo, historicamente original, de hipermassa (Jameson, 2006, p. 33). Somos refletidos e refratados por esse espao.Esse autor (JAMESON, 2006, p. 31) preocupa-se com uma hipossuficincia do humano para se realizar plenamente nesses novas condies, em virtude do fato de que nossos hbitos perceptivos foram formados no espao anterior, moderno. A ps-modernidade estaria a reclamar o crescimento de novos rgos, que expandam os nossos sentidos e os nossos corpos at novas dimenses, ainda inimaginveis, talvez at, em ltima instncia, impossveis (Jameson, 2006, p. 31). O novo sujeito s pode ser representado em movimento, transformado em um campo passivo e mvel de informao, no qual pores tangveis do mundo so apreendidas e novamente abandonadas na permanente incoerncia de um sensorial hipntico (Jameson, 2006, p. 154).

Estamos diante de novas sensibilidades, novos problemas de representao, novos conceitos estticos e novas formas de compreender o mundo. O ambiente est se tornando mais impalpvel, nebuloso, fantasmtico, e quem nele quiser se orientar ter de assumir como ponto de partida esse carter espectral. Como afirmou um dos pais da ciberntica, Norbert Wiener, modificamos to radicalmente nosso meio ambiente que devemos agora modificar-nos a ns mesmos para poder viver nesse novo meio ambiente (Wiener, 2000, p. 46).

1.2. Ciber-Lebenswelt: o ecossistema dos seres parabiticos

O mundo em que vivemos apresenta uma grande e crescente intensificao dos estmulos nervosos, como um resultado da alterao brusca e ininterrupta entre estmulos exteriores e interiores. As novas tecnologias de informao e comunicao tm gerado um padro agudo de descontinuidade, contido na necessidade de apreenso com uma nica vista de olhos e no inesperado das impresses sbitas. O ambiente penetrantemente tecnolgico da atualidade contrasta profundamente com os ambientes anteriores (selvtico/agrrio/industrial), no que diz respeito aos fundamentos sensoriais da experincia humana. Esse novo ambiente extrai do homem uma qualidade de conscincia diferente.

Para Teixeira,

a vida mental abrange contextos onde esto no apenas crebros inteligentes, mas corpos que se tornam inteligentes devido sua atuao num meio ambiente. O desenvolvimento deste estudo leva-nos em direo no apenas de uma teoria biolgica, mas ecolgica do significado, da representao e da vida mental (Teixeira, 2004, p. 56).

O espao que vivenciamos , na verdade, o significado que atribumos ao produto de complexos processos mentais, que dimensionalizam o ambiente do pensamento e da experincia, como uma estratgica cognitiva. Ordenamos a sensao e o pensamento em uma matriz, na qual o espao no continente, mas contido: ele prprio um artefato da cognio. Os processos conscientes do humano precisam estar aptos a lidar com esse novo ambiente, ao qual chamamos de ecossistema cognitivo, no qual predomina a percepo da simultaneidade, da fragmentao e do descontnuo.

Por ecossistema cognitivo entendemos o macroambiente, com suas formas heterogneas e caticas de selecionar e acumular memes, configurando, situadamente, determinados arranjos vivenciais (Lebenswelt). As configuraes do ecossistema cognitivo, dadas as suas imbricaes sciotcnicas, restringem e condicionam as formas coletivas de expresso societal. Porque essas encontram seu substrato em uma rede na qual neurnios, mdulos cognitivos, humanos, instituies de ensino, lnguas, sistemas de escrita, livros e computadores se interconectam, transformam e traduzem as representaes (Lvy, 1993, p. 135). Extrapolando Wittgenstein, podemos afirmar que no s a linguagem que limita nosso mundo a tecnologia tambm o faz. No novo ecossistema cognitivo, h um coletivo pensante de homens e coisas, coletivo dinmico, povoado por singularidades atuantes e subjetividades mutantes (Lvy, 1993, p. 11), transgredindo as fronteiras tradicionais entre espcies e reinos (mineral / animal). O ambiente repleto de alavancas tecnolgicas extrai do homem um estado consciente diferente do que o de um ambiente de escassez dos objetos tcnicos, como o da vida campestre, na qual o ritmo dos acontecimentos e do conjunto sensorial de imagens flui mais lentamente. O paradigma desse novo ecossistema cognitivo informacional, em um contexto que a subjetividade depende muito dos papis sociais exercidos pelos indivduos, levando-se a novas territorializaes, a partir da construo de relaes sociais materiais e imateriais. Nesse contexto, tudo o que for capaz de produzir uma diferena (informao) candidata-se a ser uma entidade atuante do ecossistema, definida pela prpria diferena que produz. Sob essa tica, podemos classificar simetricamente homens e dispositivos tcnicos como entidades do novo ecossistema cognitivo. Essa perspectiva est em sintonia com o pensamento de Lvy, o qual afirma que os dispositivos tcnicos so, portanto, atores por completo em uma coletividade que j no podemos dizer puramente humana, mas cuja fronteira est em permanente redefinio (Lvy, 1993, p. 12). Como em uma avalanche, despenca a antinomia inrcia-objetiva versus ao-subjetiva. importante ressaltar o carter de abertura desse novo ecossistema cognitivo. O nmero de artefatos que podem ser incorporados a essa construo de coletivos hbridos indefinido, gerando circuitos crescentes de complexidade. Nesse novo ecossistema cognitivo, agrega-se uma quarta dimenso, noolgica, ao Lebenswelt, alterando-se o enclave tridimensional no qual estamos perceptualmente situados, criando-se o que propomos chamar de ciber-Lebenswelt. O ciberespao, como elemento complexificador do real, dilata a realidade, dotando-a de uma camada virtual. O espao euclidiano apropriado para o corpo, com seu apego s superfcies, solidez, resistncia. O ciber-Lebenswelt apropriado para a mente, com sua tendncia para conectividade, a complexidade, a incerteza e o caos. O ciber-Lebenswelt abrange todos os fluxos informacionais, codificados em qualquer tipo de mdia ou sistema semitico, sem limites de tamanho, tipologia ou estrutura lgica. , efetivamente, noosfera uma instncia que possibilitou, pela primeira vez, a materializao da noosfera e sua disponibilizao em nvel mundial. Desde ento, a noosfera, assim ampliada, alterou o meio no qual vivemos e passou a ser um elemento condicionante de nossa cultura. Condicionante porque abre algumas possibilidades de ao que no existiram sem sua presena. Nossa proposta aproxima-se da de Pierre Lvy, quando esse discute os relacionamentos entre tcnica e configurao social:

uma organizao social pode ser considerada como um dispositivo gigantesco servindo para reter formas, para selecionar e acumular as novidades, contanto que nesta organizao sejam includas todas as tcnicas e todas as conexes com o ecossistema fsico-biolgico que a fazem viver. As sociedades, estas enormes mquinas heterclitas e desreguladas (estradas, cidades, atelis, escritas, escolas, lnguas, organizaes polticas, multides no trabalho ou nas ruas...) secretam, como sua assinatura singular, certos arranjos especiais de continuidades e velocidades, um entrelace de histria (Lvy, 1993, p. 76).

Lvy insiste na funo transformadora dos novos dispositivos informacionais e comunicacionais, com as modificaes tcnicas inexoravelmente acarretando modificaes na coletividade cognitiva, em um meio no qual se entrelaam mentes e redes tcnicas de armazenamento, transformao e transmisso das representaes:

o ser cognoscente uma rede complexa na qual os ns biolgicos so redefinidos e interfaceados por ns tcnicos, semiticos, institucionais, culturais. A distino feita entre um mundo objetivo inerte e sujeitos-substncias que so os nicos portadores de atividade e de luz est abolida (Lvy, 1993, p. 161).

Lvy qualificou esse novo ambiente, acrescido de uma camada virtual de processamento de informaes e expanso dos sentidos, como a dimenso transcendental da informtica: tanto culos como espetculo, a nova pele que rege nossas relaes com o ambiente, a vasta rede de processamento e circulao da informao que brota e se ramifica a cada dia, esboa pouco a pouco a figura de um real sem precedentes (Lvy, 1998, p. 16).

Com as novas tecnologias, as concepes ingnuas sobre espao foram definitivamente superadas. A dimenso fundamental dessa mudana no se reduz ao carter instrumental das novas tecnologias (perspectiva da tecnologia como prtese) nem tampouco sua capacidade de atuar como um fator condicionador das conscincias (perspectiva antropolgica). Antes, tem um valor ontolgico prprio, como princpio gerador de um novo real. O historiador da tecnologia, Lewis Mumford, j destacava isso com relao a eras passadas da idade da mquina:

cada uma das trs fases da civilizao da mquina deixou seus depsitos na sociedade. Cada uma mudou a paisagem, alterou o layout fsico das cidades, usou certos recursos e desdenhou outros, favoreceu certos tipos de commodities e certos caminhos de atividade, e modificou a herana tcnica comum (Mumford, 1963, p. 268).

A rapidez e a profundidade com que se instalou o ciber-Lebenswelt trouxe, contudo, uma sensao de deslocamento e um ansiamento basilar, tendo em vista que, conforme alerta Pinker, nossa mente adaptada para os pequenos bandos coletores de alimentos nos quais nossa famlia passou 99% de sua existncia, e no para as desordenadas contingncias por ns criadas desde as revolues agrcola e industrial (Pinker, 1998, p. 223). Mumford registrou alerta semelhante:

ns tempos multiplicado as demandas mecnicas sem multiplicar, em qualquer grau, as nossas capacidades humanas para registrar e reagir inteligentemente a elas. Com as demandas sucessivas do mundo exterior to freqentes e to imperativas, sem qualquer respeito sua real importncia, o mundo interior se torna progressivamente miservel e sem forma (Mumford, 1963, p. 273).

1.3. Ciber-Lebenswelt: deslocamento e ansiedade

Cada milha de terreno ganha pelo ciber-Lebenswelt representa uma milha a mais de deserto no real. Efeitos fsicos (anulao da paisagem, desertificao do territrio, abolio das distines reais) alcanam seu pice na esfera virtual (abolio das distncias mentais, compresso absoluta do tempo) e retroagem sobre o fsico, causando um curto-circuito entre o geogrfico e o noolgico. Cada novo agenciamento entre o orgnico e o inorgnico complexifica essa cartografia, materializando um espao elstico no qual as extenses se recobrem, se deformam e se conectam. Sobre esse aspecto, Lvy afirma que

a velocidade (e o virtual no fundo um modo de velocidade) no faz com que o espao desaparea, ela metamorfoseia o sistema instvel e complicado dos espaos humanos. Cada novo veculo, cada nova qualidade de acelerao inventam uma topologia e uma qualidade de espao que se acrescentam s precedentes, articulam-se com elas e reorganizam a economia global dos espaos (Lvy, 1999, p. 216).

McLuhan (1996) localiza como primeiro grande impacto dessa natureza o domnio da eletricidade, que liquidou a seqncia e instaurou a simultaneidade. Com a instantaneidade, as causas dos fenmenos emergiriam na conscincia, o que no acontecia com as coisas em seqncia e em conseqente concatenao. Para esse autor,

a mensagem de qualquer meio ou tecnologia a mudana de escala, cadncia ou padro que esse meio ou tecnologia introduz nas coisas humanas. A estrada de ferro no introduziu movimento, transporte, roda ou caminhos na sociedade humana, mas acelerou e ampliou a escala das funes humanas anteriores, criando tipos de cidades, de trabalho e de lazer totalmente novos (McLuhan, 1996, p. 22).

Qualquer nova tecnologia, seja de comunicao ou no, afeta inevitavelmente o meio ambiente humano e social. No complexo perceptual do ciber-Lebenswelt, o indivduo deixado aos seus prprios meios incapaz de atribuir significado a um espao que se tornou to carregado de indcios que s a velocidade instantnea das mquinas capaz de interpretar. O ciber-Lebenswelt causou uma eroso do prprio princpio de realidade, apresentando como real o resultado do cruzamento de representaes e interpretaes, em um processo de mltiplas reconstrues.

Virilio se preocupa com as repercusses dessa realidade acelerada:

cada vez que inauguramos uma acelerao, no apenas reduzimos a extenso do mundo, mas esterilizamos tambm os deslocamentos e a grandeza dos movimentos, tornando intil o gesto do corpo locomotor. Da mesma forma, perdemos o valor mediador da ao em proveito da imediatez da interao (Virilio, 1999, p. 119).

O que provoca a preocupao de Virilio o desencadeamento de um processo de privao sensorial, devido dissipao tecnolgica da nossa capacidade de percepo, causando uma alienao da capacidade de agir em proveito da de reagir. O ciber-Lebenswelt um espao sem distncia, o que implica um eu sem espao:

no habitamos mais a geometria nem a Terra, nem a medida, mas uma topologia sem mtrica, sem distncia, um espao qualitativo (...) o fato de habitarmos um espao topolgico doravante sem distncia muda nosso destino e nossas filosofias e, antes, nossa antropologia: no somos mais os mesmos homens (Serres, 2003, p. 230).

Est acontecendo a coliso entre o real (freqncia nula) e o virtual (altssima freqncia). Para sobreviver ao choque e superar esse sentimento de deslocamento e ansiedade, o homem precisa assumir as rdeas de sua evoluo, criando formas de imerso na pluralidade sensorial das urbanidades, da convivncia com multides, da comunicao instantnea e da telepresena. Serres argumenta que precisamos passar de naturados, quero dizer, mergulhados de modo passivo numa natureza que significa o conjunto do que nasce ou do que vai nascer sem ns, a naturantes, arquitetos e construtores ativos dessa natureza (Serres, 2003, p. 49) .

Segundo Serres, o processo de hominizao semelhante a uma pro-duo uma auto-construo, na qual as tcnicas tm o papel fundamental de defender nosso corpo, protegendo-o, cada vez mais poderosamente, da seleo natural, acabando, como resultante, por dela nos afastar. Conforme Morin, veremos a possibilidade crescente de introduo dos atributos do ser vivo nas mquinas (ou seja, a auto-organizao e a autoproduo), de introduo dos atributos da inteligncia humana na inteligncia artificial e dos atributos artificiais no organismo humano (prteses, rgos de sntese) (Morin, 1993).Um processo no qual a tcnica, ao invs de se beneficiar de uma abstrao da vida (objetivao), vai procurar cada vez mais sua integrao com ela (subjetivao). Vemos a transcendncia de duas falcias histricas: a de que o mecanismo no teria nada a aprender com a vida e a de que a vida no teria nada a aprender com o mecanismo. o regime da parabiose, no qual

conectado a cmeras, instrumentos e aparelhos de controle, o crebro v, sente e responde aos estmulos. Ele est no controle de seu prprio destino. A mquina seu corpo; ele a mente da mquina. A unio da mente e da mquina criou uma nova forma de existncia, to bem projetada para a vida no futuro como o homem foi projetado para a vida na savana africana (Mazlish, 1993).

O grande desafio para o futuro integrar os desenvolvimentos das novas tecnologias de informao e comunicao ao modo de vida dos usurios e, principalmente, propiciar uma interao com o agente orgnico. Tato e viso j no sero suficientes para absorver a quantidade de informaes disponveis e continuamente geradas, e os computadores pessoais devero se tornar cada vez mais ativos na interao com o ser humano, agindo como uma extenso de suas faculdades naturais. As tecnologias de informao e comunicao sero prteses mentais, proporcionando mixagens cognitivas complexas e cooperativas e imprescindveis para a realizao do cidado do futuro. As prteses alteram nossa corporeidade e, conseqentemente, nossos processos dialgicos. As novas linguagens que esto surgindo nas salas de chat e nas trocas de SMS so apenas a ponta desse iceberg.

1.4. Espaos mentais ampliados: res cogitans in extensaO pensar no se d fora do lugar. Se espao significado, pensamos no lugar e pensamos o lugar. O homem sobreviveu atribuindo significado ao seu espao e passou a existir (ex-sistere) justamente quando se tornou capaz de exercer essa atividade simblica. Desprovido de um habitat que lhe seja prprio e, no se sabe se causa ou conseqncia, privado de especializaes orgnicas que o acoplassem a determinada regio, o homem produz o seu ambiente, em um primeiro momento, para, posteriormente, ser produzido por esse ambiente.

A rede de significados que atribui e espalha pelo ambiente protege o homem, cria o seu Lebenswelt. A propsito, Dennett escreve:

a fonte primria, quero sugerir, nosso hbito de descarregar tanto quanto possvel de nossas tarefas cognitivas no ambiente propriamente dito extrudando nossas mentes (que , nossas atividades e projetos mentais) no mundo circundante, onde uma rede de dispositivos perifricos que construmos pode armazenar, processar e representar nossos significados, enfaixando, fortalecendo e protegendo o processo de transformao que nosso pensamento (Dennett, 1996, p. 134).

No faz diferena se os dados esto armazenados no organismo ou no mundo externo. O que importa a disponibilidade de recuperao e uso dos mesmos quando necessrios. Sobre essa perspectiva, Damsio afirma que, ao longo desse processo,

medida que o crebro vai incorporando representaes dispositivas, de interaes com entidades e situaes relevantes para a regulao inata, ele aumenta a probabilidade de abranger entidades e situaes que podem ou no ser diretamente relevantes para a sobrevivncia. E, quando isso sucede, nosso crescente sentido daquilo que o mundo exterior possa ser apreendido como uma modificao no espao neural em que o corpo e o crebro interagem (Damsio, 1996, p. 146).

No pensamos as coisas. Pensamos com as coisas. Mais do que nos instrumentalizar (adjetivo), a tcnica altera nossas ontologias (substantivo). Os objetos tcnicos, assim apropriados, so, conforme a argumentao de Clark (CLARK, 2003, p. 4), mindware upgrades, saltos cognitivos que transformam a efetiva arquitetura da mente humana. A extenso ambiental de nossa mente enxerta novas percepes em um construto prvio, o mapa mental de nosso contexto. Quanto mais se expandem, mais essas extruses se mesclam quilo que se compreende conscienciosamente por espao.

Se os seres humanos na atualidade so capazes de processos cognitivos mais sofisticados do que os dos homens das cavernas, isso no se d porque somos mais inteligentes, mas sim porque construmos ambientes mais inteligentes. Hutchins afirma que os humanos criam seus poderes cognitivos ao criar os ambientes nos quais eles exercem esses poderes (Hutchins, 1994, p. 169). Sobre isso, Lvy argumenta que as atividades humanas abrangem, de maneira indissolvel, interaes entre pessoas vivas e pensantes; - entidades materiais naturais e artificiais; - idias e representaes (Lvy, 1999, p. 22).

O res cogitans est indissociadamente ligado a uma res extensa: s cogitamos no extenso. Talvez isso de d por uma necessidade inexorvel e por um limite orgnico. O ato de construir uma casa, por exemplo, pode ser entendido como um esforo de reduo do custo cognitivo dos processos atencionais, quando aplicados a todo o ambiente. O limite orgnico dado pela estreiteza do consciente que determina uma reduo de informao, o que se d mediante uma reproduo homomorfa de contedos (processamento simblico) e conduz a uma transposio do ato de pensar para um operar externo. 1.5. Espaos purificados: o virtual

Na Antiguidade, os espaos produzidos pelo homem (cidades) eram enclaves em um planeta dominado pela natureza. Na atualidade, reas naturais ainda virgens so pequenos enclaves diante dos espaos produzidos pelo homem. O Lebenswelt aproxima-se da destruio do Umwelt. de Heisenberg a afirmao de que no mundo tecnicamente formalizado, ns nos deparvamos, de certa forma, sempre conosco mesmos (Heisenberg, 1956, p. 42). O homem aproxima-se de vencer a batalha contra a natureza, apenas para se ver diante de um novo natural, permeado de suas intervenes tcnicas.Para Serres, de agora em diante no habitamos mais essa forma entrelaada, mas um espao qualitativo, sem distncia, sem referncia pontual ou polar (Serres, 2003, p. 199). Vivemos e pensamos no lugar e para alm dele, em um universo que no tem endereo. A noo de espao se torna complexa, a partir do momento em que se abandona a dicotomia mente-ambiente e se assume que uma infinidade de materiais e imateriais est presente e constitui nosso cotidiano. A partir desse ponto de vista, o espao nunca dado de antemo, mas adquirido, produzido pelo desenvolvimento do homem. E, como tal, est em constante transformao. Os modos de captar o espao variam ao ritmo da evoluo antropo-tecnolgica. No se trata de simplesmente negar o conhecimento apriorstico do espao, kanteano, como estrutura sobre a qual itens ordenados espao-temporalmente e interconectados por nexos causais vo configurar a experincia. Mas sim de afirmar que a participao ativa do ser humano no mundo (que se torna possvel a partir do quadro colocado por Kant) vai criar novos espaos, alterando aquela estrutura e retroagindo sobre o ser, ditando como ele percebe, ordena e unifica a sua experincia. Nos dizeres de McLuhan, os ambientes no so envoltrios passivos, mas professores ativos (McLuhan, 1996, p. 10).

Retomando a afirmao de Heisenberg de que no mundo da tcnica ns nos deparamos com ns mesmos, temos um ambiente de domnio total. Porm, restam ainda algumas cidadelas do natural, com suas imprevisibilidades desconcertantes, bem como o regime randmico das intempries e catstrofes naturais o homem ainda no calou a voz dos vulces. Existe, entretanto, um novo espao, purificado desses resqucios primitivos, totalmente abstrato e qualitativo: o virtual. Para Maciel,

as imagens virtuais so aquelas que preexistem ao real e geram realidade (...) Elas anunciam que atingiram enfim a ambio de toda e qualquer imagem: representar da forma mais perfeita e verdadeira o real, e destroem assim toda a idia de representao porque no mais representam: elas so (Maciel, 2004, p. 255).

As operaes algbricas das mquinas informacionais no apenas abarcam camadas do real que so inacessveis aos rgos sensitivos humanos, mas tambm criam e efetivam realidades no experenciveis a realidade virtual. Ao passo que o espao euclidiano apela primariamente ao corpo fsico, o espao virtual apela mente. Os mundos virtuais so envolventes, imersivos, diferentes da televiso. Entrar na realidade virtual traz a sensao de uma mudana de dimenso. Mudana que nos muda. Sobre esse aspecto, Santaella afirma que a verdadeira natureza da realidade virtual no est na mera produo de objetos, mas em estender e expandir sujeitos (Santaella, 2003, p. 306). Temos que aprender a construir buracos de minhoca entre lugares reais e virtuais, lidando com corpos reais e telepresenas em um mesmo continuum: ns podemos estar em casa e itinerantes, no cho e deslocados, os dois ao mesmo tempo (Ascott, 1997, p. 343). Nossos corpos so transduzidos em entidades fantasmas capazes de atuar dentro de espaos de dados e digitais (Sterlac, 1997, p. 61). A telepresena, a imerso sensorial e a conectividade imaterial, premissas da realidade virtual, mudam nossa identidade, nossa conduta e os ambientes que desejamos habitar. Estamos nos familiarizando com a noo de uma presena distribuda o self que existe em muitos mundos e desempenha muitos papis simultaneamente. Alguns filmes atuais, como Beowulf e O Expresso Polar, usam uma tcnica em que as imagens capturadas dos atores, reais, so submetidas a um tratamento que as distancia da impresso de realidade, em um procedimento chamado tecnicamente de performance capture, no qual os atores vestem uma malha que permite capturar os movimentos de seus corpos. Reduzidos a informao e transferidos para um computador, os movimentos so reconstrudos por meio de computao grfica. Acontece, portanto, um processo de desrealizao, ou uma virtualizao da figura original dos atores. Para um crtico que analisou o processo, com o advento do digital, o suporte perde a materialidade e, com ela, o peso da realidade que tambm se evapora. Ou melhor dizendo, se virtualiza (FILME..., 2007, e4).Os mundos virtuais instauram uma nova ordem perceptiva e vivencial, criando paisagens artificiais e ambientes imaginativos diferenciados, com efeitos subversivos, pois confundem os limites que impomos sobre o mundo para podermos tirar sentido dele. No virtual, acham-se ausentes a fragilidade e a vulnerabilidade das identidades primrias e h uma sensao de onipotncia. Essa sensao, todavia, nasce de um simulacro. Os ambientes virtuais apenas simulam um espao de liberdade, no oferecendo, de fato, mais do que um espao fragmentado, no qual o homem interage com cdigos institudos. A realidade virtual apresenta-se como a prpria idia de uma transformao infinita e da ubiqidade tornada visvel. menos realidade e mais vestgio de realidade, onde os movimentos geram o prprio espetculo de seus resultados. Imerso nesse ambiente de resultados fiis, mas cuja operao lhe oculta, o indivduo fica incapacitado de assumir o papel de criador ele no inventa esse mundo, seu usurio. Baudrillard, acerca dessa possibilidade, registra:toda pergunta encontra-se atrelada a uma resposta preestabelecida. Encarnamos, ao mesmo tempo, a interrogao automtica e a resposta automtica da mquina. Codificadores e decodificadores nosso prprio terminal, nosso prprio correspondente. Eis o xtase da comunicao. No mais outro em face, e nada mais de destino final. O sistema gira, desse modo, sem fim e sem finalidade. Resta-lhe a reproduo e a involuo ao infinito. Da a confortvel vertigem dessa interao eletrnica e informtica como uma droga. Podemos passar a uma vida inteira, sem interrupo. A droga mesma nunca mais do que o exemplo perfeito da louca interatividade em circuito fechado (Baudrillard, 2002, p. 132).

Minha deciso no to livre se eu decidi nos limites do programa. Parafraseando Adorno, a sensao de mxima liberdade, propiciada pela vasta quantidade de escolhas disponveis, mascara a realidade de servido. Preocupado com essa perspectiva, Flusser (FLUSSER, 2007, p. 64) afirmou que como se a sociedade do futuro, imaterial, se dividisse em duas classes: a dos programadores e a dos programados. A primeira seria daqueles que produzem programas, e a segunda, daqueles que se comportam conforme o programa. Essas abordagens identificam um carter pavloviano de condicionamento reacional na realidade virtual. Com todas as reaes j pr-programadas, o mapa cobre todo o territrio. A realidade virtual no tolera opacidade ou mistrio. No h espao para o transcendente. No momento em que se expande ao infinito (a expanso mxima do virtual), o espao implode, colapsando-se sobre si mesmo e dando origem a um novo universo. O homem sofre, ento, uma anestesia, causada pela hiperparalaxe do movimento tempo e espao se anulam.

2. O CORPO EXPANDIDO

2.1. O corpo sem fronteiras

O corpo morreu. O corpo vive. Viva o corpo!

Morreu o corpo cartesiano, definido por Descartes como algo que est circunscrito em algum lugar e preenche um espao do qual exclui todo outro corpo (Descartes, 1642/2004, p. 47).

Vive um corpo que um amlgama de componentes heterogneos, uma entidade material-informacional cujas fronteiras so indefinidas, translcidas e esto em permanente redefinio. A inexistncia de fronteiras literal. O contedo fsico do que somos feitos muda completamente a cada sete anos.No nvel atmico, mantemos um constante e dinmico dilogo com os outros corpos e com o mundo inanimado nossa volta: somos permeveis. Essa permeabilidade fsica nos torna seres oscilantes e algo enevoados, cujas fronteiras esto sempre em movimento. Chomsky (2005) alertou para a impossibilidade da resoluo do problema da relao mente-corpo, seja por termos uma compreenso muito limitada do que a mente, seja por no termos critrios adequados para definir o que se constitui um corpo.Em um simples videogame domstico, h um capacete que l os estados mentais e reconhece expresses, permitindo que o jogador interaja com a mquina com a fora de seus pensamentos. Em um experimento internacional, conduzido por um brasileiro, uma macaca nos Estados Unidos movimenta um rob no Japo usando somente a fora de seus pensamentos. Um jovem paraplgico com eletrodos implantados no crebro conseguiu movimentar uma seta na tela de um computador e abrir e fechar uma mo mecnica. A norte-americana Claudia Mitchell foi a primeira humana a receber um brao binico, controlado pela sua mente. Os nervos que controlavam seu brao amputado foram retirados do ombro e conectados a nervos na musculatura peitoral. Aps alguns meses, eles cresceram no tecido muscular. Posteriormente, eletrodos conectados a uma placa no ombro foram usados para detectar impulsos emitidos dos nervos para o msculo e da para o brao. Segundo Beiguelman, impe pensar em um dos mais desconcertantes temas da contemporaneidade: os tnues limites que hoje se colocam entre homens, objetos que incorporam qualidades e seres vivos codificados por informaes digitais (Beiguelman, 2005, p. 14).

Lidar com esse corpo como conjunto de bits escaneveis e intercambiveis em detrimento do corpo bioqumico, orgnico, mais afeito s tradies, um novo desafio. Bergson destacava que

a separao entre a coisa e seu ambiente no pode ser absolutamente definida: passa-se, por gradaes insensveis, de uma ao outro: estrita solidariedade que liga todos os objetos do universo material, a perpetuidade de suas aes e reaes recprocas, demonstra suficientemente que eles no tm os limites precisos que lhes atribumos (Bergson, 1999, p. 246).O corpo precisa ser repensado, a partir de sua localizao em um espao semntico de interface e extenso, transcendendo os limites do psquico e do biolgico, em um movimento que vai dos limites genticos para a extruso eletrnica (Sterlac, 1997, p. 52). O ser humano uma produo, que se d na interseco de processos mltiplos, heterogneos e no necessariamente biolgicos. A incompreenso desses processos e sua lgica pode levar a uma disjuno paralisante, conforme prev Da Costa: ainda que mergulhados num certo modo da produo de si, cotidiano, concreto, pregnante e maqunico, continuaremos contudo atrelados a uma compreenso desse si segundo parmetros unidimensionais e abstratos do humano (Da Costa, 1997, p. 64).

Como um ser orgnico deficitrio, o corpo precisou se libertar de suas condies iniciais, passando a se caracterizar por uma abertura para o mundo (Weltoffenheit). Ao passar por mudanas em sua corporeidade, o ser humano afetado em seu modo de experenciar as dimenses do tempo e do espao, bem como nas formas em que utiliza o seu corpo. Esse nosso corpo , ao mesmo tempo, formado pela tecnologia e criador de tecnologia, mediando entre a tecnologia e o discurso, por meio da criao de novos referenciais de absoro da experincia imediata, que, por sua vez, propiciam as marcas sgnicas para a criao de sistemas discursivos correspondentes. Esse um dos sentidos quando afirmamos que a tecnologia constitutiva do homem.

Sobre esse assunto, Lecourt afirma: no, a tcnica no exterior vida humana. Sada da vida, ela encontra na vida o seu lugar e a se insere e compe suas normas. E esse lugar o do indutor de individuao que correlativamente toca objetos e sujeitos (Lecourt, 2005, p. 76). A subjetividade produo, cuja cartografia ultrapassa os limites do corpo. O corpo fundo e, como tal, um dos territrios sob o domnio da tcnica moderna. Quanto a esse aspecto, Da Costa afirma que:ele [o corpo] deve ser forado segundo o uso ao qual o destinamos: a engenharia gentica tem cuidado dele antes mesmo que ele exista, e decide como ele dever ser, a inseminao e a gestao artificiais fazem-no existir l onde no poderia, as prteses tecnolgicas e os transplantes de rgos fazem-no viver mesmo quando gostaria de morrer, a cirurgia esttica repara as suas falhas e configura-o como o queremos: o corpo no mais um j-dado, ou antes, o horizonte mesmo do j-dado caminha para desaparecer (Da Costa, 1997, p. 309).

Desde o incio, o processo evolutivo da humanidade esteve marcado por um crescente poder de disposio tcnica sobre as condies ambientais. O homem supera as inadequaes e insuficincias de sua morfologia ao converter as contingncias perigosas da natureza em desafios para um agir contingente, o que consegue construindo um mundo objetivo de coisas e acontecimentos perceptveis e manipulveis, que permita resolver tais problemas de ao (Habermas, 2003, p. 93).

Nesses primrdios, estava presente a noo da tcnica, concebida maneira de uma utensilidade, um elemento exterior que ento apropriado e assume papel decisivo nos xitos do homem no processo de integrao dos diferentes meios de suas atividades em um ambiente global que transcende a todos. Esse um dos fatores pelos quais se afirma a tecnologia como elemento constitutivo do homem e condicionante da vida em sociedade, presente em todas as fases do desenvolvimento civilizatrio. Flusser afirmou que

fabricar significa apoderar-se (entwqenden) de algo dado na natureza, convert-lo (umwenden) em algo manufaturado, dar-lhe uma aplicabilidade (anwenden) e utiliz-lo (verwenden). Esses quatro movimentos de transformao (Wenden) apropriao, converso, aplicao e utilizao so realizados primeiro pelas mos, depois por ferramentas, em seguida pelas mquinas e, por fim, pelos aparatos eletrnicos (Flusser, 2007, p. 36).

Os aparatos eletrnicos, quando assumem essa funo de transformao, constroem verses alternativas da realidade, mltiplas formas de experimentar o aqui e o agora, as quais convencem, comovem e se tornam reais. Prometeu, que capturou o fogo, tornou-se o mito fundante da tecnologia e localiza-se no incio da trajetria de conquista da humanidade. O fogo exteriorizou, pela primeira vez, uma funo eminentemente orgnica (digesto), serviu para afastar predadores e contribuiu para tornar possvel a vida em sociedade, mesmo diante dos rigores do inverno. Elemento natural e externo, o fogo foi apropriado, passando a ser um fazer humano, lanando uma cortina de nvoa que confunde, ao olhar, a distino entre o que natural e o que artificial. Nessa perspectiva, Lemos disse que a relao homem-tcnica um contnuo. No podemos insistir numa separao ntida entre os homens e seus artefatos. Esta dicotomia estabelecida a partir de uma mitologizao da relao homem-tcnica, associando o humano ao divino e a tcnica ao profano (Lemos, 2002, p. 190).

Ao olhar para o fogo, o homem recolhe informaes sobre o estado da realidade e sobre as propriedades dos corpos e dos fenmenos, armazenando-as em seu centro intelectual perceptivo. A j residia a semente de uma correlao que viria a ser determinante da humanidade: o homem produz o fogo que, por sua vez, passa a produzir o homem, ao lhe dar condies mais convenientes de existncia. Nesse momento, h uma manifestao do processo evolutivo da espcie humana, pois o homem, antes obrigado, como os demais animais, a realizar os atos necessrios sua sobrevivncia dispondo apenas do emprego de seus membros e msculos, passa a discernir a possibilidade de combinar elementos do mundo fsico para a produo de efeitos teis.

Com isso, perde sentido a dicotomia natural/artificial, passando esses plos de uma relao antagnica uma de correspondncia e complementaridade. As novas tecnologias representam uma continuidade amplificada dessa relao, apenas uma crescente complexificao de um princpio que j se instalou de sada na instaurao do humano (Santaella, 2003, p. 244).

As novas tecnologias de informao e comunicao reorganizam as camadas de sensibilidade do ser humano, ao ampliarem o seu campo perceptual. Os espaos do digital e do eletrnico reestruturam a prpria arquitetura do corpo e multiplicam suas possibilidades operacionais. O sentido de ser humano deixa de ser restrito priso de um corpo para se abrir para um alm da pele, extrusivo, reconfigurado no campo de um mundo cbrido, pautado pela interconexo de redes e sistemas on e off line (Beiguelman, 2005, p. 160).

o corpo que acessa a internet, se pluga em dispositivos portteis de comunicao wireless, assumindo o nomadismo como princpio. Dispositivos virtuais aceitam, transformam e respondem s aes do corpo biolgico, como corpos sintticos, capazes de manipular dados biolgicos como calor, movimento, sopro, sons. Para Domingues, no momento em que ocorrem essas interaes, o corpo como aparato sensorial entra num curto-circuito plurissensorial em que sua modalidade analgica se funde modalidades digitais (Domingues, 1997, p. 25).

A pele j no funciona mais como fronteira para o eu, nem como lcus do colapso do pessoal e do poltico. Sterlac, ciberartista engajado, afirma que

esticada e penetrada por mquinas, a PELE NO MAIS A SUPERFCIE SUAVE E SENSUAL DE UM LOCAL OU UMA TELA. A pele no significa mais clausura.A ruptura da superfcie e da pele significa o apagamento do interno e do externo. Como interface, a pele inadequada [maisculas do autor] (Sterlac, 1997, p. 55).

Vivemos uma realidade ciberntica, na qual nossos corpos e suas superfcies so membranas pelas quais a informao flui. As redes teleinformticas e os dispositivos neotecnolgicos esto provocando uma alterao brusca na forma de vivncia das interioridades subjetivas, foradas cada vez mais para fora do claustro. O corpo permevel se dissolve e o senso de individualidade fsica e mental declina. Conforme Domingues

corpo e sistema entram em cpulas estruturais, onde as respostas do sistema so incorporadas pelo corpo, numa experincia encarnada dos tecnodados, enquanto os biodados, como informaes do corpo, so processados e transformados em paradigmas computacionais pelas tecnologias que evoluem em suas respostas (Domingues, 2003, p. 96).

As fronteiras do corpo passam a ser definidas mais pelos fluxos informacionais e seus ciclos de feedback do que pela superfcie epidrmica: o corpo morreu. Morreu como representao objeto entre os objetos. Tornou-se um sistema, cujas partes podem ser montadas e desmontadas, deixando de ser uma entidade cuja completude orgnica possa ser assumida. O corpo vive: vive como emergncia de um novo tipo de subjetividade, constituda no entrecruzamento do orgnico com a materialidade da informtica e a imaterialidade da informao. Santaella nos alerta que essa redefinio do que sejam as fronteiras do corpo humano se d em mltiplas dimenses:

os limites que definem o que propriamente humano e o que os diferencia dos no-humanos (natureza/artifcio, orgnico/inorgnico); os limites que o habitam e o constituem (matria/ esprito) e os limites que diferenciam na experincia mediada por artefatos tecnolgicos (presena/ausncia, real/simulacro, prximo/longnquo) (Santaella, 2004, p. 29).

Essa reconfigurao do corpo e seus limites instaura uma nova forma de continuidade entre o ser pensante, entendido como o conjunto de tecidos orgnicos nos quais o pensamento se manifesta, e o mundo, no qual tanto os pensamentos quanto seu substrato tecidural existem. A essa nova entidade, Santaella chama de corpo biociberntico, o fruto da crescente ramificao do corpo em mltiplos sistemas de extenses tecnolgicas, culminando em perturbadoras previses de sua simulao na vida artificial (Santaella, 2004, p. 98) e de sua replicao, resultante da decifrao do genoma. por essa razo, ainda segundo Santaella, que o corpo humano se tornou problemtico e o debate sobre o novo estatuto do corpo e uma correspondente nova antropomorfia tem estado no mago dos questionamentos sobre o que ser humano no sc. XXI.

Abandonar definitivamente o conceito cartesiano de identidade-corporal, segundo o qual uma pessoa definida pela substncia de seu corpo deixa, como possibilidade, a migrao para o conceito de identidade-padro, no qual a essncia de uma pessoa definida pelo padro de processamento informacional que acontece em seu complexo corpo-crebro. O conceito de identidade-padro bebe diretamente da fonte do pensamento ciberntico, o qual j sinalizada para um corpo sem fronteiras, poroso e permevel:

o padro mantido por essa homeostase que a pedra de toque de nossa identidade pessoal. Nossos tecidos se alteram medida que vivemos: o alimento que ingerimos e o ar que respiramos tornam-se carne de nossa carne, osso de nossos ossos, e os elementos momentneos de nossa carne e de nossos ossos so-nos eliminados diariamente do corpo por meio dos excretos. No passamos de redemoinhos num rio de gua sempre a correr. No somos material que subsista, mas padres que se perpetuam a si prprios (Wiener, 2000, p. 95).

Assumir o conceito de identidade-padro significa deixar em aberto a possibilidade de preservao de um indivduo via preservao de seu padro informacional correspondente, o que leva alguns tecnoentusiastas a falarem em downloads completos de mentes em substratos artificiais. At mesmo pensadores mais tradicionais, como Edgar Morin, falam em demortalidade. Um corpo sem fronteiras pode vir a ser um corpo livre das fragilidades (e concupiscncias?) da carne. Para encerrar esse tpico, escolhemos uma citao do historiador de tecnologia, Mazlish, que sinaliza para as novas formas de relao entre mentes, corpos e mquinas:

conectado a cmeras, instrumentos e mquinas de controle, o crebro v, sente e responde aos estmulos. Ele est no controle de seu prprio destino. A mquina o seu corpo; ele a mente da mquina. A unio de mentes e mquinas tem criado uma nova forma de existncia, to bem apropriada para a vida no futuro como o homem foi concebido para a vida na savana africana (Mazlish, 1993, p. 220).

2.2. Artefatos e construo da corporeidade humana

Tateando, o ser descobre o mundo. Em uma era da primazia da viso, muitas vezes se esquece que a atividade sensorial primitiva de todos os animais, e a mais necessria, o tato, conforme j ensinava Aristteles (ARISTTELES, 1978, p. 174). na sensao hptica que se encontra o fundamento da catexia, o investimento de libido em algum objeto externo. O tato a gnese do desejo: basta por agora dizer que aqueles viventes que possuem tato possuem tambm desejo (Aristteles, 1978, p. 176). Ter desejo ter um sentido de propsito e ento estamos no incio da vida: processos auto-organizativos imbudos do desejo de se perpetuarem.

Muitos optam por situar a gnese do humano no primeiro uso de um artefato. A relao de apropriao do ambiente como ajuda para a realizao de alguma finalidade, porm, mais antiga e se mistura com a prpria origem da vida controlar o ambiente controlar a si mesmo. Um processo contnuo de aprendizado: se a vida um processo de conhecimento, os seres vivos constroem esse conhecimento no a partir de uma atitude passiva e sim pela interao. Aprendem vivendo e vivem aprendendo (Maturana & Varela, 2001, p. 12). Maturana e Varela afirmam, ainda, a indissociabilidade do ser e do fazer, em unidades autopoiticas. O que vai constituir o modo especfico de organizao do vivo o seu fazer.

A catexia primordial vista, em termos freudianos, como instinto sexual e instinto do ego, tenses entre o eu e o no eu, em uma constante batalha entre o impulso de fundir-se e o impulso igualmente forte de ficar separado. Ao longo desses jogos com o ambiente, nasce a produo e o uso de artefatos, como um resultado da aplicao de conhecimentos sobre causas e efeitos entre objetos, buscando alcanar objetivos. De uma postura estritamente fsica, adotada diante de objetos como pedras, passou-se a uma postura de design, conforme postulado por Daniel Dennett, na qual imputa-se uma inteno a um designer hipottico ou real.

O artefato, concebido por um designer, tem que ser, por definio, mais eficiente do que o homem na realizao de uma determinada tarefa. Do contrrio, no valeria a pena sua inveno, planejamento e construo. Para se til utenslio precisa funcionar como mediao transformadora da realidade, concebida pela conscincia e voluntariamente criada pelos agentes que dele podem dispor. Segundo Pinto,

somente quando a combinao de idias representativas de dados reais se articula num projeto exeqvel, isto , prope combinar qualidades dos corpos ou regularidades dos fenmenos, devidamente percebidas e generalizadas, em idias, numa produo passvel de ser objetivada, efetua-se a soluo da contradio que o homem tinha em vista resolver pelo ato produtivo (Pinto, 2005, p. 62).

Essa capacidade de ter uma postura de design obedecer s qualidades das coisas e agir de acordo com as leis dos fenmenos objetivos, de forma hbil precisamente a essncia da tcnica. A tcnica (tkhn) substituiu a magia como uma imunizao contra a sorte (tuch).

O artefato ampliou a rede de ligaes do homem com a natureza, modificando o seu sistema de relaes produtivas, ao propiciar-lhe condies de aumentar seu domnio sobre o meio circunstante. Em decorrncia, houve uma transferncia de propriedades inerentes ao orgnico, para os artefatos que o homem comeava a planejar, fabricar e utilizar, particularmente a capacidade de transformar as condies da realidade de acordo com finalidades concebidas. H nisso uma dimenso sacrificial, conforme colocado por Habermas:

a fora do sacrifcio consiste em intuir e objetivar o entrelaamento com o inorgnico mediante tal intuio, este entrelaamento fica roto, o inorgnico fica separado e, reconhecido como tal, assim assumido na indiferena, mas o vivente, ao entregar-lhe o que sabe que uma parte de si e ao sacrific-la morte, reconhece o seu direito ao mesmo tempo que dele se purifica (Habermas, 1968, p. 38).

Toda produo de artefatos contm a transferncia da idia de uma ao para um dispositivo material interior que vai imitar ou superar alguma das funes humanas. a continuao do mesmo processo dialtico iniciado quando os primeiros neandertalenses perfuraram um slex para raspar melhor as peles dos animais abatidos, poupando-se assim da sensao desagradvel de faz-lo com as unhas (Pinto, 2005, p. 104).

sua maneira, o artefato estabelece uma mediao entre o sujeito e o objeto que o modelo bsico da relao dialtica do processo de trabalho. Essa relao dialtica de trabalho uma das categorias determinantes do esprito humano. Por meio dos artefatos que criamos, injetamos um significado humano no material, o trazendo para um espao teleolgico e, assim, o transformando. Mas, ao fazer isso, tambm nos transformamos. Searle afirma que a pressuposio de funes ao artefato requer a noo de propsito e, com isso, a atribuio origina mais do que relaes meramente causais:

a capacidade que tm os seres humanos e alguns animais superiores de usar determinados objetos como ferramentas um fato extraordinrio a seu respeito. Trata-se de um aspecto da capacidade mais genrica de atribuir funes a objetos, nos casos em que a funo no intrnseca ao objeto, mas deve ser atribuda por algum agente ou agentes externos (Searle, 2000, p. 114).

Os artefatos acompanham a condio humana. Eles colocam o ser humano em uma situao de mais ajustamento ao ambiente, no s porque propiciam que o homem o remodele, mas tambm porque fazem o homem mais consciente dos limites de suas capacidades. Todo artificial, portanto, prolonga, em um certo sentido, a natureza e, em um outro sentido, ope-se a ela.

Ao contriburem para o processo de hominizao, os artefatos modificaram o homem. A capacidade de prolongar, em formas inditas, o movimento evolutivo da matria, criando modos diferenciados de produo para satisfao das suas necessidades existenciais e seus desejos, singular ao Homo sapiens. Quando cria um artefato, o homem o insere em seu prprio pensamento. Como objeto exterior o artefato elabora tecnicamente a tarefa que o pensamento no mais necessita fazer, pois descobriu a forma de deleg-la. Nessa linha de argumentao, conflui o pensamento de Lemos: a corticalizao que define o Homo sapiens se introduz nas primeiras armas e ferramentas construdas a base de slex talhado (...) At a fase de formao do crtex, ns podemos dizer que a evoluo da tcnica de cunho zoolgico (Lemos, 2002, p. 31). O que Lemos buscou enfatizar foi a medida em que a tcnica surge como um dos elementos fundamentais no processo de constituio da espcie humana.

O artefato encontra seu valor maior justamente como elemento constituinte da subjetividade, pois, quem o utiliza, o incorpora ao seu ser e, doravante, conta com ele como uma parte de seu organismo. como se o ser humano instalasse parte de seu crebro fora de si e fizesse dessa emanao um objeto de observao e de ensaio, interpretado pelo tecido cerebral ainda dentro do corpo, do qual a parte exteriorizada nunca se desprendeu. Foi uma soluo altamente eficiente na trajetria da espcie, como meio de melhorar suas possibilidades de sobrevivncia: o desenvolvimento da habilidade de representao do mundo exterior em termos das modificaes que produz no corpo propriamente dito, ou seja, representar o meio-ambiente por meio da modificao das representaes primordiais do corpo sempre que tiver lugar uma interao entre o organismo e o meio-ambiente (Damsio, 1996, p. 261). A percepo do mundo interiorizada por via de uma modificao no espao neural referente s interaes entre corpo e ambiente.

H um intercmbio de informaes entre os artefatos e os seus produtores, na forma dos resultados alcanados com a utilizao dos mesmos (feedback). No fosse assim, o homem restaria impossibilitado de criar instrumentos com os quais pudesse trabalhar, pois no seria capaz de estabelecer uma relao interpretativa que atribusse significado aos efeitos produzidos pelos artefatos. Dennett afirma o uso de artefatos como um sinal de inteligncia de mo dupla: no apenas preciso inteligncia para reconhecer e manter uma ferramenta (deixando de lado a fabricao), mas uma ferramenta confere inteligncia queles com sorte suficiente para receberem uma (Dennett, 1996, p. 100).

Tratando do tema, Habermas avaliou que os instrumentos fixam as regras segundo as quais se pode repetir, sempre que se quiser, a sujeio dos processos naturais (Habermas, 1968, p. 25). Os artefatos sedimentam as experincias generalizadas dos que os conceberam e utilizaram anteriormente, permanecendo universais frente aos momentos evanescentes dos desejos e do gozo (Habermas, 1968, p. 25).

A mediao que ocorre por meio do emprego dos artefatos um processo contnuo de exteriorizao do sujeito (objetivao) e apropriao. Uma tesoura, como um artefato bem concebido, no apenas um resultado de ao inteligente, mas um portador/incorporador de inteligncia inteligncia externa potencial. Algum diante de uma tesoura tem grande probabilidade de adivinhar sua finalidade. Em um certo sentido, o artefato reduz o custo cognitivo de processamento de informao ao se lidar com uma tarefa e representa o dispositivo que teria de ser empregado para se alcanar um resultado idntico, caso no tivesse sido inventado. Quando o humano olha para um galho e o imagina como um basto, o galho passa a significar o basto. Essa virtualizao do objeto e sua apreenso como um artefato um dos fundamentos da tcnica: toda tcnica est fundada nessa capacidade de toro, de desdobramento ou de heterognese do real (Lvy, 1996, p. 92). A funo do objeto se torna sua dimenso semntica. Sua resposta s necessidades do organismo o retira do estatuto indiferente de coisa e o inscreve no horizonte do significado.Os artefatos se tornam repositrios de conhecimento e, quando feitos com materiais durveis, seu conjunto acaba por vir a representar mais do que um indivduo pode saber. Por essa razo, Lvy afirma que mais que uma extenso do corpo, uma ferramenta uma virtualizao da ao. O martelo pode dar a iluso de um prolongamento do brao; a roda, em troca, evidentemente no um prolongamento da perna, mas sim a virtualizao do andar (Lvy, 1996, p. 75). Esse processo de virtualizao alcana as coisas, pois antes que os seres humanos houvessem aprendido a entrechocar pedras de slex acima de uma pequena acendalha, eles s conheciam o fogo ausente ou presente (Lvy, 1996, p. 75).

Bergson tambm chamou a ateno para o fato de que saber servir-se de um artefato j esboar os movimentos que se adaptam a ele, tomar uma certa atitude ou pelo menos tender a isso em funo daquilo que os alemes chamaram impulsos motores (Bewegungsantriebe) (Bergson, 1999, p. 106). O uso contnuo de um objeto, com uma determinada finalidade, termina por organizar movimentos e percepes. O que estava restrito imediatidade subjetiva da interioridade orgnica, passa, por inteiro ou em parte, ao exterior um objeto. Dialeticamente, contudo, a exterioridade tcnica s se torna eficaz quando novamente interiorizada. O uso de artefatos requer o aprendizado de gestos, a aquisio de reflexos, em uma certa recomposio da identidade fsica e mental. um movimento de expropriao/reapropriao. Quem utiliza um artefato modifica seus msculos e seu sistema nervoso, de modo a integrar o instrumento em uma espcie de corpo ampliado, modificado, virtualizado (Lvy, 1996, p. 74).

A percepo do mundo interiorizada por via de uma modificao no espao neural referente s interaes entre corpo e ambiente. Portanto, o antagonismo cartesiano entre o corpo e o ambiente no se verifica nem mesmo nos primrdios da espcie, quando um reles pedao de slex talhado j representava uma exteriorizao-interiorizada da mente, constituindo-se como um elemento ontologicamente associado espcie humana. As tcnicas so imaginadas, fabricadas e reinterpretadas durante seu uso, mas, de igual modo, o uso intensivo das tcnicas modifica o homem, passando a constitu-lo como tal.

Assim, a tcnica est imbricada na co-evoluo zoolgica do Homo sapiens, uma vez que age como fator potencializador das aptides e do fazer humano. Santaella corrobora essa viso ao afirmar que a tcnica um caso especfico da zoologia, na medida em que o fenmeno tcnico aparece como uma relao artificializada, mediada por artefatos, entre a matria orgnica viva e a matria inerte, deixada ao acaso na natureza (Santaella, 2003, p. 217). O ser humano no o nico a utilizar instrumentos. Porm, o nico que aplica conhecimentos acumulados fabricao de instrumentos. No neoltico, ocorreu um surto de desenvolvimento do crebro, comumente associado, pelos antropologistas, ao desenvolvimento da manufatura de utenslios (surgimento do Homo habilis). Foram necessrios mais de dois milhes de anos para que os primeiros utenslios de osso se transformassem em peas esculpidas. Antes, o homem teve que desenvolver a capacidade de guardar na mente as qualidades de dois tipos contrastantes de matria-prima, como a pedra e a madeira, bem como compreender quais eram os possveis efeitos de uma sobre a outra. O ser humano o nico que consegue se apoderar das conexes lgicas existentes entre os objetos e os fatos da realidade e as transferir, por inveno e construo, para outros objetos. o homem que inventa a tcnica, fazendo com que essa ingresse como fator na constituio de sua essncia. Incorporada cultura existente em um determinado momento, ela vai se tornar um legado para as outras geraes, contribuindo para possibilitar diferentes relaes de trabalho entre os homens. Segundo Pinto

nesse movimento de descoberta e apropriao incessantes, o homem acrescenta novas substncias, novas energias ao conjunto de elementos naturais, de que no poder mais prescindir. Segundo este ngulo de viso, conquista maior domnio custa de se deixar cada vez mais dominar (Pinto, 2005, p. 161).

A tcnica um modo de ser, est identificada com o movimento pelo qual o homem realiza sua posio no mundo, transformando este de acordo com o projeto que dele faz. A atividade instrumental voltada para a superao de desvantagens morfolgicas do humano, ao buscar converter as contingncias randmicas e potencialmente perigosas do ambiente em um mundo objetivo de coisas e acontecimentos previsveis e controlveis. Para Morin, desde as suas origens, a tcnica procurou remediar as carncias humanas. O ser humano dispe de mos hbeis, mas fracas em presso e batida. Corre, mas a baixa velocidade. No sabe voar. No dispe da capacidade dos pssaros para captar informaes magnticas e visuais para os seus deslocamentos. tambm a tcnica que realizar artificialmente as ambies e sonhos dele (Morin, 2005, p. 41).

Ao faz-lo, a mudana tcnica no altera apenas os hbitos da vida, mas tambm as estruturas do pensamento e dos valores humanos. Conforme Lecourt (2005), o telogo Hugo de Sant-Victor (sc. XII), em sua obra Didascalion, colocou essa questo na dimenso de um projeto de restituio do homem sua semelhana original com Deus:

perdida essa semelhana, arruinada pelo pecado original, o homem pode, pelas artes mecnicas, recuper-la, restaurando suas foras fsicas e reencontrando o caminho do domnio da natureza, que lhe tinha sido prometido desde o sexto dia da Criao (Lecourt, 2005, p. 66).

2.3. Sistemas Parabiticos Em um conhecido Gedankenexperiment, pega-se um ser humano e se substitui um neurnio por um chip e assim sucessivamente. Ao final, chega-se a um ser humano com um crebro completamente composto de chips. A questo tradicionalmente associada a esse experimento : ainda se est diante de um ser humano? Analisando por outro ngulo, fazemos uma nova pergunta: em que momento dever-se-ia parar de substituir neurnios por chips, de modo a se aproveitar ao mximo a combinao das potencialidades desse amlgama orgnico/inorgnico?

O uso efetivo de um artefato envolve uma paradoxal invisibilidade (manejo automtico) associada uma visibilidade (estar disponvel observao e reflexo consciente). Idealmente, por exemplo, a maestria no uso de um martelo se d quando o sujeito consegue desprezar a existncia do martelo como um ob-jeto, durante a performance. Finda a ao, o martelo permanece como objeto passvel de ser perscrutado, inquirido, aperfeioado. Esse contnuo processo de engajamento, separao e re-engajamento uma premissa inerente ao uso de artefatos por pessoas com expertise.

esse movimento de interiorizao do objeto tcnico que faz com que os artefatos transcendam seu papel de depositrios exteriores de conhecimento. Eles se constituem como mindware upgrades, ou saltos cognitivos nos quais a arquitetura efetiva da mente humana alterada e transformada (Clark, 2003, p. 4). Artefatos alteram nosso senso de identidade. Ainda conforme o pensamento de Clark, impulsionado e pressionado pela sua plasticidade natural [o crebro] propcio para profundas