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África: Revista do Centro de Estudos Africanos. USP, S. Paulo, 24-25-26: 163-173, 2002/2003/2004/2005

163* Centro de Estudos Africanos. Universidade de São Paulo.

A dimensão ritual na solução de conflitos naA dimensão ritual na solução de conflitos naA dimensão ritual na solução de conflitos naA dimensão ritual na solução de conflitos naA dimensão ritual na solução de conflitos najustiça tradicional de sociedades africanasjustiça tradicional de sociedades africanasjustiça tradicional de sociedades africanasjustiça tradicional de sociedades africanasjustiça tradicional de sociedades africanas

Carlos Serrano*

RRRRResumo: esumo: esumo: esumo: esumo: Este artigo mostra que, em certas sociedades tradicionais africanas, a palavra falada,além do seu valor moral fundamental, possui caráter sagrado porque se associa à sua origemdivina e às forças ocultas nela depositadas. Sendo agente mágico por excelência e grande vetorde “forças etéreas”, a palavra tira do sagrado o seu poder operativo e encontra-se em relaçãodireta tanto com a manutenção como com a ruptura da harmonia, seja do homem, seja domundo que o cerca. O homem é o suporte privilegiado da força vital que anima a palavra. Apartir deste princípio, podemos compreender melhor o contexto mágico–religioso e social noqual se situa o respeito pela palavra nas sociedades africanas de tradição oral. Nesta ordem depreocupações, o adágio é uma dessas fórmulas rituais que integram os indivíduos dentro dasociedade, invocando a ordem estabelecida, a autoridade dos ancestrais (princípios míticos) ea dos seus intermediários viventes: os chefes. Dito de outro modo: se a palavra é essencial nasocialização dos mais jovens, ela também é a expressão do poder e da ordem, não só da ordemcósmica, mas da ordem social.

PPPPPalavras-chave: alavras-chave: alavras-chave: alavras-chave: alavras-chave: Justiça tradicional, força vital, oralidade, Palabra.

O O O O O PODERPODERPODERPODERPODER DDDDDAAAAA PPPPPALALALALALAAAAAVRVRVRVRVRAAAAA

Nas tradições africanas, a palavra falada, além do seu valor moral fun-damental, possui caráter sagrado porque se associa à sua origem divina, emalgumas sociedades, e às forças ocultas nela depositadas.

Sendo agente mágico por excelência e grande vetor de “forças etéreas”(HAMPATE BÂ, 1979: 18) segundo a tradição africana, a palavra tira do sa-

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grado o seu poder operativo, encontra-se em relação direta tanto com a manuten-ção como com a ruptura da harmonia, seja do homem seja do mundo que o cerca.O homem é o suporte privilegiado da força vital que anima a palavra e nesteprincipio podemos compreender melhor o contexto mágico–religioso e social noqual se situa o respeito pela palavra nas sociedades africanas de tradição oral.

Recorde-se que a eficácia da magia assenta na crença coletiva do poderda força vital contida na palavra, na ação ritual que a desencadeia, e, ademais,nos seus suportes biológicos (o próprio homem), ou seus suportes materializa-dos (objetos rituais criados por ele). Nesta linha de argumentação, qualquerforma de utilização da palavra revestida de um só sentido, isto é‚ unilateral enão pública, termina por ser estigmatizada, apresentando eficácia restrita acertos limites sociais. É a antropóloga britânica Mary Douglas, ao se referir àcrença na feitiçaria, quem nos oferece o exemplo que segue:

O feiticeiro é o mágico que tenta transformar o caminho dos eventos atravésde decretos simbólicos. Pode usar gestos ou palavras em feitiços ou encanta-mentos. Agora, as palavras são o momento próprio de comunicação entre aspessoas. Se há uma idéia de que palavras ditas corretamente são essenciais àeficácia da ação, então embora a coisa dita não possa recrutar, há crença numtipo limitado de comunicação verbal unilateral (DOUGLAS, 1976: 108).

Em face do que certificamos, nas sociedades africanas somente a pala-vra exata, aqui entendida como a que não rompe com a harmonia cósmica,cumpre na sua forma ritual a função integradora e dinâmica que lhe seriapertinente. A palavra precisa ser correta e apropriada, sobretudo nos momen-tos rituais. Como assevera conhecido adágio africano, Quem estraga a suapalavra estraga-se a si mesmo. Por isso mesmo, a palavra deve estar de acordocom a tradição e o conhecimento legado pelos ancestrais.

Nesta ordem de preocupações, o adágio é uma dessas fórmulas rituaisque integram os indivíduos dentro da sociedade, invocando a ordem estabele-cida, a autoridade dos ancestrais (princípios míticos) e a dos seus intermediá-rios viventes: os chefes. Quanto aos provérbios, estes expressam em si mesmosuma forma de memorizar a experiência humana, com fins moralizadores, daíser possível categorizá-los como um saber mnemônico (isto é, relacionado coma memória). O recurso às práticas mnemotécnicas, fixando o saber ancestral, écomum a quase toda a África tradicional.

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Em coerência com o que enunciamos, a socialização dos jovens é reali-zada através de provérbios, contos, adivinhações, crônicas e canções, permitin-do manter a cadeia de transmissão da tradição por intermédio da oralidade.Neste sentido, o momento de nomeação, ou seja, de recebimento do nome porum jovem nos ritos de iniciação, constitui um ato pelo qual a palavra cria esseelo entre o individuo e a ancestralidade, inaugurando para os participantes umnovo status dentro da sua comunidade: o de homem adulto. Dito de outro modo:se a palavra é essencial na socialização dos mais jovens, ela também é a expres-são do poder e da ordem, não só da ordem cósmica, mas da ordem social.

A A A A A PPPPPALALALALALAAAAAVRVRVRVRVRAAAAA EEEEE OOOOO PODERPODERPODERPODERPODER

Outro momento no qual se explicita o valor e o poder da palavra ocorrenas reuniões dos membros mais velhos das comunidades tradicionais africanas,nas quais são decididos diversos eventos que podem afetar sua harmonia. Abran-gendo um espectro que se estende desde pequenas desavenças entre vizinhos,conflitos familiares até as grandes decisões que conduzem aos acertos matrimo-niais, as futuras cerimônias de iniciação dos mais jovens como também outrosmomentos importantes para a comunidade, a palavra constitui um elementoessencial para busca de consensos.

Semelhantemente, nos julgamentos que envolvem segmentos maiores dasociedade tradicional africana, dentre os quais conflitos territoriais clânicos,agressões físicas que redundam em mortes, casos de adultério, furtos e outrosatos considerados graves, gera-se um espaço especial no qual a palavra dispõede um status privilegiado. Neste momento o conjunto da comunidade é chama-do a participar, e não só enquanto observador. Não é incomum que a defesa ouacusação das partes enuncie provérbios em suas alocuções, completadas emcoro pelos assistentes marcando sua asserção no evento. A discussão prolonga-da que pode durar vários dias e a busca de um consenso pelas várias partestorna-se mais importante que a punição em si. Assim sendo, a palavra ances-tral evita a dissensão e recria a unidade participativa desejada pela sociedade.

É a palavra que faz iniciar um trabalho de um artesão, o rito de inserçãodos mais jovens na comunidade, é com ela que se invocam os seus ancestrais eela é, também, invocadora da ordem na solução de conflitos e estabelece opoder dos mais velhos e do chefe.

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A palavra, enunciada em determinados contextos sociais lembra-noscertas regras, e se impõe como signo do poder e eficácia perante aqueles que aescutam ou a quem lhes é devido respeito.

Como afirma Emilio Bonvini (1989: 154), no contexto da oralidade éa troca direta da palavra que permite a transferência das experiências no seiodo grupo, e, deste modo a reprodução da vida social. Esta troca, tanto comoum fato comunitário, situa-se para lá de uma mera troca lingüística interindivi-dual, são as palavras comunitárias que atravessam todos os aspectos vividospelo grupo, e organizadas, diferenciadas, especializadas, são os textos oraisverdadeiros “espelhos falantes” da vida de um povo, esta é a expressão feliz deCalame-Griaule.

A palavra comunitária pode ser deste modo vista como uma palavratradicional em que um grupo transmite todos os seus valores e sua experiênciavivida para as novas gerações, seja através de momentos específicos, como jános referimos acima, nos momentos rituais ou ainda a socialização dos jovensno cotidiano através dos contos, adivinhas, provérbios enunciados em certosespaços específicos.

A PA PA PA PA PALALALALALABRABRABRABRABRAAAAA

De origem ibérica e antiga, a expressão Palabra pode significar reunião,espaço de discussão, assembléia. Este é sem duvida o espaço privilegiado daspalavras públicas e com o sentido explicito de resolver contendas.

No interessante artigo intitulado “Verdade e Veridição em Direito “ deEric Landowski (1989: 9-23), o autor analisa em termos de semiótica narra-tiva toda a problemática de um julgamento. Uma narrativa, como se sabe,consiste em primeiro lugar num discurso para relatar acontecimentos reais efictícios, mas consiste também e principalmente num discurso que dá global-mente um sentido ao encadeamento destes acontecimentos, transformando as-sim o que se refere ao acontecimento em histórias inteligíveis. Os discursos sãoestabelecidos entre dois sujeitos narradores ou operantes. O autor afirma queem primeiro lugar é possível considerar o tribunal com o espaço cênico nointerior do qual o observador pode ver a constituição – ou, ainda melhor, parareconstituição, à medida que o processo avança –, a trama de uma “História”

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de referência em que todas as circunstâncias levaram finalmente à justiça parapronunciar. Esta história é contada na forma duma narrativa em várias vozes,feita de versões sucessivas, freqüentemente contraditórias, o mais das vezesapresentadas pelas partes ou pelos seus defensores, outras vezes pelas testemu-nhas ou pelos especialistas. Na medida em que cada uma destas produçõesnarrativas mesmo que fragmentárias, reivindicam a um título qualquer privilé-gio de serem consideradas verdadeiras, é evidente ser necessário escolher. Paraconsiderá-las verdadeiras, é evidente ser necessário decidir: em quem podemosacreditar?

A A A A A VERDVERDVERDVERDVERDADEADEADEADEADE EEEEE AAAAA MENTIRMENTIRMENTIRMENTIRMENTIRAAAAA NUMNUMNUMNUMNUM CONTOCONTOCONTOCONTOCONTO IORUBAIORUBAIORUBAIORUBAIORUBA

Lembro aqui uma lenda africana sobre a criação do mundo. Diz assim: Olofi,o Senhor que tudo criou - o bem e o mal, o bonito e o feio, o claro e o escuro,o grande e o pequeno, o cheio e o vazio, o alto e o baixo - criou também aVerdade e a Mentira. Fez, no entanto, a Verdade forte, marcante, bela, lumi-nosa, e fez a Mentira fraca, feia, opaca. Ao ver assim a Mentira, deu a elauma foice com a qual pudesse se defender. A Mentira sentiu inveja da Verda-de e queria eliminá-la. Certa ocasião a Mentira se defrontou com a Verdadee a desacatou. Brigaram. Empunhando sua foice, a Mentira, com um golpe,degolou a Verdade. Esta, vendo-se sem cabeça, começou a procurá-la tateandopor volta. Apalpa um crânio que supõe ser seu. Com esforço agarra-o e oarrancando de onde estava, coloca-o sobre seu pescoço. Mas aquela era acabeça da Mentira. Desde então, a verdade anda por aí enganando toda agente (Cf. Dulce Mara Critelli, Ontologia do Cotidiano ou Resgate do Ser:Poética Heideggeriana, PUC-SP, Centro de Estudos Fenomenológicos deSão Paulo).

Deste modo, pretendemos nos deter primeiramente nos diversos aspec-tos dos discursos durante o processo tradicional africano. Assim nos pergunta-mos de quais mecanismos os autores daqueles discursos se servem durante oprocedimento ou o processo para convencimento de seus ouvintes. Num even-to com este, tal como sugere o antropólogo Sousberghe (1955: 340), devemosestar atentos ao modo de expressão ou de alusão sugeridas pelos discursosenunciados. E aqui é importante fixarmo-nos sobre a enunciação de provérbi-os de uma parte e de outra, pois é neles que se detém o fio de um debate apartir do qual se estabelece uma relação entre acusador e réu.

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Num debate jurídico os provérbios são lançados de uma parte e de ou-tra. Ora, esses provérbios têm sentidos múltiplos e por isso a agilidade doorador está numa enunciação rápida desses provérbios e as respostas aos argu-mentos da outra parte. A dificuldade se apresenta ao analisar o enunciadodestes provérbios; está não só na compreensão da língua, mas sobretudo nosmodos de expressão e de alusão em que estes provérbios são enunciados. Asverdades não são só enunciadas mas invocadas ou sugeridas pelas compara-ções ou pelas analogias de que se fazem uso.

O O O O O PROPROPROPROPROVÉRBIOVÉRBIOVÉRBIOVÉRBIOVÉRBIO OUOUOUOUOU AAAAA PPPPPALALALALALAAAAAVRVRVRVRVRAAAAA RITUALIZADRITUALIZADRITUALIZADRITUALIZADRITUALIZADAAAAA

É nas reuniões públicas entre os Bawoyo, em que se usa com freqüênciao enunciado de provérbios, e que nos servem aqui de exemplo, que melhorpodemos analisar esse problema. Neste espaço e tempo ritual a relação entreas forças vitais, a invocação dos ancestrais e o sistema simbólico se relacioname se instrumentalizam através da palavra. A palavra ritualizada.

No início do discurso de uma questão (diambu) ou de um julgamentopúblico (funda nkanu), o chefe, invocando os ancestrais e abrindo a sessão,fala:

Ba tata, ba mama, sianu: ioh!Ba tata, ba mama, sianu: ioh!Ba tata, ba mama, sianu: ioh!Ba tata, ba mama, sianu: ioh!Ba tata, ba mama, sianu: ioh!

Pais, mães (homens, mulheres), dizei: ioh! (Sim!)

A assistência repete a interjeição final. Na disposição do assunto, o discurso é diver-sas vezes interrompido para a enunciação de vários provérbios que obedecem à mes-ma estrutura de comunicação entre o orador e a assistência, como o anterior, segundoo seguinte esquema:

PPPPProvérbio no conterovérbio no conterovérbio no conterovérbio no conterovérbio no contexto do discurso públicoxto do discurso públicoxto do discurso públicoxto do discurso públicoxto do discurso público

Orador: Batuma ke fumuBatuma ke fumuBatuma ke fumuBatuma ke fumuBatuma ke fumuCoro: Kumanga ko: Kumanga ko: Kumanga ko: Kumanga ko: Kumanga ko

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Quando és mandado por um chefe,Deves obedecer.

ESQUEMA:

Enunciado interrompido ————>(...)———>completado (...)——> | | | |

orador ————>(...) ———> público (...)——>

TTTTTempo ritual e eficácia simbólicaempo ritual e eficácia simbólicaempo ritual e eficácia simbólicaempo ritual e eficácia simbólicaempo ritual e eficácia simbólica

——>[continuação do discurso]——>[nova interrupção] (...) ———>——>[retorno à totalidade] ——>[ a comunidade expressa]——>

[ (...) (ancestrais)] [ o todo e a harmonia ]

Exemplo:

A benu sianu abu ti ioh! (...) Ioh! Ioh!A benu sianu abu ti ioh! (...) Ioh! Ioh!A benu sianu abu ti ioh! (...) Ioh! Ioh!A benu sianu abu ti ioh! (...) Ioh! Ioh!A benu sianu abu ti ioh! (...) Ioh! Ioh!Ioh, ioh ibikIoh, ioh ibikIoh, ioh ibikIoh, ioh ibikIoh, ioh ibika ba (...) Bakulu!a ba (...) Bakulu!a ba (...) Bakulu!a ba (...) Bakulu!a ba (...) Bakulu!Bakulula (...) Nhiundu!Bakulula (...) Nhiundu!Bakulula (...) Nhiundu!Bakulula (...) Nhiundu!Bakulula (...) Nhiundu!à gente dizei todos sim! (...) Sim! Sim!O que deixaram os nossos (...) Antepassados!Nossos antepassados (...) Opinem!

Se tais processos correspondem àquilo a que o poderíamos chamar de“situações-microcosmos”, por analogia temos os “objectos-microcosmos” quepodem cumprir as mesmas funções rituais.

A palavra torna-se silenciosa, mas está presente. Ela é incorporada,materializada em objetos, esculturas e representações gráficas: seu novo supor-te. Como muito bem explica Cartry: “os signos comandam as ‘coisas’; e, o

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artesão dos signos, longe de se tornar um simples imitador, completa sua obra,que lembra a obra divina”.

O provérbio expressa em si uma forma de memorizar a experiência hu-mana, com fins moralizadores, no que se pode denominar um saber mnemônico(CORNET, 1980: 24). O recurso a práticas mnemotécnicas é comum a quasetoda a África tradicional, a fim de fixar o saber de seus ancestrais. No entanto,entre os Bawoyo esse sistema de transmissão de provérbios se revela eficaz seanalisado através de suas representações gráficas.

A expressão mais adequada deste suporte da palavra proverbial, entreos Bawoyo, nos é fornecida pelos discos de madeira (mabaya nzunga, singu-lar: libaya linzunga), que contêm representações icônicas enunciando provér-bios. Nestes discos os símbolos e os provérbios distribuem-se da seguinte for-ma: o símbolo principal situa-se no centro do disco remetendo ao provérbioprincipal, outros símbolos menores situam-se perifericamente àquele, enunci-ando complementares.

As representações icônicas elaboradas por este sistema operam pela trans-missão direta, ou mais freqüentemente por um processo que procede pela ana-logia, pela metáfora, pela metonímia ou pela homofonia. A maior parte dasrepresentações e dos símbolos refere-se a um provérbio, cujo contexto sócio-cultural fornece seu valor à função semântica desse sistema.

Entre os Bawoyo, o provérbio é um dos meios de comunicação quemelhor expressam seu pensamento e sua visão de mundo, pelo seu uso constan-te. Há provérbios para todos os momentos da sua vida. São enunciados, mui-tas vezes, em momentos de tensão como os de recriminação ou recomendaçãode um dado comportamento.

Devemos então enfatizar que no contexto africano a oralidade e a pala-vra são os principais vetores para a solução dos grandes casos. Mas estes nãosão os únicos mecanismos encontrados para explicar a dimensão ritual no con-texto da justiça tradicional para a solução dos conflitos. Neste mesmo contextohá ainda o aspecto da performance, da encenação como “drama social” enun-ciado por Turner, mas também os “ritos de passagem” de Van Genep e os“rituais de rebelião” de Max Gluckman que nos podem ajudar a compreendercomo as sociedades tradicionais podem enfrentar as suas crises e a superar seusconflitos pelo menos interinamente.

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Aqui vamos descrever aquilo a que Victor Turner chama de “dramassociais”, como a fase do processo social que comporta quatro subdivisões, co-meçando por uma briga individual, que pode conduzir a uma ruptura dasrelações até ao limite permitido pelo grupo. “Para prevenir uma disputa pode-se pôr em prática certos mecanismos de conciliação ou de reparação e de ondepode resultar seja um restabelecimento das relações seja o de reconhecimento,pela sociedade, de dissensões irreparáveis, entre as partes litigantes” (TURNER,1972: 105). Os mecanismos de reparação a que nos referimos, são procedi-mentos rituais que podem conduzir ao desfecho do drama social e ao final doconflito e, portanto, voltar à harmonia social.

Do ponto de vista da antropologia podemos analisar deste modo os pro-cessos jurídicos tradicionais como “ritos de passagem”, encenando certos mo-mentos a considerar para compreensão dos processos conciliatórios. Assimtemos um primeiro momento de instalação do espaço público e fundação doato que vai deliberar sobre o evento em questão (crime, adultério, roubo, etc.),a que chamaremos “rito de separação”. As sociedades tradicionais escolhemcertos espaços “neutros” no centro da aldeia: debaixo de uma cobertura comoo Jango (Luanda), debaixo de uma árvore dos ancestrais, o sandeiro (nsande,em Cabinda) ou uma mulemba em outras regiões. Este é o espaço onde, emcertos momentos, os mais velhos se recolhem para deliberar. É também o espa-ço público onde decorrem os “dramas sociais” numa situação de liminar, emque naquele momento os homens são iguais durante este tempo ritual suspenso,durante este corte com o tempo estruturado do cotidiano. É o que Turnerdenomina “situação liminar”. Que se pode alongar, demorar ou suspender.Pode levar dias, semanas ou até meses, o tempo necessário para o apazigua-mento das partes, para atingir um consenso que torna-se mais importante doque a penalidade. Finalmente o rito de agregação onde finalmente se conseguea volta à normalidade, à harmonia, onde mesmo quando aquele que é penali-zado pode ser incorporado no seu grupo. A tensão dá vez à festa e ao regozijode ter-se superado a crise. O drama chega ao fim.

Um provérbio do Reino Bamoun enunciado pelas mães e as mulheresquando as guerras são superadas diz-nos: “mais vale um covarde vivo que umherói morto”. Este é desejo de ver seus filhos se tornarem Homens.

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BBBBBIBLIOGRIBLIOGRIBLIOGRIBLIOGRIBLIOGRAFIAAFIAAFIAAFIAAFIA

BIDIMA, Jean-Godefroy. La Palabre, une juridiction de la parole. Paris: Éditions Michalon,1997.BONVINI, Emilio. Tradition orale afro-brésilienne, les raisons d’une vitalité. In Grainesde parole. Puissance du verbe et traditions orales. Paris: Éditions du CNRS, 1989, p.153-163.

CORNET, Joseph (F.S.C.). Pictographies Woyo. Milano: Association “PORO”, 1980.141 p. (Quaderni PORO, 2).CRITELLI, Dulce Mara. Ontologia do cotidiano ou resgate do ser: Poética heideggeria-na, PUC-SP, Centro de Estudos Fenomenológicos de São Paulo.GLUCKMAN, Max. Rituais de rebelião no sudeste da África. Brasília: Editora da UNB,1974. (Cadernos de Antropologia, nº 4).GUEDES, Armando Marques. O estudo dos sistemas jurídicos africanos; estado, socie-dade, direito e poder. Coimbra: Almedina, 2004.

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Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: This essay demonstrates that the spoken word, in addition to its fundamental moralvalue, possesses a sacred character in certain traditional African societies, in so far as the wordis connected to a divine origin and to its occult forces. As a magic agent par excellence and acarrier of ethereal forces, the word takes its operative power from the sacred, and is directlyrelated to the maintenance or the rupture of both man’s and his surrounding world’s harmony.Man is the privileged mediator of the vital force that animates the word. This helps us to betterunderstand the oral African societies’ magic-religious and the social contexts, in which respectfor the word is an underlying principle. The adagio is one of the ritual formulas that integrateindividuals within a particular society, invoking the established order, the ancestors’ authority(mythical principles) as well as the authority of their living mediators: the chiefs. That is to say,

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if the word is essential to the socialization of the youngsters, it is also the expression of thecosmic and the social order and power.

KKKKKeywords: eywords: eywords: eywords: eywords: traditional justice, vital force, orality, Palabra.