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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE POS-GRADUACAO EM ESTUDOS ÉTNICOS E AFRICANOS CARLOS MANUEL DIAS FERNANDES DINÂMICAS DE PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS NO MOÇAMBIQUE PÓS – INDEPENDENTE: O CASO DO CENTRO DE ESTUDOS AFRICANOS, 1975-1990 Salvador 2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE POS-GRADUACAO EM ESTUDOS ÉTNICOS E AFRICANOS

CARLOS MANUEL DIAS FERNANDES

DINÂMICAS DE PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS NO

MOÇAMBIQUE PÓS – INDEPENDENTE: O CASO DO CENTRO DE ESTUDOS AFRICANOS, 1975-1990

Salvador 2011

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CARLOS MANUEL DIAS FERNANDES

DINÂMICAS DE PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS NO MOÇAMBIQUE PÓS – INDEPENDENTE: O CASO DO CENTRO DE

ESTUDOS AFRICANOS, 1975-1990

Tese de Doutorado apresentada ao Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia para obtenção do Grau de Doutor em Estudos Étnicos e Africanos

Orientador: Prof. Dr. Valdemir Donizete

Zamparoni

Salvador

2011

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SIGLAS E ABREVIATURAS

AGRICOM - Empresa Estatal da Agricultura ANC – Congresso Nacional Africano BM – Banco Mundial CAIL - Complexo Agro-Industrial do Limpopo CD – Curso de Desenvolvimento CCDA - Comissão Coordenadora Distrital da Comercialização Agrária CFMAG - Committee for Freedom in Mozambique, Angola e Guiné-Bissau CEA – Centro de Estudos Africanos CONCP - Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas EGUM - Estudos Gerais Universitários de Moçambique EM – Estudos Moçambicanos FPLM – Forças Armadas de Libertação de Moçambique FMI – Fundo Monetário Internacional FM-L – Faculdade de Marxismo -Leninismo FRELIMO – Frente de Libertação de Moçambique IICM – Instituto de Investigação Científica de Moçambique MANU - Mozambique African National Union MHD - Materialismo Histórico e Dialéctico MNR – Movimento de Resistência Nacional NATO - Organização do Tratado do Atlântico Norte OMS - Organização Mundial da Saúde PIDE – Policia Internacional de Defesa do Estado PRE - Programa de Reabilitação Económica, RDA - Republica Democrática Alemã RENAMO – Resistência Nacional Moçambicana SADCC – Conferência de Coordenação para o Desenvolvimento da África Austral SGL - Sociedade de Geografia de Lisboa SAREC – Agência Sueca para a Cooperação na Pesquisa com os Países em Desenvolvimento. SIDA – Agência internacional Sueca para o Desenvolvimento Internacional TBARN - Centro de Estudos de Técnicas Básicas para o Aproveitamento dos Recursos Naturais UDENAMO - União Democrática Nacional de Moçambique UEM – Universidade Eduardo Mondlane ULM – Universidade de Lourenço Marques UNAMI - União Nacional Moçambicana Independente UNESCO - Organização das Nações Unidas Para Cultura, Educação e Ciência USAID – Agencia Americana para o Desenvolvimento Internacional ZANU (PF) – Zimbabwé African National Union (Patriotic Front)

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CARLOS MANUEL DIAS FERNANDES

DINÂMICAS DE PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS NO MOÇAMBIQUE PÓS – INDEPENDENTE: O CASO DO CENTRO DE ESTUDOS AFRICANOS, 1975-1990

Tese de Doutorado apresentada ao Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia para obtenção do Grau de Doutor em Estudos Étnicos e Africanos

APROVADA EM: _______ de ______________ de 2011 _____________________________________ Prof. Dr. Valdemir Zamparoni - (Orientador) Universidade Federal da Bahia _______________________________________ Profª Dra. Maria Rosário Gonçalves de Carvalho Universidade Federal da Bahia _______________________________________ Prof. Dr. Jocélio Teles dos Santos Universidade Federal da Bahia _____________________________________ Prof. Dr. Jacques Depelchin Universidade Estadual de Feira de Santana _______________________________________ Prof: Dr. Cláudio Alves Furtado Universidade de Cabo Verde

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RESUMO

Este estudo pretende examinar as condições sociais da produção de conhecimento científico

no Moçambique pós-independente, durante o período da “transição socialista” (1975-1990). O

caso em estudo é o do Centro de Estudos Africanos (CEA). O argumento central do trabalho é

de que o próprio processo de produção de conhecimento num contexto onde o partido no

poder pretendia introduzir transformações radicais na sociedade, ganhou dinâmicas que

problematizaram os pressupostos a partir dos quais o CEA deveria produzir conhecimento.

Estas inter-relações entre produção de conhecimento e legitimação do Estado poderiam então

explicar não só as especificidades do CEA como também as condições em que as Ciências

Sociais ganharam contornos em Moçambique como modo privilegiado de produção de

conhecimento sobre a sociedade. A partir daí o trabalho crítico do CEA iria mudar

radicalmente a dinâmica de pesquisa do Centro permitindo a emergência de um novo campo

da pesquisa no pós-independência, ao introduzir três inovações: (1) uma abordagem no

“atual” (sem contudo deixar de levar em consideração as suas raízes históricas), em vez de

focalizar na história como tal; (2) uma mudança de uma pesquisa individual para uma

pesquisa coletiva; e (3) a introdução de um sentido de urgência na pesquisa para responder a

preocupações imediatas.

Palavras-chaves: Intelectual Orgânico – Culturas Epistémicas-Engajamento Crítico-

Ciências Sociais-Socialismo

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ABSTRACT

This study intends to examine the social conditions of scientific knowledge production in

post- independence Mozambique particularly during the period of "socialist transition" (1975-

1990). The case study is the Center for African Studies (CEA).

The main thesis of the study is that the very process of knowledge production in a context

where the ruling party wanted to introduce radical changes in society, generated dynamics

that problematized the assumptions within which the CEA should have produced knowledge.

These inter-relationships between knowledge production and legitimation of the state, could

then not only explain the specificities of the CEA but also the conditions under which the

social sciences gained contours in Mozambique as privileged mode of knowledge production

on society.

Thus, the critical work of the CEA would radically change the dynamics of research at the

Centre allowing the emergence of a new field of research in the post-independence,

introducing three innovations: (1) an approach to the contemporary issues (without, however,

fail to take into account its historical roots), rather than focus on history as such, (2) a change

in an individual search for a collective research, and (3) the introduction of a sense of urgency

in research to answer the immediate concerns of the power politics.

Key-words: Organic Intellectual – Epistemic Cultures – Critical Engagement – Social

Sciences-Socialism

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As cortinas do comunismo estão a fechar-se, porém, um

mistério permanece: quais eram os atractivos do marxismo

revolucionário que captou tantos intelectuais apaixonados para a sua

bandeira? Qual era o credo que…convocou tanta gente para morrer

por uma causa? Sob um certo ponto de vista, a resposta é simples:

aquilo que, em tempos, tinha atraído em nome de Deus passou a estar

sob a bandeira da História … O marxismo foi uma religião secular.

(Daniel Bell apud, Paul Hollander. O Fim do Compromisso,

Lisboa:Pedra da Lua, 2009).

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AGRADECIMENTOS

Esta Tese não teria sido possível sem a ajuda de várias pessoas que de uma forma ou

de outra contribuíram e alargaram a sua valiosa assistência na preparação e finalização deste

estudo. Queria, em primeiro lugar, expressar a minha profunda gratidão ao meu orientador,

Prof. Dr. Valdemir Zamparoni pela sua postura crítica, atenta, rigorosa, e sempre também,

humana, paciente e carinhosa. Estou grato ainda a sua forma de orientar, possibilitando uma

liberdade de acção que foi decisiva para que este trabalho contribuísse para o meu

desenvolvimento pessoal.

Este trabalho não teria sido realizado se não fosse também o apoio financeiro, em

momentos diferentes, da FASPEB e da CAPES. Não posso deixar de registar o meu

reconhecimento pelos professores Jocélio Teles Santos, Lívio Sansone, e Valdemir

Zamparoni, que lutaram incansavelmente para que eu sempre tivesse uma bolsa de estudos.

O meu agradecimento sincero, aos investigadores e professores, Dan O’Meara, Marc

Wuyts, Luís de Brito, Teresa Cruz e Silva, Fernando Ganhão, Yussuf Adam, Isabel Casimiro,

Conceição Osório, Alexandrino José, Carlos Serra, Amélia Souto, Jacques Depelchin, Ana

Maria Loforte, Ana Maria Gentili, Aurélio Rocha, Alpheus Manghezi, Calisto Pachaleque,

Gerard Liesegang, João Paulo Borges Coelho, António Sopa, Bridget O’Laughilin, Judith

Head, José Luís Cabaço, Manuel Araújo, Amélia Souto e Dipac Jeichande, pela vossa

simpatia e total disposição em ajudar a esclarecer muitas das minhas inquietações iniciais na

formulação do problema e mais tarde quando já tinha o problema relativamente estruturado,

nos labirintos do funcionamento de uma organização complexa e interessante como foi o

CEA naqueles utópicos anos da transição socialista.

Não posso deixar de estar profundamente grato aos comentários construtivos do Prof.

Luís de Brito ao capítulo sobre a Questão Rodesiana, ás professoras Teresa Cruz e Silva e

Conceição Osório pela assistência e comentários críticos valiosos, quando este trabalho ainda

era um projecto de pesquisa. Ao professor Elísio Macamo que já na licenciatura nos finais

dos anos 1990, incentivou-me a explorar este campo da sociologia do conhecimento e das

condições sociais da produção do conhecimento científico e pelos ricos comentários que se

estenderam até a conclusão do trabalho.

A professora Maria do Rosário pelo seu apoio inicial ao projecto e inspiração na sua

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forma peculiar e cativante de dar aulas. Aos meus colega do Mestrado e do Doutorado do

POSAFRO/UFBA, Saravá! Muito obrigado Cristina Mchanon, pela amizade e sugestão de

bibliografia pertinente para a construção deste estudo. Um Kanimambo, ao Prof. Georgui

Delurguian da Northwestern University, Chicago, pelo carinho, amizade, hospitalidade no seu

departamento de sociologia e também sugestões de leitura. Ao pessoal do CEA e do seu

Centro de Documentação, especialmente a Deolinda e Teresa, por me deixarem consultar

livremente as várias “caixas” de documentação do Centro. Aos funcionários do Arquivo

Histórico de Moçambique, na pessoa do seu director Joel das Neves, pela sua ajuda

prestimosa na consulta do espólio “Fernando Ganhão”.

Que seria de mim sem a minha família? Meu saudoso pai, José, minha mãe Filomena,

irmãos, Zé, Nitinha, Dindinha e Luís e queridas sobrinhas, Liane e Melanie, merecem uma

atenção especial pelo seu carinho, amor, amizade e apoio incondicional. Sem vocês não sei se

conseguiria levar esta empreitada até ao final!

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................................14

1. A EDUCAÇÃO COLONIAL E PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS ......................30

1.1 O Processo de estabelecimento da administração colonial (1895-1945)................................................... 31

1.2 A implantação do Estado Novo e a educação africana............................................................................... 35

1.3 A crise do Estado Novo e a fundação do ensino superior em Moçambique (1960-1975) ........................ 41

1.4 Algumas notas sobre a pesquisa em Ciências Sociais no período colonial............................................... 45

2. AS CONDICÕES SOCIAIS DA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO NO PÓS-INDEPENDÊNCIA ................................................................................................................59

2.1 O contexto internacional: Descolonização, Africanistas Radicais e Solidariedade................................. 59

2.2 Moçambique e a Utopia Socialista: Dinâmicas Internas e Regionais....................................................... 69 2.2.1 Da Luta de Libertação Colonial em Moçambique ao golpe de Estado em Portugal: 1962 – 1974......... 71 2.2.2 Os primeiros anos “eufóricos” sob a sombra da guerra de “desestabilização”: 1975-1980.................... 73 2.2.3 A Construção do Socialismo…Cada Vez mais Longe: 1980 – 1984...................................................... 77 2.2.4 A Metamorfose Ideológica da FRELIMO: 1984-1990........................................................................... 81

3. AS CONDICÕES SOCIAS E EPISTÉMICAS DA EMERGÊNCIA E CONSOLIDAÇÃO DO CEA.................................................................................................85

3. 1 O Ano de 1976 e a Tentativa de Criação de uma “Universidade para o Povo” ..................................... 85

3.2 O Nascimento do Centro de Estudos Moçambicanos (CEA).................................................................... 88

3.3 Actualidade, Urgência e Colectivo na Emergência de um Novo Campo de Pesquisa em Moçambique92 3.3.1 A Questão Rodesiana e o Contexto Social da sua Produção .................................................................. 92 3.3.2 A Génese de uma Nova Forma de Fazer Pesquisa.................................................................................. 95 3.3.3. Os processos da produção de “O Mineiro Moçambicano”: consolidando o novo campo de pesquisa .. 99

3.2 O Retorno Temporário de Ruth First à África Austral…Cada vez mais perto da Toca do Lobo ......... 99

3.3 Os Antecedentes da Pesquisa sobre O Mineiro Moçambicano ................................................................103

4. “A PEDAGOGIA” DO PROJECTO SOBRE O DESEMPREGO E O CONTEXTO DA SUA PRODUÇÃO ................................................................................................................108

4.1 O Projecto sobre o Desemprego: Uma “encomenda” do Poder .............................................................108

4.2 Os Anos de Alvoroço na Universidade e no CEA: 1979 – 1984 ..............................................................113

5. A DUPLA CONTRIBUIÇÃO DO CURSO DE DESENVOLVIMENTO: PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO POLITICAMENTE ENGAJADO ............................................123

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5.1 O ensino como um acto de investigação....................................................................................................123

5.2 Logo de inicio…Algumas Vozes Discordantes .........................................................................................126

5.3 Os Objectivos do Curso de Desenvolvimento ............................................................................................128

5.4 Os Métodos do Curso de Desenvolvimento................................................................................................130

5.5 A Crítica e Auto-Crítica no Curso de Desenvolvimento ...........................................................................132

5.6 Os Conteúdos Teóricos do Curso de Desenvolvimento.............................................................................136

5.7 Ênfase na economia? Ausência de aspectos culturais?............................................................................138

5.8 A Contribuição do Curso de Desenvolvimento no Ensino/Pesquisa em Ciências Sociais......................140

6. A PRODUÇÃO CIENTÍFICA DO CURSO DE DESENVOLVIMENTO ...................142

6.1 As Principais Linhas de Investigação .......................................................................................................142

6.2 O Projecto sobre o Trabalho Mineiro na África do Sul ..........................................................................148

6.3 Analisando os Camponeses e a Economia Rural em Moçambique ........................................................152

6.4 Problemas da Transformação Rural na Província de Gaza ...................................................................154

6.5 O (s) Projecto (s ) Sobre o Algodão ...........................................................................................................157

6.6 A Comercialização Agrária: Estado, Sector Familiar e Privado............................................................160

6.7 Examinando o Falhanço das Aldeias Comunais ......................................................................................162

7. A OFICINA DE HISTÓRIA: O “HOMEM NOVO” E A NOVA HISTÓRIA ..........165

7.1 História e Memória.....................................................................................................................................165

7.2 “Tensões Criativas” no Nascimento da Oficina de História ....................................................................171

7.3 Produzir uma História Crítica ao Cânone ...............................................................................................175

7.4 Não vamos Esquecer!: História Social Contada pelos “de baixo” ..........................................................178

7.5 Não Vamos Esquecer! nº1: Resistência Africana e Luta armada ...........................................................181

7.6 Não Vamos Esquecer! nº2/3: Reconstituindo a História da “Classe Operária Moçambicana” ...........183

7.7 Não Vamos Esquecer! nº4: Persistindo na Reconstituição Histórica da Experiencia da Luta de Libertação Nacional .........................................................................................................................................187

7.8 O Colectivo de Artesãos da Oficina de História: Historiadores como Activistas? .................................193

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8. ESTUDOS MOÇAMBICANOS: PENSAR MOÇAMBIQUE NO CONTEXTO DA ÁFRICA AUSTRAL ............................................................................................................202

8.1 A fundação da revista e a sua linha teórica ..............................................................................................202

8.2 A Hierarquia dos Objectos de Pesquisa....................................................................................................204 8.2.1 Estudos Moçambicanos nº 1: Uma análise sobre como o colonialismo português empobreceu Moçambique ..................................................................................................................................................207 8.2.2 Estudos Moçambicanos nº 2: Olhando para as Formas de Exploração Colonial do Trabalho e Lutas de Liberação na África Austral...........................................................................................................................210 8.2.3 Estudos Moçambicanos n º 3: Contribuindo na Reflexão sobre a Socialização do Campo..................213 8.2.4 Estudos Moçambicanos nº 4, 1983: Enfatizando a Participação do CEA na “Reflexão de Problemas Nacionais” .....................................................................................................................................................217 8.2.5 Estudos Moçambicanos nº 5/6: A Importância da Investigação Histórica............................................223 8.2.6 Estudos Moçambicanos nº 7: As Dinâmicas da Política Externa na Região Austral............................230 8.2.7 Estudos Moçambicanos nº 8: Moçambique no contexto da África Austral: conflitos, estratégias e perspectivas pós-apartheid ............................................................................................................................234

8.3 Estudos Moçambicanos: Uma Revista Interdisciplinar? .........................................................................237

9. O TRABALHO CRÍTICO E POLITICAMENTE ENGAJADO DO CEA .................241

9. 1 A emergência de Culturas Epistémicas no Centro: “Facções” e Versões Contestadas........................241

9.2 Intelectuais orgânicos e a legitimação do Estado.....................................................................................247

9.3 Engajamento Critico: Um Oxímoro?........................................................................................................252

CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................259

OBRAS CONSULTADAS ...................................................................................................266

Livros, Teses & Artigos....................................................................................................................................266

Periódicos e Revistas Consultados ..................................................................................................................282

ANEXOS ...............................................................................................................................283

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ÍNDICE DE QUADROS

Quadro 1 - Alunos Matriculados 1930 .....................................................................................38 Quadro 2 - Movimento de Investigadores do CEA (1976-1990) .............................................91 Quadro 3 – Principais Linhas de Investigação .......................................................................143 Quadro 4 - Não Vamos Esquecer! nº1 (Fevereiro, 1983).......................................................182 Quadro 5 - Não Vamos Esquecer !nº2/3 (Dezembro, 1983) ..................................................185 Quadro 6 - “Não Vamos Esquecer!” nº4 (Julho, 1987) ..........................................................189 Quadro 7 - Índice Temático da Estudos Moçambicanos nº1 (1980) ......................................208 Quadro 8 - Índice Temático da Estudos Moçambicanos nº2 (1981) .....................................211 Quadro 9 - Índice Temático da Estudos Moçambicanos nº3 (1982) ......................................215 Quadro 10 - Índice Temático da Estudos Moçambicanos nº4 (1983) ....................................218 Quadro 11 - Índice Temático da Estudos Moçambicanos nº5/6 (1986).................................225 Quadro 12- Índice Temático da Estudos Moçambicanos nº7 (1990) .....................................230 Quadro 13 - Índice Temático da Estudos Moçambicanos nº8 (1990) ....................................235

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INTRODUÇÃO

Objecto da pesquisa

O presente estudo pretende reflectir, no âmbito da sociologia do conhecimento, sobre

as condições sociais da produção de conhecimento científico em Moçambique e no contexto

histórico particular conhecido como o período da “transição socialista” (1975-19901), durante

o qual o partido no poder, a FRELIMO2, tentou construir uma sociedade socialista, tendo

como guia os princípios teóricos e práticos do marxismo-leninismo.

Esta reflexão teórica - que procura interligar produção científica e existência social -

terá como “objecto empírico” o Centro de Estudos Africanos (CEA) da Universidade Eduardo

Mondlane (UEM). Este Centro foi, no período em análise, a mais importante e prolífica

instituição de pesquisa e ensino em Ciências Sociais. Como afirmou Teresa Cruz e Silva,

O CEA fundado em 1976, teve um papel fundamental na dinamização da pesquisa, dando assim um novo impulso à produção científica e consequentemente aos programas e métodos de ensino no campo das Ciências Sociais e Humanas3.

Uma das principais causas desta preeminência do CEA no campo da pesquisa e ensino

no pós-independência se deveu ao facto deste lugar ter atraído um número considerável de

1 Traçar limites cronológicos rigorosos sobre este contexto histórico pode ser problemático. Neste estudo, por

uma questão metodológica, preferimos, olhar para esta fase de uma forma fluida, sem contudo deixar de utilizar como barreiras temporais o ano de 1977, quando a Frelimo no seu III Congresso se transformou num partido marxista-leninista; e, o ano de 1990 quando entrou em vigor a nova Constituição da Republica, preconizando um sistema de democracia multipartidária. Há no entanto outras datas significativas desse período “socialista”, como o ano de 1984 quando se deu a assinatura dos acordos de não-agressão (Acordo de Nkomati) com a África do Sul, que iriam ter - como veremos ao longo deste estudo - grandes repercussões no trabalho crítico do CEA. Não menos importante é o ano de 1986, com a morte do presidente Samora Machel e do director do Centro, Aquino de Bragança. Por fim, poderíamos também mencionar o ano de 1987, quando a Frelimo introduziu um programa de reajustamento estrutural (PRE) financiado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Dois anos depois, o partido Frelimo formalmente abandona o marxismo-leninismo, a sua ideologia oficial desde 1977.

2 Frente de Libertação de Moçambique.

3 SILVA, Cruz, Teresa. Instituições de Ensino superior e investigação em Ciências Sociais: A herança colonial, a construção de um sistema socialista e os desafios do século XXI, o caso de Moçambique, Lusofonia em África Historia, Democracia e integração africana. Dakar, CODESRIA, 2005, p.34-76.

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investigadores estrangeiros (muitos deles já com grande experiência de pesquisa e docência)

como, a jornalista, pesquisadora, professora universitária e activista anti-apartheid a sul-

africana, Ruth First e que se tornaria a Directora científica do Centro; membros do ANC,

como Robert Davies, Dan O´Meara, Alpheus Manghezi e Sipho Dlamini; a historiadora

italiana Anna Maria Gentili, a antropóloga americana e professora de Antropologia na

prestigiada Universidade de Stanford, Bridget O’Laughilin, o macro-economista belga, Marc

Wuyts, o historiador congolês, Jacques Depelchin, o jovem historiador brasileiro Valdemir

Zamparoni, dentre vários outros. A congregação destes investigadores no Centro, iria

concorrer, para o fortalecimento do ensino e pesquisa em Ciências Sociais, contribuindo

assim para a consolidação (durante o periodo de 1975-1990) de um padrão de pesquisa em

Moçambique de qualidade, e internacionalmente reconhecido.

É de referir que este estudo, não se propõe avaliar se Moçambique foi, realmente, um

Estado socialista, ou mesmo se a FRELIMO foi de facto um partido marxista-leninista.

Autores, como Marina Ottaway (1998)4, Catherine Scott (1988)5 e, Michel Cahen (1993)6 na

sua análise sociológica sobre o contexto do pós-independência em Moçambique, se

debruçaram com maior afinco nas fraquezas do Partido/Estado freliminiano. Por exemplo, na

visão de Cahen e Ottaway, a Frelimo nunca tinha chegado a ser um partido de vanguarda e o

Estado moçambicano tinha falhado, logo de inicio, em transformar a economia moçambicana

em moldes socialistas. Ainda na óptica de Marina Ottaway, tudo não passava de um

“socialismo simbólico” e de uma “reforma simbólica”, sem nenhuma modificação real na

economia como também no sistema político. Na mesma senda, Catherine Scott (1986), vai

aplicar o conceito de soft state e de “política personalista” para definir a primeira década de

“transição socialista” em Moçambique. Segundo esta autora, a emergência das características

do “Estado fraco” e da “política personalista” em Moçambique deveria ser vista no contexto

das tentativas que foram feitas pelo regime frelimista como forma de criar novas instituições

sócio - económicas e administrativas.

Assim, neste trabalho o foco esteve mais direcionado em olhar para o contexto da

“transição socialista”, na sua dimensão processual, dinâmica, não-essencialista, mais

preocupado com uma ordem discursiva (por exemplo, a construção da sociedade socialista, do

4 OTTAWAY,Marina. Mozambique: From Symbolic Socialism to Symbolic Reform. The Journal of Modern African Studies, vol.26, nº2, p.211-226, Junho,1988. 5 SCOTT, Catherine V. Socialism and the 'Soft State' in Africa: An Analysis of Angola and Mozambique. The Journal of Modern African Studies, vol. 26, nº 1, Mar.ço, 1988 p. 23-36. 6 Cahen, Michel. Check on Socialism in Mozambique: What check? What Socialism?, ROAPE, nº57, 1993, p.46-59.

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“homem novo”, etc.,) que se procurava reforçar e legitimar-se regularmente. Em seguida,

procuraremos estabelecer as inter-relações entre situação social e produção de conhecimento

científico pelo CEA, dando especial ênfase no papel que essa produção de conhecimento

desempenhou nesse contexto da “transição socialista”.

Perguntas de Partida

A análise será conduzida a partir de três grandes perguntas de partida:

1. Como as Ciências Sociais colaboraram na “transição para o

socialismo”, elas que teriam emergido no bojo das contradições resultantes da

experiência colonial/luta de libertação nacional, contexto internacional da

“guerra-fria”?

2. Há relação entre o campo científico e o campo politico ou

partidário? De qual ordem? Nesse sentido então, poder-se-á falar de uma

classe intelectual independente?

3. Há uma produção científica do CEA, que efectivamente esteja

orientada para os processos sociais locais, mediante suas distintas expressões e

que seja inventiva/criativa, no sentido de não ser mera reprodutora das

elaborações teóricas produzidas no ocidente e da ideologia do partido no

poder?

Tese do Estudo

O argumento central deste trabalho é de que as “condições sociais7”, e os processos

7 Usamos este termo no seu sentido mais lato, o que incluiria não somente os aspectos sociais, mas também

políticos, econômicos e culturais. Neste sentido, estaríamos então falando, grosso modo, basicamente da primeira década do pós -independência (1975-1986) onde se deu a tentativa de construção do socialismo em Moçambique liderado por um partido auto-intitulado “marxista-leninista”, a solidariedade e apoio internacional a causa da “revolução” moçambicana, a emergência de uma guerra civil, a crescente crise econômica, etc.

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(muitas das vezes conflitivos8) da produção de conhecimento adquiriram dinâmicas próprias

que problematizaram os pressupostos dentro dos quais o CEA devia produzir conhecimento9 e

que isso explicaria não só as especificidades do trabalho científico do CEA (por exemplo a

relação de proximidade/distanciamento do CEA com o poder) como também as condições em

que as ciências sociais ganharam contornos em Moçambique com o modo privilegiado de

produção de conhecimento sobre a sociedade (por exemplo, a emergência no pós –

independência de uma nova forma de se fazer pesquisa).

A primeira asserção remete-nos para uma discussão sobre a relação entre produção de

conhecimento e contexto politico, o que possibilitará também discutir a questão de que como

eram definidas as escolhas dos objectos de pesquisa, os temas eram privilegiados, e quais

provavelmente “desclassificados”.A segunda, para uma discussão sobre a contribuição teórica

e metodológica do CEA para o panorama das ciências sociais no pós-independência.

Quadro Teórico

Este estudo estará alicerçado em dois principais enunciados teóricos: “intelectual

orgânico”, de António Gramsci e “culturas epistémicas”, de Karin Knorr-Cetina. Estes

conceitos, possibilitarão em primeiro lugar, e de uma forma geral, olhar para o CEA e seus

actores não como se fossem intelectuais “ideólogos10” mas pelo contrário, como agentes do

conhecimento, pertencentes a um mesmo “sistema cognitivo”, que no entanto compreendia

diferentes práticas, metodologias, objectivos, enfim, distintas “culturas” em relação a

produção de conhecimento e sendo capazes de olhar criticamente para a sua prática científica

e para as causas que apoiavam.

8 Como vermos ao longo deste trabalho, a estruturação do Centro em”facções”, a relação de complementaridade

e de ambiguidades entre o director do CEA (Aquino de Bragança) e a directora científica (Ruth First) a indiferença em relação aos estudos antropológicos, etc.

9 Veja-se por exemplo, a tónica do Reitor da Universidade Eduardo Mondlane na distinção entre a teoria da “transformação social” e a teoria “burguesa” e “reaccionária” da ordem social; mas por outro lado, no interior do CEA em relação as diferentes abordagens teóricas e metodológicas da Oficina de História, do Núcleo da África Austral, e do Curso de Desenvolvimento). GANHÃO, Fernando. Problemas e prioridades na formação em ciências Sociais. Estudos Moçambicanos, nº. 4, Maputo:CEA, 1984, p.5-17 .Este tema será retomado no último capítulo.

10 No sentido usado por Karl Mannheim, como aqueles que defendem o status quo, em oposição aos “utópicos”, os que lutam para mudar uma determina visão de mundo dominante. Vide, MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro:Zahar,, 1982.

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Comecemos então olhando mais especificamente para a relevância neste estudo do

primeiro. De acordo com António Gramsci, “todos os homens são intelectuais, mas nem todos

têm na sociedade a função de intelectuais11”. António Gramsci pensou a existência de dois

tipos de intelectuais. O “intelectual tradicional” que estaria preso a uma formação econômica

superada e que, no contexto em que António Gramsci viveu, seriam os intelectuais

“estagnados” no mundo do agrário do sul de Itália, como por exemplo o “clero”, “a casa

militar”, voltados a manter os camponeses atrelados a um status quo, que não mais fazia

sentido. Em segundo lugar, haviam os “intelectuais orgânicos”, produtos do mundo moderno,

dinâmico, prenhe de transformações e vicissitudes. Eram “orgânicos” porque estavam

vinculados a uma classe social ou modo de produção específico12. É assim que este autor vai

elaborar mais afincadamente na função social dos intelectual, afirmando que,

Cada grupo social nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, simultaneamente, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhes dão homogeneidade e consciência da sua própria função não somente no campo econômico, mas também no social e no político13.

11 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, Vol.II, São Paulo:Civilização Brasileira, 2004, p.16. 12 Vide, SEMERARO, Giovanni. Intelectuais Orgânicos em Tempos de Pós – Modernidade. Cad. Cedes,

Campinas, Vol. 26, nº 70, p. 373-391, set./dez. 2006. Disponível em http://www.cedes.unicamp.br. 13 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, Vol.II, São Paulo: Civilização Brasileira, 2004,p.16.

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Os intelectuais orgânicos seriam uma espécie de “gestores da legitimação14”, eles

contribuiriam para tornar a “classe” a qual pertencem na classe dirigente e hegemónica da

sociedade. É então a partir desta vinculação de classe que Robert Fatton dá à definição de

intelectual orgânico de António Gramsci que precisamos explicitar melhor a posição teórica

que este trabalho pretende tomar. Argumentamos logo de partida, que este estudo pretende

usar uma definição não restrita deste conceito gramsciniano. Assim, a ênfase na

operacionalização do conceito para o caso do CEA, será dada à questão da legitimação do

Estado. Assim, “classe” é aqui conceptualizado como “classe do Estado”, pois como

asseverou George Balandier, “é o acesso e a luta em torno do poder o que contribui para a

formação da única classe bem constituída em África, a classe dirigente.15”

Somente então a partir da ideia de “classe de Estado”, poderemos olhar para os

investigadores do CEA como intelectuais orgânicos, uma vez que se usássemos a ideia

clássica de classe social (como em Karl Marx e a sua vinculação a questão da propriedade),

encontraremos certas limitações. Como podemos ver, apesar de estes investigadores

comungarem uma visão não elitista do trabalho de investigação e de defenderem a

constituição de uma universidade popular, nunca viram a si próprios como membros da classe

trabalhadora.

Como iremos demonstrar ao longo deste trabalho, o CEA teve a particularidade de

congregar, no seu interior, um grande número de investigadores cooperantes onde durante os

anos 1979 a 198416 chegou a superar o número de investigadores nacionais. E foram os

investigadores que de facto tomaram a liderança da pesquisa e ensino no CEA (foram os

professores e alguns deles orientadores de tese dos jovens investigadores nacionais do CEA) e

que, em última instância, decidiam sobre a definição, planeamento e execução e análise de

dados da maior parte das pesquisas levadas a cabo. Podíamos até afirmar que estes

investigadores, parafraseando Pierre Bourdieu, por deterem um volume de “capital

14 FATTON, Robert. Gramsci and the legitimization od the State: The case of the Senegalese Passive

Revolution. Canadian Journal of Political Science, vol.19, nº4, 1986, p.735. 15 BALANDIER, George. Problematique des classes sociale en Afrique noire », In : Cahier Internatioux de

Sociologie, XXXVIII, 1965, P.141, Apud, ZAMPARONI, Valdemir. Entre Narros &Mulungos – Colonialismo e Paisagem Social em Lourenço Marques c. 1890-c.1940.1998, 582f. Tese (Doutorado em História) – São Paulo. Nesta Tese o autor reserva um capitulo, para discutir de forma minuciosa, os eixos centrais na grande discussão em torno do conceito de classe, que segundo ele, tem envolvido não só investigadores como também políticos.

16 Ver Quadro 2 - Movimento de Investigadores do CEA (1976-1990).

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intelectual” mais elevado, tinham um melhor entendimento da situação social do que os

investigadores locais (ou mesmo, melhor do que a própria liderança da FRELIMO.)

Em suma, tendo como elemento definidor a ideia de “classe de Estado” os

investigadores do CEA poderão ser considerados intelectuais orgânicos no sentido em que

eles se constituíam como produtores de um conhecimento que não só iria ajudar o poder a

alcançar os seus objectivos como também justificar as suas opções perante o público.

A sua vinculação à classe do Estado, possibilitará um melhor exame da questão da

independência dos intelectuais, e também a relação entre as prioridades de pesquisas definidas

pelo CEA e as prioridades políticas traçadas pela FRELIMO para o desenvolvimento

socialista de Moçambique, durante o período em análise. E, de facto, a perspectiva

gramsciniana nos fornece elementos para enfatizar a postura crítica dos intelectuais orgânicos,

e não vê-los simplesmente como reprodutores da ideologia hegemónica do Estado. Daí

Gramsci conceber os intelectuais como “consciência crítica”, de um “distanciamento gerador

de capacidade de autocrítica, de consciência para si”. António Gramsci fala-nos ainda de

“hierarquias intelectuais”, do “lugar contraditório” que os intelectuais ocupam. Uma

perspectiva que procura mostrar como os intelectuais são e não normativamente “como

deveriam ser”. No que se refere às diferenciações dentro do grupo dos intelectuais, António

Gramsci nota,

Por um lado, a existência de uma hierarquia intelectual, que vai desde os ‘grandes intelectuais’ até aos mais humildes ‘administradores’ e, por outro lado, em função do lugar ocupado na hierarquia, uma autonomia relativa destes em relação à classe fundamental de que são ‘intelectuais orgânicos’.17

No contexto moçambicano poderíamos ter como exemplo, Aquino de Bragança

diretor do Centro e conselheiro pessoal do presidente da república. Aquino de Bragança funda

um núcleo de pesquisa no Centro, a Oficina de História que pretendia resgatar (através das

fontes orais) e reescrever a história da luta de libertação nacional em Moçambique. Um dos

artigos do CEA, produzido por Aquino de Bragança e Jacques Depelchin, procurava, de uma

forma crítica, analisar, a partir de dois livros escritos por africanistas18, “a problemática do

17 SANTOS, op.cit.p.97. 18 HALON, Joseph. Mozambique: Revolution under fire, London :Zed Books, 1984. SAUL, Jonh. (editor), A

difficult Road: The transition to socialism in Mozambique, New York : Monthly Review Press, 1985.

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processo revolucionário iniciado pela Frelimo durante a luta armada de libertação nacional. 19”

Os autores chamavam a atenção para as artimanhas das justificações ideológicas na

análise da história de Moçambique, onde segundo eles, “um dos problemas de fundo da

História da Frelimo provém, não só da forma vitoriosa como esta história é abordada, mas,

sobretudo, da utilização dos seus conhecimentos de forma inquestionável”.20 Encontramos

também no CEA, Ruth First, diretora de investigação do Centro, socióloga e esposa de Joe

Slovo, chefe do braço armado do ANC (Unmkonto we Sizwe), que desenvolve no Centro um

“Núcleo da África Austral”, compreendendo maioritariamente investigadores estrangeiros,

procurando estudar a realidade moçambicana no contexto da África Austral, bem como

análises mais especificas relacionadas com a luta anti-apartheid na África do Sul. Sob

direção de Ruth First foi produzido em 1977, a maior pesquisa levada a cabo no CEA,

apresentada na forma de livro como “O mineiro moçambicano21”, um trabalho exaustivo, que

procurava grosso modo, medir as implicações para a economia de Moçambique do corte (pelo

poder político) do fluxo migratório de mão-de-obra moçambicana para as minas do regime do

apartheid.

Enfim, encontramos no Centro, pesquisadores que procuraram manter um certo

distanciamento em relação ao discurso do poder, lendo a realidade social de forma critica e

desmistificadora, porém sempre aliada a uma espécie de “militância critica” à causa que

apoiavam. Na mesma senda há uma preocupação de ligar o trabalho intelectual, com as

estratégias do poder no campo social, econômico e político de transformação socialista da

sociedade moçambicana.

É neste sentido que a noção de “conhecimento politicamente engajado” de Allen

Isaacman ajudará a traçar melhor os limites da “independência” dos intelectuais do CEA em

relação a ideologia “hegemônica” do parido no poder. De acordo com este autor fazem parte

deste grupo,

19 BRAGANÇA, Aquino e DEPELCHIN, Jacques.Da idealização da Frelimo à compreensão da História de

Moçambique. Estudos Moçambicanos, nº5/6, CEA, Maputo, 1986, p.29-52. 20 Ibid., p.33. 21 O livro foi publicado postumamente. Em 1982 Ruth First foi assassinada no CEA, através de uma carta-

bomba. A obra surgiu inicialmente em inglês com o título: The black gold: the Mozambican miner, proletarian and peasant. Esta obra foi o culminar de cerca de seis anos de pesquisa iniciada em 1977 com a chegada desta investigadora ao Centro.

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Os intelectuais que desafiam as hierarquias sociais existentes e instituições opressivas, como também os regimes de verdade e estruturas de poder que as produzem e apoiam. Não se contentando simplesmente em criticar o status quo, esses acadêmicos procuram transformá-lo. O seu trabalho insurgente é assim organicamente e inexoravelmente entrelaçado com a sua produção científica oposicional.22

Até que ponto então estes investigadores conseguiram manter um espaço onde

pudessem exercer a crítica e questionamento? Esta é uma das questões que serão discutidas ao

longo deste trabalho.

O segundo eixo teórico que guiará este estudo é o de “culturas epistémicas” da

socióloga austríaca, Karin Knorr-Cetina. Refira-se antes de mais, que a autora cunha este

conceito a partir de uma análise comparativa entre duas disciplinas do campo científico das

ciências naturais (física nuclear e biologia molecular)23. Nesse estudo são examinados não

somente a construção do conhecimento, mas principalmente os mecanismos sociais,

epistémicos, instrumentais e tecnológicos que permitem a produção do conhecimento

científico. Na mesma senda, a autora procura saber como os diferentes campos científicos (ou

disciplinas) estão organizados e as suas diferentes estratégias para a aquisição de

conhecimento. É então a partir de uma análise comparativa entre as duas disciplinas acima

referidas que Knorr-Cetina vai argumentar que existem no campo cientifico diferentes

culturas epistémicas, quer dizer,

Essas amálgamas de arranjos e mecanismos - delimitados por afinidade, necessidade e coincidência histórica - que, em um determinado campo, constituem/definem como nós sabemos o que sabemos."24.

22 No original: “engaged scholars as intellectuals who challenge existing social hierarchies and oppressive

institutions as well as the truth regimes and structures of power that produced and \supported them. Not content simply to critique the status quo, these scholars seek to change it. Their insurgent work is thus organically and inexorably intertwined with their oppositional scholarship.”, ISAACMAN, Allen. Legacies of engagement: Scholarship informed by political commitment. African Studies Review, vol. 46, nº.1, p.1-41, p.3, April 2003.

23 Vide, KNORR-CETINA, K. Epistemic Cultures: How Science Make Knowledge, Harvard: President and Fellow of Harvard Collge,1999.

24 KNORR-CETINA, K. Epistemic Cultures: How Science Make Knowledge, Harvard. President and Fellow of Harvard Collge. 1999, p.1.

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Karin Knorr-Cetina defende que há uma “diversidade” entre as “culturas epistémicas,

que revelariam a “desunião” dentro das ciências e que apontariam para diferentes estratégias,

metodologias, significados simbólicos, enfim, distintas “culturas” que estariam por detrás da

constituição de mecanismos na produção do conhecimento científico. Para esta autora o

conceito de “disciplina” ou “áreas de especialização”, apesar de serem importantes na

organização e produção de conhecimento científico, provaram serem menos felizes em

capturar as estratégias no acto de conhecer, que não estão codificados nos textos escolares

mas que alimentam as práticas dos especialistas.25” Daí então Knorr-Cetina sugerir o conceito

de “culturas epistémicas”, que permitiriam apreender não somente a “maquinarias”

(macheneries) ligadas aos aspectos científicos, tecnológicos e instrumentais, mas também as

interacções humanas, as contingências, oportunismos, significados simbólicos, enfim

realidades também presentes no processo da produção dos mecanismos que permitem a

produção de conhecimento. Assim para esta autora o produto da ciência não pode ser

entendido como algo separado das práticas que o constituíram26. É então neste âmbito que

Karin-Knorr afirma que a distinção entre ciências naturais e sociais deveria ser superada: “a

evidência filosófica sugere que o método nas ciências naturais está baseado sob os mesmos

tipos de ciclos de interpretação comumente associados às ciências sociais”27.

É, então, a partir da tese de que os campos científicos exibem culturas epistémicas

distintas, que Knorr-Cetina (1981) vai propor uma distinção entre o locus da produção do

conhecimento (laboratórios, departamentos ou núcleos de pesquisa etc) da pesquisa em si

mesmo (experimentos, pesquisa empírica, colecta e análise de dados). Daí, ambos - o

conhecimento produzido e o “laboratório” - seriam então exemplo de uma “cognição

colectiva” (collective cognition), “que ocorreria onde duas os mais pessoas combinando

conhecimento individual, não inicialmente partilhado pelos outros28”. Assim, juntos,

produziriam um resultado cognitivo (conhecimento cientifico), que nenhum deles poderia

produzir sozinho29. Seria o caso, por exemplo, da pesquisa colectiva que levou à produção da

25 KNORR-CETINA, K. Epistemic Cultures: How Science Make knowledge, Harvard:President and Fellow of

Harvard Collge, 1999, p.3. 26 Ibid, p.4. 27 Tradução nossa: The philosophical evidence suggest that method in the natural sciences is based upon the

same kind of cycles of interpretation commonly associated with the social sciences”.Vide, KNORR-CETINA, K. Social and scientific method or what do we make of the distinction between the natural and social sciences?. Philosophy of the Social Sciences, vol.II, p.335-359, 1981, p.336.

28 GIERE, Ronald. Distributed Cognition in Epistemic Cultures. Philosophy of Science, nº 69, Dezembro, 2002, p. 637–644, p.640.

29 Ibid, Idem.

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grande obra de referência do CEA que foi “O Mineiro Moçambicano”. Como pretendemos

mostrar neste trabalho, havia no CEA pessoas que eram consideradas experts em

determinadas áreas de conhecimento. Por exemplo Marc Wuyts, nas questões

macroeconômicas, Alpheus Manghezi, mais do que ninguém no CEA dominava fluentemente

as várias línguas faladas no sul de Moçambique, sendo de extrema importância para pesquisa

empírica com as comunidades rurais. Poderíamos também mencionar, Bridget O’Laughilin e

Helena Dolny que eram especialistas nas questões agrárias.

A proposta teórica de Knorr-Cetina é ainda pertinente neste estudo, pois possibilitará

uma melhor compreensão da emergência de “facções” no âmbito do CEA; quer dizer distintos

grupos de pesquisa, organizados não só através de diferentes formas de produzir

conhecimento, e de conformidades teóricas, como também ligados a afinidades pessoais,

partidárias, linguísticas, etc. Foi então partir da estruturação do CEA em diferentes e por

vezes conflituantes nichos epistémicos, que pôde produzir um conhecimento não só

socialmente relevante, como também um conhecimento “de “inteligência” sobre a luta

política na Africa do Sul, que alimentaria directamente o “núcleo duro” do movimento

político e armado do ANC30 na África do Sul.

Recapitulando, estes dois principais alicerces teóricos permitirão compreender o

trabalho científico do CEA a partir de duas dimensões. Primeiro, no fato de que estávamos em

presença de uma organização complexa, plurivocal, onde coexistiam (e em algumas situações

competiam entre si) diferentes pesquisadores com agendas de pesquisa próprias. Segundo, de

um “sistema cognitivo” (o CEA) que procurava legitimar o Estado, sem contudo cair numa

aderência acrítica e dogmática da ideologia que dele irradiava. Quer dizer, mesmo estando

sob o manto da dominação e das repressões e proibições desse Estado, o CEA conseguiu criar

um espaço onde pudesse exercer um pensamento critico-social e daí permitir a consolidação

de uma nova forma de fazer pesquisa no pós-independência. Enfim, uma pesquisa em ciências

sociais “aplicada”, colectiva, actual, urgente e maioritariamente virada para o paradigma da

economia política marxista com ênfase na transformação das condições sociais das

populações.

30 Congresso Nacional Africano. No original, African National Congress (ANC). Foi fundado em 1912 e com

um dos propósitos fundamentais de lutar contras as injustiças contra os negros sul-africanos sob domínio de um governo minoritário branco. Em 1961, o ANC fundou o seu braço armado, Umkhonto We Sizwe, onde teve como seu chefe, Joe Slovo, marido de Ruth First. Vide, ROSS, Robert A concise history of South Africa. Cambridge University Press,1999.

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Metodologia

A colecta do material empírico foi produzida de duas formas. Primeiro, através de

uma pesquisa qualitativa das fontes bibliográficas e documentais referentes à produção

científica do CEA31 (particular enfoque foi dado às revistas Estudos Moçambicanos e Não

vamos Esquecer!, como também aos vários “Relatórios de Investigação” produzidos no

âmbito do Curso de pós-graduação em Desenvolvimento, criado por Ruth First). Em segundo

lugar, através de entrevistas semi-estruturadas aos pesquisadores locais e estrangeiros, aos

estudantes do Curso de Desenvolvimento, membros do governo e do partido FRELIMO.

Aos investigadores do CEA foram realizadas vinte entrevistas semi-estruturadas com

duração de quarenta e cinco minutos a uma hora. Aos entrevistados foi solicitado que

descrevessem duas situações. Primeiro, a sua experiencia de pesquisa, e ou de docência no

Centro. Segundo, as interações entre os vários investigadores do Centro como também com

outros investigadores da universidade e com outras instituições sociais como o partido

FRELIMO, ministérios, direcções províncias etc. Foram num segundo momento realizadas

cinco entrevistas com membros do governo (especialmente daqueles que tiveram um papel

chave na governação durante o período de analise), da administração pública etc.

O objectivo principal deste estudo que é o estabelecer a conexão entre produção

científica e existência social será empiricamente sustentado, a partir da análise de cerca de

trinta e dois32 trabalhos científicos produzidos e publicados pelo CEA, desde a sua fundação

(1976) até ao fim da auto-proclamada ideologia marxista-leninista da FRELIMO, em que se

31 Esta recolha foi executada, sobretudo no Centro de Documentação do CEA e no Arquivo Histórico de

Moçambique (AHM). 32 Uma das principais limitações deste trabalho refere-se ao facto de não fazer uma análise de mais de metade de

toda a produção científica do CEA. Colin Darch (1990), na altura documentalista do CEA, produziu um “inventário de todos os trabalhos difundidos externamente ou não, ou pelo CEA no período que vai de 1977 a 1989”. Ainda segundo Darch, nesta compilação do acervo teórico do CEA, estavam “inclusas obras não só do CEA e seus investigadores directos, mas também de outros colaboradores quer sejam estas pessoas singulares, quer sejam instituições que participaram em projectos conjuntos de investigação com o CEA”. Este inventário registou cerca de 267 referências bibliográfica (Cf.., DARCH, Colin, Bibliografia 1977-1989. Estudos Moçambicanos nº7, Maputo, 1990, p.121-136. É de referir que estão aqui incluídas os artigos do CEA publicados na revista, Estudos Moçambicanos (41) e na Não Vamos Esquecer! (13) e os vários Relatórios Científicos produzidos no Curso de Desenvolvimento (35). Uma segunda limitação deste estudo relaciona-se com o facto deste estudo não pretender fazer uma apreciação critica sobre o impacto da produção cientifica do CEA na definição e criação (ou não) de políticas públicas do governo com vista ao tão almejado, “desenvolvimento socialista” na primeira década do pós - independência. O seu objectivo é mais localizado e modesto, no sentido de delinear a história intelectual de uma instituição de produção de conhecimento, como também de estabelecer as várias conexões existentes entre produção de conhecimento e contexto social e político.

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procurou construir uma sociedade socialista em Moçambique (1990).

Estrutura do Estudo

O estudo está estruturado em nove capítulos. O primeiro apresenta de uma forma

geral, o panorama do sistema de educação e pesquisa colonial em Moçambique. Começa-se

por descrever o processo de estabelecimento do capitalismo colonial, passando pela

emergência do Estado fascista e a institucionalização de um sistema de educação na colônia,

baseado em princípios racistas e discriminatórios e culminando com a crise do Estado

salazarista e a fundação da única universidade no país.

O principal objectivo deste capítulo é de discutir o impacto do sistema colonial no

Moçambique pós-colonial, nos âmbitos político, econômico, no sistema de educação com

destaque para a emergência do campo da pesquisa científica. Pretende-se ainda, mostrar que a

dependência de Moçambique em relação a África do Sul (tema que vai ocupar de forma

central o trabalho científico do CEA, na selecção dos objectos de pesquisa, bem como na

própria contratação de pesquisadores estrangeiros) tem suas raízes na peculiaridade do

sistema colonial português.

O segundo capítulo, descreve o contexto histórico do pós-independência tanto a nível

local, como no que se refere ao contexto internacional da guerra fria e da região austral,

fortemente dominada pelo regime sul-africano do apartheid. Este período do pós-

independência foi também um momento em que começaram a surgir novas escolas de

pensamento em África, emergidas no campo das chamadas Ciências Sociais radicais, como a

Escola de Dar-es-Salaam, de Economia Política, e que procuraram construir um

conhecimento sobre África, de forma soberana e em oposição àquele saber ocidental

etnocêntrico.

De facto a Tanzânia tem um significado particular na história de Moçambique e do

CEA. Foi neste país da costa oriental africana que a FRELIMO se constituiu e começou a se

preparar política e militarmente para a luta de libertação nacional. Por outro lado, muitos dos

professores universitários e pesquisadores estrangeiros que passaram pelo Centro tinham

primeiro trabalhado em universidades tanzanianas, como foi o caso de Ruth First, directora de

investigação do CEA, Jacques Depelchin, Anna Maria Gentilli, Dan O’Meara, Judith Head,

Colin Darch, Robert Davies e Sipho Dlamini.

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Ainda neste capítulo abordar-se-á o contexto regional da África Austral e sua

determinação na pesquisa em Ciências Sociais no Moçambique independente. O CEA teve, de

facto, uma componente de pesquisa sobre a região bastante significativa, tendo criado para o

efeito um “Núcleo” de estudos da África Austral. Daí então a nossa intenção de perceber os

factores por detrás destas escolhas, e como o trabalho do CEA se intersectava com os

desenvolvimentos políticos e econômicos da região. Na mesma senda, não deixaremos de

mencionar, ainda que brevemente, o contexto da “guerra fria”, e da dicotomização do mundo

em duas “visões de mundo”: o capitalismo e o socialismo/comunismo. Moçambique sem

dúvida foi impactado por este contexto internacional e suas escolhas políticas e ideológicas,

necessariamente tiveram que dialogar com estas duas grandes posições.

Tencionamos por fim, descrever o contexto político social e econômico de

Moçambique, no período da “transição socialista” como forma de melhor entender o trabalho

do CEA em relação com o poder político e as várias forças que estiveram em jogo. De facto,

não podemos falar desta instituição de pesquisa sem situá-la no contexto político

moçambicano, pois só assim poderemos compreender integralmente a sua existência como

instituição de pesquisa e ensino. Iremos também discutir a transformação da FRELIMO em

partido político de orientação marxista-leninista e como isso se traduziu na sociedade e de

uma forma particular, na sua interacção com o CEA.

O terceiro capítulo discute a questão da emergência de um novo campo da pesquisa no

período pós-independência, tendo como caso de estudo o primeiro trabalho colectivo do CEA.

“A Questão Rodesiana”, levado a cabo em 1976, antes da integração de Ruth First.

Argumentamos neste capítulo, que este projecto teve o condão de mudar radicalmente a

dinâmica de pesquisa do Centro e permitiu a emergência de um novo campo da pesquisa no

pós-independência, ao introduzir três inovações: uma abordagem no “actual” (sem contudo

deixar de levar em consideração as suas raízes históricas), em vez de focalizar na história

como tal; uma mudança de uma pesquisa individual para uma pesquisa colectiva; e a

introdução de um sentido de urgência na pesquisa para responder a preocupações imediatas.

Ainda neste capítulo, pretendemos fazer uma reconstituição histórica do Centro, atores em

jogo, e os seus objectivos, estrutura organizacional e hierárquica e linhas de pesquisa. Ainda

neste capítulo, traremos à discussão, como forma também de mostrar como se deu o processo

de consolidação deste novo campo da pesquisa, o mais importante e elaborado projecto

colectivo de pesquisa do Centro, “O Mineiro Moçambicano”, produzido em 1979 e que marca

simbolicamente a “entrada em cena” de Ruth First no CEA. São discutidos também os

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antecedentes da pesquisa, a interacção com o meio universitário e com o governo, a

preparação, delimitação e realização da pesquisa, seus impasses e o seu contributo para o

fortalecimento das capacidades de pesquisa dos estudantes. É ainda apresentada em linhas

gerais o percurso intelectual de Ruth First até a sua nomeação como directora científica do

Centro.

O quarto capítulo focaliza a sua atenção na descrição e análise do “Projecto sobre o

Desemprego na Cidade de Maputo”, um dos primeiros relatórios científicos especialmente

“encomendado” pelo governo moçambicano com o objectivo expresso de “solucionar” um

problema social concreto e actual que Moçambique viveu nos primeiros anos do pós-

independência. Mostraremos como este estudo colectivo contribuiu para uma maior

dinamização da pesquisa empírica no Centro, e também na criação de um projeto de grande

envergadura para a formação de estudantes e quadros administrativos nas técnicas e

metodologias de pesquisa. Este capítulo não deixará também de discutir o contexto social e

político em que o estudo foi desenvolvido, abordando tema como os anos de “alvoroço” no

meio universitário (o partido Frelimo cada vez mais dominante na sociedade, a criação dos

círculos do partido na universidade, a criação da faculdade de marxismo-leninismo, e os

conflitos com os estudantes; as tensões entre o CEA e a disciplina de Antropologia, etc),

consequência de uma maior radicalização do partido FRELIMO na sociedade moçambicana

(por exemplo, o aumento da dominação e coerção do Estado com a criação dos “campos de

reeducação”, “operação produção33”, o recrudescer da crise econômica e de focos de

destabilização perpetrados pela RENAMO e forças armadas sul africanas.

O quinto capítulo pretende trazer elementos para a reconstituição histórica do primeiro

curso de pós-graduação em Moçambique, que ficou famoso como o Curso de

Desenvolvimento. Este curso idealizado principalmente por Ruth First iria marcar o seu

retorno definitivo ao CEA. Iremos focalizar nos objectivos, métodos, disciplinas e

organização curricular, enfoque teórico, grupo alvo e o seu significado para o campo da

33 Segundo José Luís Cabaço, apud Lorenzo Macagno, a operação produção “consistiu no envio forçado de cidadãos considerados improdutivos da cidade para as áreas rurais, em particular, para a província do Niassa.” Ainda na mesma senda, Luís de Brito apud, Macagno, afirmou que “no imaginário dos dirigentes da FRELIMO, aqueles que eles consideravam 'improdutivos' (desempregados e outros) eram os preguiçosos, os bandidos, os criminosos. Assim [...] o objetivo foi também o de eliminar a 'ameaça' que representava, nas grandes cidades, uma camada social potencialmente perigosa e susceptível de apoiar a RENAMO”. Vide, MACAGNO, Lorenzo. Fragmentos de uma Imaginação Nacional. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol.24, nº70, São Paulo, Junho, 2009, p.27. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69092009000200002#nt35. Acesso em 15-6-2007.

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pesquisa e ensino no pós-independência; uma vez que um dos grandes princípios do curso era

de encarar o ensino como um acto de investigação e de formar quadros nacionais para

trabalharem em problemas relacionados com o desenvolvimento social e econômico de

Moçambique. Por fim, o capítulo irá abordar as tensões existentes neste Curso, tanto no que

concerne às críticas (relacionadas com a sua natureza, grupo alvo e abordagem teórica) de

outros investigadores e docentes da universidade, como também as críticas vindas do interior

do próprio Curso, fundamentalmente dos seus estudantes.

O sexto capítulo na senda do anterior, irá examinar de forma mais detalhada seis

Relatórios de Investigação produzidos no âmbito do Curso de Desenvolvimento e que estavam

relacionados com as prioridades políticas da FRELIMO para o desenvolvimento socialista de

Moçambique. O objectivo é assim o de enfatizar a ligação profunda existente entre

prioridades de pesquisas e prioridades políticas. Estes estudos do CEA estavam dentro das

seguintes áreas de investigação (que se confundiam com as prioridades politicas do governo):

a questão do fluxo migratório para as minas da África do Sul, os camponeses e a economia

rural, os problemas da transformação rural, a questão da produção algodoeira (uma das

principais culturas de produção no tempo colonial), a problemática da comercialização

agrária, a nível distrital e a questão da socialização do campo, especialmente da construção e

organização dos camponeses em aldeias comunais.

O sétimo capítulo, traz elementos para a construção de uma “biografia intelectual” da

Oficina de História, um colectivo de historiadores do Centro, que pretendiam reconstituir a

experiência da luta de libertação nacional e de construir uma “nova história, em clara

oposição à historiografia colonial. Este grupo de historiadores do CEA iria fundar uma revista

intitulada Não Vamos Esquecer!, onde eram publicados artigos científicos, documentos

políticos, entrevistas e canções de participantes na luta de libertação nacional, de operários e

camponeses moçambicanos. Era assim uma forma de escrever a história social de

Moçambique contada a partir dos “de baixo” e de perpetuar a memória dos moçambicanos

que viveram o período colonial e que participaram na experiência da luta armada. Por último,

são apresentadas as quatro edições da revista e analisados alguns dos seus conteúdos.

O oitavo capítulo, com a mesma lógica que no capítulo anterior, vai focalizar a sua

atenção numa outra forma de difusão literária do Centro, a revista científica, publicada duas

vezes por ano, Estudos Moçambicanos. Esta revista foi fundada em 1980 e até 1990 publicou

oito números onde, através da sua produção científica, o CEA propunha ”construir uma

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economia política de Moçambique34”. Serão deste modo analisados neste capítulo, a linha

teórica e de investigação da revista, métodos, objectivos, os artigos publicados e, por fim,

seleccionados 12 destes estudos para uma análise crítica.

O nono e último capítulo, operacionaliza os dois principais eixos teóricos do estudo,

onde aborda, de forma mais localizada, o trabalho intelectual do CEA e a sua relação com o

contexto social e político da “transição socialista” em Moçambique. Este capítulo trata da fase

em que novos actores entram em jogo, principalmente Ruth First e a sua entourage.

Abordaremos o impacto que a vinda de acadêmicos e pesquisadores estrangeiros teve na

estruturação da pesquisa, como também na criação de “facções” dentro do Centro e como

estas foram organizando a agenda de pesquisa do Centro. Pretendemos também analisar a

ligação do CEA com o poder político, as relações de poder subjacentes, a conexão entre

prioridade de pesquisa e prioridades políticas, bem como o significado do conceito de

“engajamento crítico” no trabalho intelectual destes investigadores.

1. A EDUCAÇÃO COLONIAL E PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Iremos adiante fazer um desvio histórico, no sentido de descrever, de forma

esquemática, a experiencia colonial em Moçambique. O seu principal propósito é o de

mostrar como algumas questões estruturais do colonialismo determinaram, por exemplo, a

existência de uma fraca capacidade institucional, de infra-estruturas e de formação de quadros

locais na área da educação e pesquisa em ciências sociais. Começaremos, no entanto, por

abordar primeiro a questão do estabelecimento de mecanismos de dominação colonial em

Moçambique, suas formas, instrumentos e legislações que permitiram aos portugueses a

implantação do Estado colonial. Por fim, abordaremos a questão da educação e pesquisa

colonial, mostrando, por exemplo, que a ideologia colonial, nunca se preocupou na formação

educacional da população local e nem no desenvolvimento de um sistema de educação formal

ou de pesquisa que beneficiasse a população local. É ainda enfatizada a questão do carácter

“retrógrado” de Portugal como potência colonizadora, mostrando por exemplo que mesmo na

metrópole o desenvolvimento do ensino e pesquisa em ciências sociais até finais dos anos

1960, era praticamente inexistente. Por outro lado é também referida a questão da pobreza

econômica e financeira de Portugal e como isso implicou uma maior dependência em relação

34 ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº1 , Revista Semestral de Ciências Sociais, CEA, Maputo, 1980.

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às colônias africanas como também ao “aluguel” às outras potências europeias.

1.1 O Processo de estabelecimento da administração colonial (1895-1945)

Foi após a conferência de Berlim (1884-85) e consequente partilha de África pelas

potências europeias, que Portugal começou a desenhar uma política militarista mais

agressiva,35 com o intuito de estabelecer o seu poder colonial em todo o território

moçambicano36. Uma nova página na história colonial de Moçambique se abria37. Até então a

presença portuguesa em Moçambique limitava-se, como afirmou Lorenzo Macagno (2001), “

a um pequeno número de assentamentos costeiros. Das regiões do interior, o vale do Zambeze

era a única parte do país que conservava a aparência de um domínio europeu”38.

Um dos traços mais característicos desta época foi também o estabelecimento das

fundações para a predominância dos missionários da igreja católica em Moçambique. A

empreitada colonial, na óptica dos seus representantes, deveria trazer a “civilização” para os

povos “primitivos” de Moçambique. Os portugueses acreditavam, como afirmou James Duffy

(1961), que a sua missão em África era a conquista espiritual sobre as forças da ignorância39.

Daí então as primeiras campanhas educacionais para os africanos terem sido relegadas aos

missionários católicos. Como observou Valdemir Zamparoni, “Estado e igreja, espada e

35 Por exemplo, a conquista militar portuguesa do Estado de Gaza, no sul de Moçambique (1895-7). 36 Durante a Conferência de Berlin, as grandes potências europeias rejeitaram a reivindicação histórica de Lisboa

em relação a Moçambique decretaram que pacificação e controlo efectivo eram pré-requisitos para um reconhecimento como potencia colonial. Vide, ISAACMAN, Allen. Mozambique – from colonialism to revolution, 1900 – 1982, Boulder:Westview Press, 1983.

37 A presença portuguesa em Moçambique remonta ao século XVI, relacionada fundamentalmente a expansão marítima portuguesa em toda a costa oriental africana em busca de especiarias, assentando-se como afirmou Zamparoni “no sistema de feitoria e portos para o abastecimento desta nova rota”. Esta primeira fase caracterizou-se também pelo estabelecimento de trocas comerciais nomeadamente de ouro, marfim, tecidos e escravos, de exploradores portugueses, caçadores e aventureiros, com os povos africanos, árabes que já se tinham instalado na costa oriental africana e construídos cidades-estados arabo-africanas. Por outro lado, é preciso referir que antes da Conferencia de Berlin, particularmente, “entre 1770 e 1850, o tráfico de escravos constituiu-se na principal actividade econômica da colónia”: Vide, ZAMPARONI, Valdemir. De Escravo a Cozinheiro – Colonialismo e racismo em Moçambique, Salvador : EdUFBA, 2007.

38MACAGNO, Lorenzo. O discurso colonial e a fabricação dos usos e costumes. FRY, Peter (Org.). Moçambique Ensaios. Rio de Janeiro: UFRJ, 2001.p.63.

39 DUFFY, James. Portuguese Africa (Angola and Mozambique): Somes crucial problems and the role of education in their resolution. The Journal of Negro Education, vol.30, nº3, 1961, p.294-301.

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bíblia, sempre andaram de mãos dadas40”. No entanto, com o estabelecimento dos Jesuítas

(1610 a 1760) na Ilha de Moçambique e mais tarde os Dominicanos no Vale do Zambeze, na

zona central, os missionários católicos em Moçambique tiveram que contestar a forte

influência islâmica que tinha existido por muito tempo por toda a costa do nordeste de

Moçambique.41

O envolvimento de missionários protestantes42 na escolarização dos africanos iria criar

medo e indignação entre as autoridades portuguesas e os missionários católicos. Por volta de

1876, os portugueses começam a questionar as possíveis implicações políticas do trabalho dos

missionários não-católicos43. Estes eram suspeitos de “desnacionalizar os nativos” e de

agirem como agentes de governos estrangeiros44. O Estado colonial não conseguia controlar

todas as actividades desenvolvidas no território moçambicano tanto no que concerne à

educação como também no trabalho das missões religiosas. Por outro lado, o sistema público

de instrução escolar, mais do que um fracasso, se mostrava uma irrealidade, pois que das

poucas escolas existentes na colônia, a sua maioria pertencia à Igreja Católica, que se

circunscrevia somente ao ensino do catecismo.45 Mouzinho de Albuquerque, um dos

arquitectos da política colonial portuguesa do final do século XIX, reproduziu fielmente os

propósitos da ideologia colonial quando afirmou, “ o que nós temos que fazer para educar e

civilizar o indígena é desenvolver de uma forma prática a sua aptidão para o trabalho manual

40 Não obstante, neste “casamento” entre o Estado e a Igreja católica, Zamparoni adverte-nos da “excepção do

período Pombalino (Marquês de Pombal) e do período entre 1911 e 1936, no qual ideias de um republicanismo positivista e de um certo anti-clericalismo abalaram tais relações”. Cf. ZAMPARONI, Valdemir. Entre Narros &Mulungos – Colonialismo e paisagem social em Lourenço Marques c. 1890-c.1940. Tese apresentada para a obtenção do Grau de Doutor em Historia Social junto à Faculdade de Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1998, p.416.

41 Vide, ZAMPARONI, 2007, op.cit. 42 Para uma leitura mais atenta sobre missionários protestantes em Moçambique, veja, BUTSELAAR, Jan Van.

Africains, Missionaires et Colonialistes. Leiden: E.J. Brill, 1984; Trabalhos mais recentes, veja, CRUZ e Silva, Teresa. “Protestant churches and the formation of political consciousness in Southern Mozambique (1930-1974): the case of the Swiss mission”, Bradford, University of Bradford, PhD thesis, 1996, Mimeo. Na mesma senda, os seguintes artigos: CRUZ e Silva, Teresa. Identity and political consciousness in Southern Mozambique, 1930-1974: Two Presbyterian biographies contextualized. Journal of Southern African Studies, nº24, 1, 1998, p.223-236. CRUZ e Silva, Teresa. Colonizadores e protestantes: o jogo de identidades e diferenças”. SERRA, Carlos ed., Estigmatizar e desqualificar: casos, análises, encontros. Maputo: Livraria Universitária, 1998, p.203-226. CRUZ e Silva, Teresa. Educação, identidades e consciência política – A missão Suíça no sul de Moçambique (1930-1975), Bourdeux: Lusotopie, 1998, p.397-405.

43 ZAMPARONI alerta-nos, no entanto, para o facto de que esta presença missionária protestante em Moçambique data das últimas décadas do século XIX, “embora o protestantismo já se fizesse presente através de alguns indivíduos catequizados nos territórios vizinhos”. ZAMPARONI, Valdemir, 1998, op.cit. p.427.

44 CROSS, Michael. The political economy of colonial education: Mozambique, 1930-1975. Comparative Education Review, vol.31, nº4,, nov. 1987, p.550-569 op.cit, 1987, p.554 e ZAMPARONI, Valdemir, , op.cit. 1998.

45 CROSS, op.cit, 1987

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e tirar vantagem dele para a exploração da província”46.

Durante o período compreendido entre a Conferência de Berlim e os finais da Primeira

Guerra Mundial, Portugal uma das economias mais frágeis da Europa, se viu na iminência de

procurar alianças com seus concorrentes imperialistas, principalmente Inglaterra e França, no

sentido de explorar lucrativamente as suas colônias, mas também de assim poder financiar os

custos da implantação de um sistema de administração colonial em todo o território, onde

estava também subjacente a formação de uma “política nativa”47 abrangente. Foi assim que,

Portugal optou por ceder as actuais províncias do Niassa e de Cabo Delgado à Companhia do Niassa, uma companhia majestática, que para além da sua função económica, tinha poderes militares e administrativos. Da mesma foram, as províncias de Manica e de Sofala passaram a ser administradas pela Companhia de Moçambique. A províncias de Tete e da Zambézia forma submetidas a uma administração conjunta do Estado português e de companhias que arrendaram os antigos prazos. A província de Nampula e os territórios ao sul do rio Save (Maputo, Gaza e Inhambane) ficaram sob a administração directa do Estado português. 48

Mesmo tendo o controlo administrativo do sul de Moçambique, Portugal não

conseguiu competir com o capital estrangeiro (não português), principalmente com a

economia sul-africana. Daí se explica a transformação desta região do país em reservatório de

mão-de-obra para as minas de ouro e diamante da África do sul. O centro e norte de

Moçambique, como vimos anteriormente, estavam sob domínio econômico das companhias

arrendatárias, que gozavam de poderes absolutos (eram supostos de também estabelecer

escolas na colônia)49.

46 ISAACMAN Allen. e Isaacman, Barbara. Mozambique: from colonialism to Revolution, 1900 -1982, Boulder,

Colorado: Westview Press, 1983, p.50 47 Termo usado por HENRIKSEN, Thomas, op.cit. 48 HEDGES, David (Coord,). História de Moçambique – Moçambique no auge do colonialismo, 1930 – 1961,

Livraria Universitária, Maputo: UEM, 1999, p.1. 49 Kathleen Sheldon, observa no entanto, que as poucas escolas das companhias que haviam (em 1895 a única

escola que existia na região nordeste do Niassa - território da companhia do Niassa – era uma pequena escola no Ibo, somente para rapazes e outra em Querimba que “mal funcionava” . Ainda segundo a autora, nos distritos da Companhia de Moçambique no centro do país, no porto da Beira, havia uma pequena escola aberta em1897 pelas Irmãs franciscanas .Vide, SHELDON, Kathleen. I studied with the Nuns, Learning to

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A partir desta mudança qualitativa do capital mercantil para novas formas de

acumulação de capital, os portugueses foram tomando consciência da crescente necessidade

de uma força de trabalho (minimamente) letrada. Como afirmou Newitt, “muitas vezes eles

tinham que se virar para a comunidade dos comerciantes indianos e ficou claro que algumas

das oportunidades educacionais teriam que ser criadas para a população não-indígena das

cidades”.50

Em 1907 foi estabelecida uma estrutura legal para o controle estatal da educação na

colônia, embora não tenha sido aplicada por muitos anos. De acordo com esta regulação, era

exigido aos professores que passassem num exame de qualificação e que todos os livros

escolares teriam que ser autorizados pelo Estado. O ensino tinha que ser em português ou

numa língua local e não numa outra língua europeia, uma restrição que era direccionada

principalmente para as missões protestantes de língua inglesa.51 Kathleen Sheldon (1998)

afirma ainda, que neste período tinham sido também abertas algumas escolas do Estado,

contudo não eram ainda satisfatórias52.

Em 1921, o Estado colonial reconheceu a Igreja Católica como a única autoridade

sobre a educação missionária53, e muitos outros privilégios (como veremos posteriormente),

serão dados a esses missionários. No entanto, esta medida nunca foi executada, uma vez que

havia um número insuficiente de padres portugueses disponíveis para o serviço em

Moçambique. Muitas sociedades missionárias protestantes tinham estado directa ou

indirectamente a actuar em Moçambique durante este período54.

Os muçulmanos também operavam as suas próprias escolas em áreas da colónia onde

predominava sua religião, não obstante os portugueses considerarem a influência do Islã

como uma barreira para a assimilação dos africanos à cultura e nação portuguesa. O ideal

cristão prescrito no Evangelho foi gradualmente absorvido pela ideia geral da “missão

civilizadora” reivindicada pelos colonialistas portugueses. Ficou claro que o papel dos

missionários católicos não era unicamente de fornecer serviço espiritual aos comerciantes

portugueses e os colonizadores brancos, mas de efectuar mudanças culturais e educacionais

make blouses: Gender ideology and colonial education. The International Journal of African Historical Studies, Vol.31, nº3, 1998, pp.595-625.

50 NEWITT, Malyn. A History of Mozambique, London : Hurst & Company, 1995, p.439. 51 SHELDON, op.cit, p.599 e ZAMPARONI, Valdemir, 1998, op.cit. p. 416 e segtes. 52 SHELDON, op.cit, p.599. 53 CROSS, op.cit, p.556. 54 CROSS, 1987:556 apud HERRICK, Allison et al. 1969.

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nas sociedades africanas, conduzindo os africanos - como então era propalado pela ideologia

colonial - da “selvajaria para a civilização”55.

Neste período da Primeira República (1910-1926)56 as poucas escolas que existiam

eram exclusivamente para benefício dos filhos da elite colonial e de um pequeno grupo de

africanos “assimilados”. No que concerne aos africanos, o sistema de educação era ainda

muito precário, o que reflectia a situação paradoxal57 de Portugal em relação à educação da

maioria dos moçambicanos, que se encontrava à margem da campanha educacional.

Iniciou-se nesta fase, um processo de estabelecimento limitado de escolas, nos

principais postos comerciais e administrativos, tendo como assumpção de que os africanos

deviam ser suficientemente instruídos para unicamente poderem ler as escrituras sagradas,

exclusivamente na língua portuguesa não obstante encontrarmos missionários protestantes

interessados na introdução das línguas africanas.58 A actividade dos missionários protestantes

em relação à educação formal era também nesta fase insignificante, devido às restrições do

poder colonial português. Era enfim, uma concepção de educação baseada no preconceito da

superioridade racial e intelectual da civilização europeia em relação à africana.

1.2 A implantação do Estado Novo e a educação africana

Todas essas tendências para uma colonização efectiva de Moçambique começaram a

ser consolidadas com a ascensão de António Salazar ao poder e o estabelecimento do “Estado

Novo”59, nos princípios dos anos 193060. A sua política em relação às colônias era de apertar

55 CROSS, op. cit, 1987,p.555. 56 Para uma leitura mais atenta deste período vide, WHEELER, Dougals L. The Portuguese Revolution of 1910,

The Journal of Modern History, Vol.44, nº2, June, 1972, pp.172-194; Republican Portugal: A Political History 1910-1926, The Review of Politics, Vol.41, nº2, 1979, pp.317-319.

57 Para Zamparoni, “era uma situação que parecia absurda: o estado não mantinha, não apoiava e não criava escolas, mas era eficiente para criar obstáculos contra quem o fazia, temendo a desnacionalização do nosso indígena. Zamparoni, 1998, op.cit. p.419.

58 Em relação a introdução das línguas vernáculas na educação africana, encontramos somente o trabalho das missões protestantes, particularmente a Missão Suíça, que segundo Cruz e Silva começou a operar em 1880. Segundo esta autora, desde o primeiro momento esta missão era vista com desconfiança pelos portugueses. É de referir que a igreja católica nunca esteve interessada em ensinar nas línguas nativas. Ver ZAMPARONI, 1998, op. cit.

59 De acordo com Cláudia Castelo (2004), “Regime político autoritário, filo-fascista, católico e colonialista que imperou em Portugal entre 1933 e 25 de Abril de 1974. Sucedeu à ditadura militar instaurada com o golpe de 28 de Maio de 1926, que derrubou a I República (1910-1926)”.

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ainda mais o controle de Portugal e tornar a sua exploração, tanto da força de trabalho como

dos recursos naturais, mais eficiente e para benefício dos capitalistas portugueses61 (e não dos

produtores africanos ou investidores estrangeiros62).

De acordo com a estratégia política de Salazar em relação às suas possessões

ultramarinas, definidas pelo “Acto Colonial de 1930”63, os territórios coloniais eram

solicitados (1) a produzir matérias-primas (sobretudo o incremento da cultura forçada do

algodão), (2) contribuir para o equilíbrio da balança de pagamento português, (3) ser

financeiramente auto-suficiente, e (4) estar política e administrativamente centralizados sob

direcção do governo metropolitano64. O estatuto constitucional de Moçambique iria de

seguida mudar formalmente de “colônia” para o de “província” sob controlo de um

governador-geral.65

Ainda no âmbito da nova política colonial, o “Estado Novo” decidiu reformular66 os

diversos códigos e regulamentos sobre o “regime de indigenato” que vigoravam até a altura

do golpe militar. A divisão da população africana em duas categorias, (que já existia em

Moçambique desde 1917), foi reforçada: os indígenas (africanos “não-assimilados”67) e “não-

60 Em, 1926 dá-se o golpe de estado em Portugal, encabeçado por um grupo de generais. Em 1928, Salazar,

professor da universidade de Coimbra é convocado para gerir o sector financeiro. Só em 1932 assumira o cargo de Primeiro-ministro que ocupara ditatorialmente ate 1968, quando é sucedido pelo seu amigo pessoal e então Ministro das colónias, Marcelo Caetano.

61 Não podemos deixar de referir que quando Salazar ascende ao poder, a grande depressão de 1930 tinha afectado profundamente Portugal, mais do qualquer outro país na Europa. A depressão iria assim forçar Portugal a se tornar mais auto-suficiente em casa e de procurar investimento estrangeiro no exterior. Vide por exemplo, BIRMINGHAM, David. A Concise History of Portugal, Cambridge:Cambridge University Press, 1993.

62 SHELDON, Kathleen. I studied with the Nuns, Learning to make blouses: Gender ideology and colonial education. The International Journal of African Historical Studies, Vol.31, nº3, 1998, p.595-625.

63 “ O Acto Colonial define assim o quadro jurídico - institucional geral de uma nova politica para os territórios sob dominação portuguesa. Dentro da opção colonial global do estado português, abre-se uma fase ‘imperial’, nacionalista e centralizadora, fruto de uma nova conjuntura externa e interna e traduzida numa diferente orientação geral para o aproveitamento das colónias. (THOMAZ, 2002, p.72, apud, ROSAS, 1994)

64 CROSS, 1987, p.558. 65 Segundo Michael Cross, a mudança deste estatuto teve como intenção, reforçar a situação colonial contra as

pressões desnacionalizante. Vide, CROSS, op.cit, 1987, p.558. 66 Zamparoni aborda especificamente a “criação do indígena”, onde afirma que “o primeiro diploma da

legislação colonial portuguesa, em Moçambique, que se preocupou em definir quem seria classificado como indígena e quem estaria isento de tal classificação, remonta aos últimos anos do século XIX” quando da “campanha movida por António Ennes em prol da obrigatoriedade do trabalho para os indígenas das colônias africanas”. Ver, ZAMPARONI, 1998; 2007, op.cit.

67 Segundo Zamparoni, a lei de 1917, considerava assimilado ao europeu, o individuo da raça negra ou dela descendente que: a) tivesse abandonado inteiramente os usos e costumes daquela raça; b) que falasse, lesse e escrevesse a língua portuguesa; que adoptasse a monogamia; que exercesse profissão, arte ou oficio, compatíveis com a “civilização” européia ou que tivesse obtido por “meio licito” rendimento que fosse suficiente para a alimentação, sustento, habitação e vestuário dele e de sua família. Ver, ZAMPARONI,

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indígenas” (qualquer um usufruindo totalmente a cidadania portuguesa, incluindo os

“africanos assimilados”, não obstante na prática eles permanecerem uma terceira categoria).

Os “indígenas” representavam a maioria da população africana. Como cidadãos de

estatuto inferior, os “assimilados” (negros, asiáticos, mestiços) tinham “cartões de identidade“

que os diferenciavam da massa de trabalhadores detentores de uma caderneta indígena. Esta

caderneta tinha sido um dos meios encontrados para limitar a circulação da força de

trabalho68. Em teoria, um “assimilado” como um “não indígena” era considerado como

cidadão português. Ele ou ela gozava de todos os privilégios que advinham da cidadania

portuguesa69. Como Michael Mawema70 correctamente indicou, a política de assimilação,

Pressupunha que todos portugueses eram civilizados e todos os não portugueses não-civilizados e que, ao adquirirem educação, tecnologia e religião, o não-civilizado iria então ser assimilado na cultura e nação portuguesa ou em outras palavras na civilização71.

De acordo com Malyn Newitt (1995), o “acto colonial” de Salazar manteve a

separação formal entre a igreja e o Estado, mas deu a igreja um reconhecimento especial

como um instrumento de “civilização” e de influência nacional canalizando a ajuda do Estado

para as missões para o seu trabalho educacional72.

Foi assim que em 1940, o governo português promulgou o “Acordo Missionário”, um

decreto que estabelecia que a igreja católica como provedora da educação para todos os

Valdemir. Frugalidade, moralidade e respeito: a política do assimilacionismo em Moçambique, c.1890-1930. DELGADO Ignácio G; Albergaria, ENILCE; Ribeiro, GILVAN; Bruno, Renato. (Org.). Vozes (Além) da África: Trópicos sobre Identidade Negra, Literatura e História Africana. Juiz de Fora:UFJF, 2006, p.145-176.

68 Meneses et al.,”As autoridades tradicionais no contexto do pluralismo jurídico” p. 344, In: Sousa Santos, Boaventura (Org). Conflito e transformação social – Uma paisagem das justiças em Moçambique. Lisboa:Afrontamento, 2003.

69MONDLANE, op.cit, ,1995,p.43. 70 MAWEMA, Michael. British and Portuguese Colonialism in Central African Education, New York:

Columbia University Teachers College, 1981. 71 MAWEMA, Michael. British and Portuguese Colonialism in Central African Education, New York:

Columbia University Teachers College, 1981. 72 NEWITT, Malyn. A History of Mozambique, London: Hurst & Company, 1995, p.479.

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africanos e reforçava as regulações no que concernia a obrigatoriedade do uso da língua

portuguesa na instrução escolar73.

A igreja não oferecia educação universal e gratuita, mas em vez disso introduziu

barreiras em forma de propinas e restrições de idade que tornaram difícil para as crianças

africanas ingressarem nas escolas. Também requeria que as crianças fossem baptizadas como

católicas como condição básica para serem admitidas. Os estudantes só poderiam prosseguir

para o nível seguinte de educação se tivessem completado o 3º ano da “escola rudimentar” por

volta dos 14 anos de idade. Aliada a uma grande limitação de acesso as escolas, esses

constrangimentos iriam contribuir para que a maioria das crianças moçambicanas ficassem de

fora e tornasse difícil o êxito dos alunos.74

Quadro 1 - Alunos Matriculados 1930

Instituição Escolas Elementares Escolas Rudimentares

Governo 3.405 8.795

Privado 403 -

Católica 7.812 21.122

Missões estrangeiras 396 8.132

Fonte: Anuário Estatístico (1930), apud, Newitt (1995)

Foram criados dois sistemas escolares na colônia: o sistema estatal, que era uma

duplicação do sistema escolar metropolitano português, onde se encontravam as escolas

governamentais para os brancos, asiáticos, mulatos e “assimilados”.75 O ensino de adaptação”

(chamado até 1956, “ensino rudimentar”) que era exclusivo aos estudantes africanos e estava

sob responsabilidade das missões católicas. Este sistema - porque baseado numa filosofia

racista e discriminatória, que via o africano como “primitivo” que deveria ascender à

“civilização” portuguesa - tinha como propósito providenciar uma instrução para a

73 SHELDON, Kathleen, op.cit, p.614. 74 SHELDON, Kathleen, op.cit, p.615. 75 CROSS, op.cit, p.559

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assimilação do africano, através da doutrinação dos valores culturais portugueses76.

De acordo com Malyn Newitt (1995), depois da segunda guerra mundial, as

oportunidades educacionais expandiram um pouco. Em 1942-3 houve 95.444 pupilos

registados nas escolas das missões. Por volta de 1961-2 o número tinha atingido 348.265, dos

quais 98% eram ensinados em escolas católicas e somente 7.191 nas escolas missionárias

estrangeiras. O declínio relativo das missões estrangeiras era, obviamente, parte de uma

política do governo, onde, ao longo da sua actuação, foram gradualmente postos obstáculos a

estas instituições.

Os professores africanos somente poderiam ser admitidos nos estabelecimentos de

ensino se fossem católicos, e o acesso a uma educação posterior dependia da filiação à igreja

estabelecida do Estado.77. Barry Munslow (apud Newitt, 1995) dá o exemplo eloquente de

Samora Machel78, onde a sua progressão educacional tinha sido barrada ao menos que se

transformasse num católico baptizado, tendo então, pelo benefício do avanço escolar, aliado-

se à igreja79. Esperava-se que a política de educação produzisse uma classe de trabalhadores

técnicos, agrícolas e artesãos que poderiam ser facilmente absorvidos pela economia colonial.

Daí então Eduardo Mondlane afirmar que a educação colonial assim concebida tinha sido

desenhada para responder a dois objectivos: “formar elementos da população que actuariam

como intermediários entre o Estado colonial e as massas; e inculcar uma atitude de servilismo

nos africanos educados”80. É sintomática a forma como o Cardeal Patriarca de Lisboa, na sua

carta pastoral de 1960, expôs de uma forma directa, os objectivos da educação colonial,

Tentamos atingir a população nativa em extensão e profundidade para os ensinar a ler, escrever e contar, não para os fazer “doutores” (...) Educá-los e instruí-los de modo a fazer deles prisioneiros da terra e protegê-los da atracção das cidades, o caminho que os missionários católicos escolheram com devoção e coragem, o caminho do bom senso e da segurança política e social para a província. (...) As escolas são necessárias, sim, mas escolas onde ensinemos ao nativo o

76 Vide, DUFFY, James. Portuguese Africa (Angola and Mozambique): Some crucial problems and the role of

education in their resolution. The Journal of Negro Education, Vol.30, nº3, 1961, p.294-301. 77 NEWITT, 1995 op.cit, p..480. 78 Líder da luta anti-colonial, membro fundador da Frelimo e primeiro presidente de Moçambique no pós–

independência. 79 NEWITT, 1995 op.cit, pp.480 80 MONDLANE, 1995, p.55.

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caminho da dignidade humana e a grandeza da nação que os protege81.

Este sistema de educação colonial em nada beneficiou a população nativa, pois que

mais do que formar, instruir e libertar os africanos - porque baseada num pressuposto racista e

discriminatório - procurava somente, através do trabalho compulsório, tirar vantagem na

exploração lucrativa da colônia.

A política colonial de Salazar veio assim reforçar as estruturas de subdesenvolvimento

introduzidas no início do processo de colonização pelas companhias concessionárias. Como

vimos anteriormente, o norte de Moçambique estava mais virado para a produção agrícola

camponesa, com investimento de pequena escala. Havia monocultura do algodão onde os

camponeses vendiam o seu produto a um preço fixo. O centro de Moçambique estava

reservado para a economia de plantação, envolvendo a produção de chá, açúcar e plantações

de coqueiros que dependiam do trabalho forçado. O sul continuava sendo uma reserva de

mão-de-obra para as minas sul-africanas.

O subdesenvolvimento e as distorções da economia e estrutura social estavam, deste

modo, reflectidas na forma particular como o sistema educacional tinha sido implantado na

colônia. Era de facto um programa educacional moldado exclusivamente para reforçar as

relações de dominação colonial e de subordinação e, por outro lado, para a exploração

massiva da força de trabalho africana. Em 1959, segundo Eduardo Mondlane (1995), havia

“392.796 crianças nas “escolas de adaptação”, mas dessas somente 6.928 conseguiram

começar a escola primária82”.

Um outro dado eloquente é de que na altura da independência nacional 98% da

população negra era iletrada. Não havia assim nenhuma intenção de produzir “doutores”,

como afirmara o Cardeal Patriarca de Lisboa, mas somente a necessidade de promover certas

atitudes, hábitos e aptidões básicas que iriam tornar as pessoas leais à autoridade portuguesa e

mais produtivos para a economia colonial.

81Ibid., p.56. 82 Vide, MONDLANE, Eduardo. Lutar por Moçambique. Maputo: Nosso Chão,1995.

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1.3 A crise do Estado Novo e a fundação do ensino superior em Moçambique (1960-1975)

Os finais dos anos 1950 foram caracterizados pela adopção de uma política colonial

mais flexível por parte do Estado salazarista devido em grande parte às pressões externas e

internas para a descolonização. A agudização dos protestos anti-coloniais no mundo83, bem

como o crescente aumento dos protestos no interior de Moçambique, que culminaria com a

luta armada proclamada pela FRELIMO podem deste modo, ser vistas como dois dos

principais factores que determinaram a emergência de uma nova estratégia colonial.

Esta reforma politica, significou dentre outros aspectos, a reestruturação da economia

colonial, abrindo as portas para o estabelecimento de uma aliança firme com o capital

estrangeiro; o reforço da integração econômica no subsistema econômico da África Austral; a

abolição formal do regime de trabalho forçado e produção agrícola compulsória e

reconhecimento formal de cidadania completa e direitos para todos, como também a expansão

da educação secundária e a fundação da Universidade de Lourenço Marques em 1962 na

capital colonial do mesmo nome (atual Maputo).

Teve inicialmente a designação de Estudos Gerais Universitários de Moçambique

(EGUM), onde se administrava, então, apenas a parte geral de alguns cursos. Com o seu

desenvolvimento, e tendo sido assegurado o funcionamento integral dos mesmos, a

designação de universidade veio em Dezembro de 196884. Os primeiros cursos oferecidos

pela universidade seguiram uma lógica de prioridade dada pelo governo metropolitano. Foram

assim considerados prioritários os seguintes cursos: Ciências Pedagógicas, Formação Médico-

Cirúrgica, Engenharia Civil, Engenharia de Minas, Engenharia Mecânica, Engenharia

Electrotécnica, Engenharia Química-Industrial, Agronomia, Silvicultura e Medicina

Veterinária85. Até o ano lectivo de 1967/1968, estes cursos funcionavam somente até ao 3º

ano86.

83 Reflectida fundamentalmente na Conferência de Bandung (Indonésia), onde 29 países afro - asiáticos, com

destaque para a URSS, China e Índia, condenaram o colonialismo e apelaram a unidades dos povos contra ele. Vide, CARDINA, Miguel. Violência e anti - colonialismo nas oposições ao Estado Novo, Revista Critica de Ciências Sociais nº88, Coimbra: Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, Março, 2010, p.207-231.

84 Vide, UNIVERSIDADE DE LOURENÇO MARQUES (ULM) , Prospecto Geral, 1971/1972, Lourenço Marques:ULM, 1971, p.3.

85 ULM. Prospecto Geral, op.cit. 86 Neste ano, entram em funcionamento os 5º anos dos cursos: médico - cirúrgico, engenharia civil,

electrotécnica e químico - industrial. Em 1968/69, forma criados os 5º anos dos cursos de engenharia

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Como podemos notar, o ensino das disciplinas das Ciências Sociais e Humanas ainda

não faziam parte dos objectivos da universidade. Somente no ano de 1969 seriam então

criados os cursos de Letras, nomeadamente os bacharelatos em Filologia Românica, História e

Geografia. No ano seguinte seria a vez do curso de Economia.87 Cursos em Direito e Ciências

Sociais, só estavam disponíveis em Portugal. Uma vez que o ensino primário e secundário era

por natureza selectivo, praticamente todos os estudantes universitários eram portugueses ou

filhos de portugueses nascidos em Moçambique88.

Como observou Miguel Buendia (1999), “em 1973 somente 40, em 3.000 estudantes,

eram negros89.” E estes estudantes, se quisessem prosseguir os seus estudos universitários, por

exemplo, para o nível de licenciatura, teriam que se deslocar à metrópole. O que tornava-se

muito difícil, uma vez que implicava grandes despesas em termos de viagem, acomodação e

propinas. O prosseguimento de uma licenciatura em Portugal tornava-se assim numa “missão

quase impossível.90” Daí encontramos no seio do universo de estudantes matriculados, na

altura da independência nacional, apenas 40 estudantes moçambicanos91.

O modelo de universidade nas ex-colônias era uma réplica do que acontecia na

metrópole, um modelo estatal totalmente dependente do Ministério da Educação português,

onde o currículo era centralmente aprovado. Era o governo, por exemplo, quem decidia que

cursos seriam oferecidos aos estudantes africanos92. A ULM estava em princípio acessível

unicamente para os filhos e filhas dos portugueses, uma vez que o seu acesso baseava-se

fortemente no capital social e econômico, o que não favorecia a presença dos filhos de

famílias africanas93. Por outro lado, só os africanos considerados “assimilados” tinham direito

de entrar para a universidade94.

mecânica e silvicultura, os 6º anos dos curso de médico - cirúrgico, engenharia civil, electrotecnia e químico industrial. Vide, ULM, 1971, op.cit., p.4.

87 ULM. Prospecto Geral, op.cit, p.4. 88 Vide, EGERO, Bertil. Mozambique and Angola: Reconstruction in the Social Sciences. Research Report nº4,

The Scandinavian Institute of African Studies, Uppsala, Sweden, 1977. 89 BUENDIA, op.cit. 90 Poderíamos referir aqui, como excepção, o pequeno grupo de moçambicanos, negros “assimilados” e mestiços

que conseguiram prosseguir os seus estudos na metrópole e que lá teriam um papel decisivo na dinamização das campanhas anti - coloniais e no desencadeamento da luta armada contra o colonialismo português. Vide o capítulo a seguir sobre o contexto histórico da luta armada e do pós -independência.

91 BEVERWIJK, 2005, p.36. 92Ibid.,.p.27. 93 BEVERWIJK, 2005,p.102 94 Ibidem, Idem.

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Não obstante, este sistema de educação selectiva, houve um pequeno número de

moçambicanos que conseguiu concluir os seus estudos universitários na “metrópole95”.

Alguns destes jovens moçambicanos, iriam mais tarde, desempenhar um papel decisivo na

emergência dos movimentos nacionalistas e que culminaria com a fundação da FRELIMO e o

desencadeamento da luta armada pela independência nacional. Como afirmou Miguel

Buendia (1999),

O governo português, no entanto, não permitiu que alunos africanos frequentassem universidades não portuguesas, numa clara tentativa de conter nestes o crescimento de uma consciência nacionalista e impedir que estabelecessem contactos com organizações políticas anticoloniais. Os que estudaram em universidades europeias ou americanas96 foram obrigados a deixar clandestinamente o país e exilar-se97.

A ULM era a única instituição de ensino superior a operar na colônia, onde até à

independência nacional não tinha ainda nenhum curso na área da Sociologia, Ciências

Politicas ou mesmo Direito98. O seu currículo estava assim mais virado para a área das

Ciências Naturais, o que reflectia uma certa desconfiança do governo colonial português em

relação às disciplinas das Ciências Sociais e o seu carácter de questionamento social e

político. A esse respeito Teresa Cruz e Silva (2005), traçou um perfil rigoroso da realidade

universitária no país, antes da independência nacional, e que vale a pena transcrever

demoradamente,

95 Somente em 1968, eles foram autorizados, pela primeira vez, a conceder diplomas de fim do curso.Vide,

JINADU, Adele. The social sciences and development in Africa: Ethiopia, Mozambique, Tanzania and Mozambique, Uppsala:SAREC Report, 1985.

96 Um caso paradigmático seria o de Eduardo Mondlane, primeiro presidente e fundador da Frelimo, que teve que se exilar na África do Sul e mais tarde nos EUM onde concluiria o seu doutoramento em Antropologia.

97 BUENDIA, 1999, op.cit.p.74. 98 Vide, SILVA e Cruz, Teresa. Instituições de Ensino Superior e Investigação em Ciências Sociais: A herança

colonial, a construção de um sistema socialista e os desafios do século XXI, o caso de Moçambique. Lusofonia em África – História, Democracia e Integração Africana, Dakar, CODESRIA, 2005, p.36.

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A natureza desta instituição pode ser ilustrada pela forma como o ensino era restringido e controlado, particularmente nas áreas das Ciências Sociais e Humanas, onde (e apenas mais tarde) foi apenas permitida a introdução de cursos como Filologia Românica, História e Geografia, e destes, apenas os primeiros anos, obrigando, assim, a que os estudantes tivessem que terminar a sua formação em Portugal, sob o olhar de um melhor controlo político. Nesse quadro, a formação universitária em Sociologia, Ciência Política e mesmo Direito, apenas foram introduzidos depois da independência nacional. Assim, não podemos deixar de sublinhar que a formação em Ciências Sociais em Moçambique durante o período colonial era praticamente inexistente99.

Não podia ser de outra forma, pois que mesmo na metrópole, o ensino de Ciências

Sociais na universidade seria introduzido somente no inicio dos anos 1970, num novo

contexto histórico, do Estado social sob liderança de Marcelo Caetano100, pese embora, o

primeiro curso de Pós-Graduação em Ciências Etnológicas e Antropológicas (especialização

em Administração Colonial) tenha sido iniciado no ano lectivo 1968/69101.

Na mesma senda, a disciplina de Sociologia apareceria em 1973 e a Antropologia logo

a seguir ao golpe de Estado de 25 de Abril de 1974, que pôs fim à ditadura salazarista. É de

referir, no entanto, que três disciplinas tinham já uma história longa nas academias

99 SILVA e Cruz, Teresa, op.cit, p.36.

100 Marcelo Caetano, sucedeu a Salazar na presidência, em 1968 até ao golpe militar do 25 de Abril de 1974, depois deste ter se retirado da actividade política, “devido a uma queda que o incapacitaria definitivamente” (Castelo, 2004, op.cit.). Alguns autores afirmam que a sucessão de Marcelo não mudou em nada a política salazarista, tendo somente dado continuidade ao que Salazar tinha projectado. Por exemplo, Erik Blakanoff (1992), afirma que o período da administração de Marcelo, conhecido como o estado social, foi marcado pela “evolução com continuidade”. Vide, BAKLANOFF, Eric N. The Political Economy of Portugal's Later "Estado Novo": A Critique of the Stagnation Thesis. Luso - Brazilian Review, Vol. 29, No.1, 1992, pp. 1-17. Thomas Henriksen, na mesma senda, afirma, “a doença de Salazar e a transferência do poder para Marcelo Caetano em Setembro de 1968, dois anos após a morte de Salazar, não introduziu nenhuma mudança na dependência politica do governo me relação as sua possessões africanas. Vide, HENRIKSEN, Thomas. Portugal in Africa. A Non–Economic Interpretation. African Studies Review, vol.16, nº3, Dec., 1973, pp.405-416. Houve no entanto autores como Stephen Stoer e Roger Dale, que afirmaram que o “reino” de Caetano tinha iniciado um período de “liberalização”, um dos principais símbolos do que viria a ser a reforma de Veiga Simão, na educação. É de referir, que o ministro da educação de Caetano, Veiga Simão, tinha sido anteriormente reitor da universidade Lourenço Marques. Um dos principais objectivos desta reforma tinha sido a “democratização do ensino”, o aumento do período da instrução compulsória dos 6 aos 8 anos, e também a reforma e criação de novas instituições de ensino superior. Vide, STOER, Stephen & DALE, Roger. Education, state and society in Portugal. Comparative Education Review, vol.31, nº3, August, 1987, p.400-418.

101 FIALHO, José. As Ciências Sociais em Portugal – Algumas questões para as Ciências em Moçambique. Seminário: Formação e Investigação em Ciências Sociais de 4 - 5 de Março, , Maputo :UEM, 1993.

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portuguesas, como são o caso da Economia, História e Geografia, que estavam implantadas

em todas as universidades portuguesas102.

Como podemos depreender, o modelo de ensino das Ciências Sociais na colônia seria,

deste modo, um reflexo do próprio atraso no ensino e pesquisa em Ciências Sociais em

Portugal. Como afirmou Jinadu, o carácter autoritário do sistema político português sob

direcção de António Salazar e de Marcelo Caetano não era também conducente a uma ciência

social crítica no Moçambique colonial.103 Daí então Bertil Egero (1977) afirmar, que a

separação da pesquisa do ensino universitário ter sido uma das características da estrutura

universitária portuguesa, “uma estrutura desenhada para servir um sistema político autoritário

que não permitia nenhum espaço para debate e questionamento104”.

Assim não havia praticamente pesquisa empírica na universidade em Moçambique. Na

ULM funcionava apenas o Centro de Estudos Humanístico “Sarmento Rodrigues”, que tinha

sido criado em 1963 pelo Ministro do Ultramar e da Educação Nacional, com o objectivo de

promover a difusão da cultura portuguesa em terras de Moçambique. Em 1968 seria também

criado na universidade o Centro de Estudos de Psicologia, organismo administrativamente

integrado nos cursos de letras, com a função de investigação e de clínicas psicológicas ao

serviço da universidade, nomeadamente dos cursos de ciências pedagógicas e médico-

cirúrgicos105.

Como veremos mais adiante, a pesquisa empírica na área da Antropologia, História, e

Linguística sobre a realidade moçambicana estava somente no Instituto de Investigação

Cientifica de Moçambique (IICM), que tinha sido criado em 1955, como podemos ver, sete

anos antes da fundação do ensino superior na colônia.

1.4 Algumas notas sobre a pesquisa em Ciências Sociais no período colonial

Gerald Bender e Allen Isaacman (1976), referiram que antes da instituição do “Estado

102 Vide, FIALHO, op.cit. 103 Como observou Jinadu, mesmo em Portugal, sob comando de António Salazar em 1932 a 1968 e do seus

sucessor, Marcelo Caetano de 1968 a 1974, a educação superior sofreu vários reveses, com professores a serem demitidos ou perseguidos. Vide, JINADU, 1985, op.cit.

104 EGERO, Bertil. “Mozambique and Angola: Reconstruction in the Social Sciences.”, Research Report nº4, The Scandinavian Institute of African Studies, Uppsala:Sweden, 1977.

105 Vide, ULM. Prospecto Geral, 1971, op.cit.

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Novo”, os investigadores portugueses e estrangeiros tinham ignorado totalmente Angola e

Moçambique106. De acordo com este autores, foi com a ascensão de António Salazar que se

criou uma nova plataforma para o orgulho nacional português, onde os historiadores foram

persuadidos a redescobrirem as glórias do passado imperial português e de engrandecer as

suas “missões” heróicas. A disciplina de História, tornou-se assim um instrumento para

conscientemente instilar o orgulho nacional107. No entanto, o estudo da história africana, foi

deixado para os antropólogos (produzida fundamentalmente por viajantes aventureiros,

missionários, administradores coloniais, escritores e jornalistas) cujas assumpções históricas

sobre a natureza imóvel das sociedades “primitivas” eram raramente questionadas pelos

historiadores.108

Uma vez que as culturas africanas eram consideradas, a priori, de serem estagnantes e

atrasadas, os antropólogos não estavam interessados em estudar como elas funcionavam nem

mesmo como elas interagiam com o ambiente109. Estavam mais preocupados com os aspectos

“exóticos” das sociedades africanas, e que de certa forma, pudessem vincar a suposta

inferioridade dos africanos e legitimar os princípios da “missão civilizadora” portuguesa.

Eram assim produzidos trabalhos sobre escarificações, craniometria, estilos de cabelos,

magia, cerimónias rituais, etc. Como afirmaram Bender & Isaacman (1976), “esta auto-

adulação sobre a sua “missão civilizadora”, estava dependente dessa inferioridade. Até

mesmo os melhores antropólogos portugueses apoiavam essa visão”.110

Um dos mais eloquentes exemplos deste movimento colonial que pretendia apoiar as

pretensões imperialistas da monarquia portuguesa foi sem dúvida a fundação em 1875 de uma

instituição de iniciativa privada, a Sociedade de Geografia de Lisboa (SGL), pelo jornalista e

geógrafo português Luciano Cordeiro111, e mais um pequeno grupo de historiadores,

jornalistas, administradores coloniais, professores do ensino superior, oficiais do exército,

106 BENDER, Gerald; ISAACMAN, Allen. The changing historiography of Angola and Mozambique. African

Studies since 1945 – A tribute to Basil Davidson, edited by Christopher Fyfe, London :Longam, 1976, p.220-248.

107 BENDER & ISAACMAN, op.cit, p.220. 108 Idem, Ibid. 109 Ibidem, Ibid. 110 BENDER & ISAACMAN, op.cit, p. 221. 111 Acabou sendo também um dos 6 delegados portugueses a Conferencia de Berlin (1884-85). Vide,

The Colonial Congress at Lisbon 190:J. BARRET - LENNARD e Vicente Almeida d'Eça. Journal of the Royal African Society, Vol. 2, No. 7 (Apr., 1903), p. 292-307.

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industriais com particular interesse na área naval e do exército112. Uma das principais missões

da Sociedade foi o de propagar numa escala mais alargada, a ideia do império colonial

português e da necessidade de reter e expandi-lo.

Foram levadas a cabo várias expedições científicas (financiadas por subscrição

nacional113) protagonizadas por Serpa Pinto, Guilherme de Brito Capello, Roberto Ivens,

António Maria Cardoso, dentre outros – com o intuito de mapear o interior africano, e mais

especificamente, como afirmou Mattoso (1993), de “reconhecer a bacia do Zaire e as suas

relações com o Zambeze114”. É preciso no entanto referir, que estes relatos geográfico-

naturais e etnográficos, acabavam no final reiterando a necessidade de uma futura “missão

civilizadora”115 portuguesa em África, que deveria iniciar os naturais “na lei e no

aproveitamento do trabalho culto e procurar modificar os usos bárbaros e desumanos das

sociedades indígenas”116.

E o mais interessante, é que neste contexto global do interesse e competição europeia

pela descoberta, exploração e colonização do continente africano, a Geografia tornou-se de

facto a disciplina hegemônica. Como referiu-se Silva Rego,

A partir do inicio da segunda metade do século XIX, deixou-se a humanidade arrastar pelo prestigio da Geografia. Vinha de longe, sem dúvida o amor pelo conhecimento de outras terras e outras gentes (…) mas em virtude de interesses que de um momento para o outro a África principiou a oferecer à Europa e à América, a geografia passou repentinamente de uma ciência algo teórica para outra fortemente influenciada pelas viagens, pelos reconhecimentos, pelos inquéritos sociológicos, econômicos, etc. Como por encanto, surgiram por toda a

112 NOWELL, Charles. Portugal and the partition of Africa, Journal of Modern History, Vol. XIX, nº1, March,

1947, p.1-17. 113 MATTOSO, José (Dir.). História de Portugal – O Liberalismo (1807-1890), Vol. V, Ed. Estampa, Lisoba,

1993. 114 MATTOSO, 1993, op.cit, p.308. 115 Serpa Pinto, um dos mais famosos exploradores africanos do século XIX, no seu relato sobre a viagem que

empreendeu entre o Bié e o Zambeze, dá uma imagem deveras elucidativa desse propósito civilizador, quando afirmava a certa altura: “O que mais me impressionou em relação a essas tribos, foi a sua afeição pelo vestuário, uma disposição que é certamente favorável para o prospecto da futura civilização. Podemos considerar aqui, que temos um grande mercado prospectivo para o consumo de produtos portugueses manufacturados” (sublinhado nosso)..Vide, Serpa Pinto Alexandre Alberto. Major Serpa Pinto's Journey across Africa. Royal Geographical Society and Monthly Record of Geography: New Monthly Series, Vol. 1, No. 8 (Aug., 1879), p. 481-489

116 Legislação novíssima do ultramar, vol. Xi, 1881-1882, pp.292-294, apud Mattoso, op.cit, p.310.

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parte “sociedades de geografia”117.

No que concernia ao caso português, esta instituição acabaria sendo, como observou

José Mattoso, “o fulcro do renascimento colonial português, despertando o interesse da

opinião pública para as questões do império118”. É no entanto Omar Ribeiro Thomaz quem

nos fornece subsídios para pensar mais profundamente as conexões entre produção de

conhecimento e ideologia colonial (tanto no que concernia a nação” como ao “império”), e

que vale a pena citar demoradamente,

A criação da Sociedade de Geografia de Lisboa representou uma corrente do pensamento colonialista português moderno, que procurou fazer com que Portugal retomasse o lugar que lhe competiria no panorama internacional, não apenas tomando parte nos debates sobre o conhecimento dos territórios tropicais, mas também fornecendo subsídios ao Estado a fim de que pudesse participar da “corrida de África”. Para poder garantir uma demarcação de fontreiras favoráveis aos interesses portugueses, um discurso que lançasse mão de apenas “direitos históricos” não era suficiente: fazia-se necessário comprovar um real conhecimento e dominio do Ultramar119.

Os artigos publicados no Boletim da SGL, classificavam-se, segundo Charles Nowell

(1947) em 3 categorias: escritos geográficos de interesse geral, estudos das conquistas dos

portugueses na “idade de ouro” do príncipe Henriques e Vasco da Gama e contribuições que

lidavam com os problemas contemporâneos da colonização portuguesa, principalmente de

questões africanas.120 A análise das actas e dos boletins da SGL a partir de 1876, levada a

cabo por Ângela Guimarães, permite destacar, por outro lado, os objectivos que marcaram as

117 Em termos cronológicos surgiu primeiro a de Paris (1821), a sociedade de Berlin (1828), e de Londres em

1830. Vide, Rego, Silva, A. O ultramar português no sec. XIX, Lisboa:Agencia - Geral do Ultramar, ,MCMLXIX, 2ªed., 1966.

118 MATTOSO, José (Dir.). História de Portugal – O Liberalismo (1807-1890), Vol. V, Lisoba:Estampa, , 1993, pp.308

119 THOMAZ, Omar Ribeiro. “O Bom Povo Português”: Usos e Costumes de AʹQuém e DʹAlém- Mar. Mana 7 (1):55 - 87, 2001, p.55-87, p.65. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/mana/v7n1/a04v07n1.pdf. Acesso em 23-10-2007. 120 NOWELL, 1947 op, cit, p.6.

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três fases fundamentais da actividade desta instituição:

De 1876 a 1880, a SG concentra todos os seus esforços em garantir o lugar de Portugal no movimento expansionista. De 1880 a 1882, esforça-se sobretudo por fazer um balanço das forças disponíveis para investir na competição. De 1882 a 1895, dedica os seus esforços a orientar a politica e a gestão coloniais sobre o conjunto do império, embora as circunstâncias a levem a concentrar o máximo da sua atenção em Moçambique121.

Em relação ao contexto colonial moçambicano, podemos afirmar que até finais dos

anos 1950 não havia ainda instituições viradas exclusivamente para a pesquisa em Ciências

Sociais. Encontrávamos somente trabalhos de carácter individual, ou filiados às pouquíssimas

instituições de pesquisa na metrópole. Estas investigações consistiam basicamente em

pequenos trabalhos descritivos e etnográficos sem nenhuma pretensão de análise ou

interpretação e sem nenhuma filiação a instituições de pesquisa baseadas em Moçambique. A

pesquisa em Ciências Sociais, em disciplinas como Antropologia e Sociologia eram

praticamente inexistentes no Moçambique colonial. Como observou Lorenzo Macagno,

Até final do século passado, os administradores/ militares conservavam o monopólio da violência simbólica com o seu “saber prático”, pois o “saber científico” ainda não tinha chegado totalmente às colônias, embora a Sociedade de Geografia de Lisboa já tivesse começado a interessar pelos “usos e costumes” do ultramar e pelos problemas coloniais122.

No que respeitava por exemplo à pesquisa antropológica, Ana Loforte (1987),

121 GUIMARÃES, Ângela. Uma corrente do colonialismo português: a Sociedade de Geografia de Lisboa,

1875-1895, Lisboa: Livros Horizonte, 1984 , p.21, apud, MATTOSO, op.cit, p.309. 122MACAGNO, Lorenzo. O discurso colonial e a fabricação dos usos e costumes. FRY, Peter (Org).

Moçambique ensaios. Rio de Janeiro:UFRJ,2001, p.88.

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correctamente observou que a política de assimilação adoptada pelo colonialismo português

tornou de certa forma desnecessária a utilização prática da Antropologia nas tarefas

administrativas. A autora argumenta assim, que uma vez que os objectivos da colonização

baseavam-se na ideia de que era preciso “civilizar” o negro “selvagem” e arrancá-lo dos seus

“usos e costumes indígenas”, substituindo por valores da cultura e nação portuguesa, assim o

empreendimento de se constituir uma pesquisa exclusivamente antropológica, tornava-se

desnecessário. Ainda segundo Ana Loforte, “as investigações que pudessem ser realizadas

destinavam-se a fornecer às autoridades coloniais os meios capazes de reforçar a ocupação

portuguesa e aumentar a reserva da força de trabalho e dos produtos agrícolas”.123

Os primeiros estudos de carácter científico produzidos sobre Moçambique eram

fundamentalmente relatórios ou pequenas monografias nas áreas de Antropologia. Loforte

afirma que se assistiu na primeira metade do século XX, uma certa preocupação pelo estudo

das estruturas políticas locais, pelos usos e costumes das populações, nomeadamente sistema

de parentesco e casamento, uso e propriedade de terra, etc124. Houve ainda pequenas

monografias na área de História e Linguística, conduzidos na sua maioria por administradores

coloniais e missionários e que tinham como objectivo conhecer a realidade social a fim de

“bem administrar”125. Estes missionários para o bom desempenho das suas funções tiveram de

se interessar pelo conhecimento das línguas, tendências, usos e costumes dos povos

nativos.126 A pesquisa antropológica adquiriu assim um maior protagonismo através do

beneplácito do Estado colonial. Como observou Brazão Mazula (2004), “ela apresentava-se

no conjunto da acção colonial como uma ciência global do homem africano. Encarregou-se da

universalização da ideologia colonial no espaço português”.127

Reiterou ainda Brazão Mazula, que a antropologia colonial durante o contexto do

Estado salazarista,

123LOFORTE, Ana. Trabalhos realizados no âmbito da Antropologia em Moçambique. PRIMEIRO

SEMINÁRIO INTERDISCIPLINAR DE ANTROPOLOGIA. Maputo:UEM, Março, 1987, p59. 124 Ibid. p.62. 125 LOFORTE, Ana &Mate, Alexandre. As Ciências Sociais em Moçambique, Maputo:UEM,1993,p.2 126 LOFORTE, Ana et al, Loc.cit.p.2 127 MAZULA, Brazão. Educação, cultura e ideologia em Moçambique: 1975-1985, Lisboa:Afrontamento, 2004,

p.69.

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Também fornecia aos missionários uma vasta panóplia de preconceitos racistas e etnocêntricas e as diversas organizações coloniais do Governo uma argumentação e conhecimentos que lhe facilitava a sua acção destruidora das estruturas sociais e económicas indígenas, prestando relevantes serviços ao Estado Novo128.

Como podemos depreender, Portugal mantinha ainda, parafraseando Evans Pritchard,

a “fase amadora do trabalho antropológico”.129 Até então, Portugal assistia impávido e sereno

as incursões de outros pesquisadores estrangeiros das áreas de Antropologia, História e

Geografia, em seus territórios ultramarinos.

Como forma de responder melhor aos objectivos da colonização e sob impulso do

próprio “Estado Novo”, foram sendo criadas instituições de pesquisa especializadas. Após os

finais dos 1960, os relatórios multiplicaram-se e complexificaram-se por razões

fundamentalmente políticas. Era necessário fazer inquéritos pormenorizados de pesquisas

apropriadas para que a administração dispusesse dos melhores instrumentos para lutar contra

as acções político-militares dos nacionalistas130.

Lorenzo Macagno (2002) argumentou, que uma das razões que explicavam a chegada

tardia ao terreno colonial por parte dos antropólogos portugueses, tinha sido a posição

subalterna de Portugal em relação ao resto do establishment antropológico internacional.131

Além disso, as condições políticas do salazarismo teriam contribuído, em grande medida, para

um certo isolamento teórico da Antropologia em Portugal.

Como afirmou Lorenzo Macagno (2002), até a segunda metade da década de 1950,

numa altura em que países como a Inglaterra, França e EUA, começavam a desenvolver novas

correntes teóricas, críticas do etnocentrismo antropológico colonial, a Antropologia praticada

por portugueses na colônia de Moçambique era caracterizado por um profundo desvio

biologista, derivado sobretudo das correntes da Antropometria. Esta escola tinha alcançado

uma posição hegemônica através de Santos Júnior, antropólogo comprometido com a

128 MAZULA, Brazão, 2004, op.cit, p.78. 129 PRITCHARD, Evans, apud NTARANGWI, op. cit. p.12. 130LOFORTE Ana & MATE, Alexandre., op.cit., 1993, p.2 131 MACAGNO, Lorenzo. Lusotropicalismo e nostalgia etnográfica: Jorge Dias entre Portugal e Moçambique.

Afro-Ásia, nº 28, Salvador. CEAO/ UFBA, 2002, p.97-124, p.100.

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administração colonial portuguesa e seus discípulos do Porto, como António Augusto132, que

empreenderam uma série de campanhas em Moçambique entre 1937 e 1955.

Na mesma altura em que estas pesquisas bio-antropológicas estavam sendo realizadas

em Moçambique; na metrópole, Jorge Dias, considerado uma das mais importantes figuras da

Antropologia portuguesa do século XX133, efectuava trabalho de campo em pequenas aldeias

rurais de Portugal. Este pesquisador viria a ser uma peça decisiva no processo de emergência

de uma Antropologia orientada para o estudo das sociedades e culturas das ex-colônias

portuguesas, na segunda metade dos anos 1950. Podemos assim afirmar, que antes de Jorge

Dias a Antropologia portuguesa estava centrada em torno de problemas ligados à realidade

social e cultural portuguesa. Aquilo a que George Stocking cunhou de nation building

anthropology134, em oposição às outras potências coloniais, como a França e Grã-Bretanha

que se caracterizaram por uma empire building anthropology135.

Foi de facto com Jorge Dias, que este autocentramento da disciplina antropológica em

torno de Portugal foi, de alguma forma, posto em questão. Depois do seu regresso dos Estados

Unidos, onde foi profundamente influenciado pela antropologia cultural de Franz Boas136,

Jorge Dias, “comprometido com a administração colonial137”, foi encarregado pelo Ministério

de Ultramar de empreender missões para o estudo das minorias étnicas dos territórios

portugueses do Ultramar. Em Moçambique essa missão iria culminar com a famosa obra “Os

132 Estes autores, através da antropologia física e áreas afins, procuravam estabelecer uma espécie de caução

científica para a subordinação dos povos africanos e hierarquização das raças humanas. Segundo Lorenzo, [...] “nesse trabalho, além de considerar óbvia e irrefutável a importância do cabelo como elemento de classificação ‘racial’, Santos Júnior elabora uma detalhada tabela com uma tipologia de cabelos. Inclusive, António Augusto (colaborador de Santos Júnior) aplicou um conjunto de testes para estabelecer cotas de inteligência, comparando crianças portuguesas e crianças moçambicanas”.Ver António Augusto, “A evolução intelectual das crianças pretas de Moçambique”, separata de A criança portuguesa (Lisboa, 1949). MACAGNO, op.cit.,p.101. 133 LEAL, João, Recensão a obra de Jorge Dias, Os Macondes de Moçambique, Vol. I: Aspectos históricos e

económicos:<http://www.CEAS.iscte.pt/etnografica/Docs/vol_03/N1/vol_iii_N1_213-228.PDF.» Acesso:em 19/092007. 134 “Antropologia da construção da Nação” (tradução nossa). STOCKING, 1982 apud LEAL, 1998, p.213. 135 “Antropologia da construção do Império” (tradução nossa), STOCKING, 1982 apud LEAL, 1998, p.213. 136 De Franz Boas, Jorge Dias resgata a ideia de que as culturas não são mônadas e estáticas, e enfatizou uma

análise que privilegiasse os processos de aculturação. Não obstante esta influência de Boas, Macagno irá sumarizar o trabalho antropológico de Dias afirmando, que “a Etnografia sobre os Macondes se localiza em um registro descritivista e, até certo ponto, estático (Macagno, no entanto adverte que o próprio Dias reconheceu este viés sincrónico e advertiu sobre os resultados parciais de seu trabalho. Cf. MACAGNO, op.cit., p.121.

137PERREIRA, apud MACAGNO, 2002 op.cit., p.105.

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Macondes de Moçambique”138.

Como observou Rui Pereira (2002) foi a partir da reorientação da política colonial

portuguesa que ocorreu na segunda metade dos anos 1950 – no rescaldo da Conferência de

Bandung - que se tornou não só possível, mas necessário o desenvolvimento de estudos de

natureza antropológica nas ex-colônias, de forma a proporcionar às autoridades coloniais

portuguesas os meios para gerir política e socialmente as consciências das populações

africanas, na tentativa de impedir o desenvolvimento de um clima favorável às aspirações

independentistas.139

Foi neste contexto - e antes mesmo do estabelecimento da educação universitária em

Moçambique - que foi criado pelo decreto nº 40:078 de 2 de Abril de 1955 o Instituto de

Investigação Científica de Moçambique140 (IICM), que pretendia ser “na província de

Moçambique, o Centro mais activo141 de investigação das várias ciências, arquivo de

materiais, centro de formação, de documentação e de informação142”.

Um dos seus objectivos principais era o de, na Colônia, desenvolver de forma directa,

prolongada e intensiva, investigação científica, tecnológica, econômica e sociológica. O seu

pendor analítico ligava-se fundamentalmente à pesquisa social “aplicada” (sem deixar no

entanto de também realizar pesquisa de carácter mas especulativo, ou desinteressado), que

procurava, segundo os seus proponentes, “contribuir para o desenvolvimento econômico e

social da província e do continente africano em geral, por meio do estudo de problemas

locais. Estes “estudos técnicos”, tinham também o objectivo de “contribuir para a solução dos

138Os “Macondes de Moçambique” de Jorge Dias em 4 volumes cobre toda a cultura dos Macondes (grupo

étnico presente no Norte de Moçambique). O primeiro cobre a história, ecologia e economia dos Macondes; o segundo aborda a cultura material. O terceiro e quarto versam sobre a vida social, religião, arte e literatura oral. Professor Dias fornece capítulos detalhados sobre a caça, a aldeia como unidade local, a arquitetura doméstica, alimentação, bebidas, ornamento do corpo, tatuagens e técnica de escultura em Madeira e ferro. Esta obra teve também a participação de sua esposa, a antropóloga alemã, Margot Dias que contribuiu com um capítulo sobre cultura material.

139LEAL, 1998, p.214. 140 Segundo PACHALEQUE, Calisto et al. “O IICM foi criado em 1955, mas só entrou em funcionamento em

1957, quando foi aprovado o seu regulamento.”, op.cit , p.14,. 141 Não obstante existirem na colónia, outras instituições de pesquisa, como o Instituto de Investigação

Agronómica de Moçambique, e o Instituto de Investigação Veterinária. Vide, BRITO, Luís Manuel Cerqueira de. Luís Manuel Cerqueira de Brito (depoimento, 2008). Rio de Janeiro, CPDOC/FGV; LAU/IFCS/UFRJ; ISCTE/IUL, 2010. 16 p.

IICM – Necessidades, problemas e perspectivas de desenvolvimento, Actividade em 1959 – Plano de trabalhos para 1960, Lourenço Marques, Dezembro de 1959.

142 Pachaleque, Calisto. et al., 1993,p.3.

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mais urgentes problemas práticos143”.

Esta instituição de pesquisa dependia do ministério do Ultramar, por intermédio do

governo-geral e da Junta de Investigação do Ultramar144. Era, no entanto, uma instituição

independente da EGUM/ULM, mas mantinha uma estreita colaboração na área de ensino e

pesquisa145. Tinha sido atribuído ao IICM um carácter de polivalência daí então o seu campo

de pesquisa ser bastante diversificado, englobando as áreas da biologia, ciência da terra e as

Ciências Sociais. Era assim, o único organismo da província em cuja estrutura tinha sido

considerado o estudo das Ciências Humanas e Sociais146.

A secção das Ciências Sociais competia efectuar estudos nos domínios da Etnografia,

Etnologia, Sociologia, História, Pré-História, Proto-História, Etno-História, Linguística,

Antropologia e Geografia Humana147. A área da pesquisa social funcionava com poucos

investigadores efectivos, tendo no entanto, a contribuição permanente de colaboradores e

investigadores associados, que acabaram sendo actores chaves para a própria existência do

Instituto148. De acordo com Pachaleque, um factor que limitava o crescimento do quadro

científico na área das Ciências Sociais do Instituto tinha sido,

O fraco desenvolvimento destas ciências em Portugal repercutiu no número e na qualidade de especialistas disponíveis neste domínio de saber. Assim, a existência de colaboradores permitia superar alguns desses vazios e consentia ao IICM a possibilidade de ter investigadores disseminados por várias partes do país. [...] nota importante é que muitos destes colaboradores não possuíam formação específica em Ciências Sociais. Estamos aqui a falar de pessoas ligadas à administração colonial e aos oficiais do exército.149

143 IICM, 1959, op.cit, p.3 144 IICM, 1959, op.cit, 145 PACHALEQUE, Calisto. et al. 1993, op.cit. p.14. 146 IICM, 1959, op.cit,p.62. 147 IICM, 1959, op.cit, p.3. 148Ibid. p.14. 149PACHALEQUE, Calisto. et al. 1993, op.cit, p.16.

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Em 1965 o IICM lançou uma revista, “Memórias”, destinada a publicação, em três

séries, de trabalhos sobre Ciências Biológicas (Série A) Geográfico-Geológicas (Série B), E

Ciências Humanas (Série C). A serie “C”150 tinha um foco de análise bastante diversificado,

publicando trabalhos sobre migrações dos trabalhadores “indígenas” de Moçambique para a

África do Sul e internas, Antropologia física e serológica dos negros de Moçambique, Etno-

História, Linguística, Demografia, crenças e práticas mágicas e Etnomusicologia,151

A revista “Memórias”, surgida no contexto da nova historiografia pós-1960152, incluía

já estudos interessantes e em claro distanciamento do olhar etnocêntrico da primeira fase da

pesquisa colonial. Encontramos por exemplo o estudo aprofundado de Leonor Correia de

Matos, “Origens do povo Chope segundo a tradição oral153”, onde a autora faz uma

reconstrução histórica do povo Chopi, destrinçando os vários grupos sociais que o constituíam

e não de olhá-los como um grupo estanque e homogêneo.

Na mesma senda, esta pesquisa rompia com a historiografia clássica colonial ao

privilegiar o método das fontes orais na reconstituição das origen(s) do povo Chopi.

Encontramos também o texto do administrador colonial e antropólogo, Antonio Rita-Ferreira,

“Etno-História e cultura tradicional do grupo Anguni154 que na óptica de Bender e Isaacman,

“deveria preencher uma grande lacuna no nosso conhecimento sobre o Moçambique pré-

colonial.155 É de referir também, que este trabalho antropológico de Rita-Ferreira estava

profundamente influenciado pela historiografia africana moderna e de autores não

portugueses como os historiadores Gerard Liesegang, Malyn Newitt, Douglas L. Wheeler, etc.

Em relação a esta diversidade de temas publicados nesta revista, é preciso no entanto

referir, que não havia ainda nesta publicação, por exemplo, estudos críticos sobre a presença

colonial portuguesa em Moçambique, campanhas anti-portuguesas dos reinos de

150 No levantamento bibliográfico por mim efectuado, durante o período em que decorreu este estudo, foram

somente encontrados, nas instalações do CEA/UEM, 7 exemplares das Memórias do IICM, serie “C”. 151PACHALEQUE, Calisto, op.cit.p.14. 152 BENDER & ISAACMAN, argumentam que após 1960, uma nova geração de cientistas sociais não

portugueses redefiniu as áreas vitais dos interesses de pesquisa na historiografia de Angola e Moçambique. De acordo com estes autores o período anterior, era caracterizado por uma abordagem antropológica e histórica eurocêntrica e racista, preocupando-se somente com aqueles aspectos “exóticos” da sociedade moçambicana. Vide, BENDER & ISAACMAN, 1976, op.cit,

153 De MATOS, Leonor correia. Origens do povo Chope segundo a tradição oral. Memórias, , vol.10, IICM, Série “C”, Lourenço Marques, 1973.

154 RITA - FERREIRA, A. Etno - História e cultura tradicional do grupo Anguni, Memórias do IICM, , vol.11, Série “C”, Lourenço Marques, 1974.

155 BENDER & ISAACMAN, 1976, op.cit., p.225

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Monomotapa, Tonga ou Manica, ou mesmo uma abordagem mais contemporânea sobre

formação de classes, religião etc. Como sabemos, a publicação das Memórias do IICM, tinha

nascido num contexto do crescente aumento dos movimentos anti-coloniais no mundo, onde

começavam também a emergir uma nova geração de cientistas sociais (fundamentalmente não

portugueses) que redefiniram as áreas vitais de pesquisa na historiografia de Moçambique.

Como observaram Bender & Isaacman (1976), enquanto muitos destes investigadores

começaram a se interessar pelas colônias, com o advento das lutas de libertação nacional,

quase todos estes tinham sido influenciados pela obra de James Duffy, Portuguese Africa

(1959), como também Black Mother (1961) de Basil Davidson.

Esta nova geração de investigadores, em nítido contraste com os seus predecessores,

rejeitavam o eurocentrismo e tratavam os colonos e comerciantes portugueses como um

elemento, muitas vezes, insignificante no desenvolvimento histórico de Moçambique. Além

do mais, eles desafiaram as interpretações portuguesas estabelecidas e atacaram “a verdadeira

alma do colonialismo português”, o mito da inexistência de racismo na colonial156 reforçada,

no período salazarista, na “ideologia do luso-tropicalismo”157 do sociólogo brasileiro Gilberto

Freyre, que, diga-se de passagem, dominava a maior parte da historiografia portuguesa158

sobre África. Um outro indicador desse afastamento da historiografia colonial, foi também a

emergência dos métodos da história oral, privilegiando assim as “vozes” africanas na

construção de uma nova história da resistência africana.

Autores como Charles Boxer, James Duffy, Allen Isaacman, Valdemir Zamparoni,

dentre outros, analisaram criticamente as relações raciais no colônia no Moçambique colonial

e demonstraram que os portugueses, frequentemente manifestavam racismo e discriminação,

não somente para com os negros africanos, mas também com os asiáticos e mestiços. Não

podemos deixar de mencionar também os nacionalistas africanos, rejeitaram e condenaram

156 BENDER & ISAACMAN, 1976,op.cit. 157 Costa Pinto afirmou que Portugal teria iniciado no sec. XV um novo tipo de civilização, devido ao seus

caráter de expansão singularmente simbiótico de união de europeu com os trópicos, e, ao lado desse novo tipo de civilização vir-se-ia desenvolvendo um novo tipo de conhecimento ou saber dos trópicos pelo europeu, para o qual se sugere a caracterização de lusotropicologia. Ainda de acordo com Costa Pinto, Freyre postulado que dessa simbiose do português com os povos tropicais, originaram-se praticas fraternas de assimilação cultura e de confluência inter-racial. Vide, COSTA PINTO, João Alberto. Gilberto Freyre e o luso-tropicalismo como ideologia do colonialismo português (1951-19749), Revista UFG, Ano XI, nº6, Rio de Janeiro, junho 2009, p.45-160.

158 Autores portugueses, pertencentes a Escola Colonial Superior, como Mendes Correia, Solva Cunha, Adriano Morreira, Silva Rego e Jorge Dias, eram, de acordo com Bender e Issacman, responsáveis por formar a elite da burocracia colonial, subscrevendo a imagem idílica de uma relação racial harmoniosa em Moçambique. Vide, BENDER & ISAACMAN, 1976, op.cit.

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profundamente o “luso-tropicalismo”, como “ um mito cruel perpetrado para cegar o mundo

para as realidades de opressão racial e exploração.”159

A eclosão da independência nacional trouxe consigo grandes mudanças a todos os

níveis na sociedade moçambicana. A universidade, bem como outras instituições de pesquisa

como o IICM, foram profundamente afectadas pelo êxodo de quadros portugueses, tanto de

professores universitários como de pesquisadores. Como afirmou Luís de Brito,

Com a independência, deu-se a partida da maior parte dos investigadores. Os mesmos eram todos portugueses. Partiram e ficou apenas a infra-estrutura que foi colocada na dependência da universidade Eduardo Mondlane, ao contrário dos outros dois centros que ficaram subordinados ao Ministério da Agricultura160.

No interior do IICM foram criados em 1976, quatro centros de investigação, todos eles

subordinados hierarquicamente à universidade: o Centro de Estudos Africanos (CEA), o

Centro de Estudos de Técnicas Básicas para o Aproveitamento dos Recursos Naturais

(TBARN), o Centro de Estudos de Comunicação e por último o Centro de Ecologia161. Como

corolário do novo contexto do fim do colonialismo, a investigação em Ciências Sociais foi

dissolvida no IICM e integrada no CEA. Nascia assim uma nova instituição de pesquisa e

ensino, que iria se tornar no principal centro de produção de conhecimento no pós-

independência. Como bem observou Pachaleque,

Uma importante nota que nos salta à vista é a ruptura que se dá com a independência. O IICM é integrado na UEM, mas surge um outro Centro de pesquisa que acaba “ofuscando” o anterior, mas sem o substituir em todos os domínios, pois que o CEA ficou limitado às Ciências Sociais e como uma outra postura

159 BENDER & ISAACMAN, 1976, op.cit.

160 BRITO, Luís Manuel Cerqueira de. Luís Manuel Cerqueira de Brito (depoimento, 2008). Rio de Janeiro, CPDOC/FGV; LAU/IFCS/UFRJ; ISCTE/IUL, 2010. 16 p.

161 Ibid, Idem.

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teórico-metodológica162.

Como iremos ver no próximo capítulo, a herança colonial irá afectar a educação

superior no Moçambique pós-independente, não somente na quase inexistência de

moçambicanos com nível superior, como também na carência de instituições de ensino

superior e de pesquisa em todo o país. Como vimos anteriormente, o governo português,

utilizou de facto uma política de limitar o acesso da população africana a educação, mantendo

o ingresso de negros no ensino superior muito pequeno, e nem não estava interessado nem na

criação de escolas e universidades para os autóctones e nem numa massiva alfabetização da

população africana. Por outro lado, o currículo português era explicitamente eurocêntrico,

discriminador e racista, onde apenas se ensinava os valores da cultura portuguesa, rasurando

deliberadamente toda acultura africana, vista como “retrógrada” e “selvagem”.

O grande desafio no pós-independência foi assim o de colmatar as grandes lacunas da

herança colonial, pondo a funcionar a única universidade existente no país, massificar o

acesso da população africana a educação e formar, com os pouquíssimos quadros disponíveis,

a grande maioria dos que nunca tinham tido acesso ao ensino formal. Por outro lado, houve

também uma grande campanha de solidariedade internacional a partir da qual quadros de

todas as áreas vieram a Moçambique para ajudar na reconstrução nacional do país. O CEA,

como veremos a seguir, de facto, não ficou incólume a toda esta dinâmica, atraindo de forma

surpreendente um grande número de professores e pesquisadores internacionais.

162 PACHALEQUE, Calisto. et al.,. 1993, op.cit. Em relação ao trabalho do Centro de Estudos Africanos, e essa

“outra postura teórico -metodológica” sugerida por Pachaleque, iremos abordar, com mais detalhe, no último capítulo deste trabalho.

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2. AS CONDICÕES SOCIAIS DA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO NO PÓS-INDEPENDÊNCIA

A importância do contexto na compreensão das dinâmicas (internas e externas) de

pesquisa do CEA no pós-independência não deverá ser subestimada neste trabalho.

Alicerçado no paradigma da análise das condições sociais da produção do conhecimento, as

ideias, representações, teorias, enfim todo o conjunto da produção científica do CEA, serão

abordadas neste estudo, como estando intrinsecamente conectadas aos contextos particulares

(internacional, regional e nacional), nos quais foram produzidos.

Iremos deste modo, começar por aludir neste capítulo, (tendo em conta o objectivo

central deste estudo que é o de reconstituir a história intelectual do CEA), a um contexto mais

geral, e anterior à fundação do Centro, das lutas anti-imperialistas que se desencadeavam em

várias partes do mundo e que mobilizaram intelectuais e acadêmicos de “esquerda” engajados

nas lutas pela justiça social, como também em prol do desenvolvimento dos países

considerados do “terceiro mundo”. Em segundo lugar, Moçambique no contexto da África

Austral, dominado fundamentalmente pelas lutas de libertação nacional (no Zimbabwé até

1980, e ainda Namíbia163 e África do Sul164 que perduraria até aos anos 1990) e anti-apartheid

e da dependência econômica em relação ao capital sul-africano; e, por último, e não menos

importante, o contexto intelectual e histórico da tentativa165 de construção do socialismo em

Moçambique.

2.1 O contexto internacional: Descolonização, Africanistas Radicais e Solidariedade

Nos finais dos anos 1960, com as independências de muitos países africanos166,

intelectuais e activistas anti-imperialistas vindos maioritariamente da Europa (mas também de 163 O Movimento de Libertação Nacional Namibiano (SWAPO), continuou a sua estratégia combinada de luta

armada e resistência pacífica à ocupação pelo regime sul-africano do Apartheid. 164 Liderada pela luta armada e política desencadeada pelo ANC. 165 Barry Munslow, por exemplo, acredita que mesmo que nenhum estado africano tenha conseguido construir o

socialismo, houve um certo número de tentativa, e Moçambique era considerado como um deles. Vide, RAY, Donald. Dictionary of the African Left. Vermont : Dartmouth, 1989, p.11.

166 A primeira onda das independências africanas vai de 1957 a 1968, e compreendia países como o Ghana, Mali, Guiné Equatorial e Tanzânia.

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países como Canadá e EUA), começaram gradualmente167 a focalizar as suas atenções para as

lutas anti-coloniais que se desencadeavam nos países africanos sob dominação colonial

portuguesa, considerados até então como o último reduto do colonialismo. Muitos destes

jovens intelectuais “progressistas”, estavam envolvidos nos seus países em lutas anti-

apartheid e de apoio aos movimentos de libertação nacional168”, organizando, por exemplo,

campanhas e manifestações anti-Portugal na Europa, de consciencialização nas suas

sociedades e no mundo em geral sobre a necessidade da descolonização urgente e de

angariação de fundos para os movimentos de libertação169.

Com as independências conquistadas, muitos deles decidiram então dedicar parte de

suas vidas na construção do socialismo nessas jovens nações africanas. Um dos primeiros

lugares onde se acreditou poder construir uma nova ordem social alternativa ao capitalismo,

tinha sido a Tanzânia, sob governo de Julius Nyerere. E foi precisamente na universidade de

Dar-es-Salaam170, que grande parte destes africanistas se “entrincheirou”. Professores e

pesquisadores do CEA como Ruth First, Jacques Depelchin, Ana Maria Gentili, Robert

Davies, Dan O´Meara, dentre outros investigadores associados, tinham estado a trabalhar

nesta universidade antes de abraçarem a causa da “revolução moçambicana”.

E havia de fato algo de especial neste lugar, para atrair tantos acadêmicos e

investigadores expatriados. Com a conquista da independência em 1961, o partido dirigente

de Julius Nyerere, procurou adoptar uma estrutura política e sistema de crenças baseados nas

premissas do socialismo democrático, onde ao sistema educacional tinha sido dado um papel

preponderante não só para reverter os efeitos negativos do colonialismo, mas também como

167 De acordo com Tony Gifford, nesses anos de 1960 as guerras de libertação desencadeadas nas três colónias

de Portugal eram escassamente reportadas ou conhecidas. Como afirmou Gifford ,”Portugal era um lugar para ferias ao sol.” O mesmo autor refere ainda que quando o então presidente da Frelimo, Eduardo Mondlane participou em vários encontros em Oxford e Londres, ficou chocado com a ignorância dos “britânicos progressistas” sobre o seu país. Vide, GIFFORD, Tony. Basil Davidson and the African freedom struggle. Race & Class, nº32, 1994, pp.85-88.

168 Poderíamos aqui dar o exemplo de intelectuais radicais como Basil Davidson e John Saul que nos anos 1960, e em momentos distintos, tinham sido convidados pelo presidente Samora Machel para visitar as “zonas libertadas”, durante a luta de libertação nacional, sob comando da Frelimo no interior de Moçambique. Vide GIFFORD (1994), e Revista Tempo, Maputo: Tempográfica, 27/08/78, nº412, p.36-42.

169 A criação em 1968, do Comité para a liberdade de Moçambique, mais tarde estendido para Angola e Guine Bissau (CFMAG), é um exemplo claro deste engajamento político com esses países africanos. Este comité chegou a frustrar a visita do então chefe de estado de Portugal, Marcelo de Caetano a Inglaterra para comemorar os 600 anos da aliança anglo - portuguesa. Foram organizadas várias manifestações de repúdio ao colonialismo português. Vide, GIFFORD, op.cit, 1994, p.88.

170 De acordo com Penina Mlama, até 1984, era a única universidade no país. Vide, MLAMA, Penina. “African perspectives on programms for North Americans students in Africa: the experience of the University of Dar es Salaam”. African Issues, vol.28, nº12, 2000, p.24-27.

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um instrumento privilegiado para a realização dos objectivos nacionais, do desenvolvimento

econômico e o aumento das condições de vida das populações rurais171. Na mesma senda,

desde a sua fundação em 1961, a universidade de Dar-es-Salaam adoptou uma abordagem

aberta em relação ao discurso intelectual com a visão de criar uma atmosfera onde pessoas de

diferentes orientações acadêmicas e ideológicas pudessem contribuir para o debate intelectual.

O primeiro grupo de pesquisadores foi recrutado de várias partes do mundo. Não

obstante, durante o período da construção do socialismo na Tanzânia (que começou em 1967)

o currículo ser claramente de orientação socialista, foram recrutados para a universidade

expatriados tanto com antecedentes acadêmicos socialistas como capitalistas. (por exemplo a

investigadora do CEA, nacionalidade americana, Bridget O’Laughilin). De facto, nos anos

1970 esta mistura criou um debate intelectual muito aceso na universidade, onde acadêmicos

de orientação marxista e capitalista desafiavam-se no debate sobre a validade das suas

posições intelectuais vis a vis o desenvolvimento da sociedade tanzaniana. Este debate

embora tenha sido algumas vezes frustrante para as pessoas com posições rígidas, criou um

ambiente intelectual fértil para professores e estudantes172.

Estava-se, por outro lado, num contexto internacional de grandes mudanças sociais e

políticas. O advento dos movimentos nacionalistas em África, a polarização do mundo

resultante da guerra fria, a guerra do Vietname (1959-1975), mas também a manifestação

estudantil francesa que teria repercussões em países industrializados como os EUA, Japão,

dentre outros. O “Maio de 68”, que tinha emergido a partir de “grupos de esquerda revoltados

“contra a sociedade de consumo”, o ensino tradicional e a insuficiência de saídas

profissionais173” iria ter um grande impacto na mudança das mentalidades na sociedade

francesa.

A abertura à novas ideias tornou num dos motes planetários desta geração de 68,

aumentando a contestação por parte dos intelectuais: o aparecimento e a divulgação de

trabalhos efectuados na área das Ciências Sociais e Humanas tornam-se numa realidade cada

171 Para uma leitura mais atenta sobre a ligação entre processos políticos e a educação na Tanzania pós -

independente, vide, BLOCK, Leslie. National development policy and outcomes at the University of Dar es Salaam. African Studies Review, vol.27, nº1, March, 1984, p.97-115.

172 Vide, MLAMA, Penina. African perspectives on programms for North Americans students in Africa: the experience of the University of Dar es Salaam. African Issues, vol.28, nº12, 2000, p.24-27.

173 Maio de 68: Infopédia, Porto: Porto Editora, 2003-2010. Disponível em: www: <URL: http://www.infopedia.pt/$maio-de-68>. Acesso em 20/10/2008.

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vez mais forte no mundo científico francês.174. Depois do “Maio de 68”, deu-se uma explosão

do pensamento marxista, com autores como Hebert Marcurse, Jurgen Habermas, Jean-Paul

Sartre Guy Debord, em contraponto, à aquela concepção das Ciências Sociais exclusivamente

empírica, ou mesmo da sociologia dominada pelo funcionalismo americano175.

No que se referia ao estudo de África, até cerca de 1950, este estava, como vimos no

capitulo anterior, hegemonicamente dominado pela disciplina da Antropologia, criada

propositadamente para analisar aqueles considerados como os povos “atrasados”. Era assim

uma disciplina extremamente anti-histórica e eurocêntrica. Os seus seguidores eram

fundamentalmente pesquisadores europeus treinados em universidades, mas também,

missionários e administradores coloniais. Enfim, uma ciência ao serviço do poder colonial e

que a partir de conceitos como “tribo”, “aculturação cultural” procuravam no final legitimar a

presença colonial em África.

De acordo com Immanuel Wallerstein (1983), as mudanças começaram a emergir com

o advento, a partir dos anos 1950, dos nacionalismos africanos na forma de movimentos

políticos. Estes movimentos nacionalistas, segundo Immanuel Wallerstein, defendiam que a

arena primária da acção social e política, em termos de legitimidade e de objecto epistémico

era e deveria ser o Estado colonial ou a ideia de nação, e não a “tribo”. Argumentavam ainda

que a ênfase nas “tribos” e “tribalismo” era um instrumento central das autoridades coloniais

para manter a dominação colonial, e como consequência, eles formalmente deploravam o

estudo das “tribos”176.

Em segundo lugar, os movimentos nacionalistas afirmavam que a relação entre

europeus e africanos não tinha sido no sentido de “contacto cultural”, mas em vez disso, de

uma “situação colonial”, que deveria terminar. É assim que Immanuel Wallerstein afirma que

“num mundo que se estava a descolonizar, os estudos africanos foram drasticamente

redefinidos177”. As colônias africanas – tornando-se Estados independentes – pareciam agora

exibir, processos econômicos sociais e políticos suficientemente similares daqueles do

174 Maio de 68. In: Infopédia, Porto Editora, 2003-2010.

Disponível em: www: <URL: http://www.infopedia.pt/$maio-de-68>.Acesso em 27/10/2008. 175 Para uma leitura mais atenta deste fenómeno, vide, BOTTOMORE , Tom & Laurence, Harris. A Dictionary

of Marxist Thought, Blackwell Publishing, 2nd edition, 1998; ROIZ, Diogo da Silva A ‘crise de paradigmas’ nas Ciências Sociais, uma questão relativa à teoria da história? Topoi, v. 7, nº 12, jan.-jun. 2006, p. 261-266.

176 WALLERSTEIN, Immanuel. The evolving role of the Africa Scholar in African Studies. Canadian Journal of African Studies, vol. 17, nº 1, 1983, p. 9-16.

177 Ibid, Idem..

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ocidente, de forma que poderiam ser vistas como um domínio normal de cientistas políticos,

economistas e sociólogos. Como afirmara Immanuel Wallerstein (1983), o “Estado/Nação foi

agora o locus da acção social e a agência africana fornecia o foco dinâmico da análise178”.

Deu-se também uma mudança drástica da composição social dos estudiosos de África. Um

campo que até então se caracterizara, quase exclusivamente, por ser formado por estudiosos

europeus de países coloniais, passava agora a ser transformado por pesquisadores vindos de

outras partes do mundo, como também de um grupo, ainda que reduzido, de pesquisadores

africanos179.

Peter Waterman (1973), propôs o termo genérico de “radical”, para caracterizar a

emergência desta nova tendência na produção científica sobre África, que procurava se

distanciar daquele conhecimento convencional, produto essencialmente da dominação

colonial. Para este autor havia três aspectos desse “radicalismo” nos estudos africanos.

Primeiro, o “radicalismo como um compromisso” (radicalism as a commitment180), onde a

maioria desses africanistas radicais declaravam ou revelavam nos seus escritos um claro

compromisso moral e político. Ainda segundo Peter Waterman, isto era geralmente formulado

em termos de uma oposição ao imperialismo (visto como um sistema social que dominava a

África politicamente e explorava economicamente) e - de uma forma mais positiva – em

termos de uma preocupação pelas massas africanas e uma preferência pela economia

socialista e estratégia política. Daí então a historiadora italiana e pesquisadora do CEA, Ana

Maria Gentili não deixar de enfatizar,

Nós fomos a geração da descolonização. Éramos todos idealistas e progressistas, no sentido de pensar que o conteúdo das independências não era só a liberdade política, não era somente de transformar indivíduos em cidadãos mas era também a justiça social.181

178 WALLERSTEIN, Immanuel. The evolving role of the Africa Scholar in African Studies. Canadian Journal

of African Studies, vol. 17, nº. 1, p. 9-16, 1983. 179 A produção da História Geral da África pela UNESCO em 1963 (tendo sido publicado o 1º volume em 1971)

a pedido da Organização da Unidade Africana (OUA), com o objectivo de substituir os livros até então usados nas escolas africanas, que estavam carregados de preconceitos, etnocentrismo e que enalteciam os valores da civilização do colonizador, pode ser considerados como um dos grandes marcos desta mudança radical na historiografia africana.

180 Vide, WATERMAN, Peter. On Radicalism in African Studies. Politics and Society, nº3, p.261-281, p.266, 1973.

181 Entrevista com Ana Maria Gentili, junho de 2007.

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E podia ainda ser um compromisso radical ainda mais específico do que esse, quando

por exemplo, Bridget O’Laughilin, antropóloga americana e pesquisadora do CEA afirmou,

“nós estávamos comprometidos sim com o poder, com a estratégia socialista da FRELIMO,

mas isso não significava que tínhamos um mandato do partido, quando íamos ao campo fazer

investigação”.182

O segundo aspecto seria o “ radicalismo como uma abordagem” (radicalism as an

approach), na medida em que esses sujeitos tinham também um grande interesse na teoria e

método nos estudos africanos. Só assim poderemos compreender, por exemplo, a preocupação

no pós-independência da FRELIMO e como também de toda a universidade em rejeitar o

conhecimento colonial produzido sobre África e Moçambique e de alocar todos os seus

esforços intelectuais na reconstrução de uma nova historiografia moçambicana,

“revolucionária”.

O terceiro aspecto, “radicalismo como um interesse”(radicalism as an interest), estava

relacionado com a emergência, durante estes primeiros anos das independências africanas

daquilo a que Peter Waterman chamou de “disciplinas da linha da frente (front-line

disciplines), nos quais eram abordados os problemas considerados politicamente de extrema

importância. A primeira disciplina a tomar a dianteira nos anos 1950, seria como asseverava

Basil Davidson, (que pode ser considerado como um dos epítomes desta geração de

africanistas radicais), a História183. De facto, nos primeiros anos das independências de

África, esta disciplina teve o papel mais importante na reconstrução intelectual da experiência

africana. Enfim, na produção de uma nova historiografia moçambicana a partir dos sujeitos

africanos, com o objectivo subjacente de “manufacturar” os mitos fundadores necessários

para a legitimação do grupo político dominante184. Foi também a partir da disciplina de

história, produzida por estes africanistas radicais, que se deu a inauguração de um campo de

pesquisa, de grande rigor cientifico e fortemente baseada em pesquisas empíricas185.

Moçambique, “um país que ainda estava livre de todas as engrenagens que existiam na

182 Entrevista com a autora, agosto, 2007. 183 Vide, WATERMAN, 1973, op.cit, p.275. 184 Vide, WATERMAN, Peter. On Radicalism in African Studies. In, Politics and Society, Nº3, 1973, pp.261-

281, p.266. 185 Poderíamos aqui dar o exemplo da produção, nos princípios dos anos 1980, dos 8 volumes da Historia Geral

da África organizada pela UNESCO.

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Europa186”, acabou se tornando, de facto, num dos lugares que iria receber mobilizar grande

parte destes africanistas “pés vermelhos187, na procura de sonhos revolucionários,188 que eles

não podiam realizar nas suas próprias sociedades, ou de gratificações psíquicas de campanhas

de “solidariedade189”. Como afirmou Teresa Cruz e Silva,

Muitos vinham com a curiosidade de ver Moçambique em formação. Professores como Pierre-Philip Rey, Catherine Coquery-Vidrovitch, da escola francesa, etc. Também vieram cá os chilenos e os brasileiros de esquerda. Nós beneficiamos de coisas incríveis do Philip Rey e de todas as pessoas da escola francesa, americana, inglesa190.

E havia, de facto, todo um contexto social e político favorável: a euforia colectiva

surgida com a conquista da independência nacional em 1975191, através de uma luta armada

sob direcção da FRELIMO192; a sua transformação, vinte meses depois, em Fevereiro de

1977, em um partido marxista-leninista, “engajado na tarefa da construção de uma base

material, técnica, ideológica e política para o desenvolvimento de uma sociedade socialista

186 Jean-Luc Godard, cineasta francês, a quando da sua visita a Moçambique em 1978, para a produção de

“filmes de pesquisa”. Vide, Jornal Noticias, 21/08/78, p.4. 187 Tom Young empresta este termo de Patrick Chabal em People´s war, state formation and revolution in Africa:

a comparative analysis of Mozambique, Guinea-Bissau and Angola. Journal of Commonwealth and Comparative Politics, nº 21, 1983, p.104-25.

188 E foi mesmo Bridget O’Laughilin quem afirmou durante a entrevista, que durante os anos em que estes pesquisadores cooperantes viveram em Moçambique, “sentíamos que estávamos a viver uma revolução”.

189 Tradução minha: Writing on post-independence Mozambique remains dominated by “redfeet” in pursuit of revolutionary dreams that they cannot attain in their own societies or of the psychic rewards of “solidarity” campaings. Ver, YOUNG, Tom, op.cit.,1990).

190 Entrevista com Teresa Cruz e Silva, agosto, 2007. 191 Depois de um processo político longo de negociações com o governo português, iniciado com o golpe de

Estado em Portugal em 1974. Vide, MITLEMAN, James, State Power in Mozambique. A Journal of Opinion, vol.8, nº1, 1978, p.4-11.

192 Frente de Libertação de Moçambique. Foi fundada em 1962 a parti da fusão de 3 outras organizações nacionalistas anticoloniais constituída por moçambicanos no exílio, nomeadamente a MANU, UDENAMO e UNAMI. Para uma leitura mais aprofundada do nascimento dos movimentos nacionalistas em Mocambique vide, .ALPERS, Edward. “Ethnicity, Politics, and History in Mozambique”, Africa Today, Vol. 21, No. 4 (Autumn, 1974), pp. 39-52; OPELLO Jr, Walter C. Pluralism and Elite Conflict in an Independence Movement: FRELIMO in the 1960s. Journal of Southern African Studies, Vol. 2, nº 1, Outubro, 1975, p. 66-82; ISAACMAN Allen. e ISAACMAN, Barbara. Mozambique: from colonialism to Revolution, 1900 -1982, Boulder, Colorado: Westview Press, 1983; NEWITT, Malyn. A History of Mozambique, London : Hurst & Company, , 1995.

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em Moçambique193”. Por outro lado, a FRELIMO tinha sabido representar-se

internacionalmente, tinha superado os conflitos internos194 (diferentemente de Angola, que se

“digladiava” internamente). Representava assim uma nova esperança para estes pesquisadores

e activistas políticos na geopolítica da guerra fria rumo à construção do socialismo em

África. Como afirmou Dan O´Meara,

Todo o pesquisador filiado ao CEA via o seu trabalho “acadêmico” como profundamente politicamente engajado. Nós todos acreditávamos que tínhamos um compromisso com o socialismo em Moçambique e com a libertação da África do Sul e Namíbia e tudo o que nós fizemos foi moldado por isso195.

Foi assim este compromisso com o projecto socialista da FRELIMO que mobilizou

grande parte destes investigadores e, como veremos ao longo deste estudo, deu um contributo

significativo ao desenvolvimento da pesquisa em Ciências Sociais, na formação de

investigadores e quadros do aparelho de Estado sobre métodos e técnicas de pesquisa social

como também na produção de conhecimento socialmente relevante sobre a economia política

de Moçambique.

Pesquisadores e docentes como Ruth First, Marc Wuyts, Bridget O’Laughilin, Jacques

Depelchin, Ana Maria Gentili, Dan O’Meara, Judith Head, Robert Davies, dentre outros iriam

ter um papel crucial no desenvolvimento do ensino e da pesquisa aplicada em Ciências

Sociais, focalizada na actualidade moçambicana e onde se conjugava, investigação de campo

intensiva, análise documental e tratamento dos dados, num processo de pesquisa

fundamentalmente colectivo. Luís de Brito não deixou de referir ao papel deste pesquisadores

cooperantes196 na formação de investigadores nacionais e no próprio fortalecimento da

193 Frelimo, Programa e Estatutos (Maputo: Departamento de Trabalho Ideológico da Frelimo, 1977), p.8. 194 Para uma leitura mais aprofundada sobre estes conflitos (lutas pelo poder, etnicidade, lutas ideológicas) no da

Frelimo, ver por exemplo, ALPERS, Edward. Ethnicity, Politics, and History in Mozambique. Africa Today, Vol. 21, No. 4 (Autumn, 1974), pp. 39-52; OPELLO Jr, Walter C. “Pluralism and Elite Conflict in an Independence Movement: FRELIMO in the 1960s. Journal of Southern African Studies, vol. 2, nº. 1, Outubro, 1975, p. 66-82; CABRITA, João, The Tortourous Road to Democracy, New York:Palgrave, 2000.

195 Entrevista com Dan O'Meara, agosto, 2007. 196 Segundo Mário Azevedo, este termo era usado pela Frelimo para designar os nacionais estrangeiros que

simpatizavam com os seus objectivos socialistas e que estavam prontos ajudar e a implementá-los. Vide, AZEVEDO, Mário. Historical Dictionary of Mozambique, The Scarecrow Press, Inc., 1991.

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pesquisa no pós-independência,

A pesquisa para o “Mineiro Moçambicano197”, as técnicas de inquérito, todas aquelas questões sobre as histórias de vida dos mineiros, empregos, salários; enfim, todo esse realismo da pesquisa, foi devido a essa interacção, porque nós não estávamos preparados. Foram eles, sob direcção da Ruth First que nos trouxeram, e como nós participávamos: aprendemos. É diferente de termos uma cadeira de Métodos e falar de teoria: é muito abstracto, mas quando a pessoa está no terreno e tem ali os interlocutores (…) essa foi a grande riqueza. Por isso, é que as pessoas daquela época têm uma certa solidez que depois foi-se perdendo. Foi uma formação muito baseada na prática, não simplesmente em leituras teóricas198.

Na mesma senda, Teresa Cruz e Silva afirma,

Tudo o que sou hoje devo ao que aprendi aqui neste Centro. A Ruth e o Aquino nos ensinaram duas coisas que para mim foram importantes para o resto da minha vida: a questionar sempre. A dúvida metódica era o ponto central. E por outro lado, nós passamos por uma escola portuguesa, tradicional, etc., para um ensino anglo-saxónico aberto no Curso de Desenvolvimento. Nas investigações que fazíamos, nós aprendíamos fazendo. Aprendemos a interrogar, a ir directo aos assuntos e a nunca ter respostas definitivas; a ter um espírito crítico, a fazer análises e aprender que estamos sempre a aprender199.

É de ressaltar, que não se pretende com este argumento, caracterizar o trabalho de

pesquisa e ensino do que viria a ser o Centro de Estudos Africanos (CEA) a partir da

nacionalidade dos seus pesquisadores, mas unicamente de enfatizar a sua contribuição no

197 Foi o primeiro grande projecto do CEA sob direcção de Ruth First. Pode ser considerado como o trabalho

mais aprofundando que ao Centro realizou durante o período em análise. A pesquisa era basicamente sobre o fluxo migratório de moçambicanos para as minas de ouro da África do sul e seu impacto na economia moçambicano no pós–independência. Esta obra será discutida com mais detalhe no capítulo quatro.

198 Entrevista com Luís de Brito, agosto,2007. 199 Entrevista com Teresa Cruz e Silva, agosto, 2007.

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fortalecimento da pesquisa em Ciências Sociais durante a primeira década do pós-

independência. Como ressaltou Yussuf Adam, “no Centro não fazíamos distinção entre

nacionais e estrangeiros.”200 Se o conceito de “nacionalidade” tivesse que ser empregue aqui,

seria mais no sentido da “nacionalidade” da pesquisa do CEA, (e não dos seus

investigadores), uma vez que durante o período da “transição socialista” em Moçambique, o

CEA, como veremos ao longo deste estudo, procurou desenvolver um tipo de pesquisa

(maioritariamente colectiva) com particular enfoque em temas da economia política de

Moçambique (tendo em conta o legado colonial e o contexto da África Austral), como

também na análise da transformação social e socialização do campo na sociedade

moçambicana.

No entanto, não podemos descurar do facto de que estes investigadores cooperantes,

eram aqueles que detinham, parafraseando Pierre Bourdieu (1988), o “maior volume de

capital específico” e neste caso, “capital cultural”201, situando-os, como veremos, no próximo

capítulo, em posições de liderança na pesquisa e ensino. Portanto, eram estes investigadores

cooperantes, que davam “a última palavra”202 na definição das prioridades de pesquisa, na

escolha dos objectos de estudo, como também na organização curricular do ensino através do

seu primeiro curso de pós-graduação em estudos de Desenvolvimento no país.

Esta posição dominante dos cooperantes no campo da pesquisa e ensino, significou

também ocupar uma posição sensível no relacionamento da instituição com as estruturas do

poder político, principalmente quando o Centro produzia estudos que examinavam

criticamente o trabalho ou as políticas do Partido/Estado. Daí então Bridget O’Laughilin

afirmar,

São posições que são arriscadas, principalmente porque éramos um Centro com muitos estrangeiros dentro e que não tinham legitimidade (…), Se tivéssemos mais investigadores moçambicanos, já estabelecidos, formados, se o Centro fosse isso, possivelmente teríamos mais intervenções de facto de cada grupo.203

200 Entrevista com Yussuf Adam, julho 2007. 201 BOURDIEU, Pierre. Homo Academicus, California:Stanford, University Press, 1988. 202 Apesar de o CEA ter como principio, o debate de ideias, franco e aberto entre professores e alunos, mesmo

em questões relacionadas com as prioridades de pesquisa e do ensino, como também na definição e organização dos projectos de pesquisa.

203 Entrevista com Bridget O'Laughilin, agosto, 2007.

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Esta carência de pesquisadores moçambicanos “já estabelecidos”, bem como o facto

de o CEA congregar “muitos estrangeiros”, iria se tornar numa das grandes preocupações de

Aquino de Bragança. Como afirmou Marc Wuyts, economista belga e investigador do Centro,

para o seu director estava em questão antes de tudo, a própria identidade do CEA204. A

mobilização de jovens historiadores moçambicanos (em torno do que viria a ser conhecido

com ao Oficina de História), na produção de uma pesquisa empírica sobre a história da luta

de libertação nacional, pode também ser lida como um das formas que Aquino de Bragança

encontrou de garantir o protagonismo dos moçambicanos na direcção da pesquisa do CEA.

2.2 Moçambique e a Utopia Socialista: Dinâmicas Internas e Regionais

Na historiografia sobre Moçambique pós-independente, particularmente durante os

primeiros dez anos, deparamos, com duas grandes posições divergentes205. Esta divergência

está intrinsecamente ligada a questão da interpretação histórica do conflito entre a FRELIMO

e a RENAMO. Por um lado, encontrávamos principalmente autores, como John Saul e Joseph

Hanlon, que nutrindo uma certa simpatia pelo projecto ideológico da FRELIMO, olhavam

para o fenómeno do conflito armado apenas na sua dimensão externa: a RENAMO

simplesmente como “fantoches”206, primeiro sob dependência total da Rodésia e mais tarde da

África do Sul. De outro lado, encontrávamos autores como Christian Geffray, Luís de Brito e

Michel Cahen, que realçavam os factores internos do conflito. Quer dizer, o

descontentamento popular e o fracasso do projecto ideológico da FRELIMO, como o factor

preponderante do alastramento do conflito em todo o país, tornando assim numa “guerra

civil” e não mais numa “guerra de desestabilização”. Autores como Michel Cahen e Marina

Ottaway, chegam até a argumentar que a FRELIMO nunca chegou a ser um partido leninista

de vanguarda e nem Moçambique tinha sido um país socialista. Como afirmou Ottaway, tudo

não passou de um “socialismo simbólico207”.

Como foi sublinhado no capítulo introdutório, este trabalho não pretende se deter em

204 Entrevista com Marc Wuyts, julho, 2009. 205 Vide, DINERMAN, Alice. Revolution, Counter-Revolution and Revisionism in Postcolonial Africa: The

Case of Mozambique, 1975-1994, New York: Routledge, 2006. 206 Vide por ex., YOUNG, Tom. The MNR/RENAMO: External and Internal Dynamics. African Affairs, vol.

89, nº. 357, Outubro, 1990, p. 491-509. 207 OTTAWAY, Marina. Mozambique: From simbolic socialism to simbolic reform. The Journal of Modern

African Studies, vol. 26, nº2, Junho, 1988, p.211-226.

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elucubrações sobre se Moçambique foi ou não um país socialista, mas sim de estabelecer as

conexões entre uma ordem discursiva que se pretendia hegemônica (o projecto socialista da

FRELIMO para toda ao sociedade) e as dinâmicas de pesquisa de uma instituição de produção

de conhecimento, o CEA. Assim, nesta secção iremos traçar em linhas gerais todo o contexto

histórico do período que vai de 1975 a 1990208, que tanto em termos “simbólicos” como o que

ia acontecendo na prática, foi fortemente marcado pela tentativa do poder de constituir uma

sociedade socialista.

É assim quem sem seguida iremos apresentar, de forma esquemática, uma

periodização (quatro grandes fases209) do que foi, para usar um termo de João Mosca (1999) a

“experiência socialista em Moçambique”. O primeiro período (1962-1974) marca o início da

fundação da FRELIMO e posterior desencadeamento da luta armada, e que culminou com as

negociações de paz com o governo português em Abril de 1974, e a independência nacional

em 1975. O segundo (1975-1980), marca o início dos primeiros anos “eufóricos” da

independência, da transformação da Frelimo em um auto-intitulado “partido de vanguarda

marxista-Leninista”. É no entanto também o período do inicio do conflito armado contra a

Renamo e da progressiva crise econômica. O terceiro período (1980-1984) tem como marco

simbólico os acordos de “boa vizinhança” (Acordos de Nkomati), assinados pelo governo

moçambicano e o regime sul-africano. O último período (1984-1990), caracteriza-se pela

introdução de reformas econômicas em Moçambique, com os acordos com as instituições do

Bretton Woods pressionaram o governo a uma maior abertura para a economia de mercado e

investimento privado. Esta fase (que é também o limite cronológico deste trabalho), irá

culminar com a institucionalização da nova constituição de Moçambique, que significaria a

abertura para um sistema de democracia multipartidária.

Escolhemos este recorte cronológico da história contemporânea de Moçambique,

porque põe a ênfase em momentos históricos particulares que de certa forma se interconectam

com a própria história do CEA. Senão vejamos, o segundo período (1975-1980), marca

também uma fase do CEA em que foi produzida a obra, que será oportunamente discutida, “A

Questão Rodesiana”, sem ainda a presença de Ruth First como directora científica do CEA.

Em segundo lugar, esta periodização põe a ênfase nos “acordos de não-agressão” (Nkomati),

assinados entre Moçambique e África do Sul, e que teve um grande impacto na história do

CEA, uma vez uma das cláusulas do acordo era o de a FRELIMO teria que deixar de

208 Como afirmamos na introdução este limites cronológicos não devem ser vistos de forma absoluta.

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“hospedar” em seu território membros do ANC. Como iremos discutir neste estudo, alguns

investigadores do CEA, pertenciam as hierarquias mais altas desta organização clandestina,

onde, a partir do seu lugar no Centro, produziam conhecimento relevante para a luta política e

armada do ANC contra o regime sul-africano. Após os Acordos de Nkomati, a maioria destes

investigadores abandonou o Centro e Moçambique.

2.2.1 Da Luta de libertação Colonial em Moçambique ao golpe de Estado em Portugal: 1962 – 1974

Não obstante, encontramos no interior de Moçambique uma resistência ao

colonialismo datando do século XIX, através fundamentalmente da imprensa e da

literatura210, foi somente com o desencadear da luta armada me 1964 que o colonialismo

português foi seriamente desafiado. Por outro lado, a pressão externa, nos anos 1950, com o

advento da descolonização na maioria dos países africanos e a entrada de Portugal nas Nações

Unidas, onde este organismo internacional começou insistentemente a pressioná-lo para a

abdicação das suas colônias africanas. Contudo, Portugal não tinha nenhuma intenção de

renunciar ao seu tão almejado “império africano”. Como foi visto no capítulo anterior,

Portugal tentou pode várias formas “suavizar” a sua dominação colonial, encetando mudanças

“cosméticas” de estatuto de Moçambique de “colônia” para “província “. Por outro lado, foi

gradualmente apertando ainda mais o seu poder colonial. Como afirmou Newitt (1995),

Um Estado burocrático centralizado apoiado por uma policia de segurança efectiva que assegurava que a população, tanto branca como negra estivesse desintegrada e desorganizada dentro dela mesma. Reforçada ainda pelo nível baixo de escolaridade da maioria da população e da falta de quaisquer organizações africanas ou sindicatos profissionais211.

210 Para uma leitura mais detalhada sobre este tema, vide, HENRIKSON, 1978, op.cit. ISAACMAN, Allen,

Colonial Mozambique an Inside View: The Life History of Raul Honwana. Cahiers d´Études Africaines, vol. 2, Cahier 109, Memoirs, Histoires, Identites, 1988, pp.59-88; PENVENNE, Jeanne Marie. Joao dos Santos Albasini ( 1876-1922): The contradictions of politics and identity in colonial Mozambique. The Journal of African History, Vol.37, nº3, 1996, p.419-464; ZAMPARONI,Valdemir. De Escravo a Cozinheiro – Colonialismo e racismo em Moçambique, Salvador: EdUFBA,, 2007.

211 NEWITT, 1995, op.cit, p.520.

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No entanto, certos aspectos da evolução histórica de Moçambique iriam seguir outros

contornos. Como sabemos, uma grande parte da população africana em todo o território

nacional tinha sido, de alguma forma, afectada pelo trabalho migratório. Estes moçambicanos

no estrangeiro viriam assim a ser expostos a várias formas de participação política e do

pensamento moderno e, muitos destes, ir-se-iam envolver activamente nas questões políticas

dos países de acolhimento212. Daí então a emergência, nos anos 1960, nesses países dos

primeiros movimentos nacionalistas moçambicanos: a União Democrática Nacional de

Moçambique (UDENAMO) fundada em Bulawayo (atual Zimbabwé), a Mozambique African

National Union (MANU) no Quénia e Tanzânia e a União Nacional Moçambicana

Independente (UNAMI) constituída no Malawi213. Em 1962, por encorajamento do presidente

da Tanzânia Julius Nyerere, do Gana, Kwame Nkrumah, mas também do CONCP214, estes

três movimentos se fundem, tendo como resultado a criação da Frente de Libertação de

Moçambique (FRELIMO), cujo presidente tinha sido escolhido, Eduardo Mondlane,

doutorado em Antropologia pela Northwestern University, professor na universidade de

Syracuse em Nova Yorque e funcionário das Nações Unidas.215.

A insurreição armada foi então desencadeada em 1964, não obstante quando da

fundação da FRELIMO não ter havido consenso sobre se deveriam ou não embarcar num

confronto bélico com os portugueses216. Passados doze anos, a luta armada levada a cabo pela

FRELIMO217 foi abruptamente interrompida, no dia 25 de Abril de 1974 pelo golpe de Estado

em Portugal, resultante das contradições de uma guerra imperial contra os movimentos de

libertação, da insatisfação de jovens oficiais das forcas armadas em relação a maus salários,

212 É preciso referir que para alem destes imigrantes que viviam em países como Malawi, Zâmbia, Zimbabwé,

Tanzânia, havia um pequeno grupo de moçambicanos a estudar em Portugal como também nos EUA. 213 Para mais informações sobre estes grupos nacionalistas, vide, OPELLO, Walter, Jr. Elite Conflict in an

Independence Movement: FRELIMO in the 1960s. Journal of Southern African Studies, Vol. 2, No. 1 (Oct., 1975), pp. 66-82; MONDLANE, Eduardo, Lutar Por Moçambique, op.cit; SIMANGO, Uria, The Liberation Struggle in Mozambique'. The African Communist, 32, 1968, pp. 48-61;

214 Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP), tendo como Secretário - Geral, Marcelino dos Santos, que se tornaria vice-presidente da Frelimo nos anos 1970 e no pós-independência presidente da Assembleia da República.

215 Vide, HENRIKSEN, Thomas, 1978, op.cit, p.171 216 NEWITT, 1997, op.cit, p.523. 217 Em Fevereiro de 1969 Eduardo Mondlane foi assassinado na Tanzânia através de uma carta armadilha. Fortes

suspeitas iriam recair na PIDE mas também no envolvimento de alguns elementos da própria Frelimo. A partir daí foram expulsos membros seniores da Frelimo, como por exemplo Lazaro Nkavandame e Urias Simango, acusados de estarem envolvidos na morte do presidente da Frelimo. Samora Machel toma posse nos anos 1970, como o novo presidente da Frelimo. Vide, HENRIKSEN, 1978, op.cit ; HENRIKSEN, Thomas. Revolution and counter – Revolution – Mozambique´s war of independence, 1964 – 1974, Greenwood Press, 1983; NEWITT, 1995, op.cit.

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promoções lentas, e uma guerra colonial fútil. Esta combinação de factores que iria levar ao

colapso do regime fascista, obrigando o primeiro-ministro Marcelo Caetano ao exílio no

Brasil218. No dia sete de setembro do mesmo ano, foram assinados os acordos de paz que

originaram a formação de um governo de transição da FRELIMO. Aquino de Bragança (que

dois anos mais tarde iria tornar num dos membros fundadores e primeiro director do CEA),

devido a sua longa experiência com os movimentos libertação nacional, e desde o principio o

seu apoio a casa da “revolução moçambicana” iria desempenhar um papel chave nestas

negociações. Assim, a liderança da FRELIMO incube-lhe de ir a Portugal, para servir de

intermediário junto do movimento das forças armadas, nos primeiros acertos para o processo

de negociação219.

Em junho de 1975 é então proclamada a independência nacional de Moçambique. A

FRELIMO, saía vitoriosa de todo este processo de descolonização, como a única força

política no pós-independência, não obstante ter sido dilacerada por um passado histórico

prenhe de conflitos internos, lutas pelo poder, cisões, expulsões de dirigentes, traições e

assassinatos220.

2.2.2 Os primeiros anos “eufóricos” sob a sombra da guerra de “desestabilização”: 1975-1980

Nos primeiros anos do pós-independência a FRELIMO acreditou que estava se

movendo de uma vitoria para outra. Como sabemos, com a independência nacional

conquistada em 1975 todo o quadro de referência se alterou. Mais do que administrar algumas

“zonas libertadas”, tratava-se agora de gerir, em todo o país, a herança de um aparelho do

Estado colonial complexo. Esta “captura” do poder do Estado, implicava antes de mais nada,

reconstituir de forma radical, esse mesmo poder.

218 Vide, por eg.. GESHEKTER, Charles L. Independent Mozambique and Its Neighbors: Now What?. Africa

Today, Vol. 22, No. 3, jul. - sep., 1975, p. 21-36. 219 Vide, DAVIDSON, Basil. Aquino de Bragança, 1928-86: An Appreciation. Africa: Journal of the

International African Institute, Vol. 57, No. 2, 1987, p. 260. 220 Para uma leitura mais atenta sobre a “guerra civil em 1968-69” no interior da Frelimo, ver particularmente

Newitt, 1995, op.cit. Para mais infirmações sobre conflitos internos na Frelimo, emergência de facções , movimentos políticos anti - Frelimo e morte de Eduardo Mondlane, vide, HENRIKSEN, 1978, op.cit; VINES, Alex, Renamo – Terrorism in Mozambique, Indiana University Press, 1991; Newitt, 1995, CABRITA, João, 2000, op.cit.

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Foi neste período que a política “anti-privatização da FRELIMO se tornou mais

acelerada. Tentou-se eliminar a maior parte das empresas privadas, congelando as suas contas

bancárias221. Um mês depois da independência nacional, o sistema judicial, a medicina, a

educação e os serviços funerários tinham sido nacionalizados222. Apesar de ter herdado a

economia em bancarrota e com um défice crónico na balança de pagamentos, nos primeiros

cinco anos depois da independência nacional, a FRELIMO conseguiu alcançar progressos

significativos na educação, saúde e habitação, tendo sido por exemplo proclamado pela

Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1981, que o seu sistema de cuidados de saúde e

prevenção era um modelo para os países do terceiro mundo223.

Politicamente deram-se também grandes mudanças com a transformação da

FRELIMO em “partido de vanguarda marxista-leninista” no seu 3º congresso em 1977. O

partido FRELIMO, a “força dirigente da sociedade e do Estado”, deveria então guiar,

mobilizar e organizar as massas na tarefa de se construir uma democracia popular,224 “rumo

ao socialismo”. Estava-se assim num ambiente político em que a distinção entre partido e

Estado se dava somente a um nível teórico. O partido trabalhou incessantemente para entrar e

controlar todos os sectores da sociedade. Assim, logo nos princípios de 1978, foram-se

estabelecendo os “grupos dinamizadores225”, como também células do partido na

universidade, nas fábricas, “aldeias comunais”, escolas, ministérios, etc, com o objectivo de

garantir a implementação das orientações da FRELIMO, como também de romper com os

métodos de trabalho do Estado colonial capitalista226.

No sector econômico, a fuga maciça dos portugueses que ocorrera a partir do fim do

salazarismo, em 1974, levou ao colapso de sectores vitais da economia, como o comércio e a

produção de culturas alimentares e a rede de distribuição rural e, não somente houve uma fuga

221 Vide, HENRIKSEN, Thomas. Mozambique: A History, Cape Town :Rex Collings, 1978. 222 HANLON, Joseph. Mozambique: The Revolution Under Fire, Zed Books, 1984,p.46. 223 HANLON, 1984, p.82. 224 Teses do 3º Congresso, citado a partir do artigo de Thomas Henriksen, “Marxism and Mozambique”, In:

African Affairs, Vol. 77, nº 309, Outubro, 1978, p.459. 225 Chamaram-se “Grupos Dinamizadores” às organizações de base da sociedade logo depois da independência

nacional. Eram de facto células do partido, dirigidos pelas orientações e por quadros da FRELIMO. Foram formadas em todas as empresas, repartições públicas, com o objectivo de aumentar a produtividade mas também como uma forma de se socializar e discutir aspectos ligados a ideologia marxista-leninista. Forma também criados grupos dinamizadores nos bairros residências com o objecitvo de mobilizar a população para tarefas colectivas como limpeza das ruas, vigilância popular, e até mesmo alfabetização.

226 Vide por exemplo a análise comparativa de Catherine Scott sobre os Estados pós - coloniais de Moçambique e Angola: Socialism and the Soft State in Africa: An analysis of Angola and Mozambique. The Journal of Modern African Studies, Vol. 26, nº1, Março, 1988, p.23-36.

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de capitais, mas também o que podia ser visto como uma consciente e deliberada sabotagem

foi levada a cabo. Plantações e maquinaria de irrigação foram deliberadamente destruídas,

gado abatido e gêneros alimentícios disponíveis retirados do mercado com o intuito de criar

uma escassez artificial.227 Esta situação obrigou ao Estado moçambicano a ocupar as

empresas e indústrias abandonadas, levando assim na óptica de Sónia Kruks (1987), a criação

de um sector estatal muito mais alargado do que a FRELIMO tinha imaginado.

Começou-se gradualmente a verificar-se o colapso do mercado, particularmente nas

trocas comerciais entre o sector rural e urbano, afectando sobremaneira a produção do

campesinato e o abastecimento em gêneros industriais, uma vez que o Estado, passava agora a

privilegiar mais as machambas228 estatais, representando o “pólo de desenvolvimento”,

acreditando que a transformação rural seria mais efectiva através do sector público229. Para a

FRELIMO, o sector moderno da agricultura era visto através do incremento das machambas

estatais em oposição ao sector familiar, considerados estes primeiros cinco anos após a

independência, como “atrasado”. Daí então, sancionar políticas agrárias que não levavam em

conta o papel do campesinato na produção. Esta questão, como iremos ver posteriormente,

iria constituir num dos grandes pilares das prioridades de pesquisa do CEA.

Um outro grande dilema destes primeiros cinco anos do pós-independência foi

também o de saber o que fazer com a dependência estrutural da economia de Moçambique

(principalmente do sul de Moçambique) em relação ao capital mineiro sul-africano. A questão

resumia-se então em avaliar se se deveria cortar ou não com este fluxo migratório. Uma

questão sensível, para o governo moçambicano, uma vez que a grande maioria do operaraido

mocambicano era constituida pelos cerca de 140.000 mineiros que trabalhavam anualmente

nas minas sul-africanas, sem contar ainda com aqueles que trbalhavam ilegalmente em outros

sectores da economia sul-africana230. Como afirmou Dan O’Meara,

O pagamento diferido desses trabalhadores migrantes foi a base na

227 Vide, KRUKS, Sonia. From Nationalism to Marxism: The Ideological History of Frelimo, 1962-19977.

MARKOVITZ, Irving Leonard (Ed). Studies in Power and Class in Africa, Oxford University Press, 1987. 228 O mesmo que herdade, quinta, horta ou propriedade agrícola. 229 Vide, BOWEN, Merle. The Sate Against Peasantry – Rural Struggles in Colonial and Post - colonial

Mozambique, University Press of Virginia, 2000. 230 O´MEARA, Dan. The Collapse of Mozambican Socialism. Transformation, nº14, 1991, p.82-103.

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qual a estrutura econômica de todo o sul de Moçambique se apoiava – sem ainda mencionar uma fonte significativa de moeda estrangeira para a economia moçambicana231.

É assim que a FRELIMO decidiu manter o fluxo migratório, apesar do fato de que, em

1975, o governo sul-africano ter reduzido drasticamente o número de contratados para 40.000,

concorrendo para o aumento do desemprego no sul de Moçambique. Como forma de

responder a esta crise, a FRELIMO tentou criar políticas agrárias que pudessem integrar

muitos dos desempregados na economia rural, através da construção das aldeias comunais

(obrigando os camponeses a deixarem as suas machambas familiares, seus locais sagrados e

de culto e a irem viver em de forma comunal) os camponeses a viver juntos, cooperativas de

produção e das machambas estatais. O descontentamento e desencantamento popular

começavam a despontar gradualmente no horizonte moçambicano.

Em 1976, Moçambique cortou todas as ligações econômicas com a Rodésia do Sul,

fechando as suas fronteiras, e infringindo custos econômicos consideráveis aos rodesianos (de

acordo com Tom Young (1990), 1/3 do comércio externo da Rodésia entrava por

Moçambique232), mas também fornecendo mais apoio e facilidades a ZANU.

A partir daí o governo rodesiano começou a desenvolver uma estratégia mais

consistente para fazer frente ao governo moçambicano e ao seu apoio aos movimentos de

libertação nacional na Rodésia. De acordo com Margareth Hall (1990), a RENAMO233 foi

assim criada em 1976, por alguns membros das hierarquias militares da Rodésia, dos

portugueses, principalmente de elementos da Policia Internacional de Defesa do Estado

(PIDE), e suplementados por moçambicanos libertados dos campos de re-educação próximo

da fronteira com a Rodésia, alguns deles ex-membros das forças armadas da FRELIMO

(FPLM), que tinham sido encarcerados por actos de corrupção. O objectivo principal desta

organização seria então o de desestabilizar economicamente o país, e de enfraquecer o apoio

231 O'MEARA, 1991, op.cit, p.93. 232 YOUNG, Tom. The MNR/RENAMO: External and Internal Dynamics. African Affairs, Vol. 89, nº. 357,

Outubro, 1990, p. 491-509, p.494.

233 Resistência Nacional Moçambicana. É de referir que este acrónimo é somente usado a parto dos anos 1980,

antes disso o Moimento era comummente conhecido (especialmente no Zimbabwé) como Movimento NACIONAL DE Resistência (MNR). Vide, YOUNG,1990, op.cit; HALL, (1990) op.cit.

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da FRELIMO a ZANU234.

Até 1979 a guerra contra a Rodésia tinha deixado Moçambique fragilizado. No

entanto, a FRELIMO não deixaria de apoiar a luta pela libertação do Zimbabwé até a vitória

da ZANU (PF) de Robert Mugabe em 1980 e a rápida formação da Conferência de

Coordenação para o Desenvolvimento da África Austral (SADCC,) tendo Moçambique e

Zimbabwé um papel fulcral na sua criação. A saída em cena do regime de Ian Smith, trouxe

de volta ao país a esperança de levar adiante as suas estratégias de desenvolvimento socialista,

sem interferência externa. No entanto, como veremos a seguir, momentos de crise ainda

estavam longe de serem superados.

2.2.3 A Construção do Socialismo…Cada Vez mais Longe: 1980 – 1984

O contexto da recessão do mundo capitalista e da nova guerra fria,235 a guerra não

declarada de desestabilização236”, agora sob comando da África do Sul237 e com a RENAMO

gradualmente a conquistar maior espaço de manobra no interior do país, veio também a

dominar todos os aspectos da sociedade moçambicana. As infra-estruturas econômicas e

sociais acabariam gravemente afectadas por um misto de deficiente gestão estatal, o

estrangulamento do tecido social causado pelas incursões armadas da RENAMO e, não

menos importante, das cheias que assolavam, principalmente a zona sul do país. Estávamos

assim em presença, parafraseando António Gramsci, de uma “crise orgânica” o que

pressupunha uma crise total de suas estruturas. A autoridade do Estado começava

paulatinamente a ser deslegitimizada238, a economia praticamente paralisada239 e onde as

234 Vide, YOUNG,1990, op.cit; HALL, op.cit, 1990. 235 Vide, MUNSLOW, Barry, Rethinking the Revolution in Mozambique. Race & Class, XXVI, 2, 1984, p.15-

31. 236 O´MEARA, op.cit, 1991, p.91. 237 Como afirmou O'Meara, “in 1980 South Africa inherited form the Rhodesian Central Inteligence

Organization (CIO) the ragbag of former Portuguese commandos and colonialists, and former Frelimo soldiers known as Renamo. Created and controlled by Ken Flower of the CIO, Renamo quickly incorporated into the Special Forces Commando of the SADF and placed under the direct control of the nº 5 Recce Commando. Vide, O´MEARA, op.cit.,1991, p.96.

238 Deslegitimização no sentido em que o estado freliminiano era incapaz de resolver as contradições acutilantes da economia e das contradições sociais, principalmente no meio rural, epicentro da sua política agrária da socialização do campo e da transformação socialista. Como veremos mais a seguir, quando forem analisados os Relatórios Científicos produzidos pelo CEA, havia no campo um “descontentamento dos camponeses em relação a essas políticas agrárias da Frelimo o que segundo os investigadores do CEA iria levar, como afirmou o CEA num dos seus Relatórios de Investigação, posteriormente discutidos neste capítulo, a uma

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directrizes da classe dirigente era sustentada pela força.

O 4º congresso da FRELIMO realizado em Abril de 1983 tinha como um dos

principais objectivos tentar então corrigir as lacunas e os erros anteriores e também

prenunciar uma nova ênfase em projectos de pequena escala descentralizados e orientados

para o mercado240. O congresso instruiu ainda as instituições do Estado a darem maior apoio à

cooperativa, sector familiar e sector privado. Foram tomadas novas medidas em relação por

exemplo à questão agrária, onde a FRELIMO acabou reconhecendo que tinha cometido um

erro grave ao subestimar o papel do campesinato e dando todo o apoio ao sector estatal.

A FRELIMO decidiu então que a alocação dos recursos deveria se basear num

pragmatismo econômico em vez de ser pautado exclusivamente pela ideologia241. Por outro

lado, acreditava que ao se virar para uma estratégia mais direcionada para a abertura do

mercado iria corrigir os desequilíbrios econômicos que resultaram dos erros políticos do

passado. No entanto, já havia um grande descontentamento rural agravando ainda pelos

massacres às populações perpetradas pela RENAMO, o êxodo forçado das populações para as

cidades e o aumento do desemprego urbano.

Esta situação de crise iria levar a FRELIMO a se tornar gradualmente numa força

política e dirigente autoritária e contraditória. De um lado começava a ser extremamente

centralizada e comandista, movendo-se lentamente para um culto de personalidade à volta de

Samora Machel. Por outro lado, o poder ia se tornando cada vez mais coercivo na sociedade

através de um maior controlo social, como por exemplo, da “operação produção242”, e formas

de “vigilância popular”. O meio universitário não ficaria incólume a este alastramento das

“desagregação das aldeias comunais”. Assim, poderíamos ver este “descontentamento” como uma das causas da crise, não descurando no entanto, outros factores como a guerra contra a Renamo, a crescente dívida e dependência externa de Moçambique, o aumento da repressão urbana, etc.

239 De acordo com Hebert Howe e Mariana Ottaway, o GNP era de 11.9 biliões de Meticais antes da independência em 1973, desceu drasticamente para 71.1 biliões em 1975 e subiu para 83.7 biliões me 1981. Em 1984 caiu à pique para 55.6 biliões de Meticais. Vide, KELLER, Edmond & Rothchild, Donald. Afro-Marxist Regimes – Ideology and Public Policy, Lynne Rienner Publishers,1990.

240 BOWEN, Merle, Beyond Reform: Adjustment and Political Power in Contemporary Mozambique. The Journal of Modern African Studies, nº30, 1992, p.255-279, p.261.

241 ROESCH, Otto. Economic Reform in Mozambique : Notes on Destabilization War, and Class Formation. Taamuli, Dar es Salaam, 1989, apud, BOWEN, Merle, op.cit. p.1992.

242 Lançado em 1983, tinha sido uma tentativa de recolocar mais de 50.000 desempregados de Maputo para as zonas rurais, onde eles iriam supostamente serem mais produtivos. O objecitvo não pronunciado da operação era também de remover das cidades pelo menos uma parte de um lumpenproletariat deemed potentially criminal e susceptível de recrutamento pela Renamo. Vide, HOWE, Hebert & OTTAWAY, Marina.State Power Consolidation in Mozambique, p.23-46: KELLER, Edmond & ROTHCHILD, Donald. Afro-Marxist Regimes – Ideology and Public Policy, Lynne Rienner Publishers,1990.

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estruturas do partido a todos os níveis da sociedade. Havia por exemplo, um “Comité do

Partido” na universidade que garantia que a linha política da FRELIMO não deixasse de

assumir o papel dirigente na concepção e exercício das tarefas inerentes à organização política

da universidade243.

Por volta do final de 1983, a guerra tinha reduzido a habilidade da FRELIMO de

implementar as suas políticas do desenvolvimento socialista. A economia moçambicana

mostrava sinais de colapso total, forçando o governo moçambicano a negociar um “pacto de

não-agressão e boa vizinhança” com a África do Sul. Os acordos de Nkomati seria então

firmado em março de 1984, com a intermediação dos EUA, no qual os sul-africanos

comprometeram-se a limitar as actividades da RENAMO e Moçambique, por sua vez, em

impedir o ANC de lançar as suas acções militares a partir do solo moçambicano (no entanto,

foi permitida a presença diplomática do ANC em Maputo)244.

Como iremos discutir no último capítulo, estes seriam tempos difíceis para o CEA,

particularmente o Núcleo da África Austral, composto maioritariamente por pesquisadores

sul-africanos, membros do ANC. Este grupo de pesquisa foi assim proibido de produzir

conhecimento sobre a situação política e econômica da África do Sul, como também de tecer

qualquer manifestação pública sobre os acordos de Nkomati. Na opinião de Dan O´Meara,

pesquisador deste Núcleo, este foi o período em que a pesquisa crítica do CEA tinha chegado

ao fim, levando assim ao seu abandono do CEA e de Moçambique. Como afirmou este autor,

e que vale a pena citar longamente,

No rescaldo dos acordos de Nkomati, o Reitor tinha tentado que todos os quatro membros do ANC que trabalhavam no Centro fossem expulsos. Aquino trabalhou arduamente para nos proteger, mas o preço que ele foi forçado a aceitar, foi que nós não tínhamos permissão de escrever ou dizer qualquer coisa acerca da África do Sul e, por um tempo, não fomos autorizados a ler os jornais sul-africanos que o Centro recebia. Eu via essas condições como intoleráveis e senti que podia fazer melhor trabalho, por isso, optei por sair.245

243 A própria estrutura hierárquica da universidade estava intimamente ligada ao partido, onde o Reitor da UEM,

veterano da “luta de libertação nacional”, fundador do CEA, era também membro do Comité Central da Frelimo.

244 Vide, MUNSLOW, Barry. Rethinking the Revolution in Mozambique, Race & Class, XXVI, 2, p.15-31, 1984.

245 Entrevista com o autor, Julho, 2009.

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Para Barry Munslow (1984), este acordo tinha sido claramente um atraso para a

revolução africana, mas a precariedade social e econômica da população (os massacres

perpetrados pela RENAMO aliado ao impacto das secas no sul de Moçambique) tinha

atingido níveis de crise aterradora. Segundo Munslow, 250 mil pessoas no sul do país viviam

numa situação de fome aguda. Ainda de acordo com este autor, cerca de 100 mil cruzaram a

fronteira para o Zimbabwé à procura de comida. Ao se alcançar um acordo com a África do

Sul, o governo moçambicano esperava reduzir a ameaça militar e por esse meio manter um

canal internacional de ajuda para os mais necessitados246.

Estávamos assim num período marcado por uma crise total da economia, em parte

devido ao recrudescimento da sabotagem econômica e militar levada à cabo pela RENAMO,

e do impacto dos acordos de Nkomati, diante do que a FRELIMO se tornava cada vez mais

autoritária. A política da FRELIMO em relação à África do Sul tinha sofrido uma viragem

radical: de um momento para o outro, Samora Machel estava “apertando a mão do diabo247”.

Como corolário desse “pacto de não agressão e boa vizinhança,” as células clandestinas do

ANC em Moçambique eram já consideradas proibidas e tinham que ser urgentemente

desmanteladas. Por outro lado, não era permitida no meio universitário, qualquer discussão

sobre a validade desta viragem do governo. Os investigadores do CEA não podiam mais

escrever sobre questões ligadas à África do Sul.248 Dan O’Meara, dá-nos uma imagem nítida

do que significaram esses acordos, na vida diária do CEA,

Aquino veio falar connosco, os quatro249, mas deixou absolutamente claro que nós não éramos permitidos de dizer qualquer palavra, nem de expressar o mais pequeno desacordo sobre esse assunto250.

Os investigadores do CEA, e particularmente aqueles profundamente comprometidos

com a luta de libertação nacional do ANC, estavam atónitos com a posição do director do

CEA, segundo, Dan O’Meara, “um homem que tinha lutado muito para discussão aberta e

agora ele era o agente que ia fechar todas as discussões e tornando bem claro que todos

246 MUNSLOW op.cit, p.29. 247 Idem. 248 Idem. 249 Alpheus Manghezi , Robert Davies , Sipho Dlamini e Dan O´Meara,. 250 Entrevista com Dan O'Meara, agosto, 2007.

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aqueles que questionassem seriam severamente tratados”.251

O Estado moçambicano tornou-se cada vez dominante na sociedade, através do

exercício do poder coercivo, sem contudo, parafraseando António Gramsci, “liderar”, no

sentido de activar o “consentimento ideológico das massas”. Foi ainda nestes anos, que se

verificou uma intensificação da guerra (mesmo com a assinatura dos acordos de Nkomati), a

agudização da crise econômica, e actos esporádicos de sabotagem no interior da cidade de

Maputo, levaram a um aumento do poder coercitivo da FRELIMO em todos os sectores da

sociedade e uma tendência para uma liderança personalista de Samora Machel.

2.2.4 A Metamorfose Ideológica da FRELIMO: 1984-1990

As directivas saídas do 4º Congresso da FRELIMO, não tiveram o efeito desejado. As

campanhas de desestabilização sul-africanas aliadas aos desastres naturais (cheias e secas)

que periodicamente assolavam o país iriam, de facto, minar os esforços da FRELIMO de

implementar as suas reformas agrárias. A FRELIMO estava confiante que os acordos de

Nkomati iriam acabar de vez com o apoio sul-africano à RENAMO, culminando com o fim

imediato da guerra. No entanto, nada disso ocorreu. Pretória continuou, (contudo não

directamente) a apoiar as forças rebeldes, apesar do pacto de não agressão mútua, assinado

entre os dois países. A RENAMO, neste novo contexto pós-Nkomati, em que o auxílio das

forças armadas sul-africanas se tinha tornado mais limitado, começou a mudar de táctica,

apelando para uma ofensiva diplomática a nível internacional (apresentando o grupo rebelde

como uma movimento politico respeitável252) e começando, pela primeira, vez (no pós-

Nkomati), de acordo com Carrie Manning (1998), a recrutar civis no interior de Moçambique,

com o intuito de fornecer ao movimento, uma maior capacidade administrativa253. É assim,

que Malyn Newitt (2002) observou que,

251 Entrevista com Dan O'Meara, agosto,2007. 252A nível nacional, a Frelimo sempre concebeu a Renamo como “bandidos armadas” ao serviço primeiro da

Rodésia e posteriormente da África do Sul. Um grupo de terroristas cuja única missão era desestabilizar economicamente o país, destruindo escolas, fábricas, vias de acesso e dizimando as populações locais. Segundo Newitt (2002), esta descrição da Renamo tinha o efeito de negar a Renamo qualquer legitimidade e ao mesmo tempo absolvendo o governo de qualquer culpa no processo de deterioração da economia moçambicana.

253 MANNING, Carrie. Constructing Opposition in Mozambique: Renamo as a Political Party. Journal of Southern African Studies, vol. 24, nº1, pp.161-89, 1998.

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Depois dos acordos de Nkomati, a África do Sul começou a retirar o controlo directo da RENAMO. As forças rebeldes tiveram então que operar a partir das suas bases dentro de Moçambique. A RENAMO agora se tornava menos um grupo de bandidos e começava a interagir de maneira significativa com as populações locais254.

Como forma de angariar apoio dos países ocidentais e ao mesmo tempo tentar deter o

declínio econômico, Moçambique, (na altura um dos países mais pobres do mundo e

profundamente endividado)255, acabaria filiando-se, em Setembro de 1984, ao Fundo

Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. A partir daí foram introduzidas reformas

econômicas, favorecidas pelos EUA, incluindo a liberalização do mercado para alguns

produtos agrícolas e dissolução de algumas machambas estatais, ampliando assim o caminho

para um incremento da ajuda humanitária americana.256

Por volta de 1987, o processo que tinha levado aos acordos de Nkomati e à adesão ao

FMI/BM iria dar frutos. Nesse ano um programa de ajustamento estrutural257 foi lançado e

que contemplava modificações em todo o modelo de desenvolvimento moçambicano258. Com

este programa de reabilitação econômica (PRE), o governo pretendia: (a) reverter o declínio

da produção e restaurar um nível mínimo de consumo e de rendimento para toda a população,

particularmente nas zonas rurais; (b) reduzir substancialmente os desequilíbrios financeiros

domésticos e fortalecer as contas externas e reservas; (c) optimizar a eficiência e estabelecer

as condições para um retorno aos níveis altos do crescimento econômico assim que a situação

de segurança e outros constrangimentos exógenos tivessem cessado; (d) reintegrar o mercado

254 NEWITT, Malyn, Mozambique: CHABAL, Patrick (Ed). A History of post – colonial Lusophone Africa,

Indiana University Press, p.215, 2002. 255 Em 1987, segundo dados do Banco Mundial (1989), Moçambique tinha um PIB per capita de 170 US$,

colocando-se na 9º posição no ranking dos países mais pobres. Vide, MOSCA, João. Evolução da Agricultura Moçambicana no período pós - independência, Departamento de Economia Agrária e Sociologia Rural, Instituto Superior de Agronomia de Lisboa, p.1-51,1996.

256 Vide, HOWE & OTTAWAY, op.cit., 1990. 257 Em Moçambique, este programa foi nomeado de PRE – Programa de Reabilitação Econômica – e era uma

dos exercícios de ajustamento estrutural típicos do FMI E BM. Vide, HERMELE, Keneth. Mozambique Crossroads – Economics and Politics in the era of Structural Adjustment, Report, Chr. Michelsen Institute, Department of Social Science and Development, Bergen, p.1-47, Maio, 1990.

258 Vide, HERMELE, Keneth. Mozambique Crossroads – Economics and Politics in the era of Structural Adjustment, Report, Chr. Michelsen Institute, Department of Social Science and Development, Bergen, May, 1990, p.1-47.

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oficial e paralelo; (e) restabelecer relações financeiras ordeiras com os comerciantes e

credores259.

Os finais dos anos 1980 vão testemunhar o termo dos conflitos em vários países

envolvidos na “guerra fria”. Por outro lado, estávamos perante um processo de declínio

econômico do bloco socialista. É assim que os dois grandes beligerantes, a URSS e os EUA

assinam dois tratados internacionais, colocando um fim à polarização entre estes dois países.

A queda do muro de Berlim em 1991 epitomizava assim o fim de um mundo bipolarizado260.

Com o fim da “guerra fria”, Moçambique começou a perder os seus aliados “naturais”,

principalmente os países do bloco do Leste europeu, fazendo com que a expectativa de um

sucesso total na guerra contra a RENAMO se tornasse cada vez mais remota.

Concomitantemente, nem a adesão as instituições da Bretton Woods, e nem mesmo o Plano de

Reconstrução Económica (PRE) mostravam sinais de que o país se reerguia da crise

econômica. Foram dados passos significativos com a abertura à economia de mercado, a

valorização do papel dos produtores privados e pequenos camponeses, mas estas medidas não

se traduziam na melhoria das condições de vida de toda a população. O país dependia cada

vez mais da ajuda internacional e de créditos financeiros para sobreviver. É assim que o

partido FRELIMO decide então, em 1989 no seu 5º congresso, abandonar a sua ideologia

marxista-leninista, abrindo assim o caminho para a uma nova reforma política, que iria

culminar em 1990 com a nova Constituição da República, e a emergência de um sistema

politico multipartidário. Foram iniciados nesta fase também as primeiras negociações com o

movimento rebelde que culminaria com a assinatura dos acordos gerais de paz e cessar-fogo

entre a FRELIMO e a RENAMO em Outubro de 1994. O acordo de paz garantiu que se

criasse uma plataforma para a realização de eleições multipartidárias, desmobilização e

formação de um novo exército nacional261.

Os anos subsequentes aos acordos de Nkomati podem portanto ser vistos como

constituindo o marco simbólico de uma tentativa de operar grandes mudanças a nível

econômico, social, político e intelectual no país: (a) a abertura para uma economia de

mercado, privilegiando o investimento privado, com a adesão de Moçambique ao FIM e BM;

(b) a morte, em Outubro de 1986, do presidente Samora Machel e alguns dos seus

“camaradas” (dentre os quais o director do CEA, Aquino de Bragança), “num misterioso 259 HERMELE, op.cit,1990, p.12-13. 260 ARMS, S. Thomas. Encyclopedia of the Cold War. New York: Facts on File, 1994. 261 NEWITT, 2002, op.cit, p.222.

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acidente de avião262”; (c) a sua sucessão (ordeira e consensual)263 pelo ministro dos negócios

estrangeiros, Joaquim Chissano; (d) o fim da ideologia marxista-leninista; (e) a abertura ao

multipartidarismo e a liberdade de expressão com a nova Constituição da República; (f) e por

fim, os cessar-fogo e os acordos gerais de paz entre o governo e a RENAMO.

262 BOWEN, Merle. Beyond Reform: Adjustment and Political Power in Contemporary Mozambique. The

Journal of Modern African Studies, nº30, 1992, p.255-279, p.261. 263 Segundo Marina Ottaway, a morte de Samora serviu para enfatizar a continuidade da liderança da Frelimo,

em vez de significar uma nova viragem. Assim para esta autora as reformas adoptadas no pós -Nkomati foram feitas sem nenhuma modificação do sistema político ou mesmo de mudança de pessoal. Em suma, para esta autora, Moçambique passou de um “socialismo simbólico” para uma “reforma simbólica”, uma vez que estava-se em presença de um “estado fraco (soft state) em paralelo também com uma sociedade civil fraca, que não permitiu que as mudanças propostas tivessem o efeito desejado. Vide, OTTAWAY, Marina, Mozambique: from symbolic socialism to symbolic reform. The Journal of Modern African Studies, nº26, 1988, p.211-226.

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3. AS CONDICÕES SOCIAS E EPISTÉMICAS DA EMERGÊNCIA E CONSOLIDAÇÃO

DO CEA

3. 1 O Ano de 1976 e a Tentativa de Criação de uma “Universidade para o Povo”

Moçambique testemunha, na altura da independência em 1975, o êxodo massivo dos

poucos professores universitários existentes, assim como de estudantes. Os números falam

por si: nos primeiros anos da independência, o número de estudantes tinha-se reduzido de

2.433 para 740, somente no período de 1975 a 1978, enquanto o número de docentes se

reduziu para menos de 10 professores264. Devido a esta falta de professores universitários, a

universidade nos primeiros anos do pós-independência teve que “improvisar” usando “alunos-

monitores” que colaboravam na docência e investigação sob a orientação directa de um

professor.

Em Janeiro de 1976, inicia-se o primeiro ano lectivo da única universidade existente

na altura. Em Maio do mesmo ano, deu-se a mudança do nome de “Universidade de Lourenço

Marques”, para “Universidade Eduardo Mondlane”, em homenagem ao primeiro presidente

da FRELIMO. Esta mudança marcava simbolicamente a tentativa do poder político efectuar

uma “ruptura completa com o passado colonial265” e de impor uma nova concepção de ensino

superior. Uma universidade popular ao serviço da sociedade moçambicana “rumo ao

socialismo”.

O ensino de Ciências Sociais, nestes primeiros anos de independência, não sofreu

grandes mudanças. Os cursos de Ciências Sociais e Humanas ministrados pela Faculdade de

Letras mantiveram por um período relativamente longo, a estrutura anterior do Bacharelato

com a duração de três anos, não obstante terem iniciado transformações curriculares de forma

a adequar os seus objectivos e conteúdos à realidade política, social e econômica do país.

Assim, para o caso concreto do Curso de História foram introduzidas as cadeiras de “História

de Moçambique” e “África”; o conteúdo temático do curso de Filologia Românica, alterou os

264 BEVERWIJK, Jasmin. The Genesis of a System – Coallition Formation in Mozambican Higher Education

(1993-2003), PhD Thesis, UniTwente, 2005,p.102. 265 GANHÃO, Fernando. Problemas e prioridades na formação em ciências Sociais. Revista Estudos

Moçambicanos, nº. 4, CEA, Maputo, 1984,p.5-17.

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seus objectivos e passou a designar-se por curso de Letras Modernas266”. Continuou-se a

oferecer os mesmos cursos do período colonial. No entanto, estava-se num momento de

“euforia” nacional. O ano de 1975 era, segundo as palavras do primeiro presidente de

Moçambique Samora Machel, “o ano em que pela primeira vez, do Rovuma ao Maputo, o

povo moçambicano assume inteiramente a responsabilidade do seu destino histórico”267.

Havia um grande interesse político, por parte da FRELIMO em transformar

radicalmente a universidade e os seus conteúdos de ensino. A disciplina de História tinha

agora um papel particularmente importante. Teria que ser em primeira instância uma história

da opressão colonial nas suas várias formas, como também a História da resistência africana

ao colonialismo. Enfim, uma História que pudesse reafirmar a experiência histórica do sujeito

africano silenciado pela historiografia colonial, restaurando os valores culturais e a dignidade

africana e que também pudesse ajudar nas aspirações da FRELIMO de construir a nação

moçambicana. É assim, que logo depois da independência nacional, se começa a planear a

produção de uma “História de Moçambique”, que seria anos mais tarde, concretizada pelo

Departamento de História da Universidade Eduardo Mondlane. Fernando Ganhão, primeiro

Reitor no pós-independência, e membro sénior do partido FRELIMO, numa entrevista em

Janeiro de 1975 asseverava,

Transformar a Universidade de Lourenço Marques desde sempre ao serviço do poder colonial numa instituição educativa ao serviço do poder popular exige orientação, pela vanguarda organizada do povo – a FRELIMO – e na participação de todos os elementos na sua gestão, segundo os princípios da democracia popular e ainda na identificação de todos os universitários com a causa popular (...) A integração dos estudantes no processo revolucionário da eliminação das classes, se fará com a mesma atitude com que vencemos a guerra, vamos procurar vencer na paz, precisamente inspirando-nos nessa experiência268.

Esta forma de conceber a missão da universidade, dos cientistas sociais e

266 LOFORTE, Ana; MATE, Alexandre. As Ciências Sociais em Moçambique. Mimeo, Maio, 1993,p.3. 267 Jornal NOTÍCIAS, 1/1/1975, Mensagem do Ano Novo, p.4. 268 Jornal NOTÍCIAS, Entrevista de Antonio Souto a Fernando Ganhão, 16/01/1975. p.2.

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investigadores, fazia parte, parafraseando Michel Foucault (1986), do “regime de verdade269”

que a FRELIMO pretendia estabelecer na sociedade moçambicana. Aos quadros da nova

universidade era solicitado que se armassem com a “teoria da mudança social na nossa

região” que permitisse alterar as condições sociais herdadas do colonialismo português, bem

como na sua dependência em relação ao sistema capitalista sul-africano. A teoria da mudança

social proposta pelo poder entrava em conflito com a chamada “teoria da ordem social”,

considerada como “uma das teorias mais reaccionárias da ciência social burguesa270”. Para os

dirigentes da FRELIMO a génese da teoria social, não deveria estar exclusivamente ligada ao

estudo de texto, a sala de aulas, mas também numa “prática e nas lutas sociais”. A

universidade, na óptica do poder, deveria estar voltada,

Para a produção de intelectuais que estivessem decididos a engajar-se no processo prático de transformação social. No caso de Moçambique, capazes de construir e consolidar, em aliança com outras classes e grupos, as bases duma sociedade socialista.271

A realidade no terreno, nos primórdios da independência, mostrou outro cenário longe

dos anseios da “utopia freliminiana”: falta de quadros na universidade, exiguidade de

pesquisadores, a inexistência de trabalhos de pesquisa que abordassem o Moçambique

contemporâneo e os seus desafios para desenvolvimento socialista. Tornava-se assim, cada

vez mais urgente, nesta fase “revolucionária” que Moçambique vivia, desenvolver algo em

torno das Ciências Sociais, para colmatar o vazio deixado pela inglória herança colonial

portuguesa. Foi portanto nesta fase da “transição socialista” que foi ser feita grande pressão

aos cientistas sociais para que demonstrassem a utilidade do seu trabalho. A pesquisa deveria

estar ao serviço da transformação das condições sociais de Moçambique. Foi assim 269 Segundo Foucault, cada sociedade tem o seu regime de verdade, sua ‘politica geral’ de verdade: isto é, os

tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionarem como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguirem os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que tem o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. Ver, FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro:Graal, 1981.

270 Ibid. 271 GANHÃO, Fernando. Problemas e Prioridades na Formação em Ciências Sociais. Estudos Moçambicanos,

nº. 4, CEA, Maputo, p.5-17 1984.

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privilegiado o paradigma das Ciências Sociais Aplicadas, o que significou uma estreita

ligação com os fazedores de políticas.

3.2 O Nascimento do Centro de Estudos Moçambicanos (CEA)

Estávamos também no período do êxodo de professores e investigadores portugueses e

a consequente paralização da única universidade existente no país. Segundo Fernando

Ganhão,

Não havia moçambicanos para os substituir. Fomos aos países socialistas com o intuito de encontrar pessoas para preencher essas lacunas. Primeiro nesses países porque eu próprio vinha de um país socialista, a Polónia, onde estava a fazer o meu Doutoramento. No entanto, eu estava consciente das limitações que eles tinham em Ciências Sociais. Assim, não queria reproduzir esses modelos aqui em Moçambique; decidi então virar as atenções para a Universidade de Dar-es-Salaam onde encontrei no Centro de Pós-Graduação em Estudos de Desenvolvimento, alguns investigadores dentre os quais Marc Wuyts a quem desafiei para ir trabalhar conosco a fim de se criar uma área de ensino em Ciências Sociais aqui na UEM272.

A ideia inicial do Reitor Fernando Ganhão não era propriamente de criar um centro de

pesquisa, mas sim de introduzir na nova universidade, um curso de Ciências Sociais e de

disciplinas como Sociologia, Antropologia, Economia etc. Aconteceu porém que esta ideia

nunca se concretizou e então o Reitor da UEM reflectiu sobre a necessidade de se criar algo

em torno da pesquisa em História e assim aproveitar os poucos jovens estudantes

moçambicanos finalistas do Bacharelato em História para promover algo na área da pesquisa.

Segundo Ganhão,

272 Entrevista com Fernando Ganhão, Julho de 2007.

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Falei com várias pessoas, convidei o Dr. Aquino de Bragança, que era jornalista da Afrique-Asie e contactei os meus estudantes do Bacharelato de História. Eu era então professor de História. Convidei alguns alunos, dentre os quais, o Luís de Brito, o Carlos Serra, a Teresa Cruz e Silva, a Isabel Casimiro e outros que já não me recordo273. Enfim, todo aquele grupo de estudantes do Bacharelato. Foi nessa altura que me lembrei de fazer uma homenagem àquele Centro de Estudos Africanos, de 1949, que foi criado em Lisboa por Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Marcelino dos Santos e outros que se encontravam exilados (…) não teve uma vida longa, esse centro em Portugal, mas a ideia era render uma homenagem, não obstante a sua curta duração274.

Como se pode notar, o projecto da constituição dentro da Universidade de um Centro

de pesquisa em Ciências Sociais com enfoque nos estudos africanos, não foi algo

premeditado. Esta ideia foi surgindo gradualmente à medida que o contexto local e

internacional (tendo já no CEA pessoas como Aquino de Bragança e Ruth First), foi impondo

essa necessidade histórica. A criação do CEA está assim ligada por um lado, a um contexto

mais global da revitalização das Ciências Sociais nas ex-colônias africanas, onde se procurou

dar um novo rumo ao ensino e à pesquisa e onde estas eram chamadas a desempenhar o seu

papel em prol da emancipação e justiça social, com grande enfoque na bipolarização do

mundo através da “guerra fria”, da emergência das teorias marxistas no ocidente e da

revolução estudantil de “Maio de 68” em Paris.

Por outro lado, surgiu também num contexto mais local de revitalização da nova

universidade sob liderança da FRELIMO que procurava, sob o impacto do grande êxodo de

professores e estudantes, mudar radicalmente a face da universidade salvaguardando alguma

coisa em termos de pesquisa em Ciências Sociais. A disciplina de História teve aqui um papel

central na reescrita da nova história de Moçambique, tendo como ponto de partida a

experiência da luta de libertação nacional contra o domínio colonial português e na

construção da nova nação moçambicana “rumo ao socialismo”. Poderíamos ainda falar de um

contexto regional onde se procurou criar um elo forte entre a pesquisa e a luta de libertação do

ANC, do Zimbabwé e Namíbia em relação ao sistema capitalista do apartheid na África do

273 Na verdade houve aqui um lapso de memória de Fernando Ganhão na altura da entrevista: os investigadores,

Carlos Serra, e Isabel Casimiro não fizeram parte do primeiro grupo de jovens estudantes que fundaram o CEA. Entrevista realizada com Luís de Brito, Março, 2010.

274 Entrevista com o autor, Março, 2007.

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Sul.

O Centro de Estudos Africanos (CEA) foi então formalmente criado em Janeiro de

1976, tendo como Director do Centro: Aquino de Bragança, jornalista de renome

internacional, acadêmico, professor na UEM, conselheiro pessoal do Presidente Samora

Machel, e visto no contexto moçambicano, como “um dos homens mais escutados pelo

poder275”. No primeiro ano de existência do CEA, a equipe de investigadores foi constituída

por uma geração de jovens historiadores moçambicanos276, que foram recrutados do

Bacharelato de História na Universidade Eduardo Mondlane. Eram eles, Luís de Brito, Eulália

de Brito, Miguel da Cruz, Ana Loforte, Teresa Cruz e Silva, Salomão Nhantumbo, Amélia

Muge, Nogueira da Costa, João Morais e Ricardo Teixeira. Contudo, estes dois últimos

pertenciam numa primeira fase, à Secção de Arqueologia. Logo a seguir chega mais um

investigador/historiador moçambicano, António Pacheco e o Centro começou a dar os

primeiros sinais de vida na pesquisa em Ciências Sociais.

O CEA estava nessa altura exclusivamente ligado à pesquisa na História colonial de

Moçambique, dividida em secções, cada uma representando diferentes períodos históricos. Os

investigadores Luís de Brito, Eulália de Brito e António Pacheco, incluindo o próprio director

do Centro constituíam o Grupo de pesquisa da África Austral, uma vez que Aquino de

Bragança, pôs logo a necessidade de se olhar Moçambique no seu contexto regional.

Nogueira da Costa e Miguel da Cruz constituíram o Grupo da História do século XIX,

particularmente nas companhias majestáticas; Ana Loforte, Salomão Nhantumbo e Amélia

Muge constituíram o Grupo de Antropologia e os restantes estudantes/pesquisadores ficaram

na Arqueologia. Como podemos depreender, estas áreas de pesquisa do CEA estiveram mais

direccionadas para a pesquisa documental e com muito pouca saída para a pesquisa de terreno

no interior das comunidades.

Esta era portanto a estrutura inicial do Centro, onde no seu primeiro ano de

275 Ibidem, p.55. 276 Esta pode ser considerada como a fase “moçambicana” do CEA, onde o número de investigadores nacionais

era expressivamente maior que dos estrangeiros (vide, figura nº1). Como podemos ver a partir do gráfico, esta predominância dos “nacionais” começa a decrescer, gradualmente, nos anos 1978, uma vez que estes investigadores foram alocados em outras instituições de pesquisa e ensino, como o Departamento de Antropologia e Arqueologia (DAA), mas também alocados em cursos de formação de professores, como também para preencher as vagas de professores na universidade em consequência da saída maciça dos portugueses. Em contrapartida, o número de investigadores estrangeiros torna-se predominante a partir de 1979, em grande parte devido a entrada de Ruth First no CEA com directora científica, que começou a contratar e formar o seu staff de investigadores notoriamente expatriados. A interpretação deste gráfico será outra vez retomada no capítulo 8.

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funcionamento, todos os seus investigadores eram moçambicanos (vide, gráfico nº1). No

entanto, foram gradualmente aparecendo investigadores estrangeiros, como Kurt Mandorin,

Barry Munslow, Marc Wuyts e David Wield, que faziam pesquisa sobre a história do novo

Moçambique “rumo ao socialismo”. Algumas destas pessoas tinham sido inicialmente

recrutadas para ensinar no curso de Ciências Sociais, idealizado pelo Reitor Ganhão. Porém,

como este projecto não se materializou, estes investigadores foram gradualmente integrados

no CEA como colaboradores.

Quadro 2 - Movimento de Investigadores do CEA (1976-1990)

Segundo Marc Wuyts, economista belga e investigador do CEA, esta foi uma fase

importante do CEA e de grande valor instrutivo para os investigadores estrangeiros que

vinham chegando com um conhecimento limitado sobre a história de Moçambique. Como

afirmou Wuyts,

Foi aqui onde eu aprendi muito sobre Moçambique, indo aos seminários, apresentações de trabalhos dados por esses jovens graduados e por vários outros pesquisadores visitantes (Historiadores, Arqueólogos, Antropólogos) - dentre os quais, mas não somente, um número de pesquisadores franceses famosos – que trabalharam sobre

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Moçambique ou de uma forma geral, sobre África277.

3.3 Actualidade, Urgência e Colectivo na Emergência de um Novo Campo de Pesquisa em Moçambique

3.3.1 A Questão Rodesiana e o Contexto Social da sua Produção

O Director do Centro, Aquino de Bragança, intelectual engajado nas lutas pela justiça

social e emancipação dos povos oprimidos, considerado por muitos como o “nómada da luta

anti-colonialista278”, pôs logo a questão da necessidade do CEA de analisar a realidade

moçambicana tendo em conta as dinâmicas políticas e econômicas da zona austral de África.

Aquino de Bragança era uma pessoa que estava profundamente envolvida nos processos de

descolonização do Zimbabwé como Conselheiro pessoal do Presidente Samora Machel, o que

lhe permitiu envolver-se em múltiplas discussões com elementos da ZANU (PF)279 de Robert

Mugabe, e que viria em Fevereiro de 1980 a ganhar as eleições no novo Zimbabwé

independente.

O apoio de Moçambique à causa da independência do Zimbabwé remota aos primeiros

anos das lutas de libertação, nos anos 60 e 70, quando a FRELIMO e ZANU280 se

constituíram em movimentos de insurgência contra o domínio colonial. Por outro lado, devido

ao facto destes dois países partilharem a mesma fronteira, ambos, o governo da Rodésia e a

autoridade colonial portuguesa, empreenderam considerável energia na cooperação militar

277 Entrevista com Marc Wuyts, Julho de 2009. Tradução nossa: “his is where I learned a lot about Mozambique,

by listening to seminar presentations given by these young graduates and by various visiting scholars (Historians/ Archeologists/ Anthropologists) – among whom, but not only, a number of famous French scholars – who worked on Mozambique or, more generally on Africa”

278 Depoimento de Pietro Petrucci, jornalista italiano, In BRAGANÇA, Sílvia. Aquino de Bragança – Batalhas ganhas, sonhos a continuar. Maputo : Ndijira, 2009, p.55.

279 Segundo Moore, do final dos anos 1975 aos princípios de 1977, a luta de libertação no Zimbabwé foi liderada por um grupo de jovens comandantes de orientação marxista, comprometidos com a união do Zimbabwé African National Union (ZANU) e da Zimbabwé African People´s Union (ZAPU) e dos seus exércitos e do desejo de conquistar a soberania nacional e derrotar o neo-colonialismo. Para uma leitura sobre a história dos movimentos de libertação do Zimbabwé, ver, MOORE, David. Democracy, Violence and Identity in the Zimbabwean war of National Liberation: Reflections form the Realms of Dissent. Canadian Journal of African Studies, Vol. 29, nº.3, 1985, pp.375-402; HENRIQUES, Julian. The Struggles of the Zimbabweans: Conflicts between the Nationalists and the Rhodesian Regime. African Affairs, Vol.76,nº.305, Outubro,1997, p. 495-518.

280 Zimbabwé African National Union.

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contra os respectivos movimentos insurgentes281.

Em Março de 1976, Moçambique fechou as suas fronteiras com a Rodésia (actual

Zimbabwé), cortando assim as relações comerciais e impondo sanções ao governo de minoria

branca de Ian Smith. Esta atitude, segundo Tom Young (1990) e Margareth Hall (1990), fez

com que os rodesianos, como retaliação, acreditassem com mais vigor na necessidade urgente

de criar um grupo insurgente em território moçambicano, tendo como mote principal, a

sabotagem, afectando deste modo as populações e a economia do país. Era assim formada em

1976 a Resistência Nacional Moçambique (RENAMO)282.

Ataques ao território moçambicano iniciaram um ano depois da independência

nacional em fevereiro de 1976, primeiramente nas províncias de Tete, Manica, no centro de

Moçambique e mais tarde em Gaza. O país, um ano após a independência contra o

colonialismo português, vivia momentos de uma crise econômica e social agravada pelo

eclodir de sabotagens militares vindas do exterior. O “Jornal Notícias” de Julho de 1976,

estampou em letras garrafais no seu Editorial, “Estamos em guerra!” Afirmavam ainda os

jornalistas: “Moçambique está em guerra contra o governo racista da colônia britânica da

Rodésia do Sul. Em guerra contra os exploradores do povo irmão do Zimbabwé, em guerra

contra os assassinos do nosso próprio povo”.283

É nesse contexto que a FRELIMO solicitou ao director do Centro, Aquino de

Bragança, que realizasse um estudo sobre a situação sócio-econômica do Zimbabwé, para que

o governo moçambicano pudesse ter um melhor entendimento do tipo de problemáticas,

tensões e contradições que poderiam emergir no processo da negociação da independência do

Zimbabwé284. O CEA realizou, deste modo, em Outubro de 1976, o seu primeiro projecto

colectivo285: “Zimbabwé – A Questão Rodesiana”. Este empreendimento científico do CEA,

281 Para uma discussão sobre as origens da RENAMO, ver, YOUNG, Tom. The MNR/RENAMO: External and

Internal dynamics. African Affairs, Vol. 89, nº 357, p. 491 – 509; HALL, Margaret. The Mozambican National Resistance Movement (RENAMO): A Study in the Destruction of an African Country. Journal of International African Institute, Vol. 60, nº. 1, 1990, p.39-68.

282 A “Resistência Nacional Moçambicana” tem sido conhecido pelos seus vários acrónimos, os mais comummente usados são MNR (especialmente no Zimbabwé) e RENAMO (cunhado em 1983). HALL, op.cit, 1990, p.39.

283 Jornal NOTÍCIAS, 4/7/76. 284 Idem. 285 Contudo, nem todos os investigadores do CEA participaram neste projecto. O “grupo de Antropologia” e o

“grupo da História do Século XIX”, por exemplo, não estiveram presentes. Somente participaram nesta investigação o “grupo da África Austral” nomeadamente, Aquino de Bragança, Maria Eulália de Brito, Luís de Brito, e Antonio Pacheco.

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deixou de respeitar a antiga divisão orgânica do Centro em áreas temas da história colonial e

juntou todos investigadores disponíveis numa mesma acção colectiva.

Foi ainda durante a preparação deste projecto de pesquisa colectiva, que o economista

Marc Wuyts, docente na Faculdade de Economia da UEM desde Julho de 1976 recebeu o

convite de Aquino de Bragança para integrar a equipe de pesquisadores do CEA. Durante

todo o período de trabalho de Marc Wuyts em Moçambique de Julho de 1976 a Dezembro de

1983, ele continuou a trabalhar tanto no CEA como na Faculdade de Economia que continuou

a ser o seu emprego “oficial” na UEM286.

O estudo produzido pelo CEA em Outubro de 1976 tinha como principal propósito

servir de base aos dirigentes da FRELIMO, como também nos partidos nacionalistas do

Zimbabwé à conferência de Genebra287, convocada pela Grã-Bretanha para esse mesmo ano e

que visava o estabelecimento de um governo de transição o que pressupunha a transferência

de poderes da potência colonizadora, Grã-Bretanha, para o povo zimbabweano288.

Segundo os próprios investigadores do CEA, este Relatório foi assim a primeira

actividade e publicação colectiva do Centro desde a sua constituição após a independência de

Moçambique. O projecto foi elaborado e investigado e o relatório colectivamente escrito num

curto período de três semanas289. Participaram nesta empreitada, oito investigadores do CEA,

nomeadamente Aquino de Bragança, Maria Eulália Brito, Luís de Brito, Kurt Mandorin,

Barry Munslow, António Pacheco, David Wield e Marc Wuyts.

“A Questão Rodesiana”, utilizando a perspectiva de análise marxista, procurou

compreender o desenvolvimento das estruturas coloniais econômicas da Rodésia com o

objectivo de distinguir as diferentes classes sociais e facções de classe que emergiram da base

286 Entrevista a Marc Wuyts, Julho de 2009. 287 Não chegou a cumprir a sua missão uma vez que na altura em que o Relatório fora finalizado já tinha

decorrido a referida conferência. 288 As conversações começaram em Genebra, Suíça em Outubro de 1976 entre o Governo de Ian Smith e os

partidos nacionalistas. Os nacionalistas estavam divididos apesar dos esforços do Presidente os Estados da “Linha da Frente” para uni-los. Os dois principais líderes nacionalistas, Joshua Nkomo e Robert Mugabe tinham, no entanto, formado nesse mesmo mês, a aliança política, “Frente Patriótica”. Ndabaningi Sithole e Abel Muzorewa, líderes dos outros partidos, participaram na conferência separadamente. Ian Smith líder do governo minoritário branco da Rodésia, insistia que o propósito da Conferência fosse o de implementar as propostas de Henry Kissinger, então Secretário de Estado dos EUA, que incluíam controlo branco da defesa, da lei e ordem. Os nacionalistas rejeitaram logo de inicio, essas propostas. Ivor Richard, o embaixador britânico nas Nações Unidas presidiu à conferência que durou 7 semanas. As conversações foram adiadas para Dezembro, contudo nunca mais foram recomeçadas. (Ver, WILLIAMS, Gwyneth & HACKLAND, Brian. The Dictionary of Contemporary Politics of Southern African, London : Routledge, , 1988.

289 CEA, A Questão Rodesiana, Lisboa : Iniciativas Editoriais, 1978.

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colonial. Pretendiam ainda identificar as prováveis posições de classe que estas poderiam

tomar naquela fase da luta no Zimbabwé290. Neste relatório, os investigadores do CEA

examinaram questões candentes para a fase de transição para a independência do Zimbabwé,

nomeadamente a importância do investimento estrangeiro na Rodésia, a questão da terra, a

dimensão, a composição e o carácter da classe operária e inferências sobre o seu papel

revolucionário na fase de transição para a independência. Traziam ainda alguns dados sobre a

pequena burguesia africana e a população colona, como forma de se empreender uma análise

mais actual sobre a sua heterogeneidade e potencial para o Zimbabwé pós-independente.

3.3.2 A Génese de uma Nova Forma de Fazer Pesquisa

Apesar do Relatório Final saído desta pesquisa não ter sido um estudo em

profundidade sobre o Zimbabwé, uma vez que o material bibliográfico empírico e disponível

em Moçambique foi bastante exíguo nesta área e, por outro lado, de nenhum dos seus

investigadores na altura, ser especialista no Zimbabwé, esta pesquisa teve o condão de mudar

radicalmente a dinâmica de pesquisa do Centro ao introduzir três inovações:

1. Uma abordagem na “actualidade” (sem contudo deixar de levar em

consideração as suas raízes históricas), em vez de focalizar na história como tal;

2. Uma mudança de uma pesquisa individual para uma pesquisa colectiva

e;

3. A introdução de um sentido de urgência na pesquisa para responder a

preocupações imediatas. Este último ponto significava que o tempo para se fazer

pesquisa era restrito e que os resultados desta tinham que se sujeitar a prazos muito

claros.

Assim, com a emergência desta nova prática científica no CEA, a sua antiga divisão

epistémica não fazia mais sentido. O CEA passou então a estar mais focalizado em questões

apegadas aos desafios actuais da reconstrução nacional e da transformação das condições

290 CEA. A Questão Rodesiana, Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1978.

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sociais. Enfim, um tipo de abordagem científica com um carácter mais actual e urgente. Deve-

se, no entanto, salientar que esta ênfase na actualidade, não anulou a preocupação do Centro

de sempre contextualizar historicamente toda a sua pesquisa, trazendo à discussão o impacto

da presença colonial no Moçambique contemporâneo.

É, a partir desta fase, que o CEA também mudou a sua ênfase numa pesquisa

essencialmente individual, que muitas das vezes seguia critérios pessoais dos investigadores,

ligados por exemplo aos seus projectos de fim do curso, para uma pesquisa maioritariamente

colectiva, sem contudo anular de forma absoluta, a primeira291.

O trabalho do CEA acabou assim por aparecer no colectivo. A pesquisa colectiva

reflectiu desta forma, um trabalho de convergência, onde acabou-se por criar um consenso

sobre a interpretação dos factos, mas que podia não ser a ideia de todos os investigadores.

Mesmo aqueles estudos que apareciam assinados individualmente, eram também fruto de

discussões e debate dentro do Centro. Por exemplo, nas entrevistas por mim realizadas, aos

pesquisadores do CEA, estes, na sua maioria, mencionaram esta praxis do Centro, de sempre

discutir entre colectivamente os seus trabalhos de pesquisa, desde a fase do design até a

apresentação dos seus resultados.

Por outro lado, em documentos por mim consultados sobre por exemplo o “Curso de

Pós-graduação em Desenvolvimento” (este projecto é discutido com mais pormenor no

capitulo seis) do CEA292, vários deles, em actas e outros relatórios, mencionavam a

participação colectiva, tanto dos professores, investigadores como dos alunos na análise

crítica e avaliação dos projectos de pesquisa realizados pelo CEA. Este Curso de

Desenvolvimento teve também uma importância extremamente grande para a definição do

trabalho intelectual do Centro bem como na inauguração desta nova forma de fazer pesquisa,

no Moçambique pós-independente.

A escolha de métodos colectivos de trabalho esteve intimamente relacionada com a

“visão de mundo” marxista da FRELIMO do poder colectivo, do “poder como grãos de areia

que não se pode separar”, em oposição ao que era considerado como “individualismo burguês

291 Alguns investigadores do CEA, não deixaram de publicar artigos, Relatórios de Pesquisa individuais. Estes

eram publicados por exemplo, nas Revistas do CEA, Estudos Moçambicanos, e a Revista de História, Não Vamos Esquecer. Foram também publicados Relatórios de Investigação com assinatura individual, como é o caso por exemplo do estudo de Marc Wuyts, Camponeses e Economia Rural. Ver, Wuyts, Marc. Camponeses e economia rural em Moçambique. Maputo: UEM/CEA, 1979.

292 Vide por exemplo, UEM, CEA, Curso de Desenvolvimento de 1981, texto de apresentação do Curso, Mimeo, 1982.

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e elitista”. Como afirmou Samora Machel em 1976, num discurso por ocasião do dia mundial

do trabalhador, “O saber e a ciência possuem uma dimensão eminentemente e intrinsecamente

colectiva”293. No mesmo diapasão, o CEA assumia como principio, A rejeição da divisão do

trabalho na produção de conhecimento característico da burguesia e o departamentalismo e

carreirismo acadêmico, bem como o isolamento profissional que aquela divisão de trabalho

gera”.294

O sentido de urgência no trabalho do CEA foi também produto desse engajamento

com a estratégia de desenvolvimento socialista em Moçambique e do contexto das lutas de

libertação na África Austral. Erapreciso analisar questões candentes da economia de

Moçambique em “transição para o socialismo,” como também de Moçambique no contexto

da África Austral, especialmente na sua relação com o regime racista sul-africano. Como

afirmou Fernando Ganhão em 1982, na reunião organizada pela UNESCO sobre problemas e

prioridades na formação em Ciências Sociais na África Austral,

Existe a necessidade urgente de investigar e controlar regularmente o sistema sul-africano, de estudar e prever os desenvolvimentos da sua economia, na medida em que afecta os restantes Estados da região. Devemos investigar as questões que, no âmbito da SADCC têm de ser resolvidas, para que as estratégias específicas de desenvolvimento das economias possam ter sucesso295.

No prefácio da edição moçambicana296 desta obra, o CEA enfatizou esta nova função

social dos intelectuais, que era de manter um sentido de urgência e de actualidade na pesquisa

ao afirmar que “ no Moçambique pós-colonial,

293 Jornal NOTÍCIAS, 3/5/76. 294 CEA, Estudos Moçambicanos nº. 1 Editorial. Subdesenvolvimento e Trabalho Migratório. Maputo:UEM,

1980. 295 GANHÃO, Fernando. Problemas e prioridades na formação em Ciências Sociais. Estudos Moçambicanos

nº.4 ,Maputo: CEA,1983, p.16. 296 Foi editado pelo Instituto Nacional do Disco (INLD). É de referir que a Questão Rodesiana, foi a obra mais

traduzida do CEA, Houve edições em inglês, francês e italiano. Entrevista com Luís de Brito, Março, 2010.

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O facto de a obra ter sido preparada especificamente como um trabalho de base para a conferência Constitucional de Genebra sobre o Zimbabwé, realizada em Outubro de 1976, realça a sua importância como documento politicamente orientado, que tem como objectivos expor o problema fundamental e conduzir as mentalidades para a sua solução297.

Em suma, foram estas três inovações, actualidade na pesquisa, o colectivo e o sentido

de urgência que deram uma nova dinâmica à pesquisa científica do CEA, impulsionando deste

modo a emergência de um novo campo de investigação no Moçambique pós-independência.

O CEA sob a “batuta” de Aquino de Bragança e Ruth First298 procurou desenvolver uma

pesquisa aplicada e politicamente orientada, mas sempre com uma visão crítica e não

dogmática em relação ao marxismo-leninismo da FRELIMO. (veja aqui a razão pela qual não

creio ser adequado usar a palavra “subordinação” para tratar da relação entre o CEA e a

FRELIMO?).

Aquino de Bragança acreditava que “a função do intelectual mais do que trazer

soluções era de questionar299.” Contudo, esta não era a questão central que o poder político

procurava enfatizar. Segundo o Reitor Fernando Ganhão, a universidade era vista como “uma

estrutura organizada para produzir intelectuais que estivessem decididos a engajar-se no

processo prático de transformação social300. Portanto, mais do que compreender, questionar,

era preciso mudar as condições sociais de Moçambique em “transição para o socialismo”.

297 CEA, A Questão Rodesiana, Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1978, p.16. 298 Ruth First tinha estado em Moçambique nos anos 75, no âmbito de um pequeno projecto sobre a força de

trabalho migratório moçambicana para as minas da África do Sul. Regressa a Moçambique em 1977 para a realização da grande obra do CEA que foi O Mineiro Moçambicano”, tendo sido nomeada depois deste projecto, Directora Cientifica do CEA. First regressa a Moçambique um ano mais tarde (ficaria em Moçambique até a sua morte em 1982, através de uma carta-bomba, enviada pelo regime sul africano), com este “titulo. A partir dai o CEA se reorganiza através principalmente da introdução do Curso de pós-graduação em Desenvolvimento que de uma forma inovadora em Moçambique aliava o ensino e a investigação com enfoque nos processos de transformação da produção em moldes socialistas me Moçambique.

299 Depoimento de José Luís Cabaço, no Colóquio em Homenagem a Aquino de Bragança, Maputo, 28-29, Julho, 2009.

300 GANHÃO, Fernando. Problemas e prioridades na formação em Ciências Sociais. Estudos Moçambicanos nº.4 ,Maputo: CEA,1983, p.16.

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3.3.3. Os processos da produção de “O Mineiro Moçambicano”: consolidando o novo campo de pesquisa

Estas diferentes concepções do papel e do significado da pesquisa tornaram-se ainda

mais salientes com a preparação em 1977 do segundo projecto colectivo do CEA: um estudo

sobre o fluxo migratório para as minas da África do Sul. Este estudo tinha a particularidade de

ser agora dirigido, por Ruth First, jornalista, acadêmica e activista política anti-apartheid. A

sua entrega à causa das lutas de libertação nacional nos países da África Austral, o seu

compromisso com a luta anti-imperialista e a sua “disciplina férrea301” e rigor na pesquisa

científica iria, de facto, ter um grande impacto na vida do CEA marcando profundamente toda

uma geração de jovens cientistas sociais moçambicanos.

3.2 O Retorno Temporário de Ruth First à África Austral…Cada vez mais perto da Toca do Lobo

Ruth First já tinha Estado em Moçambique, por algumas semanas em 1975, realizando

uma pesquisa sobre a força de trabalho migrante moçambicana para a África do Sul302. Para

além desta experiência breve com a realidade moçambicana, Ruth First, vivendo no exílio,

esteve profundamente activa pela causa da África Austral. Era membro do “Movimento Anti-

apartheid”, uma organização inglesa solidária com a libertação nacional da África Austral,

porém mais direccionada para a luta política nos países anglófonos, África do Sul, Zimbabwé

e Namíbia303. Houve ainda nesse período, uma outra organização, o Committee for Freedom

in Mozambique, Angola e Guiné-Bissau (CFMAG304), fundado em 1968 na Inglaterra pelo

aclamado intelectual, historiador, africanista e activista político, Basil Davidson, Lord Tony 301 Nas entrevistas realizadas a alguns investigadores do CEA (Teresa Cruz e Silva, Isabel Casimiro por

exemplo), quando lhes foi solicitado que falassem brevemente de Ruth First, apareciam frequentemente termos como: “personalidade forte” “autodisciplina”, “dama de ferro” “sentido de direcção e responsabilidade,” como também alusão a sua “disciplina férrea” da direcção dos projectos de pesquisa”.

302 A autora já tinha publicado em 1961 na Revista Africa South in Exile, um artigo sobre a questão do trabalho mineiro na África do Sul intitulado, The Gold of Migrant Labour, portanto, Aquino de Bragança sabia do significado de ter esta intelectual de renome na luta anti-apartheid aqui em Moçambique. Para mais detalhes sobre o legado intelectual de Ruth First veja, African Review of Political Economy (ROAPE), nº.25.1982.

303 Entrevista com Poly Gaster 304 CFMAG foi dissolvido em 1975, tendo sido criado logo a seguir o MAGIC, que agora funcionava em duas

vertentes: como um Centro de Informação sobre Moçambique, Angola e Guiné Bissau, e uma outra vertente focalizada no fomento de campanhas de emergência a favor de Angola. Em Moçambique, teve um papel fulcral no fornecimento de um número considerável de cooperantes, especialmente na área da saúde e educação. É de referir que alguns dos investigadores do CEA vieram através deste Comité.

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Gifford, advogado e a jornalista Poly Gaster, que tinha trabalhado na época da luta armada em

Moçambique, para o Instituto Moçambicano na Tanzânia305.

De acordo com Tony Gifford, a ideia da constituição deste “comité de solidariedade”

se deve ao então presidente da FRELIMO, Eduardo Mondlane, que segundo ele, esteve em

Oxford e Londres para palestras e ficou chocado com a ignorância dos ingleses

“progressistas” em relação a Moçambique. É desta forma, que Eduardo Mondlane teria

sugerido que se desenvolvesse algo para apoiar a luta da FRELIMO e de desmascarar o apoio

dos países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) a Portugal.

Foi assim criado o Comité, inicialmente direccionado para Moçambique, mas que foi

logo estendido aos outros países africanos de expressão portuguesa.306 Poly Gaster, pode-nos

ajudar a compreender melhor esta organização,

Era um Comité de solidariedade que apoiava a luta armada da FRELIMO, MPLA e PAIGC. No Reino Unido, o objectivo principal era de informar e mobilizar apoio político à causa das independências nacionais, e tentar monitorar a aliança entre Inglaterra e Portugal e de fazer campanhas contra o apoio que Portugal recebia da NATO307.

Ruth First (antes mesmo de receber o convite para vir trabalhar em Moçambique),

colaborou com o Comité, através de participação em campanhas contra a guerra colonial,

boicotes econômicos (por exemplo, com a realização de uma campanha contra o investimento

britânico no projecto da construção da barragem de Cahora Bassa), como também palestras308

e conferências309, denunciando o colonialismo português310.

305 GIFFORD, Tony. Basil Davidson and the African freedom struggle, Race & Class, nº.36,1994. A versão on

line deste artigo está disponível em: «http://rac.sagepub.com». 306 Ver, GIFFORD, op.cit, 1994. 307 Entrevista com Poly Gaster, maio, 2009. 308 Por exemplo, em Dezembro de 1974, Ruth apresenta na Universidade de Durhan, uma palestra sobre o legado

do colonialismo português em África. African Review of Political Economy (ROAPE), nº.25.1982. 309 Segundo Gaster, Ruth teve um papel importante na Conferência de Roma em 1970, quando os dirigentes dos

movimentos de libertação foram recebidos pelo Papa. Ruth apoiou a MAGIC na criação da delegação britânica à conferência, como também apoiou na produção de um paper sobre as relações econômicas ente a Metrópole e Moçambique colonial, apresentado pelo Comité na Conferencia.

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Não obstante, o seu compromisso primário com a luta política e armada do ANC, esta

intelectual sul-africana tinha consciência de que era inapropriado ver as lutas pela liberdade

na África do Sul e a lutas pela autodeterminação das ex-colônias portuguesas como entidades

separadas. Ann Scott311, por exemplo, lembra-se de em Dezembro de 1974, ter assistido a

uma palestra dada por Ruth First na universidade de Durhan (Inglaterra), sobre o “legado do

colonialismo português em África312”. É ainda esta autora quem afirmou que Ruth First tinha

sido,

Uma das pessoas que entendeu politicamente que era preciso ver a África Austral como um conjunto e que Moçambique e Angola eram os pontos mais fracos dos regimes minoritários. Assim, era correcto e legítimo, segundo ela, dar muita força àqueles movimentos de libertação313.

Foi então neste ambiente político de luta a favor da libertação nacional da África e em

particular do último reduto do colonialismo e imperialismo nos países africanos sob

dominação do colonialismo português, que Ruth First conheceu e desenvolveu uma amizade

profunda com Aquino de Bragança, também um intelectual de esquerda e jornalista radical.

Aquino de Bragança era na altura, um dos membros fundadores do jornal de esquerda

Afrique-Asie para o qual Ruth First contribuía frequentemente. Foi então num desses

encontros, que Aquino convidou Ruth First a regressar a África Austral para viver e trabalhar

em Moçambique314. Foi de facto uma oportunidade única de Ruth First voltar à África Austral

e continuar a sua luta - agora “de corpo e alma” no solo africano - pela construção do

socialismo num Moçambique já independente e de estar mais perto da luta contra o governo

310 Um outra peça chave neste Comité, foi Basil Davidson, académico de renome, jornalista e activista que

escreveu prolificamente sobre Moçambique, Angola e Guiné-Bissau e que conheceu pessoalmente todos os lideres dos movimentos de libertação das ex-colónias portuguesas.

311 Historiadora feminista inglesa, que escreveu, em parceria com Ruth First, a biografia de Olive Schreiner. 312 Vide, SHOWALTER, Elaine. Olive Schreiner: A Biography by Ruth First. Tulsa Studies in Women's

Literature, Vol. 1, No. 1 (Spring, 1982), pp. 104-109, University of Tulsa. Disponível em: «http://www.jstor.org/stable/464101».Acesso em 24/06/2010.

313 Idem. 314 BRAGANÇA, Aquino & O´LAUGHLIN, Bridget. O Trabalho de Ruth First no CEA, Estudos

Moçambicanos, nº. 14, 1996, p.113-126.

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de minoria branca na sua terra natal.

Como afirmou, o historiador moçambicano, João Paulo Borges Coelho,

Atrevo-me a pensar que ela aceitou o convite para vir para Moçambique porque aqui estaria mais próximo do seu próprio país e daqui poderia dirigir muito melhor um trabalho como aquele que veio a ser desenvolvido pelo núcleo de estudos da África Austral, uma espécie de observatório da evolução geopolítica e econômica da região e da África do Sul, em particular. Eventualmente também, um suporte acadêmico ao ANC315.

Como foi discutido anteriormente, Moçambique nestes primeiros anos do pós-

independência, devido ao compromisso da FRELIMO com a construção do socialismo e do

apoio às lutas de libertação na região austral, atraiu um grande número de intelectuais de

esquerda, viam como uma nova esperança em África na construção de um modelo alternativo

a hegemonia capitalista. Somente então, a partir deste contexto social e político, poderemos

compreender melhor as duas dimensões do trabalho intelectual de Ruth First em

Moçambique: contribuir para a construção do socialismo através do ensino e pesquisa, mas

também, como activista política e membro do ANC, apoiar a luta clandestina deste

movimento.

Ruth First, que estava de licença sabática na Universidade de Durham, veio então a

Moçambique em 1977 por um ano, inicialmente com o “título316” de Directora do Projecto

sobre o “Mineiro Moçambicano”. Após a sua conclusão, foi nomeada em 1979 para o cargo

de “Directora Científica do CEA”. A partir daí, Ruth First iria dirigir a maior parte da

pesquisa científica317, o Curso de Pós-graduação em Desenvolvimento do CEA, nas suas duas

vertentes de pesquisa e ensino, e o Núcleo de Estudos da África Austral. Este grupo de

315 Entrevista com o autor, Agosto, 2007. 316 Segundo O’Meara, Ruth contou muitas vezes que concordou de boa vontade trabalhar no Centro na condição

de que iriam “dar-lhe um título,” uma vez que “sem um título ninguém nas estruturas iria levar-me a sério”. Entrevista com o autor, 2007.

317 Segundo Dan O’Meara, apesar da sua “personalidade difícil,” a competência profissional e sentido de liderança de Ruth no Centro, tinha deixado Aquino de Bragança sem nenhum papel significativo na definição, organização, administração da pesquisa. Entrevista com o autor, 2007.

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pesquisa esteve centrado na análise da situação política e econômica na África Austral com

particular destaque para as dinâmicas internas da luta do ANC e da análise política,

econômica e da estratégia sul-africana de desestabilização dos países da região.

3.3 Os Antecedentes da Pesquisa sobre O Mineiro Moçambicano318

Inicialmente, Ruth First tinha em mente realizar este projecto com Marc Wuyts e

David Wield, professor na Faculdade de Engenharia, mas segundo Marc Wuyts, Ruth First

estava aberta a sugestões de envolver mais pessoas. É assim, que David Wield e Marc Wuyts,

tendo já tido a experiência do trabalho colectivo para “A Questão Rodesiana”, aconselharam

Ruth First a tornar a pesquisa numa empreitada colectiva, envolvendo deste modo, grande

parte dos pesquisadores do Centro, como também de estudantes da universidade. Ainda de

acordo com Marc Wuyts,

Ruth aceitou a ideia, porém hesitante no princípio, porque ela estava mais consciente (do que de mim de certeza, e acredito que também do David Wield) da quantidade de trabalho organizacional que este projecto iria envolver. O ponto decisivo para ela, no entanto, foi de que esta abordagem iria beneficiar os pesquisadores moçambicanos através de um processo de aprendizagem, fazendo pesquisa colectivamente319.

“O Mineiro Moçambicano” iria tornar-se no maior projecto colectivo realizado pelo

CEA. No entanto, antes disso, o primeiro grande obstáculo à realização deste projecto, foi de

acordo com Wuyts de “barganhar” espaço para a pesquisa. Ainda de acordo com Marc Wuyts

esta questão não era um assunto menor, pois que implicou diferentes formas de conceber o

que era a pesquisa aplicada em Ciências Sociais. Assim, quando Ruth First foi ter com o

Reitor Fernando Ganhão com o pedido de se levar a cabo a pesquisa, num período de cerca de

sete meses (incluindo um mês de trabalho de campo), a resposta imediata do Reitor foi:

318 No capítulo intitulado, “Nunca Solidariedade antes da crítica”, é apresentado de forma detalhada o conteúdo

deste estudo. 319 Entrevista com o autor, julho 2009.

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“porquê sete meses? Não pode ser feita mais rápido?”320

A réplica do Reitor, como podemos notar, não apenas significou desacordo em relação

ao tempo preconizado para a pesquisa, mas esteve também profundamente ligado à

concepções diferentes a cerca do tipo de pesquisa que se pretendia ter na Universidade. Em

alguns sectores da universidade, ataviados a uma concepção colonial das Ciências Sociais -

procuraram traçar uma linha muito rígida entre o que era uma pesquisa “pura” da pesquisa

“aplicada”. A pesquisa dita “pura” requereria então uma reflexão teórica profunda e muito

tempo (o qual não era apanágio do Reitor), enquanto a última consistiria principalmente em

colher e interpretar dados com base na aplicação de alguns métodos e técnicas padronizadas,

resumindo-se então numa mera aplicação/implementação de conhecimento em vez da sua

produção.

Enfim, uma tarefa que poderia ser feita rapidamente e rotineiramente, sem qualquer

espaço para a “descoberta”. Uma vez que pressupunha simplesmente a colecta de dados

sustentados por premissas preestabelecidas e uma execução e implementação passiva de

políticas, em vez de uma análise crítica dessas mesmas políticas. Por exemplo, Marc Wuyts

afirmou, que quando esteve a trabalhar na Faculdade de Economia como docente, notou

diferenças gritantes entre as práticas do trabalho acadêmico da Faculdade de Economia e no

CEA, onde o ensino na Economia caracterizava-se por “um estilo muito autoritário com

pouco espaço ou encorajamento activo para o trabalho de pesquisa321.”

Ainda de acordo com este investigador, o ensino na Economia esteve focalizado em

“dizer aos estudantes o que deviam pensar em vez de como pensar; no conteúdo em vez de no

método, deste modo, os estudantes recebiam pouco estímulo – e às vezes até

desencorajamento – para desenvolverem as suas capacidades de pensarem

independentemente322”. Como podemos ver, uma realidade bastante distante da retórica do

reitor, quando afirmava, “temos que aplicar métodos de ensino que ajudem o estudante, não a

memorizar e a copiar, mas a pensar, a enfrentar os problemas que estão em permanente

alteração na nossa sociedade e o nosso mundo em mudança”.323

320Entrevista com Marc Wuyts, julho, 2007. 321 Idem. 322 Idem. 323 GANHÃO, Fernando. Problemas e prioridades na formação de ciências sociais. Estudos Moçambicanos nº4,

1983, p.5-17.

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Para Aquino de Bragança e Ruth First, a pesquisa social inevitavelmente envolvia um

acto de descoberta levando a inferências e conclusões que poderiam desafiar assunções e

ideias estabelecidas, e que por isso, poderiam nem sempre ser esperadas ou bem-vindas pela

classe dirigente da FRELIMO. A pesquisa social (“aplicada”) para estes autores, deveria

forçosamente entrar no domínio de visões contestadas acerca de como definir um problema

ou olhar para a sua solução. O CEA assim lutava por um espaço próprio, não somente na

questão da duração temporal da pesquisa, mas também, e mais importante, sobre o papel da

pesquisa (pressupondo uma análise crítica e não dogmatizada da realidade social) num

processo de transição socialista.

Estes impasses na definição da duração da pesquisa levou a que Ruth First usasse todo

o seu poder de persuasão e de fazer valer a sua reputação para superar esta primeira barreira e

de levar o Reitor a aceitar este projecto nos termos da sua abrangência e período de tempo. Na

opinião de Marc Wuyts, o tempo proposto foi de facto ridiculamente irrisório para este tipo de

empreitada, ainda que Ganhão visse isso claramente como “um empreendimento um tanto ou

quanto luxuoso”. Completar este projecto no tempo previsto era, para Ruth First, uma

necessidade, (do projecto como tal), mas também para demonstrar (através de um exemplo

concreto) de como a pesquisa deveria ser, se tivesse que ter um papel significante a tomar

num processo de transição socialista324. Por outro lado, era também uma forma de constituir e

proteger um espaço para um tipo de pesquisa crítica, aplicada e politicamente orientada que o

CEA começava a fazer vincar em Moçambique e que tinha as suas raízes, como vimos

anteriormente na “Questão Rodesiana”.

Este projecto de investigação colectiva começou com alguns meses de delimitação dos

objectivos da pesquisa e formulação das perguntas de partida, onde incluiu também trabalho

de arquivo e estatístico sobre o trabalho mineiro. O trabalho de campo envolveu a selecção de

trinta e cinco estudantes de várias faculdades (como parte das “Actividades de Julho”), que

depois de uma breve preparação de alguns dias, foram directo para o campo em brigadas

dirigidas pelos professores do CEA. Foram também seleccionados 14 pesquisadores, dentre

os quais, pessoal do Centro, pesquisadores associados, e estudantes. Havia ainda uma brigada

móvel formada pela Ruth First e Marc Wuyts (coordenador da pesquisa), que se moviam

freneticamente entre os diferentes lugares das outras brigadas para coordenarem as diferentes

324 Entrevista com Marc Wuyts, julho de 2009.

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actividades da pesquisa e passar sugestões de uma brigada à outra325.

A fase final combinou análise de dados, redação e revisão do texto por parte dos

professores e investigadores do CEA. A tarefa de agregar contribuições díspares de

praticamente quatro diferentes autores (Marc Wuyts, David Wield, Helena Donly e Ruth

First) com distintas tradições acadêmicas e de um nível bastante variado de conhecimento e

experiência num trabalho coerente e de qualidade, foi de facto um enorme desafio para os

investigadores do CEA, que não teria sido concretizado sem a liderança de Ruth First e a

tomada de dianteira nesta última fase de redacção do relatório final.

O Projecto foi assim finalizado em 1977 e no tempo previsto. Tinha como principal

objectivo, analisar os efeitos do fluxo migratório da força de trabalho moçambicana,

particularmente do sul de Moçambique, para as minas sul-africanas de ouro e carvão. Este

objectivo esteve profundamente ligado a uma questão prática e urgente que o governo

moçambicano enfrentava, nomeadamente, de saber quais seriam as implicações imediatas

para a economia e para o povo moçambicano da decisão do governo sul-africano de cortar

drasticamente o fluxo de trabalhadores moçambicanos para as minas. Seria assim, publicado

primeiro (1977), como um “Relatório de Investigação” voltado para o governo moçambicano

pensar a formulação de políticas. Em 1979, foi então reeditado em livro tendo como com o

título, “O Mineiro Moçambicano - Um estudo sobre a exportação de mão-de-obra”. Esta obra

iria também ser publicada em 1983, na língua inglesa, com um título deveras sugestivo do

contexto intelectual da análise marxista: The Black Gold: The Mozambican miner,

Proletarian and Peasant.

Não obstante o CEA ter no final conseguido apresentar um texto estruturado e coeso,

uma crítica que sobressaiu na avaliação e discussões do projecto após a sua finalização, e que

foi partilhada por alguns investigadores do Centro, era que os estudantes da UEM tinham sido

marginalmente envolvidos neste empreendimento: uma breve introdução ao tema nos

seminários, trabalho de campo intensivo e nenhum seguimento (uma vez que estes estudantes

regressaram às suas aulas normais depois do trabalho de campo e não foram envolvidos na

análise de dados e redacção).

Esta postura de questionamento crítico e de debate entre os pesquisadores e estudantes

do CEA em relação aos pontos fracos da sua participação no projecto colectivo, acabou sendo

um dos factores impulsionadores que permitiu que o grupo que liderava a pesquisa,

325 Entrevista com Marc Wuyts, julho de 2009.

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nomeadamente Ruth First e Marc Wuyts, reflectissem sobre a necessidade de fortalecer os

pesquisadores do CEA através de uma formação sólida e de qualidade, em termos de técnicas

de pesquisa, análise de dados, trabalho de campo e redação.

Foi no âmbito deste tipo de debates que se “fermentou” a ideia de se criar o primeiro

Curso de Pós-graduação em Desenvolvimento alguma vez dado em Moçambique326. No

entanto, antes mesmo que esta ideia tomasse corpo, e logo depois da finalização de “O

Mineiro Moçambicano”, um outro projecto colectivo foi realizado em 1978: o “Projecto sobre

o Desemprego” dirigido pelos investigadores do CEA, com a exceção de Ruth First, que tinha

regressado temporariamente para Inglaterra mas, já com o convite expresso de Aquino de

Bragança de voltar ao Centro, para assumir a posição de directora científica.

326 Entrevista com Marc Wuyts, julho, 2009.

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4. “A PEDAGOGIA” DO PROJECTO SOBRE O DESEMPREGO E O CONTEXTO DA

SUA PRODUÇÃO

4.1 O Projecto sobre o Desemprego: Uma “encomenda” do Poder

A proposta deste estudo apareceu no CEA em 1978, proposto por Luís de Brito, que

tinha sido convidado a participar num comité governamental criado para lidar com o

fenómeno do desemprego na cidade de Maputo. Nesse encontro, o governo acabou sugerindo

ao CEA que levasse a cabo um estudo para determinar o número exacto de desempregados

presentes na cidade capital. Tal como o primeiro projecto colectivo do CEA, “A Questão

Rodesiana”, este estudo tinha sido também “encomendado” pelo poder, com a finalidade

prática de dar pistas de como solucionar, não mais um problema externo, mas a partir de

agora, questões de âmbito “doméstico”, como era o caso do aumento gradual de

desempregados no espaço urbano.

O “problema”, na óptica do governo, era assumido como conhecido (havia um certo

número de desempregados em Maputo), como também a sua “solução” (abrir um número

igual de empregos nas machambas estatais). O que precisava ser conhecido era então o

número exacto desta categoria. Neste sentido, a posição do governo parecia clara, “dê-nos

uma ideia de quantos desempregados urbanos há em Maputo e nós iremos fazer as provisões

para fornecer o emprego necessário nas machambas estatais no sul.”327

Não havia deste modo, nenhuma noção de que estas assumpções poderiam ser

problemáticas. Existia somente uma preocupação em “atacar” o problema. Quando esta

solicitação do governo foi discutida dentro do CEA, os investigadores decidiram levar a cabo

a pesquisa, contudo reconfigurando a questão de partida, tornando assim uma pesquisa

orientada para o “problema” e não exclusivamente para a sua “solução”. Para os

investigadores a questão chave era dupla: (1) o que importava, não era tanto a questão do

número preciso de desempregados naquela altura, mas em vez disso as dinâmicas do

desemprego e da migração rural para a cidade e (2) o emprego nas machambas colectivas era

mais uma situação precária do que a “solução” proposta fazia crer, tendo em conta que o

fornecimento de mão de obra era tratada como algo residual nas práticas de planeamento das 327 Entrevista com Marc Wuyts, julho, 2009.

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machambas estatais, normalmente envolvendo somente oportunidades de emprego sazonais.

A problemática do desemprego, na óptica dos investigadores, era muito mais

complexa do que simplesmente canalizar esta força de trabalho desempregada para as

machambas estatais, pois que era preciso primeiro compreender as raízes rurais do fenómeno,

que segundo o CEA, estavam profundamente relacionados com a dependência estrutural da

economia camponesa em relação ao trabalho assalariado nas minas da África do Sul.

Tornava-se assim necessário fazer-se uma análise histórica do fenómeno desde o período

colonial até a actualidade. Este trabalho implicava por outro lado, a realização de pesquisas

documentais e de arquivo, combinada com trabalho de campo nas zonas de origem desta força

de trabalho desempregada, como também na cidade de Maputo, uma vez que constituía o

lugar para onde estes emigravam à procura de emprego.

O projecto foi assim realizado em colaboração com o partido FRELIMO e o

Ministério do Trabalho. Participaram no estudo os seguintes investigadores: Luís de Brito,

Maria Eulália de Brito, Kurt Mandoerin, Martha Mandoerin, Pauline Ong Bie Nio, Guido Van

Hecken, David Wield e Marc Wuyts328. Destes oito investigadores, cinco pertenciam ao CEA.

O resultado final desta pesquisa seria publicado em 1978 com o título: “Relatório Provisório

sobre o Desemprego no Maputo”. Este relatório estava estruturado em 11 capítulos,

abordando temas diversos, desde as características gerais dos desempregados na cidade de

Maputo, experiência de trabalho, período de desemprego, o fluxo para cidades como também

a questão da crise da economia colonial.

O estudo esteve alicerçado em três objectivos principais de pesquisa. Em primeiro

lugar, o CEA pretendia definir as características que identificavam as pessoas que procuram

trabalho, a partir de indicadores como a idade, sexo, período de trabalho assalariado, principal

trabalho assalariado, período de tempo em Maputo, como também a partir de informações

biográficas como a sua experiência de trabalho, qualificações, estrutura e situação familiar

etc. Para o efeito, foram realizadas pesquisas de campo no Ministério do Trabalho e

administrados inquéritos e entrevistas em dois bairros periféricos da cidade de Maputo, como

também numa zona rural (no distrito de Moamba).

Em segundo lugar, o CEA examinou o desemprego como um fenómeno integrado,

procurando deste modo olhar para a questão do sub-emprego na cidade e no campo e a sua

interligação predominantemente manifestada no fluxo para as cidades. Aqui, os

328 Cinco destes investigadores pertenciam ao CEA.

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investigadores deram maior ênfase à sua vertente urbana, procurando ver como este operava e

qual eram os sectores mais afectados. Por último, os investigadores do CEA, procuraram

analisar o desemprego como um problema rural e como este, no final, iria significar também

num maior fluxo para as cidades.

Encontramos neste Relatório o mesmo arcaboiço teórico presente no artigo do

investigador do CEA, Marc Wuyts, intitulado “A Economia Política do Colonialismo”,

publicado em 1978 e que, de facto, iria fornecer a estrutura de análise do capitalismo colonial

em Moçambique, de toda a produção científica do CEA. Neste artigo, Wuyts, caracterizava

Moçambique colonial como estando politicamente dependente de Portugal e economicamente

subordinada ao capital estrangeiro não-português, fundamentalmente da África do Sul. Esta

dependência implicou a integração de Moçambique no subsistema econômico da África

Austral, no qual a África do Sul assumia uma posição dominante.

O desemprego para o CEA seria assim uma característica particular do

desenvolvimento capitalista329, onde este problema, no pós-independência, estaria

indissociavelmente ligado a dois momentos principais. Num primeiro momento, estava

conectado com a questão da estrutura econômica colonial portuguesa herdada no pós-

independência. O estudo deu assim grande ênfase à forma como Moçambique colonial foi

transformado em fornecedor de matérias-primas e mão-de-obra migrante para servir as

necessidades de acumulação das “burguesias imperialistas”.

A partir de uma análise marxista, os investigadores do CEA argumentaram que no

caso moçambicano nunca deixou de haver uma “subjugação das formas pré-capitalistas e

semi-capitalistas de produção à dominação do modo capitalista”, o que significou a

emergência de um campesinato produtor de culturas para o mercado (mas que no entanto

também continuava a produzir uma grande parte para a sua própria subsistência), de

trabalhadores migrantes para as plantações e minas (um trabalho migratório que mantém a

ligação com o campo), assim como a criação de uma classe operária para o sector da indústria

e o sector dos transportes nas cidades, etc.

Segundo o documento do CEA, a burguesia e pequena burguesia coloniais entraram

em crise com o fim do colonialismo em Moçambique, onde nas zonas rurais essa crise

resultou numa “quebra das redes de comercialização, bem como no abandono das machambas

329 CEA/UEM/IICM. Relatório Provisório sobre o Desemprego no Maputo, Maputo:UEM/CEA, 1978.

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pelos colonos, combinadas com actos de sabotagem330.” Por outro lado, esta crise teve

também grandes implicações nas cidades onde se deu o encerramento das empresas, da

paralisação dos sectores de serviços, restaurantes, hotéis, etc., causadas por uma queda no

movimento turístico331.”

O segundo momento esteve ligado ao impacto da crise da economia sul-africana sobre

Moçambique, que se reflectiu com maior insistência na grande quebra no recrutamento de

trabalhadores moçambicanos para as minas a partir do inicio de 1976, uma vez que como

forma de gerir a crise o governo sul-africano decidiu substituir a mão-de-obra estrangeira por

mão-de-obra nacional332. Esta resolução concorreu, na óptica dos Relatores do projecto para o

aumento do desemprego na cidade de Maputo, uma vez que aqueles trabalhadores mineiros

sem possibilidades de trabalhar nas minas se concentraram na cidade de Maputo à procura de

emprego alternativo.

Esta prática do CEA de tentar compreender o processo de transição e de mudança no

período pós-independência a partir de uma análise da implantação e do impacto do

capitalismo colonial português em Moçambique nunca foi consensual. Houve ainda sectores

tanto no meio universitário, como também nas estruturas do poder, que defenderam, por

exemplo, que a mudança para uma “nova economia” em Moçambique implicaria somente

uma grande planificação socialista, através de grandes investimentos e sem nenhuma

necessidade de entender os processos estruturais e históricos que permitiram a emergência da

economia e sociedade moçambicana. Daí os dirigentes do Partido/Estado afirmarem ser

urgente “o escangalhamento das estruturas coloniais e a criação de novas estruturas”.333

A propósito, Marc Wuyts recordou-se de que quando chegou à Moçambique em 1976

para trabalhar inicialmente na Faculdade de Economia, “ um moçambicano, membro da

Faculdade”, ter-lhe dito certa vez, que “a solução para o problema do desenvolvimento

industrial em Moçambique era o de “escangalhar” tudo e começar de novo334. No entanto, é

preciso frisar que apesar do CEA enfatizar uma análise estrutural do fenómeno do

desemprego, não encontramos neste relatório, nenhuma discussão sobre como as políticas de

desenvolvimento socialista propostas pela FRELIMO no pós-independência, como por

330 CEA/UEM/IICM. Relatório Provisório sobre o Desemprego no Maputo:UEM/CEA, 1978.p.27. 331 Ibidem, p.28. 332 Ibidem, p.29. 333 Directivas Econômicas e Sociais ao III Congresso da Frelimo, Jornal Noticias, 12/09/78, p.3. 334 Entrevista com Marc Wuyts, Julho 2009.

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exemplo, a transformação das empresas privadas em empresas estatais, a cooperativização, a

organização dos camponeses em aldeias comunais e o privilégio dos grandes projectos em

detrimento do incentivo do sector de produção familiar, tiveram o seu impacto no

recrudescimento ou não deste fenómeno. Mais do que fazer uma análise crítica do papel do

Estado pós-independente no aumento dos níveis de desemprego, este relatório, com o seu

carácter mais prescritivo do que analítico, tencionava simplesmente responder aos interesses

do governo em poder saber quantos desempregados havia na cidade, com o objectivo prático

de se encontrarem soluções adequadas para se agir face ao problema do desemprego.

Os relatores do projecto partiram da premissa de que a estratégia socialista da

FRELIMO estava certa e que era preciso então ajudar a encontrar o melhor caminho. No

entanto, havia alguns pontos em que tentava-se mostrar que a solução para o problema não era

tão linear, como queria fazer entender o governo. Havia alguns sectores do Estado que

defendiam que a solução do problema do desemprego estava no corte do fluxo de camponeses

proletarizados para as cidades e na posterior alocação dessa força de trabalho para as

machambas estatais e outros sectores de produção.

Os autores do Projecto, apesar de concordarem que o corte da migração do campo

para a cidade deveria ser uma das prioridades, argumentavam que o fenómeno do desemprego

em Maputo, era uma questão que estava essencialmente ligada ao desenvolvimento rural.

Tendo sempre como interlocutor os fazedores de políticas (Policy-makers), os investigadores

advertiram que os investimentos nas áreas rurais deveriam ser capazes de absorver mão-de-

obra, o que significava “serem aplicados tão extensivamente quanto possível e com reduzido

custo por pessoa, em vez de serem concentrados sob uma forma de capital intensivo”, como

vinha sendo feito de uma forma dispersa pelo Estado335.

Informaram ainda no relatório que muitos destes “operários e camponeses” terem já

obtido especializações e experiência de trabalho industrial durante a sua vida de trabalho nas

minas. O que significava, segundo eles, uma grande oportunidade para as estruturas

competentes aproveitarem estas qualificações e a partir daí, elaborarem uma “politica de

industrialização rural336”. De acordo com os autores do estudo, esta nova política deveria ser

iniciada com a “criação de pequenas oficinas (por exemplo de reparações) que exigiriam

baixo custo de investimento por pessoa, e que seriam uma solução desejável que,

335 CEA/UEM/IICM. Relatório Provisório sobre o Desemprego no Maputo, Maputo: UEM/CEA, 1978, p.41. 336 Ibidem, p.41.

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simultaneamente, contribuiria para estabilizar os operários -camponeses nas áreas rurais.337”

A principal fraqueza deste estudo é que os seus autores procuraram cobrir temas

bastante distintos (desemprego rural, desemprego urbano, fluxo para as cidades, o sub-

emprego, a questão do gênero no desemprego urbano etc), num pequeno estudo que logo a

partida foi definido como “provisório”. Adicionando ainda o facto de que em algumas

situações, estes objectivos estavam fracamente conectados com a principal questão que era o

fenómeno do desemprego na cidade de Maputo. Por exemplo, há uma discussão detalhada

sobre os efeitos da crise da economia colonial e da restrição do fluxo mineiro para a África do

Sul com factores do aumento do desemprego que originou um fluxo maior de desempregados,

para a cidade de Maputo; no entanto, não se estabelece nenhuma conexão com o pós-

independência e o projecto de desenvolvimento socialista da FRELIMO. As causas do

desemprego continuam deste modo a serem vistas como ligadas a causas “externas” e não

também advindas dos efeitos das políticas “domésticas” do governo pós-colonial. E é Marc

Wuyts, um dos principais investigadores deste projecto, quem acaba confessando que, “ o

projecto sobre o Desemprego, em contraste com “O Mineiro Moçambicano”, deu uma

ilustração clara do que acontece na ausência de uma forte coordenação da pesquisa e do

controlo de qualidade baseada numa bem definida pergunta de partida”.338

O processo de pesquisa, ainda de acordo com este autor, tinha sido de facto mais

“democrático”, mas que também significou que diferentes grupos fizessem coisas bastante

distintas, com pouco ou mesmo nenhum controle de qualidade. De facto, algumas dessas

notas só seriam agrupadas e sistematizadas num relatório de pesquisa depois do retorno de

Ruth First ao CEA em 1979 quando “ela insistiu que a pesquisa que tinha sido feita não

deveria ser deixada inacabada339.”

4.2 Os Anos de Alvoroço na Universidade e no CEA: 1979 – 1984

Uma análise crítica deste relatório não pode deixar, no entanto, de procurar

compreender o contexto social e político no qual este conhecimento foi produzido. Como

podemos notar, no período da realização do projecto sobre o desemprego, em 1978, o CEA

337 Ibidem, p.42. 338 Entrevista, julho, 2009. 339 Entrevista com Marc Wuyts, julho, 2009.

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começou a experimentar momentos de grandes incertezas, e posições divergentes sobre que

direcção tomar, que tipo de pesquisa realizar, prioridades de investigação, quem incluir, etc.;

mas também devido a uma mais ampla política universitária preconizada pelo partido/Estado,

particularmente ligadas também a discussões à volta de introdução de um novo programa de

ensino nas Ciências Sociais em geral e na História em particular. Estas mudanças foram o

corolário da transformação da FRELIMO em 1977, num auto-proclamado “partido marxista-

leninista”, o que se reflectiu numa maior radicalização da política em todos sectores da

sociedade.

O partido/Estado procurou assim, ser um “instrumento forte, que orientasse o povo na

construção da nova sociedade.340” Segundo, Samora Machel, o Estado foi visto como um

instrumento do partido. Um partido que tinha por função “dirigir o conjunto da sociedade,

estabelecer as grandes linhas de orientação e definir as prioridades e pronunciar-se sobre as

principais tarefas341”. No âmbito da “estruturação” do Partido, foi criada em 1980 o “Comité

do Circulo do Partido” da UEM, que aspirou “criar as bases para a implementação do partido

naquele centro educacional e assim garantir que a linha política da FRELIMO assumisse o

papel dirigente na concepção e execução das tarefas assumidas pela Universidade”342. Como

referiu, Jorge Rebelo, o secretário do Comité Central para o Trabalho Ideológico, “a nossa

universidade ainda está muito longe de ser aquilo que queremos (…) apenas uma pequena

percentagem dos seus alunos serem operários e camponeses ou seus filhos”343.

Logo cedo, o partido vincou a necessidade de uma ligação mais directa da

universidade com os problemas reais do país. Moçambique vivia na altura também o

recrudescimento da guerra contra a RENAMO, as agressões militares perpetradas pelo regime

de Ian Smith, com ataques bombistas em plena cidade de Maputo344 aliada a uma progressiva

crise econômica e social em todos sectores produtivos da sociedade. Estava-se assim num

contexto de também grande crise de legitimação do poder político.

Isto levou a uma maior radicalização da FRELIMO, na medida em que se tornava

340 Jornal NOTÍCIAS, 10/05/78. 341 Jornal NOTÍCIAS, Samora Machel em Entrevista a Informação Moçambicana, 2/1/79. 342 Intervenção do Reitor da UEM, Fernando Ganhão numa Reunião na Universidade com professores e

estudantes sobre “o ano da estruturação do Partido” e da criação do Comité do Partido na Universidade, NOTÍCIAS, 17/04/78, p.4.

343 Jornal Noticias, 27/12/80. 344 O Jornal NOTÍCIAS, referia no dia 27/7/78, uma explosão na cidade de Maputo ferindo 50 pessoas, alegando

tratar-se de um “acto de subversão rodesiana e sul-africana”.

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cada vez mais dominante ideologicamente e coerciva no sentido de “disciplinar” as vozes

discordantes e de tentar dar um novo impulso na economia do país. Nota-se um aumento de

formas coercitivas, como a introdução da “operação produção345”, dos campos de

“reeducação” na província do Niassa, a instituição da lei dos crimes contra a “segurança do

povo e do Estado Popular346”, a partir da qual foi constituído o “Tribunal Militar

Revolucionário347”.

Nota-se nesta fase também um incremento da “vigilância popular”, nos bairros

residências, aldeias comunais, centro de produção, escolas, etc., contra as agressões militares

da Rodésia e África do Sul, mas também contra os “inimigos internos da revolução

moçambicana”. Estávamos assim em presença, parafraseando Michel Foucault, da produção

de “mecanismos de segurança”, para o controle da população. Para este autor, a primeira

dessas tecnologias disciplinares seria a “vigilância”, quer dizer, a constante observação

através da ordenação de “corpos” no espaço e tempo.

A outra forma de “vigilância” esteve ligada aos procedimentos classificatórios, como a

recolha sistemática de informação sobre os indivíduos, como por exemplo a realização de

censos populacionais.348 Assim para Michel Foucault, a política não estaria preocupada

meramente em apresentar questões sobre a guerra ou paz ou de organizar o enriquecimento

material da sociedade; ela iria adicionalmente levar em conta o bem-estar físico, saúde e

longevidade da população349. Podemos surpreender no discurso do Ministro da Segurança de

então (valendo a pena citá-lo demoradamente), ecos da teoria analítica deste pensador francês,

345 Segundo Lavínia Gasperini, “foi concebida para livrar as cidades dos chamados improdutivos, que eram

apresentados como marginais e delinquentes”. Nesta categoria, segundo a autora, “foram incluídos todos os que não puderam demonstrar, através de um documento ou contracto de trabalho, que tinham um emprego”. Afirma ainda Gasperini, “depois de um breve período em que a população improdutiva foi convidada a apresentar-se de livre vontade, de modo a ser transferida para as zonas rurais, começou a fase compulsiva. Foram feitas rusgas nas ruas e perseguições sistemáticas nas casas, sobretudo a noite. Ver, GASPERINI, Lavínia. Educação e Desenvolvimento Rural, Roma : Lavoro/ISCOS, 1989, p.77.

346 Todo este cenário de crise levou a que se fizessem grandes discussões dentro do CEA, nem sempre consensuais, como tinha sido por exemplo a questão dos fuzilamentos. Alguns eram a favor de uma maior radicalização do poder, enquanto uma maioria estava contra.

347 Somente no mês de Abril de 1979, foram executados por fuzilamento 20 pessoas acusadas de crimes de “alta traição, mercenarismo, espionagem, atentado e terrorismo”. Ver Jornal NOTÍCIAS de 1/4/79 e de 14/4/79.

348 Moçambique inicia em 1980 o seu primeiro Censo nacional da população no pós -independência.

349 FOUCAULT, Michel. Lecture 17 March 1976”, Society Must Be Defended: Lectures at the Collège de France, 1975–76 , New York: Picador, 2003, p. 239–40.

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Há uma certa semelhança entre o nosso trabalho e a medicina. A medicina actua sobre as doenças do corpo; nós actuamos sobre as doenças que o inimigo introduz na nossa sociedade. Como a medicina, há um trabalho preventivo, profiláctico, curativo; há também por vezes necessidade de operar um órgão doente, irremediavelmente doente, perdido, e que não deve ficar em contacto com as partes sãs do corpo.350

A crise atingia também de forma profunda o sector da educação. Houve falta de

recursos humanos qualificados, apesar de na altura muitas destas dificuldades terem sido

minimizadas com a vinda de professores cooperantes. Moçambique ressentia-se, no sector da

educação, do seu legado colonial. Foi preciso então, na óptica do poder, medidas austeras para

reverter essa situação. Para justificar a existência da universidade, o governo adoptou uma

abordagem utilitária351.

Os estudantes foram formados naquilo que o governo considerava serem as

necessidades prementes do país e as áreas cruciais para o desenvolvimento econômico

socialista. Cursos que eram considerados de menor prioridade e que tinham poucos alunos

foram fechados tais como, Biologia, Química, Física, Geologia, Matemática, Geografia,

Línguas Modernas, Direito352, etc. Estava-se num contexto, em que “as carreiras e interesses

individuais estavam completamente subordinados aos interesses nacionais353.” Esta crise teve

o seu efeito na interrupção de todos os cursos da área de Ciências Sociais e Humanas durante

um período de cerca de 10 anos354.” Segundo o Reitor, Fernando Ganhão,

Encerrei a Faculdade de Letras e Ciências, por volta do não 1978, para os seus recursos irem formar a Faculdade de Educação, para formação de professores em vários escalões. Havia o curso de formação de

350 Jacinto Veloso, Ex-Ministro da Segurança em entrevista por ocasião do 5º aniversário da SNASP, Jornal

NOTÍCIAS, 11/10/80. 351 BEVERWIJK, Jasmin. 2005, op.cit. 352 Foi encerrada em 1983, Segundo Samora Machel, “até que a qualidade de formação aí ministrada possa ser

substancialmente melhorada. Samora questionou ainda, “a formação aí dada, e o nível político e profissional de um grande número de quadros saídos da UEM. Ver, Jornal NOTÍCIAS, 23/3/83.

353 MÁRIO, M; FRY, P.; Chilundo, A. Higher Education in Mozambique, Oxford: James Curry, 2003. 354 LOFORTE, Ana; MATE, Alexandre. “As Ciências Sociais em Moçambique”. Mimeo. Maio,p.3, 1993.

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professores de Historia na faculdade de educação.355.

Alguns dos pesquisadores tiveram que abandonar o seu trabalho no CEA356 para

ocupar cargos de docência na Faculdade de Educação, como também na Faculdade de

Marxismo-Leninismo, criada em 1981 pelo partido FRELIMO, que tinha como objectivo

“assegurar a formação ideológica dos estudantes357. Na altura, havia uma disciplina intitulada

“Materialismo Histórico e Dialéctico (MHD)358” que também era obrigatória para os alunos

de todas as faculdades da UEM e que eram ministradas por professores vindos da Europa do

Leste e maioritariamente da então “Republica Democrática Alemã” (RDA). Muito cedo,

começaram a surgir conflitos entre estes docentes e estudantes. Na óptica dos estudantes, os

docentes, na sua maioria cooperantes vindo dos países do Leste, ensinavam um “marxismo

dogmático e catecista” onde não era permitido nenhum tipo de debate aberto. E de facto,

podemos também encontrar este tipo de “animosidades” com “essa gente da RDA359” com os

pesquisadores do CEA.

Os estudantes de MHD reivindicaram um marxismo que levasse em conta as

dinâmicas do contexto moçambicano e não algo estanque, “congelado” e pré-estabelecido

como afirmavam ser os conteúdos programáticos das disciplinas do curso, acabando por

“baptizar” esta disciplina de “materialismo histérico e diabólico”360. Em Outubro do mesmo

ano, o director da Faculdade de Marxismo-Leninismo, Luís de Brito (um dos investigadores-

fundadores do CEA, e o interlocutor do CEA com o governo na altura da preparação do

“projecto sobre o Desemprego) pediu demissão por impossibilidade de enfrentar a resistência

que foi oposta, sobretudo por parte dos membros da FRELIMO na Universidade e pelos

355 Entrevista com Fernando Ganhão. 356 Muitos desses quadros só seriam resgatados ao Centro com a fundação no CEA em 1980, pelo Aquino de

Bragança e Jacques Depelchin da Oficina de História, do CEA. 357 MENESES, Paula. “A Questão da Universidade Pública em Moçambique e o desafio da pluralidade de

saberes”. In Lusofonia em África – História, Democracia e Integração Africana, CODESRIA,pp.44-66, 2005. 358 Em Cuba, a importância do Marxismo-leninismo também esteve reflectida na introdução num Currículo

reorganizado da Universidade de Havana (e outras), onde cada estudante deveria fazer 1 ano de um curso intitulado “Materialismo Dialéctico”, independentemente do que ele estava estudando. Vide, HOLLANDER, Paul. Research on Marxist Societies: The relationship between Theory and Practice. Annual Review of Sociology, 1982, p.319-351.

359 Entrevista com Valdemir Zamparoni, setembro, 2011. 360 Entrevistas realizadas aos seguintes investigadores: Isabel Casimiro, João Paulo Borges Coelho e Teresa Cruz

e Silva.

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cooperantes dos países socialistas na tentativa de levar o ensino do marxismo-leninismo á

especificidade do desenvolvimento da sociedade moçambicana.

A demissão do director da faculdade, a falta de clareza e de unidade em relação à linha

a ser adoptada neste ensino e a sua impopularidade no seio dos estudantes levou a FRELIMO

a suspender e a extinguir a Faculdade de Marxismo-Leninismo em Fevereiro de 1983361.

Segundo Lavínia Gasperini, o director da faculdade, que tinha criticado o ensino de um

marxismo “congelado”, foi em primeiro lugar designado para frequentar um curso de

formação sobre os temas do marxismo. O curso foi realizado pelos docentes vindo dos países

do leste, que anteriormente o director de faculdade tinha criticado.

Na sequência da sua recusa em seguir o curso, que devia ter um carácter de

“reeducação ideológica”, a “Comissão de Controlo do Comité do Círculo da FRELIMO na

Universidade” levantou um processo disciplinar contra o director da faculdade a 9 de Julho de

1983. Ainda segundo as palavras de Gasperini, a 17 de Julho, o Ministério do Interior foi

buscá-lo a casa e, sob a cobertura da ilegalidade permitida pela “Operação Produção”, foi

deportado para o Niassa para trabalhar no campo de uma empresa agrícola estatal362.

No mesmo período houve também um debate intenso em relação à questão “se a

Antropologia poderia libertar-se do seu passado colonial ou não”363, como também ao seu

papel no desenvolvimento socialista de Moçambique. Esta discussão ganha corpo com a

realização em Março de 1982 do “1º Seminário Interdisciplinar de Antropologia”, organizado

pelo Departamento de Arqueologia e Antropologia da UEM, onde Jacques Depelchin,

investigador do CEA e um dos fundadores da Oficina de História, tece grande críticas à

disciplina de Antropologia, como também da Antropologia Marxista então em voga,

principalmente em França. Para Depelchin, a disciplina não conseguiu superar a sua herança

colonial, daí que seria inadequada para reflectir sobre a mudança social, principalmente

daquele fruto da experiência da luta armada levada a cabo pela FRELIMO. Como afirmou

esse autor,

Para alguns, uma Antropologia marxista, engajada politicamente seria

361 GASPERINI, Lavínia. Educação e Desenvolvimento Rural, Roma: Lavoro/ISCOS, 1989, p77. 362 GASPERINI, op.cit, 1989, p78. 363 Depoimento de João Paulo Borges Coelho na Conferência em memória de Ruth First, Maputo, 17/08/2007.

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uma alternativa. Existem fortes razões para duvidar disso, quando se coloca a questão de saber se esta Antropologia marxista seria capaz de frutificar a herança metodológica da luta armada, […] o que dá uma aparência de aceitabilidade à Antropologia marxista como método e técnica de investigação científica não vem do que é herdado da Antropologia, mas do que é herdado do marxismo364.

E a sentença de Jacques Depelchin (1987), em relação à Antropologia foi peremptória:

“proceder à sua destruição ao mesmo tempo que se constrói uma nova ciência de investigação

que tira os princípios metodológicos do marxismo temperado na forja da revolução

moçambicana”365. Ana Loforte do Departamento de Antropologia, nesse “1º seminário

interdisciplinar de Antropologia”, contra-argumentava, que no caso moçambicano,

A política de assimilação adoptada pelo colonialismo português, tornou desnecessária a utilização da Antropologia nas tarefas administrativas366 e que por outro lado, o colonialismo português nunca encorajou a vinda de antropólogos portugueses para estudar os usos e costumes dos povos dominados367.

Esta rejeição do papel da Antropologia no processo do desenvolvimento socialista de

Moçambique poderia estar ligada, na visão de João Paulo Borges Coelho, a uma questão de

diferentes escolas de pensamento. Como afirmou este investigador,

Havia uma hostilidade acadêmica entre o pessoal do CEA – 364 DEPELCHIN, Jacques, Antropologia e História Africana à luz da História da Frelimo, 1º SEMINÁRIO

INTERDISCIPLINAR DE ANTROPOLOGIA, Maputo: Departamento de Antropologia/UE, Março de 1987, p.49.

365 DEPELCHIN, 1987, op.cit, p.52. 366 Loforte, Ana, “Trabalhos realizados no âmbito da Antropologia em Moçambique”, 1º SEMINÁRIO

INTERDISCIPLINAR DE ANTROPOLOGIA, Maputo: Departamento de Antropologia/UEM, Março de 1987, pp.61

367 LOFORTE, 1987, op.cit, p.62.

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maioritariamente anglo-saxónico, sul-africanos, ingleses, um outro canadiano e americano, mas sobretudo nenhum francês. No fundo eles estavam preocupados em localizar elementos de colonialidade neste debate. Era o período da Antropologia marxista de Claude Meillassoux, Pierre-Philipe Rey, etc.368

No entanto, Luís de Brito defendeu que todo o debate à volta da questão da

Antropologia marxista francesa, “não era uma questão disciplinar, mas uma questão de

comunicação entre duas culturas, a francesa e a inglesa369”. Ainda segundo Brito,

O Geffray quando chega ao Departamento de Antropologia da UEM, tenta uma aproximação com o CEA e é muito mal recebido. E não é por ter um “background” de Antropologia, é simplesmente uma diferença de cultura. É que o Centro está dominado pelos anglófonos e não se entendem. A comunicação é muito difícil e é mais fácil repelir370.

Houve de facto um problema de “comunicação”, como Luís de Brito refere, contudo

não podemos deixar de surpreender divergências também em relação aos métodos analíticos a

serem usados para olhar a realidade social moçambicana. Encontrávamos, por exemplo, no

CEA, uma ênfase na economia política e nos processos de transformação da produção, onde a

problemática era construída a partir de uma análise materialista da sociedade, dando pouca

atenção aos estudos culturais e antropológicos das institucionais locais no contexto

moçambicano.

Uma abordagem que de certa forma esteve mais presente nos antropólogos franceses

como Christian Geffray e sua análise das dinâmicas internas (fundamentalmente culturais) da

guerra civil em Moçambique. Um foco de análise, que tinha sido subestimado na pesquisa do

CEA. Marc Wuyts corrobora este argumento, “nós não demos muita atenção às questões da

autoridade tradicional ou relações de parentesco que talvez nos deveríamos ter dado”371.

368 Entrevista com o autor, agosto, 2007. 369 Entrevista com o autor, agosto, 2007. 370 Entrevista com Luís de Brito, agosto, 2007. 371 Entrevista com Marc Wuyts, julho, 2009.

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Na mesma senda a investigadora do CEA, Judith Head, afirmou, “achávamos que era

uma espécie de luxo querer fazer tudo e também focalizar nos aspectos culturais. O nosso

foco era grandemente na produção e não na cultura. Foi uma questão de escolha”372. Este foco

do CEA na “produção” e na economia política de Moçambique, acabou tornando-se no

principal elemento da crítica por parte de outros investigadores não pertencentes ao Centro373.

Segundo Aurélio Rocha, na altura professor e investigador do Departamento de História da

UEM,

Uma coisa de facto levou a que as relações não fossem as melhores. Não porque estivéssemos em conflito, mas de facto estávamos um bocadinho de costas voltadas. Por uma razão que tem a ver com o facto de que apesar de acharmos, por um lado, que o CEA desempenhava esse papel importante nos estudos de desenvolvimento; por outro lado, achávamos que os estudos desenvolvidos pelo CEA, tinham uma carga ideológica muito forte, por influência do partido e naturalmente do governo. Aqueles estudos apareciam muitas vezes como estudos de encomenda e nem sempre reflectiam aquilo que era a realidade374.

Foi assim neste contexto de intensificação da crise em todos os sectores da sociedade

moçambicana e da introdução de novas políticas universitárias, que grande parte dos projectos

de pesquisa do Centro se desenvolveu, começando pelo “Mineiro Moçambicano”, passando

pelo “Projecto sobre o Desemprego”, até a criação do “Curso de Pós-Graduação em

Desenvolvimento”, com o regresso definitivo de Ruth First ao Centro. Neste intervalo de

tempo, o CEA desempenhou um papel fulcral na criação e preservação de um espaço de

ensino e investigação em Ciências Sociais. De facto, durante o período de 1978 -82, o CEA

372 Entrevista com Judith Head, agosto, 2007. 373 Como veremos posteriormente, nos finais dos anos 1980, o antropólogo francês, Christian Geffray, iria

publicar um artigo onde tecia duras criticas ao trabalho do CEA, acusando-o de ser uma espécie de braço intelectual do poder, resumindo-se em “caucionar” cientificamente a ideologia do partido. Vide, GEFFRAY, Christian. Fragments dun discours du pouvoir (1975-1985): Dun bon usage d’une meconnaissance scientifique. Politique Africaine nº29, 1988.

374 Entrevista com Aurélio Rocha, Setembro, 2007. Esta posição crítica de Rocha em relação ao trabalho científico do CEA será discutida posteriormente.

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tinha se tornado na única instituição de pesquisa e ensino em Ciências Sociais375.

375 Vide, LOFORTE, Ana; Mate, Alexandre. As Ciências Sociais em Moçambique. Mimeo. Maio, p.3, 1993.

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5. A DUPLA CONTRIBUIÇÃO DO CURSO DE DESENVOLVIMENTO: PRODUÇÃO DE

CONHECIMENTO POLITICAMENTE ENGAJADO

5.1 O ensino como um acto de investigação

Ruth First regressou definitivamente a Moçambique em 1979 para dirigir o trabalho

científico do CEA e se deparou com a ausência quase total de um sistema de ensino em

Ciências Sociais. O único curso que oferecia o nível de licenciatura na UEM era o de

Economia. Mais uma vez o país ressentia-se das condições estruturais herdadas do

colonialismo português. Um sistema de ensino bastante fraco e onde a componente de

pesquisa era praticamente inexistente ou concebido como algo externo à universidade. Este

cenário já tinha sido testemunhado por Ruth First quando da sua primeira visita ao país, em

1977, para dirigir “O Mineiro Moçambicano”.

No final deste projecto tinha ficado evidentes as limitações em termos de experiencia

de pesquisa empírica e na colecta e análise de dados nos poucos estudantes moçambicanos

universitários. De facto, estes tinham tido um papel secundário no projecto, nomeadamente na

análise e redacção do texto. A pesquisa para “O Mineiro Moçambicano” mostrou, por outro

lado, que o factor chave para a libertação econômica de Moçambique em relação ao capital

sul-africano residia também numa reflexão crítica - através de uma relação orgânica entre

ensino e pesquisa - sobre as estratégicas de desenvolvimento socialista da FRELIMO

(particularmente na questão do desenvolvimento rural e da socialização do campo), no seu

propósito mais amplo de quebrar com a dependência econômica sul-africana. Marc Wuyts

sintetizou estes dois aspectos quando afirmou que,

A inspiração para o CD - e particularmente, para a sua dimensão de pesquisa – veio principalmente daquilo que nós aprendemos com a experiência do Mineiro Moçambicano – não somente acerca do conteúdo, mas também do método376.

376 Entrevista com Marc Wuyts, julho 2009.

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Podemos então encontrar dois grandes leitmotivs para a criação deste curso. Um

primeiro ligado à tentativa de colmatar uma lacuna estrutural ligada à questão das deficiências

do sistema de ensino do período colonial, que em nada tinha contribuído para a educação dos

moçambicanos, e por outra, contribuir através da introdução de uma pesquisa empírica

intimamente ligada ao ensino e que procurava contribuir na solução dos problemas candentes

para o desenvolvimento socialista de Moçambique.

O primeiro esboço do projecto foi desenhado por Ruth First, Marc Wuyts e David

Wield (em consulta com Aquino de Bragança), logo depois da finalização do Mineiro

Moçambicano. O curso foi inicialmente concebido para auferir o grau de Licenciatura,

todavia se verificou que não havia candidatos suficientes, com o nível de bacharelato para

preencher as vagas disponíveis. Na óptica de Marc Wuyts esta fraca aderência se deveu à

herança colonial que tinha sido extremamente limitada para os moçambicanos negros.

Luís de Brito traz-nos uma outra leitura para a fraca aderência de candidatos, por

exemplo, da Faculdade de Letras, que nessa altura tinha apenas três cursos com o nível de

bacharelato: Linguística; Geografia e História. Uma vez que inicialmente o Curso de

Desenvolvimento (com 2 anos de duração) tinha sido concebido fundamentalmente para servir

como licenciatura para os graduados do bacharelato de História, foi então preciso que fosse

reconhecido pelos docentes do Departamento de História. Porém não foi o que aconteceu no

terreno. Segundo Luís de Brito, os docentes desta faculdade, “não viam com bons olhos” este

novo curso, uma vez que prevalecia na altura, a ideia de que o CEA possuía uma abordagem

demasiado economicista377. Previsivelmente a maioria destes docentes não participou no

Curso, com a única excepção do Carlos Serra que frequentou o primeiro (dois anos).

O que é certo é que o CEA também percebeu, não obstante todos estes obstáculos no

preenchimento das vagas, que havia no país muitos quadros que ocupavam posições

importantes nos vários sectores do governo ministeriais, bancos etc., e que não possuíam

formação universitária, mas estavam, no entanto, profundamente envolvidos na prática de

elaboração de políticas, incluindo também uma prática de reflexão acerca dessas políticas. O

CEA se viu na contingência de pensar então um novo modelo de ensino.

O “Curso de pós-graduação em Estudos de Desenvolvimento” deveria assim

congregar alunos de todos os sectores chaves do aparelho do Estado, quadros da

Universidade, ou exteriores a esta, seleccionados pela sua experiência e contribuição, quer

377 Entrevista com Luís de Brito, março 2010.

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real ou potencial, para a planificação do desenvolvimento e sem restrição em relação ao grau

de escolaridade. Os estudantes do Curso foram recrutados em vários sectores da sociedade,

desde os ministérios, governos provinciais, forças armadas, no partido FRELIMO, órgãos de

imprensa, repartições públicas, universidade, como também pesquisadores do próprio CEA. O

foco passou a ser então o de treinar quadros directamente envolvidos nas tarefas da

construção do socialismo em Moçambique.

Paralelamente a esta componente de ensino, que compreendeu a aquisição de

conhecimento sobre economia política, o curso tinha uma componente de pesquisa muito

forte. A pesquisa para o CEA não foi vista como uma empreendimento acadêmico, tendo

lugar somente em laboratórios, em círculos exclusivos da pesquisa. Pesquisa social, para os

membros do Centro, significava o estudo e análise da realidade social do país. Pesquisa

significou o estudo das condições da produção das machambas estatais mas também

familiares, nas cooperativas, dentro de unidades de produção industriais. Foi assim, uma

pesquisa orientada para a prática e análise marxista. Como afirmou Wuyts,

De uma forma geral, nós partilhamos uma simpatia básica com o projecto socialista da FRELIMO, mas nós também estávamos cépticos e profundamente preocupados em relação à estratégia e táctica que a FRELIMO estava seguindo para transformar a produção e trabalho no contexto da transição, particularmente (mas não somente) dentro da economia rural e sociedade. Nós sentimos que isso era importante, dada a ausência em qualquer lugar de esforços na pesquisa que procurassem questionar a natureza dessas políticas, uma vez que a pesquisa aplicada era definida como simplesmente de preencher os detalhes de algo já pré-estabelecido378.

Ruth First, considerava que a tarefa na luta de Moçambique – a construção de uma

“nova sociedade socialista” – requeria um programa e sistema educacional flexível e

“urgente”. Argumentava ainda que não havia tempo para se esperar 3 ou 5 anos para se

completar um grau acadêmico. Era necessário então que se proporcionasse novas formas de

entradas aceleradas para os níveis superiores de ensino e pesquisa. Este argumento estava

378 Entrevista com o autor, julho 2009.

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fortemente conectado com um outro desígnio da “educação revolucionária” da FRELIMO,

que era o de quebrar as velhas barreiras elitistas da educação herdada do período colonial.

Por outras palavras, mais do que um diploma acadêmico, este curso estava preocupado

em ter estudantes de várias disciplinas científicas e sectores profissionais, com grande

motivação política e aplicação “revolucionária” nos desafios da construção de uma sociedade

socialista. Era assim um curso que se propôs logo de inicio, interdisciplinar estruturado em

cada ano através de uma problemática colectivamente orientada, politicamente inspirada e

com um projecto de pesquisa altamente focalizado.

Assim, sob liderança de Ruth First379, o primeiro Curso de Desenvolvimento, com

duração de dois anos380, deu início nos princípios de 1979. No final do curso os estudantes

receberam um “Diploma de Graduação Superior em Estudos de Desenvolvimento”, que era

equivalente ao Grau de Licenciatura. Foi assim uma qualificação especializada, mais alta que

uma qualificação pré-universitária, que segundo o CEA, “em condições não-revolucionárias,

iria requerer o grau de Bacharelato381”.

O Curso foi ministrado em tempo parcial (cerca de 12 horas por semana durante e um

mês de trabalho de campo a tempo inteiro), com vista a permitir que os estudantes –

trabalhadores pudessem não só manter a sua actividade normal, como também melhorá-la

através dos conhecimentos adquiridos382.

5.2 Logo de inicio…Algumas Vozes Discordantes

Esta iniciativa do CEA, de certa forma arriscada, mas também controversa, não foi

totalmente consensual, criando assim grandes tensões, principalmente à volta da natureza do

diploma que se haveria de outorgar aos estudantes. De acordo com Marc Wuyts, “ o Reitor

queria um sistema de certificação a dois níveis: dando um grau de pós-graduação aos alunos

de nível de bacharelato enquanto os outros (sem nível superior) iriam somente receber um

379 Ruth First foi de facto “a máquina” deste projecto. Ela viria a dedicar toda a sua vida ao curso, desde a

coordenação de aspectos ligados a logística (garantir que houvesse cadeiras, carteiras, salas etc.) como também aos conteúdos curriculares do curso e direcção, análise e redacção dos relatórios de pesquisa.

380 Os cursos que se seguiram tiveram no entanto a duração de 1 ano, considerados mais intensivos. 381 Notes for the Rector of UEM concerning the Graduation Ceremony of the CEA and the meeting with students

enrolled for the 1981 Development Course. 28/03/81, 3pags. Mimeo, 1981. 382 UEM,CEA, Curso de Desenvolvimento, 1981., Maputo: CEA, Mimeo 1982.

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certificado de participação”.383 A ideia era assim que diferentes estudantes tivessem diplomas,

distintos de acordo com os seus antecedentes acadêmicos. Ruth First veementemente se opôs

a esta solução, argumentado que todos os estudantes teriam feito o mesmo curso e assim

deveriam ser tratados igualitariamente384.

Alguns pesquisadores, professores, estudantes e trabalhadores da universidade que não

concordavam com a ideia de um curso universitário onde se aceitava por exemplo, estudantes

com a 9ª classe. Consta também alguns estudantes universitários, se sentiam incomodados

com a presença desses estudantes. Como afirmou Yussuf Adam,

O Curso de Desenvolvimento era inovador no sentido de ir contra a mentalidade colonial portuguesa, que ainda hoje se manifesta aqui, de que só pode entrar para a universidade quem tem o sétimo ano. Os que tinham diploma naquela altura andaram zangadíssimos, diziam que havia pessoas com a quarta classe e que podiam ter um grau de mestrado. Havia já muitos estudantes da Universidade que tinham a Licenciatura, eles tinham essa visão de grau na formação385.

Devido a estas objecções, o “Curso” nunca foi integrado na estrutura de graus

acadêmicos da universidade. Segundo Manuel de Araújo, que na altura era director da

Faculdade de Letras falando sobre o relacionamento entre a sua faculdade e o CEA afirma,

(...)

Mas não pense que não houve discussões, zangas. Houve. Por exemplo, o Curso de Desenvolvimento não foi uma coisa pacífica, porque a faculdade de uma forma geral não concordavam com as metodologias (mais interactiva e participativa), que eram feitas. E como o CEA não podia conferir graus, achávamos que isso era uma estupidez, que devia estar ligada a faculdade para poder conferir graus. Essas discussões, no entanto, serviam para limar as arrestas,

383 Entrevista com o autor, Julho, 2009. 384 Entrevista com Marc Wuyts, Julho, 2009. 385 Entrevista a Yussuf Adam, Agosto de 2007.

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estudar as formas de avançar e, foi assim que se decidiu avançar com o projecto.386

E ainda Carlos Serra afirmou,

O grande problema deste certificado é que era um certificado de mérito, simbólico, era a ausência naquela altura de equivalência entre o que se fazia e a formação acadêmica, o que não era possível, porque as pessoas tinham diferentes graus acadêmicos; havia pessoas com o quinto ano, com a nona classe e pessoas com formação universitária387.

No final, esta questão da natureza do diploma a ser conferido aos estudantes, nunca

chegou a ser resolvido: os estudantes recebiam um diploma, em que o seu estatuto foi deixado

indefinido pelo sistema educacional moçambicano388.

5.3 Os Objectivos do Curso de Desenvolvimento

O Curso de Desenvolvimento esteve organizado à volta de problemas chaves da

economia e tinha três objectivos principais: (1) Formação e preparação dos estudantes para o

estudo e análise da realidade sócio-econômica de Moçambique; (2) Permitir aos estudantes

uma melhor e mais profunda ligação entre a teoria e a pratica. Com este propósito, os

estudantes foram afectos, em conjunto com as estruturas competentes a projectos concretos de

investigação, seleccionados pela sua importância para a planificação do desenvolvimento do

386 Entrevista com Manuel de Araújo, setembro, 2007. 387 Entrevista com Carlos Serra, setembro, 2007. 388 Apesar desta situação de “indefinição” na educação moçambicana, este curso, devido a sua alta qualidade, foi

reconhecido internacionalmente, havendo até casos de estudantes, que tinham o nível de Bacharelato (diferentemente do caso brasileiro, em Moçambique, este grau é inferior a Licenciatura) e que subsequentemente usaram o diploma do CEA, para conseguirem lugar nos cursos de Mestrado e Doutoramento, no exterior.

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país; (3) Permitir um reforço da relação existente entre as actividades da Universidade e as

necessidades das estruturas do Partido e do Governo389.

Para além destes objectivos gerais do Curso, o CEA tinha quatro outros objectivos de

formação que consistiam em colocar a Universidade ao serviço da sociedade como também

das estruturas do Partido e do Governo. Visava assim:

(a) Treinar quadros seleccionados por aquelas estruturas para trabalharem em

problemas relacionados com o desenvolvimento social e econômico de Moçambique;

(b) Organizar projectos de investigação sobre questões relevantes para a estratégia do

desenvolvimento, com particular destaque para a produção;

(c) Aprofundar e pormenorizar o estudo sobre as investigações referidas no ponto

anterior, de modo a possibilitar a sua utilização pelas estruturas do Partido e do Governo, em

particular as instituições nacionais para a educação e formação de quadros incluindo a

Universidade;

(d) Em cooperação com estas estruturas, divulgar os resultados da investigação, de

modo a permitir uma consciência política sobre a realidade social moçambicana, bem como

das perspectivas de desenvolvimento durante a transição para o socialismo.

O “Curso” teve por outro lado, como um dos grandes propósitos epistémicos,

contrabalançar a quase completa falta de conhecimento e interesse na pesquisa teórica e

empírica sobre África em geral e a África Austral em particular, que prevalecia naquele

tempo na universidade e de uma forma geral, entre os intelectuais moçambicanos.

Moçambique era tratado como uma “ilha” em África. Como observou Marc Wuyts,

A maioria dos intelectuais estavam bem familiarizados com o trabalho de marxistas franceses (Althusser e Poulantzas eram particularmente os favoritos), mas não tinham lido quase nada de trabalhos acadêmicos sobre África (Austral) - tanto de dentro de África como também na literatura em geral. A maior parte do trabalho do “Curso” do CEA procurava corrigir este hiato – politicamente, economicamente e culturalmente390.

389 Ibid. 390 Entrevista com Marc Wuyts, julho, 2009.

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Este projecto de ensino e pesquisa consistiu basicamente em aulas e seminários,

trabalhos práticos e projectos de investigação que constituíam a formação principal dos

estudantes. Era realizado em tempo parcial como forma de assegurar aos estudantes que

continuassem com as suas actividades profissionais e, desta forma, garantir-se a sua ligação

com os seus locais de trabalho. Ainda segundo a direcção do CEA, este não deveria exceder o

número de 35 estudantes391. A selecção destes estava a cargo do director do Centro, da

Directora de Investigação do Centro, de dois elementos do corpo docente e de um elemento

das estruturas do partido na UEM. O Comité de selecção enviava posteriormente a lista dos

candidatos propostos para aprovação do Reitor da Universidade.

5.4 Os Métodos do Curso de Desenvolvimento

No que se refere aos métodos de trabalho do Curso, o CEA propôs conduzi-lo em

primeiro lugar, dentro de uma perspectiva de análise marxista e em segundo lugar através de

métodos colectivos de trabalho. Esta análise marxista da realidade social teve três

implicações:

1 - Pautou-se por uma “concepção materialista da sociedade” e, assim, se afastou da

“tradicional divisão burguesa das Ciências Sociais”. Esta posição significava que a teoria e a

análise social eram instrumentos de contestação no espaço da academia na Universidade. E é

neste espaço de conflito de posições teóricas que o CDse constituiu como um curso

pluridisciplinar onde se mesclavam disciplinas como Economia Politica, História, Estatística,

Sociologia, etc.

No Curso de Desenvolvimento de 1981 encontrávamos disciplinas como, “Economia

Politica de Moçambique”, “Economia Mundial”, “Métodos Empíricos I”, e “Métodos

Empíricos II”. No segundo semestre, “A transição para o socialismo”, “Classe e Estado em

África”, “África Austral” e “Métodos Quantitativos III”. Duas das seis disciplinas abordavam

a situação moçambicana, no período colonial (Economia Política de Moçambique) e nos

desafios do pós-independência (A transição para o socialismo). Esta última disciplina dava

mais ênfase ao problema da transformação, as estratégias de desenvolvimento socialista

391 UEM,CEA, Curso de Desenvolvimento, 1981. Maputo: CEA, Mimeo, 1981, p.5

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particularmente nas relações entre a agricultura a indústria pesada e a indústria ligeira. Eram

também discutidos os problemas de investimento e planificação. Neste sentido, era um curso

que pretendia responder aos anseios do Estado Moçambique dirigido pelo partido FRELIMO

na consolidação do desenvolvimento socialista em Moçambique.

2 – O segundo método de trabalho estava relacionado com a ênfase na pesquisa

colectiva, mais do que em projectos individuais. O ensino e formação dos estudantes eram

realizados através da execução dos projectos colectivos discutidos na sala de aula e que

serviam como base para a teorização dos problemas gerais do desenvolvimento do país. Esta

forma de organização era materializada através de um “regime de seminários de estudo” que

incentivava a participação activa dos estudantes na preparação e execução dos projectos de

investigação. Incluiu um mês, a tempo inteiro, de trabalho de campo, que era complementado

com aulas e seminários durante um período do dia. O primeiro semestre foi preenchido com

aulas e seminários, onde os estudantes preparavam o projecto de pesquisa que iria ter lugar

nas “actividades de Julho392”, onde todos os estudantes da Universidade estavam envolvidos.

O segundo semestre era passado a analisar os dados da pesquisa com os estudantes e a

elaboração do Relatório.

O terceiro e último método do Curso de Desenvolvimento pressupunha que “a

selecção das áreas de investigação teria que obedecer às prioridades da planificação do

desenvolvimento moçambicano definida pelo Partido FRELIMO393”. Como afirmou o CEA,

“será dado especial ênfase aos problemas da transformação rural e industrial e as necessárias

ligações entre agricultura e a indústria na presente fase de transição socialista em

Moçambique394” Como se pode depreender, as prioridades da pesquisa social em

Moçambique e mais particularmente as prioridades do Curso de Desenvolvimento estavam

intimamente ligadas ou por outra eram desenhadas a partir das prioridades definidas a nível

político395.

392 Era uma jornada nacional de produção onde estudantes e trabalhadores da universidade, durante todo o mês

de Julho, iam trabalhar em vários domínios da sociedade como forma de proporcionar um melhor conhecimento das realidades e necessidades do país, naquela fase de reconstrução nacional. Por outro lado, estas atividades pretendiam, de acordo com a Frelimo, combater o espírito elitista e alheamento da universidade em relação aos diversos tipos de trabalho prático.

393 UEM,CEA, Curso de Desenvolvimento, 1981. Documento de apresentação do Curso, Maputo: CEA, Mimeo, 1981, p.4.

394 Ibidem,p..4. 395 Este tema será discutido em pormenor no tema sobre o “engajamento crítico do trabalho intelectual do CEA”.

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5.5 A Crítica e Auto-Crítica no Curso de Desenvolvimento

Neste Curso foi sempre assegurado um espaço de crítica e debate colectivo, onde se

discutiam de forma aberta aspectos relacionados com a conceitualização do curso, conteúdos,

disciplinas, horários, avaliações, etc. Estes encontros regulares serviram como um momento

de avaliação crítica do Curso,” onde o pessoal docente era solicitado a participar na discussão

e responder aos pontos levantados pelos estudantes. Como afirmou o economista

moçambicano, Dipac Jaiantilal, estudante do Curso de Desenvolvimento de 1982,

Era dos pouco cursos multidisciplinares. Nós discutíamos os temas todos em conjunto, de uma forma aberta e crítica, com professores, alunos e outras pessoas interessadas. Eram pessoas das mais diversas origens, havia antropólogos, economistas, sociólogos, cientistas políticos, jornalistas, juristas, enfim uma grande diversidade e discutíamos abertamente, colectivamente396.

Por exemplo, na “sessão de crítica e autocrítica397” de 5 de Junho de 1981, os

estudantes levantaram vários pontos críticos do curso, dos quais destacamos: (1)“contradição

entre o tempo disponível e o volume de matéria dada” e afirmavam na mesma senda que o

curso era “bastante intensivo”; (2)“a não uniformização dos conceitos”; (3)“atraso na

distribuição dos textos”; (4)“falta de ligação entre o curso e os projectos de investigação398”.

Em relação ao ponto (1), o CEA replicou que se “tratava de um curso intensivo,

destinado ao nível de pós-graduação” e que assim, requeria “uma aplicação considerável por

parte do aluno, bem como uma prévia e contínua preparação fora da “sala de aula”. No que

concerne ao ponto (2), O CEA, responde ipsis verbis: “esta crítica não cita exemplos, o que

torna impossível confrontá-la. A base da nossa preparação e ensino colectivo é a utilização de

análises comuns do trabalho, o que define os conceitos que utilizamos.399” Em relação ao

396 Entrevista com Jaiantilal Dipac, agosto, 2007. 397 UEM/CEA, Curso de Desenvolvimento de 1981, op.cit. 398 UEM/CEA, Curso de Desenvolvimento de 1981, op.ci.. 399 Ibidem,pp.3.

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ponto (4), os mentores do Curso contra-argumentaram: “não se pode fazer investigação sem

conceitualizações teóricas e esta base teórica deverá ser dada inicialmente. Tanto as aulas

como os textos foram seleccionados pela sua relevância para elaboração da investigação.400”

Houve, no entanto, um tema que acabou tendo grande destaque no debate e que estava

intimamente relacionado com a abordagem teórico-metodológica que o Curso de

Desenvolvimento deveria privilegiar. Esta questão viria a ser enfatizada neste encontro, como

consequência de duas grandes críticas feitas pelos estudantes de que o Curso tinha “a

tendência para sobrevalorizar aspectos econômicos” como também a “ ausência de aspectos

culturais401”. Este era um tema que tinha sido também aludido por outros investigadores na

universidade e que não estavam envolvidos no curso, como por exemplo, António Sopa, Ana

Loforte, durante as sessões de entrevistas por mim realizados; mas também iria ser a grande

crítica de Christian Geffray (1988) no seu artigo sobre o trabalho científico do CEA402.

Os estudantes tinham de facto tocado num ponto sensível que estava ligado a um dos

principais objectivos do Curso de Desenvolvimento, que era o de contribuir para a estratégia

de desenvolvimento socialista da FRELIMO. É assim que o CEA logo de seguida contestou,

afirmando que se tratava, “apesar de tudo, duma crítica burguesa ao Marxismo de que o

mesmo sobrevaloriza a economia403.” Todavia, em relação à questão da provável exclusão da

cultura nos programas, o CEA não poderia ter sido mais evasivo: “Gostaríamos de ter mais

especificações quanto a “aspectos culturais404”

Para os professores do Curso de Desenvolvimento, como podemos notar, “questões

culturais” pareciam ser algo “luxuoso405” face aos desafios do presente, que seguindo estes,

implicava a escolha de um modelo teórico que privilegiasse questões ligadas à transformação

socialista da economia, à análise das condições de produção, vistas aqui como centrais para o

desenvolvimento. Antes que tudo, na visão do CEA houve uma urgência em formar quadros

400 Ibidem, pp.8. 401 De acordo com um documento dactilografado do CEA, onde se reproduz na íntegra os comentários dos

quatro grupos de supervisão do Curso, que foram na altura apresentados na sessão de crítica e autocrítica de 5 de Junho de 1981, alguns estudantes referiam ao conteúdo do Curso como tendo a “tendência para sobrevalorizar aspectos econômicos”, como também a “ausência de aspectos culturais”. Ver, UEM/CEA, Curso de Desenvolvimento de 1981, 27/8/81, 12pags, Mimeo.

402 GEFFRAY, Christian. Fragments dun discours du pouvoir (1975-1985): Dun bon usage d´une meconnaissance scientifique. Politique Africaine nº 29, 1988.

403 Ibid. 404 UEM/CEA, Curso de Desenvolvimento de 1981, 27/8/81, Maputo: CEA, Mimeo, 1982. 405 Entrevista com Judith Head, agosto, 2007.

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nacionais aptos para o trabalho de reconstrução nacional e, por outro lado, era preciso

conceber uma teoria e método focalizado nos problemas da transformação da economia

herdada do período colonial para uma economia de carácter socialista, livre da dependência

econômica, que ainda persistia, em relação a África do Sul. Daí a necessidade também de se

analisar Moçambique no contexto da região. Como afirmaram os investigadores do CEA,

“uma estratégia para o desenvolvimento, ou seja, para a transformação socialista, tendo em

conta a realidade social de Moçambique no âmbito da região da África Austral406.” Assim, o

único método capaz de permitir esta transformação das condições sociais dos moçambicanos

teria necessariamente que passar, pela abordagem da “economia política marxista”. Esta

perspectiva, diferentemente por exemplo da economia política liberal, que enfatizou a

importância do chamado “mercado livre”, focalizou no domínio da produção como a última

realidade407.

Os professores do Curso de Desenvolvimento argumentaram, que esta ênfase nos

aspectos econômicos na análise da sociedade moçambicana estava assim ligada a toda uma

concepção do que deveria ser a missão das ciências sociais num país engajado na

transformação das condições sociais das suas populações, como também inserido num

contexto regional de luta de libertação contra a economia capitalista da África do Sul. Ainda

reagindo a crítica de ser “demasiado economicista”, Judith Head, investigadora do CEA e

professora no Curso de Desenvolvimento afirmou,

Isso foi deliberado, porque nós sentimos que o motor da transformação era a economia, e era imperativo conseguir transformar as relações de produção, por isso, nós tínhamos que investigar. Mas isso não significa que achássemos que outros aspectos não eram importantes, simplesmente sentimos que aquilo era o mais importante. Era preciso focalizar o nosso trabalho. Se olharmos para o material do Curso de Desenvolvimento, veremos que às vezes é somente a economia mas algumas vezes tem um carácter mais amplo, num sentido de entender a natureza da luta política nos Estados da África Austral. Não se podia ser reducionista e reduzir tudo a relações econômicas, e havia um debate sobre isso dentro do CEA. 408

406 UEM/CEA, Curso de Desenvolvimento de 1981, op.cit. 407 Vide, DALY, Glyn. Radical(ly) Political Economoy:. Luhmann, Postmarxism and Globalization. Review of

Internarional Political Economy, 11:1, Fevereiro, 2004, p.1-32. 408 Entrevista a Judith Head, agosto, 2007.

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Na óptica dos proponentes do Curso de Desenvolvimento, fundamentalmente Ruth

First/Marc Wuyts/Bridget O'Laughilin/Judith Head, “desenvolvimento” era conceptualizado

numa perspectiva da análise marxista, como “estudo da transformação das relações de

produção” e isto significava não só uma abordagem que privilegiasse o aumento da produção

e produtividade como também da emergência de novas relações sociais de produção (relações

de classe), que quebrassem com a estrutura de classes do período colonial.” É assim que

Judith Head vai afirmar que “a definição e concepção de desenvolvimento constituiam um

objectivo inseparável da estratégia sócio-econômica e política da FRELIMO para a

transformação socialista da sociedade moçambicana”409.

Era um estudo da realidade de Moçambique, com vista a analisar as questões da

transformação social naquele momento de transição para o socialismo. Havia uma

necessidade de focalizar os projectos de investigação, de acordo com a sua relevância para os

problemas da transformação da produção. E, como afirmou Judith Head, “a produção não é

uma questão exclusivamente econômica, porque a produção, em termos marxistas, implica

relações sociais, ou política; é as três simultaneamente”410”E reafirmou ainda Judith Head,

“mais do que entender, transformar. O nosso foco estava na produção e não na cultura e era

um pouco luxuoso querer fazer tudo”411

Em suma, a ênfase que o CEA pôs, logo no inicio, na produção e força de trabalho

(particularmente na economia rural) surgiu da convicção da sua importância e da sua urgência

para os desafios que Moçambique enfrentava. A expectativa do CEA era de que as políticas

econômicas – e, em particular, as políticas dirigidas para produção e mão-de-obra – deveriam

procurar seguir um processo de transformação ao expandirem recursos de investimentos para

preservar e fortalecer as capacidades de produção a todos os níveis e para salvaguardar o

consumo básico (fazendo com que os investimentos fossem para o consumo), em vez de

engajar num programa de investimento massivo centralizado no sector estatal, deixando o

consumo e a produção camponesa, como também a troca, suportarem o peso do inevitável

processo de ajustamento que viria do grande aperto financeiro.

A principal meta do Curso de Desenvolvimento foi assim o de criar um espaço para

um tipo diferente de pesquisa, mais ligada a uma concepção de “ciência social aplicada”, 409 Entrevista a Judith Head, agosto, 2007. 410 Ibid. 411 Entrevista com Judith Head, agosto, 2007.

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virada para a transformação das condições sociais. Por outro lado, o curso pretendia também

formar pesquisadores moçambicanos, e não simplesmente acadêmicos que de forma acrítica

aplicassem modelos pré-existentes. Pelo contrário, um dos objectivos primordiais era de que

os alunos pudessem exercitar a sua capacidade de desafiar/questionar as assumpções de

políticas, para engajar em análises concretas e de explorar alternativas, mesmo se isso

significava levantar questões incómodas: em suma, de ser capaz, como afirmou Marc Wuyts

“de pensar de uma forma independente”412.

E o facto de se escolher um curso sobre “desenvolvimento” é elucidativo da intenção

do CEA em aliar o seu programa de pesquisa e ensino à estratégia política da FRELIMO para

a “revolução” moçambicana. O Curso de Desenvolvimento iria assim traduzir nos seus

objectivos principais uma ligação muito forte com o partido FRELIMO, procurando desde o

seu início manter e aumentar a participação do partido nos projectos de investigação e, deste

modo, fazer com que as estratégias socioeconômicas e política da FRELIMO para a

transformação socialista de Moçambique servissem de orientação à direcção da investigação.

5.6 Os Conteúdos Teóricos do Curso de Desenvolvimento

Como foi mencionado na secção anterior, o CEA ao conceber este Curso de

Desenvolvimento procurou focalizar a sua abordagem na questão da produção, pois que,

segundo os seus investigadores, o contexto político de Moçambique - liberto de uma

dependência política de Portugal, mas ainda economicamente dependente da África do Sul -

exigia urgentemente uma solução. De acordo ainda com estes investigadores, essa solução

passava por uma análise profunda, principalmente da estrutura econômica herdada do

colonialismo, enfim uma estudo da economia política de Moçambique desde o período

colonial até aos desafios da “transição socialista”. Podemos encontrar este tipo de raciciocinio

se olharmos mais atentamente para o curriculo oferecido. Por exemplo, a disciplina de

“Economia Política de Moçambique”, procurou aliar uma análise do econômico com o

político, procurando deste modo, fazer uma análise do carácter do capitalismo colonial em

Moçambique, as formas de impacto econômico, impacto das companhias concessionárias, a

análise sectorial da economia rural, como também a questão da crise do capitalismo colonial 412 Entrevista com o autor, julho, 2009.

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na altura da independência. Em relação aos aspectos políticos, esta disciplina olhou

exclusivamente para a história da FRELIMO, origens, luta armada e “luta de classes”.

Encontramos também a mesma lógica nas disciplinas do 2º semestre (“Transição para

o Socialismo”, “Classe e Estado em África”, “Métodos Empíricos” e “África Austral”), que

também focalizam na análise da produção e da criação de novas relações sociais em moldes

socialistas. Tendo em conta que todo o curso teve como substrato a análise marxista a

disciplina “Classe e Estado em África” faz jus a esta escolha. Nesta disciplina, foram

discutidos a tipologia e a formação de classes em Moçambique incidindo na questão da

diferenciação classista no seio dos camponeses, semi-proletários e proletários (e, neste caso,

uma das bibliografias fundamentais era a obra “O Mineiro Moçambicano”), como também

nas características da pequena burguesia.

A disciplina “Métodos Empíricos” também esteve directamente ligada aos aspectos

econômicos. Procurou ensinar aos estudantes métodos de análise de estatísticas

macroeconômicas sobre a economia moçambicana desde o período colonial até a actualidade,

como também noções sobre o cálculo do Produto Interno Bruto (PIB), Balança de

Pagamentos, taxas de crescimento, etc. Foi dada também especial ênfase à análise de

produção a partir de casos de estudo desenvolvidos a partir dos resultados dos projectos de

investigação realizados pelo CEA no âmbito deste curso. Foram analisados concretamente as

unidades de produção em algumas fábricas, machambas estatais, cooperativas agrícolas, etc.

Podemos também identificar o privilégio de uma abordagem da economia política

marxista no curso, olhando para a bibliografia escolhida. No que se refere por exemplo, aos

cursos de 1981 e 1982,413 particularmente na disciplina “A Transição para o Socialismo414”,

nota-se também uma ênfase em autores marxistas e da área da economia. Encontramos assim

textos de Lenine, Mao Tsé Tung, dos economistas marxistas não-ortodoxos, Maurice Dobb e

Michal Kalecki, , que tal como o economista liberal britânico, John Keynes defendiam um

papel mais activo do Estado na economia. Houve também textos de Charles Bettelheim,

economista e historiador francês, conhecido pelo seu pensamento marxista heterodoxo415.

413 Fica em dívida uma análise do material bibliográfico do Curso de Desenvolvimento de 1979, que até ao

presente momento não foi possível encontrar. 414 Não foi possível encontrar também material sobre a bibliografia de outras disciplinas. No entanto, segundo

Luís de Brito, eram também oferecidos textos de antropólogos marxistas franceses como Claude Meillassoux, Pierre-Philipe Rey, Catherine Coquery-Vidrovitch dentre outros. Entrevista realizada em Março de 2010.

415 Vide, HABIB, Irfan. Problems of Marxist Historiography. Social Scientist, Vol. 16, nº 12, Dezembro, 1988, p. 3-13.

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É preciso frisar no entanto, que a grande parte do material de ensino foi baseado na

própria produção científica do CEA, nomeadamente nos seus artigos publicados na revista

Estudos Moçambicanos, Como também nos vários Relatórios de Investigação416

desenvolvidos pelos professores e alunos no âmbito deste curso. Foram escolhidos para

investigar àqueles problemas consideradas chaves para o desenvolvimento socialista de

Moçambique. O foco central foi assim o estudo de uma fábrica, machamba estatal,

cooperativa, aldeia comunal, ou de áreas que combinavam várias formas de produção. O que

reflectiu nitidamente esta abordagem da economia política marxista que tendia a focalizar em

processos macro-sociais, para explicar os fenómenos sociais417, empregando deste modo,

termos como “ o Estado”, “classe”, “produção colectiva”, etc.

5.7 Ênfase na economia? Ausência de aspectos culturais?

A opção teórica e metodológica do Curso de Desenvolvimento não pode ser abstraída

do contexto social e político da sua origem. Como sabemos, o Curso tinha como outra das

tarefas importantes, estabelecer uma ligação estreita com o partido FRELIMO e o Estado na

sua luta pela construção do socialismo. Como afirmou Marc Wuyts, “de uma forma geral, os

investigadores do CEA, tinham uma simpatia básica em relação ao projecto socialista da

FRELIMO.”418

A pesquisa do CEA estava focalizada na produção e condições de trabalho que

obviamente, eram temas integrantes da disciplina de Economia. No entanto, houve muitos

outros aspectos inerentes a esta disciplina, que dificilmente eram abordados no Curso, como

por exemplo, questões ligadas ao “dinheiro” e “finanças”. Assim, a crítica dos estudantes do

Curso de Desenvolvimento no concernente à “ênfase nos aspectos econômicos”, subentendia a

ausência, no Curso, de uma abordagem cultural ou antropológica, ou seja, daqueles aspectos

fundamentalmente “não-econômicos”. De outro modo, este ponto levantado pelos estudantes,

daria assim a impressão de que o Curso de Desenvolvimento estava mais preocupado com a

416 Os conteúdos destes Relatórios serão discutidos com mais atenção no próximo capítulo. 417 Uma perspectiva mais radical, desta abordagem da economia política que enfatizava os aspectos marco, seria

a teoria do sistema-mundo de Immanuel Wallterstein.Vide, por exemplo, WALLERSTEIN, Immanuel, “Southern Africa and the World-Economy”, Research Bulletin, Fernand Braudel Center for study of Economics, Historical Systems, and Civilizations, State University of New York, Binghamton, New York, USA, Junho, 1987.

418 Entrevista com Marc Wuyts, julho, 2009.

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disciplina de Economia (Economics) em vez da “Economy” (Economy), no sentido das

relações básicas ou complexas elementos na procura, oferta, distribuição e produção, e que

envolvem actores como, como vendedores, compradores, governos, investidores etc.

De facto, os projectos colectivos de pesquisa do Curso de Desenvolvimento, puseram a

ênfase, de uma forma “conservadora”, na organização social da produção e do trabalho,

portanto, num importante aspecto da economia como também da sociedade, tentando fazer

isso dentro de uma perspectiva que o CEA considerava interdisciplinar, mas que estava

somente concentrada no paradigma da economia política marxista. Ou seja, essa

“interdisciplinaridade” significou não tão-somente ir para além dos ditames da disciplina da

economia (e neste caso não se resumir apenas a pesquisa essencialmente econômica), mas

para acrescentar também aspectos sociais e políticos. Daí então o CEA insistir nas suas

discussões com os estudantes da centralidade da abordagem da “economia política marxista”

no Curso de Desenvolvimento.

Esta escolha teórica acabou relegando para segundo plano, todas aquelas questões não

necessariamente ligadas à produção, mas que poderiam também contribuir para uma visão

mais integrada da realidade social. Por exemplo, a inclusão de estudos e reflexões teóricas

sobre a construção cultural das inter-relações entre as unidades de produção e as formas de

organização social dessas populações, tentando explicar os fenómenos a partir de categorias

locais construídas pelas próprias comunidades. Pois que, na óptica de Akos Ostor (1987), a

economia pode também ser conceptualizada como algo que está profundamente incrustada em

ideias e práticas culturais419.

Diferentemente desta última posição, os investigadores do CEA, parafraseando Marx,

acreditaram que uma “revolução” da economia moçambicana iria significar igualmente uma

“revolução” em todas outras fases da vida social. Assim, para o CEA, a escolha de um foco de

análise ligada aos “problemas da transformação da produção420” era também uma questão de

“urgência” em termos dos desafios que Moçambique naquele contexto histórico enfrentava,

da transformação da economia colonial em moldes socialistas e do aumento da produção e

produtividade. Um exemplo paradigmático desta escolha teórica mas que também envolvia

um compromisso ideológico seria então a resposta dada pela direcção do CEA à crítica dos

419 OSTOR, Akos, Anthropology or Marxist Strait-Jacket?. Economic and Political Weekly, Vol.22 nº 23, Jun.

6/1987, p.909-910. 420 CEA, Strategies os social research in Mozambique. Review of African Political Economy, no. 25, set. -

Decz, 1982, p. 29-39.

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140

estudantes de o Curso de Desenvolvimento ter uma “tendência de sobrevalorizar aspectos

econômicos”. Segundo eles, “trata-se, apesar de tudo, duma crítica burguesa ao marxismo421”.

5.8 A Contribuição do Curso de Desenvolvimento no Ensino/Pesquisa em Ciências Sociais

Muito embora a equivalência do “Curso de pós-graduação em Desenvolvimento” não

tenha sido oficialmente reconhecida pela Universidade e de existirem alguns acadêmicos que

não concordaram com os seus métodos de ensino, a empreitada não deixou de se converter,

durante a sua vigência, no mais importante locus de debate, pesquisa e ensino em Ciências

Sociais durante a primeira década do pós-independência.

É de sublinhar ainda que mesmo não tendo um grau acadêmico reconhecido, e no

final, os estudantes serem simplesmente premiados com um “Certificado de Participação”, o

CEA, no período da selecção das candidaturas se confrontou anualmente, com a presença

maciça de candidatos, sempre maiores do que as vagas oferecidas. E não podemos descurar

do facto de que Moçambique tinha herdado do período colonial, um sistema de educação

bastante fraco e com grandes limitações em termos de conhecimento especializado e

experiencia de pesquisa.

Judith Head chamou a atenção para o facto de que apesar de se encontrarem

estudantes com vários e díspares graus acadêmicos, havia um ponto em comum que os ligava

e que estava necessariamente ligado à estrutura do ensino e pesquisa que Moçambique

herdara do colonialismo português. Como afirmou esta pesquisadora do Centro, “o Curso teve

sucesso, apesar de diferentes backgrounds porque nenhum daqueles estudantes tinha sido

exposto a esse debate e metodologia de ensino. O sistema de educação colonial português era

fraco”.422

No mesmo diapasão, Teresa Cruz e Silva, então estudante do Curso, enfatizou esta

questão das limitações do ensino e pesquisa no pós-independência,

421 UEM/CEA. Curso de Desenvolvimento de 1981, s/ed, Documento datilografado de 27/8/81. 422 Entrevista com Judith Head, agosto,2007.

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141

Eu me lembro que o primeiro choque que eu apanhei quando entrei para o Curso, é que havia lá pessoas sem graduação, pessoas com graduação, pessoas que leccionavam, pessoas dos ministérios, pessoas que eram directores do banco, do partido, etc. Uma coisa que nós aprendíamos era aprender a ler. E eu dizia, mas que coisa, eu dou aulas e vou agora aprender a ler?! Aprender a ler era aprender a fazer uma análise critica e depois que eu fiz esse curso da Ruth, aí todos os cursos que eu dou aos primeiros anos, principalmente aos que são dos primeiros anos, ou cursos de metodologia e pesquisa, como ler um texto, ou seja, como interrogar o próprio texto, questionar, fazer leituras criticas, para aprender a escrever um “paper”, um ensaio, uma série de coisas que os cursos que nós tínhamos feito não ensinavam isso423.

E ainda encontramos a contribuição deste curso no exterior das fronteiras

moçambicanas. Como observou Wuyts, “na África do Sul, as pessoas envolvidas na luta

política usaram o material do curso em círculos de estudo político, assim num certo sentido o

CEA chegou a ser um pouco conhecido e normalmente através de pessoas singulares”424.

Foi de facto um curso criado sob condições difíceis dada a escassez de pesquisa

científica sobre Moçambique e a ausência de uma cultura genuína de prática de investigação.

Isto significou que havia muita carência de materiais de ensino. Como observou Marc Wuyts

“houve muito de improvisação nestes cursos”. Muitas das pesquisas realizadas pelos

estudantes, serviriam como material de ensino para as aulas do Curso de Desenvolvimento,

enriquecendo, desta forma, os seus conteúdos programáticos. Estes pequenos projectos

altamente focalizados que cada curso envolveu, tinham como finalidade fornecer uma

plataforma onde estudantes pudessem adquirir e desenvolver habilidades de pesquisa.

423 Entrevista com Teresa Cruz e Silva, agosto, 2007. 424 Entrevista com o autor, julho, 2009.

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142

6. A PRODUÇÃO CIENTÍFICA DO CURSO DE DESENVOLVIMENTO

6.1 As Principais Linhas de Investigação

Durante a vigência do Curso de Desenvolvimento (1979-1982), foram produzidos

trinta e cinco “Relatórios de Investigação”425. Estes trabalhos reflectiram de um lado, uma

dinâmica curricular própria, e por outro lado, se caracterizavam também por pesquisas

“encomendadas” por instituições fora da universidade, como Ministérios, Direcções

Provinciais, Empresas Estatais, Cooperativas, etc. Na sua maioria esses “Relatórios de

Investigação” foram publicados e vendidos ao público. Havia no entanto, alguns que devido

ao tema abordado, como também aos objectivos do “solicitante”, acabavam tendo a definição

de “restrito”.

Como forma de responder a um dos objectivos principais deste estudo que é o de

analisar a relação entre prioridades de pesquisa do CEA e prioridades políticas do partido no

poder, foi feita uma classificação geral de todos os “Relatórios de Investigação” produzidos

durante os quatro anos do Curso de Desenvolvimento. De seguida, foram escolhidos, de forma

aleatória, seis “Relatórios”. A classificação temática dos estudos esteve baseada por um lado

nas escolhas dos objectos de pesquisa do CEA e por outro lado, nas linhas mestras da

estratégia política da FRELIMO para o desenvolvimento socialista de Moçambique. Como

sabemos, neste período de 1979-1982 a FRELIMO definiu alguns temas chaves como:

(1) a ruptura com a dependência econômica de Moçambique em relação ao capital

mineiro sul-africano e as estratégias de absorção de mão-de-obra;

(2) a transformação da economia colonial camponesa;

(3) a produção agrária colectiva (e.g., o algodão);

(4) as aldeias comunais como a “coluna vertebral” do desenvolvimento no campo;

(5) a socialização do campo;

(6) e a questão da comercialização agrária.

425 Vide Quadro nº2.

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Quadro 3 – Principais Linhas de Investigação

do CEA (1979-1982)

Linhas de Investigação Relatórios

Aldeias Comunais 2

Comercialização Agrária 3

Cooperativas 4

Produção algodoeira 7

Trabalho Migratório 2

Transformação Rural 9

Transportes 4

Total 31

Estas linhas de investigação não foram de forma nenhuma estanques. Muitos dos

projetos de pesquisa levados a cabo pelo CEA, no âmbito do Curso de Desenvolvimento,

poderiam estar inseridos em mais de uma linha de investigação. O caso mais eloqüente foi, de

fato, os projetos sobre o Algodão levados a cabo de 1979 a 1980. Foram produzidos 11

estudos sobre a produção algodoeira, que tinham objetivos e foco de análise assaz distintos.

Como foi mencionado ao longo deste estudo, os investigadores do CEA argumentaram que a

destruição do sistema colonial teve como uma das conseqüências uma profunda crise na

produção de algodão. Assim, o grande objetivo do CEA tinha sido o de “estudar as raízes

desta crise e as formas de ultrapassar426”.

Foi então a partir desta premissa que o CEA produziu os referidos onze Relatórios de

Investigação, ligados de forma geral a questão do Algodão, mas que também alguns destes

focalizavam em questões como, transformação rural, a agricultura familiar, as cooperativas,

ao sector estatal como também a questão dos transportes. Sublinhe-se que neste quadro, foram

apenas contabilizados sete estudos estritamente ligados a produção de algodão.

É objectivo desta secção demonstrar então que tanto os Relatórios que surgiam das

dinâmicas internas do Curso de Desenvolvimento, como os que eram “encomendados” pelo

poder, estavam todos - emprestando um termo de Jean Francois Lyotard (1989) - dentro de

426 Vide por exemplo, O Descaroçamento de algodão… op.cit,, 1979.

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144

uma “meta-narrativa427” comum: produzir conhecimento socialmente e politicamente

relevante para o projecto do desenvolvimento socialista de Moçambique. Como veremos, a

própria concepção de “desenvolvimento” para o CEA, constituiu “um objectivo inseparável

da estratégia sócio-econômica e política da FRELIMO para a transformação socialista da

sociedade moçambicana428.” Daí então o CEA afirmar, que um dos objectivos principais do

Curso de Desenvolvimento seria o de, “organizar projectos de investigação sobre questões

relevantes para a estratégia do desenvolvimento, com particular destaque para a produção, de

modo a possibilitar a sua utilização pelas estruturas do Partido e do Governo”429

Com o Curso de Desenvolvimento, as escolhas dos problemas a investigar, passaram a

ser definidas a partir das estratégias de “transição socialista” da FRELIMO, onde um dos seus

grandes pilares era a transformação dos sistemas de produção capitalista herdados da

economia colonial portuguesa. Foi a FRELIMO quem afirmou no seu III Congresso em 1977,

que “construir as fundações do socialismo requer a transformação radical nas relações sociais

e do desenvolvimento da nossa economia430.”

A estratégia agrária que FRELIMO seguiu nesta primeira década do pós-

independência, tinha como principais objectivos a abolição das grandes companhias privadas,

a eliminação das autoridades “tradicionais” e a redução do papel do sector familiar431. As

novas políticas enfatizaram o controlo estatal das redes de comércio e da produção colectiva

através por exemplo, da implementação de aldeias comunais e cooperativas. O governo tentou

assim transformar as relações de produção herdadas do período colonial, através da

intervenção estatal em todos os sectores da produção e organização e da institucionalização de

formas comunais de vida.

É então a partir destas linhas gerais da política agrária da FRELIMO, que o CEA iria

direccionar o seu foco de atenção, logo depois da realização d´”A questão Rodesiana”, para os

problemas relacionados com a transformação da produção. É assim, que logo em 1979, no

ano em que se iniciou, pela primeira vez, o Curso de Desenvolvimento, é produzido o

427 Vide, LYOTARD, Jean - Francois. A Condição Pós – Moderna, Lisboa : Gradiva, 1989. 428 Ibid. 429 UEM, CEA. Curso de Desenvolvimento de 1981, Maputo: CEA, Mimeo,19821 430 FRELIMO, Relatório do Comité Central, III Congresso, 1977,p.35, 431 Para uma leitura mais aprofundada sobre as politicas agrárias da Frelimo durante o período da tentativa da

construção do socialismo ver, PITCHER, Anne, Disruption without Transformation: Agrarian Relations and Livelihoods in Nampula Province, Mozambique (1975-1995). Journal of Southern African Studies, Vol. 24, nº. 1, Março,1998, p.115-140.

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Relatório de Investigação, “O Mineiro Moçambicano – um estudo sobre a exportação de mão-

de-obra”.

Como podemos notar, a partir do quadro nº2, o tema da “transformação” teve grande

centralidade nos relatórios de investigação do CEA. Assim, dos cerca de trinta e um

Relatórios produzidos no âmbito do Curso de Desenvolvimento, nove432 deles incluíam nos

seus títulos o termo “transformação”. Na sua maioria, estas pesquisas, de alguma forma,

discutiram a questão da transformação das antigas formas de produção inerentes à economia

colonial para novas formas baseadas em modelos de produção socialista, através por exemplo,

da introdução das machambas estatais e da dinamização do movimento cooperativo no

campo. Não podemos deixar de lembrar que a FRELIMO, no seu III Congresso (1977), tinha

definido a “agricultura como a base e a indústria como o factor dinamizador para o

desenvolvimento da economia moçambicana433”.

Este processo de transformação das relações de produção implicou responder a vários

objectivos e que como veremos, foram também tidos como prioridades de pesquisa no CEA: a

colectivização da produção através da transformação do sector familiar num sector

cooperativo e a expansão do sector das machambas estatais; a reorganização espacial das

unidades de produção e de formas de assentamento através da organização de aldeias

comunais; melhoria das condições de vida da população, organizando cuidados e serviços de

saúde, melhoria da habitação, fornecimento de água, de electricidade, etc.

É assim, que no segundo Curso de Desenvolvimento de 1980, o CEA começou a

produzir uma série de estudos directamente ligados aos problemas da socialização do campo e

transformação rural no sul de Moçambique434. Alguns destes estudos, como veremos já a

seguir, procuraram mostrar, por exemplo, como as machambas estatais e o movimento

cooperativo poderiam se tornar, efectivamente, na base para a transformação socialista da

agricultura familiar, e na rápida proletarização, tanto do campo como das cidades.435 Foram

432“A Transformação da Agricultura Familiar na Província de Nampula”, “Problemas de Transformação Rural

na Província de Gaza”, “Já Não Batem – a Transformação da Produção Algodoeira”, “O papel dinamizador da Emochá na transformação socialista da Alta Zambézia” e por ultimo, “Porto de Maputo – Zona de Contentores: Informação, Trabalho Administrativo e a Transformação do Trabalho Produtivo”.

433 FRELIMO. III Congresso do Partido Frelimo, Fev. 1977, Directivas Econômicas Sociais. Maputo:FRELIMO, 1977.

434 Vide, Anexo nº onde se apresenta a relação de todos os Relatórios de Investigação produzidos no âmbito do Curso de Desenvolvimento ( 1979-1982).

435 Para uma discussão mais aprofundada sobre a questão do campesinato versus proletários nas politicas agrárias da Frelimo nos anos 80, ver, O’LAUGHLIN, Bridget. Past and Present Options: Land Reform in Mozambique. Review of African Political Economy, Vol.22, nº63, 1995,p.99-106.

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ainda estudos que propuseram uma visão integrada do desenvolvimento rural, onde não só

deveria dar lugar os grandes projectos das machambas estatais (como era apanágio da

FRELIMO) mas também de se olhar para o papel da agricultura familiar no processo de

ruptura com padrões da economia colonial e da acumulação socialista.

Esta ênfase do CEA sobre a importância da pequena produção camponesa, e sobre o

papel do sector familiar na transformação socialista, tinha já sido dada em 1979 por Marc

Wuyts, no seu artigo, “Camponeses e economia rural em Moçambique”. Com o crescente

colapso da economia, descontentamento popular e intensificação da guerra contra a

RENAMO, o governo começou a tomar consciência da inoperância de muitas das suas

políticas para o desenvolvimento socialista. Foi assim, que no seu IV Congresso em 1984, a

FRELIMO acabou reconhecendo que o sector familiar não tinha sido levado em conta. Nos

seus novos documentos, o campesinato já era considerado como “ a principal força da

revolução” e prometiam dar mais apoio a esse sector, não obstante, continuarem ainda a

reivindicar que o campesinato precisava se libertar da “estreiteza da produção tradicional” e

engajar-se em formas superiores – a produção colectiva.

Seguindo ainda os objectivos preconizados pela FRELIMO para a socialização do

campo, o CEA iria produzir também vários “Relatórios de Investigação” sobre as novas

formas de organização da produção, tendo como tema dominante a questão da “produção de

algodão”. Como podemos notar, a partir do quadro nº2, dos cerca de 31 Relatórios de

Investigação, encontramos 7 que abordam especificamente esta cultura.

Moçambique, durante o período colonial, foi um dos maiores produtores de algodão,

onde de acordo com os investigadores do CEA, a sua produção, devido ao carácter retrógrado

da economia colonial portuguesa, estava baseada em formas de exploração da mão-de-obra e

trabalho forçado. Os desafios do pós-independência, no entanto, implicavam a constituição de

novas formas de produção colectiva em todas as unidades de produção.

Por último, e ainda nesta fase de mudanças nas políticas do desenvolvimento socialista

em Moçambique (1984), o CEA concentrou-se em estudos que procuraram analisar o papel

do Estado numa estratégia agrária marcadamente orientada para o mercado. Estas pesquisas

tinham a particularidade de já não se privilegiarem as grandes estratégias de colectivização

socialista, mas de procurarem resultados a partir de novas formas de intervenção estatal.

Eram analisadas as formas de comercialização agrária, a necessidade da formulação de

políticas comerciais viradas para o mercado, a rentabilidade e eficiência das empresas estatais,

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o papel dos transportes, etc. Foi nesta fase, por exemplo, que apareceram estudos sobre “a

comercialização agrária e os métodos de planificação” sobre o “Porto de Maputo e a

transformação do trabalho produtivo”, “ a formação do professor primário e a sua actuação no

meio social”, as plantações de Chá e economia camponesa, etc.

Como podemos depreender a parir do exposto acima, a produção científica do CEA

saída principalmente do Curso de Desenvolvimento, esteve profundamente conectada com o

contexto nacional da construção do socialismo, como também num contexto mais alargado da

integração econômica de Moçambique na economia regional, tendo como poder hegemónico,

a vizinha África do Sul.

Um dos grandes desafios da nova liderança, logo após a independência nacional, tinha

sido o de se compreender profundamente as características da dependência econômica e as

suas formas de superação, uma vez que a África do Sul se constituía num opositor político ao

projecto socialista da FRELIMO. Como foi discutido no capítulo sobre o “Mineiro

Moçambicano” tornava-se assim “urgente” para o governo moçambicano, conhecer o real

impacto de um corte radical do fluxo migratório de mão-de-obra moçambicana para as minas

sul-africanas. Tanto a FRELIMO como o CEA, acreditavam que “o termo desse escoamento

de homens era um dos elementos necessários para a criação das condições materiais de

construção do socialismo436.”

Na secção seguinte iremos, de forma mais localizada, abordar alguns dos Relatórios de

Investigação produzidos pelo CEA e que estavam mais directamente ligados às prioridades

políticas da FRELIMO para a “transição socialista”, como forma de demonstrar esta ligação

estreita que houve entre prioridades de pesquisa do Centro e as prioridades políticas da

FRELIMO para o desenvolvimento socialista. Ao expormos de forma mais localizados

algumas das publicações científicas do CEA pretendemos também mostrar como o CEA

procurou sempre manter um espaço de distanciamento ideológico, procurando analisar

criticamente a eficácia das políticas agrárias do governo nomeadamente na socialização do

campo, construção das aldeias comunais dente outros.

O primeiro Relatório será “O Mineiro Moçambicano”, que se enquadra dentro da

perspectiva da “transformação” estratégia Freliminiana para o desenvolvimento de novas

formas de produção no novo Moçambique. O segundo escolhido é de Marc Wuyts,

“Camponeses e economia rural em Moçambique”, uma vez que inaugurou um novo debate

436 O Mineiro Moçambicano, op.cit, p.2.

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sobre as estratégias agrárias para o desenvolvimento socialista de Moçambique, ao enfatizar

por exemplo o papel da agricultura familiar. Por outro lado, também pelo facto de ter trazido

uma primeira reflexão sobre o impacto da estrutura da economia colonial no pós-

independência e os desafios para a transformação social em moldes socialistas.

O terceiro, “Problemas da transformação rural na província de Gaza”, está

directamente ligado à questão agrária, considerada pela FRELIMO como a base do

desenvolvimento socialista de Moçambique. O quarto está relacionado com a problemática da

produção de algodão, considerada como uma das principais culturas de rendimento a nível

nacional. O quinto Relatório, “Comercialização agrária ao nível distrital”, mostra já uma

tentativa de mudança na estratégia da FRELIMO em relação a agricultura, com onde se

começa a dar valor ao papel da planificação estatal e do sector privado na comercialização

agrária.

E por último, um Relatório de Investigação realizado e produzido pela Oficina de

História e que analisa um tema sensível aos dirigentes da FRELIMO: sobre a “desagregação “

das aldeias comunais no Norte de Moçambique, em Mueda, Cabo Delgado, considerado

outrora como o bastião da FRELIMO durante a luta armada contra o colonialismo português.

6.2 O Projecto sobre o Trabalho Mineiro na África do Sul

Durante o ano acadêmico de 1976-1977, o CEA levou a cabo um estudo pioneiro,437

sob direcção de Ruth First, sobre o trabalho mineiro para as minas da África do Sul. O seu

objectivo principal era então o de, através de uma pesquisa intensiva, produzir conhecimento

politicamente relevante, que pudesse ajudar ao partido/Estado, na formulação de políticas. Os

seus resultados foram primeiramente produzidos como um “Relatório de Investigação,

intitulado, “O Mineiro Moçambicano – Um estudo sobre a exportação de mão-de-obra” e seis

anos mais tarde em 1983 publicado em livro, onde incluía nos seus anexos, canções,

fotografias e entrevistas realizadas por Alpheus Manghezi. O trabalho de campo abarcou três

províncias do sul de Moçambique, nomeadamente, a província de Inhambane, Gaza e

Maputo.

437 Foi a pesquisa do CEA que envolveu o maior número de investigadores na história do CEA. O grupo de

pesquisa era composto de cerca de 40 pessoas, dentre membros e associados do Centro, como também de colaboradores do CEA. Foi também considerada a mais aprofundada alguma vez realizada pelo Centro. Este estudo teve a duração de 6 meses.

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Este estudo, organizado em 3 partes, pretendia não somente traçar o perfil do mineiros

moçambicanos, como também produzir uma análise da estratificação rural das três regiões no

sul de Moçambique, consideradas como o grande reservatório de mão-de-obra mineira. O

primeiro capítulo, intitulado, “ a exportação de mão-de-obra”; o segundo, “a força de trabalho

mineira” e o terceiro “a base camponesa: a província de Inhambane”.

É logo no primeiro capítulo onde nos é apresentado o pressuposto teórico-

metodológico deste estudo, (como também de grande parte da produção científica do CEA): o

de que Moçambique já não se encontrava sob dominação política de Portugal, mas sujeito à

dominação econômica da África do Sul. O CEA argumentava, que dada a fragilidade da

economia portuguesa, o poder colonial viu-se na iminência, por exemplo, de alugar a força de

trabalho existente no sul de Moçambique ao capital estrangeiro (sul-africano). Assim, desde a

época colonial, que o sul de Moçambique tinha sido utilizado como reserva de mão-de-obra

para o capital estrangeiro, onde alimentava os centros sul-africanos de acumulação de capital.

O segundo capítulo apresenta um panorama geral dos índices de recrutamento dos

trabalhadores moçambicanos para a África do Sul, depois de 1974. São fornecidos dados

precisos sobre os períodos de grande recrutamento, como aconteceu em 1975 e também dos

anos de crise (1976 e 1977), devido a introdução, por parte da Chamber of Mines (Câmara das

Minas), de novas formas de controlo de emigração que resultaram na redução de vinte e um

para quatro campos de recrutamento em Moçambique. Estas medidas iriam ter grandes

repercussões em Moçambique. Daí então podermos entender melhor, por exemplo, o elevado

índice de desemprego que o governo moçambicano enfrentou neste período e que viria a

estimular a produção do relatório do desemprego, mencionado em capítulos anteriores.

É ainda exposto neste capítulo, o esboço da caracterização da força de trabalho

mineira moçambicana. Para isso, são apresentados dados (colectados a partir da realização de

368 entrevistas aos mineiros) sobre o número médio dos contractos realizados, a duração

média dos contractos e o período de vida de trabalho passados nas minas. A partir, por

exemplo, das informações sobre a duração média dos contractos (segundo o CEA, os

trabalhadores moçambicanos passavam cerca de 16 meses nas minas). O CEA vai argumentar

que o trabalho migratório estava profundamente enraizado (tendo inicio no período colonial)

na economia camponesa.

São ainda discutidos neste capítulo dois pontos. Os salários dos mineiros

moçambicanos os quais, segundo o CEA, se situavam, comparativamente aos trabalhadores

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mineiros dos países vizinhos, nos níveis mais baixos438. Em segundo, a questão da experiência

de trabalho e qualificações. Segundo o CEA, a grande limitação dos trabalhadores

moçambicanos estava na sua falta de instrução escolar formal, apesar de terem algum tipo de

especialização e de experiência de trabalho. Neste âmbito, o CEA, recomenda ao poder que

“alguns mineiros, por exemplo ajudantes de electricista, ajudante de mecânico e condutores

de máquinas pesadas poderiam ser integrados nas fábricas ou outras empresas.439.

O terceiro capítulo pode ser considerado como o mais ambicioso, uma vez que procura

analisar os efeitos do fluxo migratório na base camponesa. É assim abordada a questão da

estratificação rural nos três maiores distritos da província de Inhambane (Pembe, Homoíne e

Sitila) e, a partir daí, Ruth First e o colectivo de investigadores do CEA, procuram avaliar o

real impacto deste fluxo migratório na economia rural moçambicana.

Os investigadores argumentam que a integração da economia camponesa no mercado

nacional e internacional iria ter repercussões na emergência de diferenciações sociais no

campesinato moçambicano, nomeadamente de uma classe de camponeses ricos, médios e

pobres. Os “camponeses ricos” (grupo reduzido) caracterizavam-se essencialmente pela

utilização de mão-de-obra assalariada, embora numa base extremamente limitada e por vezes

em tempo parcial. Os “camponeses médios”, considerados como “a espinha dorsal da

produção agrícola na economia camponesa”, definiam-se pela propriedade e utilização dos

instrumentos de produção, especialmente charruas e gado, como também eram proprietários

de um número relativamente grande de culturas permanentes.

Ainda segundo o colectivo de investigadores do CEA, esta classe era a que dependia

menos do trabalho migratório. É então a partir desta explanação da base camponesa nos 3

distritos, que o CEA vai avisar às estruturas do governo para a necessidade de se “ preparar

directrizes bem explícitas se se quiser conquistar os camponeses médios para a revolução

rural440.” Ainda segundo o CEA, estes sentem-se inquietos com o que consideram uma

“orientação para camponeses pobres” da qual receiam que irá fazer descer o seu nível de vida.

Havia ainda os “camponeses pobres”, que só eram ocasionalmente proprietários de

instrumentos de produção, sendo a sua base agrícola incerta e instável. Trabalhavam em terras

438 CEA, O Mineiro Moçambicano – Um estudo sobre a exportação de mão-de-obra, 1979, reedição, 220 p. 439 Ibidem, p.77. 440 O Mineiro Moçambicano, op.cit,p.168.

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pequenas e muitas vezes de inferior qualidade.”441.

Encontrávamos por outro lado, aquilo a que os autores designaram de “burguesia

comercial” que eram os cantineiros, comerciantes e proprietários de transportes, que

constituíam contudo uma classe instável.

Uma das conclusões mais interessantes a que o CEA chegou através deste estudo foi

de que embora a maioria da população masculina do sul de Moçambique passasse de grande

parte de suas vidas nas minas da África do Sul e estando lá na condição de “proletários”, eles

ainda mantinham a sua “base camponesa”. Faziam assim parte de um sistema que tornava-os

mão-de-obra migrante e barata. Enfim, uma classe sui generis de operários-camponeses, “que

nem se encontravam completamente divorciados dos seus meios de produção, nem eram

produtores independentes, contando unicamente com os seus meios de produção442.”

A última secção deste estudo - “Conclusões e Comentários” - reflecte nitidamente o

carácter de pesquisa social aplicada que o CEA vinha realizando a partir do Curso de

Desenvolvimento. Neste caso particular, a preocupação de que a pesquisa pudesse servir para

auxiliar o governo na formulação de políticas para fazer face a dependência estrutural dos

trabalhadores moçambicanos ao trabalho mineiro na África do Sul e que pudesse também

auxiliar a FRELIMO na sua estratégia da socialização do campo e organização da produção

colectiva. Poderíamos aqui olhar, por exemplo, para o projecto político frelimista da

construção das “aldeias comunais”.

O CEA apoiou esta política, reiterando neste estudo, que “a transformação da

agricultura teria obviamente lugar através da construção das aldeias comunais443”. O CEA

recomendava ainda, que era necessário consciencializar as populações sobre a importância de

viverem em aldeias comunais. Vale a pena citar longamente esta recomendação,

Notamos existir considerável dose de ignorância e de dúvida quanto aos efeitos das aldeias comunais e formas como funcionarão. O que não quer dizer que exista hostilidade para com as aldeias comunais. De um modo geral, há uma enorme confiança na FRELIMO, mas são poucos os dados sob a forma como funcionarão as aldeias comunais e como irão afetar os diferentes estratos do campesinato. Sugeríamos a elaboração de linhas de orientação sobre determinadas questões que seriam divulgadas entre a população do campo.444

441 O Mineiro Moçambicano, op.cit. p.129. 442 Ibidem,pp.170. 443 Ibidem, p.166. 444 Ibidem, p.167.

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6.3 Analisando os Camponeses e a Economia Rural em Moçambique

Depois da realização do “Mineiro Moçambicano” e do projecto sobre o desemprego,

Marc Wuyts445 produziu, a título individual em 1978, um Relatório de Investigação intitulado,

“Camponeses e economia rural em Moçambique”. Este texto, diferentemente dos estudos

anteriores do CEA que tinha um foco mais localizado, pretendia fazer uma reflexão sobre

toda a estrutura econômica camponesa de Moçambique no fim do período colonial. Apesar de

ser uma reflexão concentrada na sua maioria no passado colonial (apenas o último capítulo

aborda o período pós-independência), Wuyts não deixa, no entanto, de enfatizar que o

propósito final é que o texto “possa contribuir para uma compreensão dos problemas da

transição para o socialismo”, uma vez que na opinião deste autor, “o seu ponto de partida

reside na transformação das estruturas econômicas herdadas do colonialismo446.”

Neste texto, Marc Wuyts começa primeiro por dar “um breve e incompleto panorama

do processo histórico da criação da estrutura econômica colonial no campo”. Apresenta os

diferentes elementos constituintes da estrutura social da produção agrícola nomeadamente, as

plantações, latifúndios, médias e pequenas machambas dos colonos, burguesia e pequena

burguesia comercial e o campesinato. Segundo Wuyts, estes elementos constituintes da

estrutura social da produção na agricultura moçambicana, iriam ter características distintas

nas três regiões do país, uma vez que o sul, centro e norte do país tinham se integrado na

economia colonial de forma desigual.

Este argumento iria se tornar, como veremos ao longo deste texto, num dos

pressupostos teóricos de toda a produção científica do CEA. De facto, Marc Wuyts neste

texto, como também a maioria dos trabalhos produzidos pelo colectivo de investigadores

CEA, viam o capitalismo colonial português como “retrógrado tanto politicamente como

economicamente”, determinando deste modo, a forma diferenciada como estas regiões se

integraram na economia colonial. O sul tinha-se transformado essencialmente numa reserva

de mão-de-obra para o capital mineiro sul-africano; o centro onde a principal característica da

produção agrícola consistia na economia de plantação, correspondendo a cerca de 57% de

toda a produção, e o norte, maioritariamente ligado à produção de mercadorias, onde por

exemplo, 65% da produção mercantil era realizada pelo campesinato.

445 Foi dos poucos Relatórios do CEA que saiu com assinatura individual. 446 WUYTS, Marc. Camponeses e economia rural em Moçambique. Maputo: UEM/CEA,1979.

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Marc Wuyts, nesta análise da estrutura da economia colonial no Moçambique rural,

deu maior destaque à integração da pequena produção camponesa na economia colonial,

mostrando assim que os camponeses tinham jogado um papel importante no desenvolvimento

da agricultura, como também para a produção mercantil do país. Era ainda o campesinato

quem fornecia a sua força de trabalho para as plantações, minas e outras actividades447. Wuyts

argumenta, que o sistema colonial tinha actuado no campo segundo dois padrões principais:

por um lado, um processo de institucionalização de um sistema de trabalho migratório interno

e externo; por outro lado, um processo de campesinatização que implicou a transformação dos

cultivadores africanos em produtores para o mercado448.

Alicerçado nos trabalhos estatísticos sobre produção agrícola em Moçambique, de

Fernanda Amaral e Pereira de Moura, Wuyts faz uma triangulação entre os dados destes

autores, com fontes estatísticas da economia colonial, e com os trabalhos anteriores do CEA.

A partir daí Wuyts, esboça um panorama geral sobre o sector da agricultura em Moçambique,

enfatizando sempre a importância da agricultura familiar. Um sector concebido não apenas a

partir da sua produção para a subsistência, mas também como um grupo (não homogéneo) de

proletários rurais, profundamente integrados e dependentes da economia monetária.

A ênfase no papel do sector familiar para o processo de transformação socialista,

pretendia trazer para o debate sobre a política agrária, um aspecto que até então não tinha sido

dada a devida atenção pela FRELIMO. Como se sabe, até ao IV congresso da FRELIMO, o

processo de transformação socialista tinha como um dos objectivos a colectivização da

produção através da transformação do sector familiar num sector cooperativo como também

na expansão do sector das machambas estatais449.

Este artigo pode então ser visto como um dos primeiros (produzidos pelo CEA) a

enfatizar o papel da pequena produção camponesa no processo de transformação socialista,

demonstrando que as políticas agrárias deveriam “atacar” as vulnerabilidades do campesinato

em vez de as ignorar, como vinha sendo feita pelo poder político. Podemos também olhar

para este texto como uma chamada de atenção à política agrária da FRELIMO, que naquela

primeira década após independência, subestimava o papel do campesinato como um factor

decisivo para a transformação socialista, optando, em contrapartida, por uma rápida

447 Vide, WUYTS, Marc. Camponeses e Economia Rural em Moçambique, Maputo: UEM/CEA, 1979, p.23. 448 Ibidem, p.24. 449 Ver documento da “Oitava Sessão do Comité Central da Frelimo e do III Congresso. Jornal NOTÍCIAS, 7, 8

e 12 de Outubro,1981.

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socialização do campo com enfoque nas machambas estatais; enfim, pelos grandes projectos

estatais relegando assim o campesinato para um lugar marginal no processo político.

6.4 Problemas da Transformação Rural na Província de Gaza

Ainda em 1979, uma equipe de onze elementos que incluía professores e estudantes do

Curso de Desenvolvimento produziu um Relatório de Investigação450, de “difusão restrita”,

sobre os problemas da transformação rural na província de Gaza, no sul de Moçambique. O

seu objectivo principal era o de descrever e analisar, de forma crítica, a situação produtiva no

Vale do Limpopo (considerada como uma das regiões mais férteis do país), a partir da

selecção de algumas aldeias comunais nesta região. Tinha, deste modo, uma abordagem mais

localizada, distinta por exemplo do estudo anterior de Marc Wuyts. Encontramos, no entanto,

um ponto em comum nestes dois estudos e que iria também constituir uma característica

presente em outros trabalhos de investigação do CEA: textos que procuravam reflectir sobre

as transformações da economia colonial no sul de Moçambique - baseada essencialmente na

agricultura dos colonos e na migração de mão-de-obra para a África do Sul e de uma

agricultura familiar extremamente dependente destas duas características – para uma

economia em moldes socialistas.

Os problemas da transformação rural no sul de Moçambique, na óptica dos autores do

Relatório, estavam intimamente ligados a dois contextos históricos: o período colonial e do

pós-independência. Esta região do vale do Limpopo tinha sido profundamente afectada pela

crise da economia colonial. Com a independência nacional, a grande maioria dos portugueses

abandonaram o país dando assim lugar a uma ruptura do sector empresarial de

comercialização, com a agravante de perpetrarem actos de sabotagem, transferência de

capitais e destruição de infra-estrutura.

Em segundo lugar, havia a questão da dependência histórica de todo o sul de

Moçambique ao trabalho mineiro na África do Sul. De acordo com o colectivo de

pesquisadores, a sua redução drástica em 1976, iria ter grande impacto na produtividade de

toda esta região do Baixo Limpopo. Segundo o Relatório, A agricultura familiar, e não as

machambas estatais, ou mesmo as cooperativas de produção, é que constituía a verdadeira

base da produção da grande maioria das famílias camponesas e continuava sendo dependente 450 Problemas de transformação rural na província de Gaza. Maputo:UEM,CEA, 1979.

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tanto do Estado colonial como também das receitas dos mineiros na África do sul, acabaria

sendo a mais afectada. Daí então o CEA argumentar que nesta fase tinha-se verificado uma

diminuição no nível de vida das famílias do distrito de Gaza, que podia ser observado, por

exemplo, na diminuição ao acesso aos bens de consumo e às alfaias agrícolas.

De acordo com este estudo a situação no pós-independência estaria intimamente

ligada ao seu legado colonial. No entanto, os investigadores, não se limitam apenas a

descrever os problemas da transformação rural a partir das suas causas coloniais. O estudo

acaba fazendo também uma reflexão crítica sobre o papel do Partido/Estado, na emergência

de outros tipos de problemas nas três aldeias comunais. Para estes, era “incorrecto continuar a

atribuir os problemas de produção no Baixo Limpopo exclusivamente às consequências das

cheias451”. Afirmavam ainda, que a crise da comercialização, era também uma crise de

produção e que esta tinha como factor, o “fraco apoio estatal tanto ao sector colectivo, como

ao sector familiar452”.

Para os relatores do estudo, o aspecto mais importante do problema de produção no

Baixo Limpopo esteve relacionado com “os conflitos entre os diferentes sectores da produção

agrícola: estatal, campesinato e familiar453”. Havia conflitos diretos entre o Estado e o

campesinato sobre a posse de terra, e também conflitos entre o desenvolvimento do setor

cooperativo e a produção familiar. Por exemplo, os investigadores do Centro argumentaram,

que o sector cooperativo ainda era muito fraco nas aldeias comunais estudadas e que a

participação marginal do campesinato indicava que as cooperativas não eram encaradas com

confiança, como uma alternativa à produção familiar para assegurar a subsistência. Na mesma

senda, afirmavam que a própria Unidade de Produção do Baixo Limpopo (UPBL), a empresa

agrícola estatal do distrito de Gaza “ainda não era suficientemente forte para servir como a

principal base produtiva das aldeias comunais sob seu controle454”.

Toda esta discussão esteve alicerçada no que ficou conhecido como o “Plano do

Limpopo”, desenvolvido pelas autoridades provinciais, e que pretendia implementar as

directivas saídas da 8ª sessão do Comitê Central da FRELIMO. O referido plano procurava

abordar o problema da relação entre a machambas estatais, agricultura camponesa e as vias da

transformação da agricultura familiar por meio da cooperativização. O plano procurou

451 Problemas de transformação rural na província de Gaza, Maouto: UEM/CEA, Maputo, 1979, p.6. 452 Ibid, p.6 453Ibid., p.79. 454 Ibid., p.70.

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também expandir o sector colectivo como base produtiva das aldeias comunais e

consequentemente restringir a propriedade no sector familiar. Daí então encontrarmos neste

relatório uma secção onde se aborda de forma particular as duas principais formas de

produção colectiva e que eram vistas tanto pelo governo como pelo investigadores, como a

base produtiva das aldeias comunais do Baixo Limpopo: o sector cooperativo e a empresa

estatal (UPBL).

A partir das directivas saídas do “Plano do Limpopo”, os investigadores do CEA

advertiram às estruturas políticas de que “ no momento presente qualquer política visando

limitar a agricultura familiar – antes que a machamba estatal ou o sector cooperativo estejam

preparadas para absorver mão-de-obra suficiente e, portanto, para oferecer uma base

produtiva segura ao campesinato – seria desastrosa455.” Uma tal política, “ameaçaria a própria

base de subsistência do campesinato e acentuaria por conseguinte antagonismo já existente

entre o campesinato e a machamba estatal456.”

Era preciso primeiro criar-se uma base material no sector colectivo, capaz de absorver

aquela força de trabalho que tinha sido afectada pelo impacto da redução do fluxo migratório.

Afastando-se da historiografia colonial, mas também da visão de alguns sectores do Estado

moçambicano que olhavam para a família camponesa como exclusivamente ligada à produção

de subsistência, o CEA vai dar realce ao papel do campesinato na produção de bens

excedentes para o mercado. Na óptica destes pesquisadores, a marginalização do sector

familiar, tinha se tornado num dos mais perniciosos aspectos da política agrícola da

FRELIMO (pelo menos até finais de 1983 quando por intermédio do seu 4º Congresso os

dirigentes políticos começaram a admitir, publicamente, os seus erros e assumpções erradas457

em relação ao papel da produção familiar no desenvolvimento da agricultura). Como

podemos ver, os pesquisadores do “Mineiro Moçambicano”, não se coibiam de produzir uma

análise crítica sobre a ineficácia de algumas das políticas agrárias do governo, mostrando em

casos como estes, que o poder estava errado, e procurando no final providenciar inputs de

como tornar mais efectiva a grande “meta-narrativa” do desenvolvimento agrário em moldes 455Ibid., ,p.17. 456 Ibidem, Idem. 457 No sentido em que pressupunham que a produção camponesa estava completamente virada para a

subsistência em vez de por exemplo, para a comercialização, juntando ainda o facto de sobrestimarem os recursos técnicos, organizativos e financeiros disponíveis para gerirem machambas estatais grandes e ambiciosas. Em relação a auto-crítica da Frelimo, ver, Relatório do 4º Congresso, publicado no Jornal Noticias, 27 de Abril, 1983. Para além do trabalho do CEA, Barry Munslow, também aborda esta questão da intervenção do Estado na agricultura. Ver MUNSLOW, Barry. State intervention in Agriculture: The Mozambican experience. Journal of Modern African Studies, Vol. 22, nº. 2, 1984,p. 199 - 221.

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socialistas da FRELIMO.

6.5 O (s) Projecto (s ) Sobre o Algodão

Durante o período de 1979 a 1980, o CEA levou a cabo uma série de pesquisas nas

províncias de Nampula e Zambézia sobre as dinâmicas da produção de algodão e o seu

contributo para o desenvolvimento socialista de Moçambique. Estas pesquisas resultaram

mais tarde na produção de onze Relatórios de Investigação458, dos quais quatro eram de

difusão restrita459.

Um dos principais objectivos destas pesquisas foi o de examinar o relacionamento

entre a planificação econômica a nível distrital, com o processo de cooperativização do campo

e a recuperação da produção algodoeira que tinha reduzido drasticamente após a

independência nacional. O CEA esteve preocupado em olhar para a questão da produção

algodoeira tendo em conta o contexto regional moçambicano, identificando os pólos de

desenvolvimento e núcleos de concentração de investimento. Foram assim levados a cabo

várias pesquisas sobre, por exemplo, a introdução de uma nova fábrica têxtil no distrito de

Mocuba, no norte do país, e a transformação e cooperativização do campo.

A grande expectativa do CEA era de que estes “Relatórios de Investigação” (pese

embora tratarem apenas de um caso específico: o distrito de Lugela) pudessem “servir de guia

de recolha de informação necessária para uma correcta planificação do desenvolvimento

socialista noutros distritos do país460”. Indo para além de uma análise do algodão em si, estes

estudos tentavam ligar esta questão a uma problemática mais alargada da socialização do

campo, da cooperativização, como também no desenvolvimento do sector industrial têxtil.

Daí então os investigadores reiterarem que a cooperativização do campo não era unicamente

um processo econômico, mas também uma revolução política, social e ideológica461”.

458 Para a lista destes relatórios, vide, Cotton production in Mozambique: a survey, 1936-1979, Maputo:CEA/

UEM, Rel. 81/4,1981. 459 Vide, CEA. O Descorçoamento de Algodão na Província de Nampula, Maputo: UEM/CEA, 1979,Maputo;

CEA. O Sector Estatal do Algodão: Força de Trabalho e Produtividade, um Estudo da UP II Metocheria, CEA, Maputo, 1979; CEA. Cotton Production in Mozambique: A Survey 1936-1979. Maputo: CEA, 1981; CEA. Cotton Production in Mozambique: A Survey 1936-1979, Maputo: CEA, 1981.; CEA. Actuação do Estado ao Nível do Distrito: O Caso de Lugela, Maputo: CEA, 1981.

460 CEA. Já não batem – A Transformação da Produção Algodoeira, Maputo: CEA, 1981. 461 Ibidem, p.1.

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Encontramos este tipo de preocupação com a importância do algodão na economia

regional, por exemplo, no Relatório “Já não batem – a transformação da produção

algodoeira”. O seu objectivo principal era então o de analisar, especificamente no distrito de

Lugela, as condições de reactivação, crescimento e transformação da produção algodoeira nos

sectores familiar e cooperativo. Para o CEA, estes dois sectores não constituíam uma esfera

fechada de produção, uma vez que estavam ligados ao mercado pela procura da força de

trabalho e pelo padrão de investimento estatal no desenvolvimento regional das machambas

estatais e indústria.

Assim, para o CEA, toda a planificação do fomento algodoeiro (“até a escolha de

manter ou não a produção de algodão num determinado distrito462”), teria que ser feita em

função dos planos de desenvolvimento regional. Em relação ao distrito de Lugela, que era o

foco de análise do Relatório, a sua transformação algodoeira teria necessariamente que ser

vista, na óptica do CEA, a partir da evolução da economia da Média - Zambézia, que tinha

como centro econômico a cidade de Mocuba.

Neste Relatório, os investigadores não deixaram também de fazer uma reflexão sobre

a evolução histórica da produção de algodão no distrito. Como afirmaram os investigadores,

“é particularmente importante tomar em conta a história da produção algodoeira no distrito na

formulação duma nova política de fomento463”. Com esta contextualização histórica, os

investigadores do CEA estavam principalmente preocupados em saber quem produzia, quais

os mecanismos de controlo, qual era o significado da abolição formal da cultura forçada, qual

era a importância do sector colono e qual era a experiência das cooperativas que estavam no

momento produzindo algodão. Pois que, na visão destes investigadores, a organização da

agricultura familiar em Lugela tinha sido estruturada a partir da história da presença colonial,

onde grande número de produtores, sobretudo mulheres, lutava para equilibrar a sua produção

entre a subsistência da família e a pequena machamba de algodão e mandioca (para venda e

alimentação da família), na ausência do esposo, trabalhador migratório.

O Relatório descreve, por outro lado, um sistema de baixa produtividade de trabalho

que não fornecia nem uma produção segura de algodão e nem uma base para a acumulação no

distrito. Daí então o CEA reiterar que somente através da integração de Lugela na economia

regional se poderia operar as transformações necessárias da cultura do algodão. No entanto, o

462 Já não batem , op.cit, p.2. 463 Ibid. p.5.

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CEA adverte, que não se podia explicar a baixa produção de algodão no distrito somente a

partir da estrutura dos preços; comparados, por exemplo, com a comercialização de outras

culturas como a do arroz, milho, girassol, mandioca, etc. De acordo com o estudo, mais

importante do que a tabela de preços na escolha da cultura era a segurança do rendimento que

tinha maior peso nas escolhas dos camponeses. O algodão, diferentemente da mandioca,

estava mais vulnerável às secas, pragas e chuvas inoportunas464.

Os investigadores terminam o Relatório, fazendo uma série de propostas às estruturas

competentes do Ministério da Agricultura, no sentido de repensarem as suas prioridades para

o aumento da produção e produtividade do algodão, dentro daquilo que era o plano de

desenvolvimento socialista de Moçambique. Sugerem, por exemplo, a reparação das

principais vias comerciais465, recomendam também “o corte do algodão dos programas para o

desenvolvimento das cooperativas naqueles distritos onde tanto as condições climáticas como

as de escoamento, não permitiam que o algodão se tornasse numa cultura rentável466”. Esta

proposta era assim uma reacção à pressão administrativa ao nível provincial de incluir nos

seus planos, cooperativas para o algodão que não tinham condições mínimas para o seu

desenvolvimento. Em terceiro lugar, os investigadores propõem uma “melhoria das técnicas

algodoeiras no quadro do desenvolvimento de cooperativas e produção467”.

Afirmaram ainda estes investigadores que os órgãos competentes do Ministério da

Agricultura como por exemplo a Direcção Provincial de Agricultura, deveria escolher certas

cooperativas onde se prestaria atenção especial aos condicionalismos de produção de algodão

e a sua integração com culturas alimentares. Para os autores deste Relatório, Instituo Nacional

de Agricultura (INA), deveria prestar um apoio técnico-cientifico mais do que financeiro. Daí

então proporem, por último, que esses organismos fizessem uma “reciclagem dos auxiliares

ligados à cultura algodoeira”. Esta reciclagem segundo os relatores envolveria três passos: o

estudo e reorganização pelo INA da informação básica que deveria ser recolhida no campo e a

preparação de novas fichas de controlo. Em segundo, o INA deveria também fazer um estudo

da informação básica sobre a cultura do algodão em relação às outras culturas. Deveriam

ainda serem preparados novos manuais que permitissem aos agentes a aplicação de

informação científica às condições concretas dos vários distritos, bem como a participação em

464 Ibid.., p. 11. 465Ibid., p.15. 466 Ibidem, p.16. 467 Ibidem, Idem.

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estágios de campo para a reciclagem dos auxiliares. Como podemos depreender, estávamos

mais uma vez em presença de um tipo de pesquisa social orientada para o fornecimento de

recomendações políticas que pudessem ser utilizadas pelo governo e pela FRELIMO.

6.6 A Comercialização Agrária: Estado, Sector Familiar e Privado

Nos meses de Julho de 1981 e Janeiro de 1982, o CEA, a partir de uma solicitação do

Ministério do Comércio Interno, produziu um estudo detalhado de um dos principais distritos

produtores de excedentes de milho da província da Zambézia (Alto Molócue), com o

propósito de compreender, naquele momento, o processo de comercialização de culturas

alimentares a nível distrital e em segundo lugar, propor uma série de melhoramentos da

planificação pelo Estado desse processo de comercialização. Pretendia-se que os resultados

dessas investigações pudessem ajudar o governo na formulação de políticas estatais

respeitantes à comercialização das culturas alimentares.

Este empreendimento culminou com a produção de dois Relatórios de Investigação,

ambos de difusão “restrita”: “Comercialização Agrária ao Nível Distrital: um estudo sobre o

Alto Molocué468” e “Comercialização Agrária: Métodos de Planificação”. Estes relatórios

defendiam a necessidade de uma análise do mercado privado na planificação da actividade de

comercialização do Estado, apontando ainda alguns dos perigos de não o fazer.

Argumentavam, por outro lado, que o processo agrário nestes distritos não era, no momento,

planificado na íntegra pelo Estado. Pelo contrário, segundo o CEA, ele era fortemente

influenciado pelas decisões dos produtores familiares, dos agricultores privados, dos

comerciantes privados e dos proprietários das moagens. Por exemplo, o sector familiar

acabava vendendo mais milho que ambos, o sector estatal e cooperativo.

É assim que o CEA, nestes relatórios vai enfatizar a importância do sector familiar na

comercialização agrária, criticando a forma como os dados oficiais subestimavam a sua

importância. Os investigadores argumentavam que a política de comercialização vigente, não

estava a conseguir atingir os seus objectivos, onde “em alguns aspectos os resultados obtidos

eram mesmo opostos aos desejados469”. Os Relatórios acabam assim recomendando às

estruturas políticas de que “para corrigir esta situação, era necessário introduzir alterações,

468 Este projecto teve também uma versão em inglês: Agricultural Marketing in the District of Alto Molócue. 469 CEA, Comercialização Agrária ao nível distrital, Maputo: UEM/CEA, 1982. p.1.

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não só na política de comercialização ao nível distrital, mas também nos métodos de

planificação aos níveis provincial e nacional470”. Por exemplo, uma maior intervenção do

Estado na comercialização agrária, como forma de eliminar a competição no seu seio, pelo

fornecimento de produtos alimentares, como também de reduzir o peso do capital privado no

circuito comercial, que segundo o CEA estaria a fomentar o aparecimento do mercado

paralelo.

Olhando por exemplo para o estudo, “Comercialização Agrária: Métodos de

Planificação”, podemos então surpreender de forma mais localizada algumas dessas

recomendações do CEA ao Ministério da Agricultura. Os investigadores do CEA tomam

como ponto de partida a constatação por parte do governo de que, apesar de Alto Molocué ser

considerado como um dos principais produtores excedentes de milho da província, a política

de comercialização não estava a atingir os seus objectivos. Um desses objectivos estava

directamente ligado ao papel do Estado em ampliar a sua capacidade de planificar a

distribuição de produtos alimentares, como também de aumentar a intervenção da empresa

estatal ligada a agricultura (AGRICOM) no mercado grossista de produtos alimentares.

Permitindo assim, que a Agricom pudesse distribuir directamente a maior parte dos

excedentes comercializados as populações.

Os investigadores deste Relatório constatam ainda neste estudo que a comercialização

agrária era extremamente lucrativa no distrito de Alto Molocué e que a rede privada estava a

expandir-se de forma exponencial, fazendo com que a Agricom ficasse cada vez mais afastada

do mercado grossista de milho. Esta situação, na óptica dos investigadores, estava ocorrendo

devido a política de preços que a Agricom praticava, facilitando assim a emergência de um

mercado paralelo de culturas alimentares (que somente beneficiava os comerciantes

privados). Os pesquisadores propõem então ao Ministério do Comercio Interno uma série de

medidas para melhor controlar a comercialização agrária no distrito, uma vez que “a

actividade estatal é muito mal planificada e coordenada471”.

Sugerem em primeiro lugar que se introduza “um sistema melhorado de recolha de

informações sobre as compras e vendas dos comerciantes privados. Para além disso, estes

investigadores propõem que a “Comissão Coordenadora Distrital da Comercialização Agrária

(CCDA) tome certas iniciativas no sentido de melhorar a coordenação entre os compradores

470 Ibibem. 471 CEA, Comercialização Agrária ao nível Distrital, Maputo: UEM/CEA, p.57.

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estatais e entre os vendedores estatais no que respeita as suas actividades no mercado de

milho do distrito. Com este tipo de recomendação, os investigadores pretendiam então

“solucionar”, por exemplo, o problema da competição entre as estruturas do Estado, que

estava a gerar o mercado paralelo. Em segundo lugar, recomendam que o distrito advogue a

necessidade de se introduzir uma estrutura de preços que permita a Agricom pagar preços

idênticos aos das moagens e de outros compradores grossistas de milho. Por último, e tendo

em conta que a comercialização agrária no distrito era rentável, os investigadores sugerem

que a administração estatal poderia tentar estimular e apoiar a actividade das cooperativas na

comercialização das culturas do sector familiar.

6.7 Examinando o Falhanço das Aldeias Comunais

O sexto e último Relatório a ser apresentado nesta secção, intitula-se: “Poder Popular

e Desagregação nas Aldeias Comunais do Planalto de Mueda”472. Tal como os anteriores,

enquadra-se perfeitamente nas prioridades políticas da FRELIMO para o desenvolvimento

socialista, que o Centro e o Curso de Desenvolvimento procuraram ter como ponto de partida

para a definição dos objectos de pesquisa. É de referir, que este “Relatório de Investigação”

diferentemente dos até aqui apresentados tinha sido produzido maioritariamente pelos

investigadores da Oficina de História em Dezembro de 1985 e publicado em no ano seguinte.

Esta pesquisa abordou um tema duplamente sensível para o poder: primeiro, pelo facto

de analisar criticamente a ineficácia do projecto “Frelimista” da construção das aldeias

comunais nas zonas rurais, mas também pelo facto do falhanço deste projecto se ter dado

precisamente no distrito de Mueda, um lugar com um grande significado simbólico para a

FRELIMO. Como sabemos, tinha sido aí onde se dera o inicio da luta armada e onde tinham

sido construídas as primeiras “zonas libertadas” “governadas” pela FRELIMO.

A partir de uma análise focalizada em três aldeias comunais pertencentes à localidade

de Ngapa, os investigadores da “Oficina” examinaram criticamente os factores da

“desagregação” das aldeias comunais, não se coibindo de enfatizar a fragilidade da

FRELIMO e do Estado moçambicano como um dos factores principais neste processo de

472 O trabalho de campo foi realizado concretamente na localidade de Ngapa, província de Cabo delgado,

situado junto a fronteira entre Moçambique e Tanzânia. Estavam sob jurisdição desta localidade 13 aldeias comunais que serviriam de objecto de análise da pesquisa.

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desarticulação das novas formas de organização colectiva dos camponeses, erigida como uma

das grandes políticas na construção do socialismo em Moçambique. Os relatores do estudo

utilizaram aqui o termo “desagregação” para indicar o regresso ou mesmo a fuga das

populações das aldeias comunais para locais dispersos de povoamento, um processo que

segundo os investigadores, o Estado tinha sido incapaz de reverter.

Segundo os investigadores do CEA, apesar de estas aldeias terem origens distintas, os

problemas e contradições que elas encerravam na altura da investigação, eram similares.

Todas elas, caracterizaram-se pelo “não funcionamento das estruturas políticas, crise de

abastecimento, crise de produção agrícola, má localização e fraco apoio ao sector familiar473”;

enfim, elementos que na óptica deste investigadores, estavam na base da maior incidência, a

partir dos anos 1980 do fenómeno da “desagregação das aldeias comunais474.”

De acordo com estes investigadores, os factores da “desagregação”, estavam

intimamente ligados à actuação do partido e do governo local, pela sua “falta de direcção

sólida” e “fraqueza da acção política da FRELIMO475”. Agravado ainda pelo aparecimento de

uma de crise de alimentação e de roupa, como também a “inexistência quase total de

diversões ou de organizações de lazer”476, o que teria levado ao exacerbamento do

descontentamento entre os camponeses, interpretados pelas estruturas políticas, como “actos

de rebeldia477”. Afirmam ainda os investigadores, que nesses casos foram utilizados métodos

de coação e de punição (aos considerados “cabecilhas da desagregação”), para fazer os

camponeses voltarem para as aldeias comunais pertencentes à localidade de Ngapa. Foram

também os considerados infractores, em outros casos, objecto de punição.

Perante este cenário de crise de produção, de comercialização e de legitimação das

políticas do governo em relação ao desenvolvimento rural, os investigadores acabaram

questionando a própria existência do “poder popular”, ou de “ participação popular”, slogans

tão comummente propalados pelos discursos oficiais. Como afirmaram os investigadores, “o

facto de se ter conseguido fazer funcionar o poder popular nas antigas zonas libertadas não

podia de maneira nenhuma significar que a continuação do poder popular ia automaticamente

473 CEA. Poder Popular e Desagregação nas Aldeias Comunais do Planalto de Mueda. Maputo: UEM/ CEA,

1986, p.13. 474Ibid., , p.18. 475 Ibidem, p.19. 476 Ibidem, p.52. 477 Ibidem, p.39.

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ser assegurada”478.

É assim, que o estudo vai argumentar que formas de “poder popular” em Cabo

Delgado e, mais concretamente na localidade de Ngapa, tinham sido “impostas” pelo partido

e Estado, e não algo que tinha surgido, espontaneamente, a nível da base. O problema,

segundo o colectivo de investigadores, residia no tipo de relações que existia entre a direcção

política e a população. Os resultados da pesquisa iriam mostrar, que essa relação não era

horizontal ou democrática. Devido a esses “formalismos do Estado”, os funcionários do

aparelho estatal e membros do partido com a sua “atitude de superioridade”, contribuíam para

que a população desenvolvesse uma atitude mais passiva sobre as formas de “ poder popular”,

como “coisas que o governo vai trazer”. O “poder popular” vai, deste modo, aparecer como

uma coisa pré-fabricada, quase uma mercadoria479.” Daí então os autores do estudo,

argumentarem, que era legítimo ver a desagregação das aldeias comunais como uma

desagregação do poder popular.

Com este argumento, os investigadores pretendia rebater a interpretação do governo

de que a “desagregação” era um fenómeno ligado simplesmente às aldeias comunais e às

“práticas rebeldes”, “tradicionais” ou até de “feitiçaria” de alguns camponeses, que

supostamente estavam contra a política da FRELIMO. Como afirmaram os investigadores,

“seria errado reduzir a desagregação das aldeias a manifestações de forças antagonicamente

opostas à FRELIMO”. Não obstante advertirem que “embora numa fase ulterior tais forças

podem, na situação actual, encontrar o meio ambiente para eclodir480.”

Como podemos notar, este último argumento avançava, timidamente, hipóteses sobre

as origens do conflito armado no pós-independência, que seriam exploradas, nesse mesmo

ano, por Christian Geffray, na sua análise da base social da guerra civil em Moçambique. É

importante no entanto referir, que o exemplo de Cabo Delgado era fraco para demonstrar essa

ligação entre ressentimento, insatisfação, desagregação dos camponeses em relação às

políticas agrárias da FRELIMO e a natureza da guerra da RENAMO. Como afirmou mais

tarde Colin Darch (1989), investigador e documentalista do CEA, “o caso de Cabo Delgado,

não teve nenhuma ligação orgânica com a emergência do banditismo481”.

478 Ibid., p.1. 479 Ibidem, p.60. 480 Ibidem, p.61 481 Ver, DARCH, Colin. Are there Warlods in Provincial Mozambique? Questions of the Social Base of MNR

Banditry. ROAPE,nº 45/45,1989, p.34-49.

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7. A OFICINA DE HISTÓRIA: O “HOMEM NOVO” E A NOVA HISTÓRIA

7.1 História e Memória

Um dos grandes anseios da FRELIMO logo após a independência nacional foi sempre

o de criar condições para a construção de uma narrativa histórica nacional, que pudesse

manter viva a memória da experiência da luta de libertação nacional, como também, e agora

num âmbito mais alargado, de restituir a dignidade do povo moçambicano que tinha sido

“silenciada” pela historiografia colonial. E foi de facto no CEA que a tarefa de reescrever a

história de Moçambique foi levada a cabo de uma maneira mais sistemática482. A presença da

figura de Aquino de Bragança como director do Centro foi, de facto, preponderante para esta

tomada de dianteira do Centro na produção da história da luta armada. Como afirmou

Depelchin,

Nós estávamos a fazer a história das zonas libertadas. A história das zonas libertadas é uma história bastante controversa. Controversa no sentido em que quem conta, como se conta e há uma história oficial que tem que ficar uma história oficial…e havia uma apreensão por parte dos dirigentes de que esta coisa poderia sair do caminho483.

Ambos os dirigentes do CEA, Aquino de Bragança e Ruth First tiveram ligações

muito fortes com membros séniores da FRELIMO, como Samora Machel, Marcelino dos

Santos dentre outros. Aquino de Bragança e Ruth First nutriam uma grande amizade com

Samora Machel antes mesmo da independência nacional. Foi então devido a esta confiança e

reconhecimento das suas capacidades diplomáticas que Aquino foi escolhido para servir de

482Apesar de encontrarmos também este tipo de empreitada no departamento de história da UEM, com a

elaboração e publicação nos anos 1980 e 1983 dos dois volumes da História de Moçambique, foi a Oficina, que de uma forma sistemática procurou reelaborar a história tendo como particular enfoque na construção histórica da experiência da luta armada.

483 Entrevista com Jacques Depelchin, março, 2007.

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intermediário nas negociações do governo de transição em 1974, tendo permanecido,

“conselheiro pessoal” do presidente Samora, até a morte de ambos. Já José Luís Cabaço484,

advertia que, “O Aquino de Bragança por razões históricas tinha uma influência pessoal

grande sobre o poder485”.

Como se pode depreender, não havia espaço para se criar polémicas à volta da história

recente de Moçambique. A FRELIMO, requereu aos historiadores que praticassem aquilo a

que Terence Ranger (apud Jewsiewicki, 1989) denominou de “passado usável486”, quer dizer

a produção da história relevante para as preocupações nacionais da construção de uma

sociedade socialista sob liderança do partido marxista-leninista da FRELIMO. Samora

defendeu que o marxismo em Moçambique deveria vir da prática, do contexto moçambicano,

enfim da própria história moçambicana. E, na mesma senda, o presidente também sabia que

Aquino de Bragança era um intelectual crítico, não dogmático e que não aceitaria a produção

de uma história “oficial”, com o único objectivo de legitimar a ideologia dominante.

Foi assim que Aquino de Bragança, com o apoio do historiador congolês Jacques

Depelchin487, funda em 1980 no Centro, a Oficina de História, um colectivo de jovens

historiadores moçambicanos, como Luís de Brito, Alexandrino José, Yussuf Adam, Isabel

Casimiro, como também de historiadores estrangeiros como Ana Maria Gentil, Valdemir

Zamparoni488 e Gary LittleJohn. Este colectivo pretendia trazer uma nova abordagem no

trabalho do CEA, introduzindo uma pesquisa fundamentalmente histórica, distinguindo assim

do que até então era o foco de análise do Centro: a análise da economia política de

Moçambique, com enfoque na transformação social e condições de produção. Como afirmou

Depelchin, a Oficina de História, “procurava fazer uma recuperação da história nacional e de

resgatar uma história que tinha sido manipulada, esquecida pelo poder colonial em

484 Sociólogo moçambicano, foi durante os anos da “transição socialista”, ministro dos transportes como também

da informação. 485 Entrevista com o autor, Setembro, 2007. 486 JEWSIEWICKI , Bogumil. African Historical Studies Academic Knowledge as 'Usable Past' and Radical

Scholarship. African Studies Review, Vol. 32, nº 3, Dezembro, 1989, p. 1-76. 487 Jacques Depelchin acabara de chegar da Universidade Dar es Salaam onde estivera como docente no período

de 1975 a 1979. 488 Valdemir Zamparoni, na altura ainda um jovem recém graduado em História na Universidade de São Paulo, e

já com um grande interesse pelos estudos africanos, foi então convidado em 1979, (um ano antes da fundação da Oficina de História) por Aquino de Bragança, que estava de passagem pelo Brasil, a se integrar no CEA por seis meses. Chegou a Moçambique em Setembro de 1981 e começou a trabalhar na Oficina de História, onde ficou até 1984. Entrevista com o autor, Agosto, 2007.

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Moçambique”489.

No mesmo diapasão, Teresa Cruz e Silva também alude a esta preocupação com a

reconstrução da nova historiografia nacional,

A Oficina de História tentou principalmente recuperar essa parte da história que tinha sido riscada, esquecida, portanto, trazer a história de Moçambique que ninguém conhece. Fazer conhecer aos jovens a história de Moçambique, a luta armada de libertação nacional, o que eram as zonas libertadas, etc. E foi uma nova experiência para os pesquisadores: o contacto, por exemplo, com as zonas libertadas490.

Esta nova história de Moçambique iria ser construída principalmente a partir do

método da história oral, através da produção de “histórias de vida”, narrativas orais e

narrativas biográficas, de ex -combatentes na luta de libertação nacional, dos operários e

camponeses491. A introdução do método da história oral estava, segundo a Oficina de

História, directamente ligada a uma tentativa de "democratizar e popularizar” uma nova

forma de se fazer a história, dando “voz” aos moçambicanos que tinham sido “silenciados” no

período colonial, como também a uma forma de ir “contra a pesquisa histórica e acadêmica

(burguesa)”. Como afirmaram estes historiadores,

A fonte oral constituía uma oportunidade excepcional de dar à voz ao povo. Mas esta palavra tem que ser dada não num espírito acadêmico ou paternalista, que deixe a palavra final aos especialistas acadêmicos, historiadores profissionais, mas num espírito revolucionário visando respeitar, promover a criatividade dos actores e portadores principais

489 Entrevista com Jacques Depelchin, março, 2007.. 490 Entrevista com Teresa Cruz e Silva, agosto de 2007. 491 A Frelimo não fez menção de forma insistente ao passado pré-colonial, diferentemente por exemplo de alguns

líderes africanos, como Senghor, Nyerere que glorificavam uma África, “tradicional”, comunitária, solidária, onde não existiriam conflitos de qualquer ordem. O novo poder político em Moçambique apelou mais por um projeto modernizante, que procuraria construir o “homem novo” e uma sociedade “socialista sem exploração do homem pelo homem” sem classes.

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da História492.

Entretanto, era também uma pesquisa que envolveu trabalho de arquivo sistemático,

análise documental e estatística. Como afirmou Yussuf Adam um dos membros fundadores

deste colectivo de pesquisa histórica,

Chamar o nosso projecto, de “projecto de história oral” também é uma brincadeira porque envolvia todo um trabalho de consulta documental profunda. Tínhamos dois objectivos, um era de conhecer a realidade que estava lá e outra de manter a memória493.

Os historiadores do CEA estavam profundamente conscientes das “distorções”

produzidas pela historiografia colonial, baseada essencialmente em fontes escritas,

nomeadamente em escritos de viagens de exploradores, discursos etnográficos, etnológicos,

etc. Argumentavam ainda, que a introdução de fontes orais na produção da nova história de

Moçambique, significaria um corte radical com a pesquisa colonial, eurocêntrica. Era preciso

então escrever a nova história de Moçambique com novos instrumentos teóricos e práticos.

Não bastava pôr fim ao sistema colonial português. Era preciso fazê-lo partindo de uma teoria

e de uma prática que não seguisse os métodos e modelos do inimigo494. Fazendo alusão a essa

historiografia colonial, a Oficina de História observa,

Nessas fontes escritas, cheias de mistificações, onde o verdadeiro é misturado com o falso, encontramos mais uma razão para encorajar a produção duma historia oral vinda directamente do povo, porque é nesta história que se encontrarão as peneiras para começar a separar os mitos e suposições dos factos495.

492,NÃO VAMOS ESQUECER! nº 1, Boletim Informativo da Oficina de História, Maputo, Fevereiro,1983, p.38. 493 Entrevista com o autor, Julho, 2007. 494 NÃO VAMOS ESQUECER! nº 1, Boletim Informativo da Oficina de História, Maputo, Fevereiro,1983, p.4. 495 NÃO VAMOS ESQUECER!,, nº.1, Ano I, Fevereiro, 1983, p.39.

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No entanto, é preciso referir que a Oficina de História, tinha consciência dos riscos

que uma abordagem exclusivamente biográfica poderia ter na pesquisa como um todo.

Segundo estes, “o método de utilizar a história biográfica do operário, como maneira de entrar

no mundo do trabalhador, contém o risco de dar uma ideia errada das características centrais

da vida do trabalhador”496.”

O historiador, e africanista inglês, Allen Isaacman (1990), foi um dos autores que

também reflectiu sobre a problemática das fontes orais. Segundo ele, uso de biografias e

narrativas orais na historiografia dos estudos africanos, desafiavam o cânone da historiografia

ocidental e o pressuposto de que somente se podia produzir narrativas biográficas dos

“homens de letras”, de personagens ilustres, instruídas, etc., e jamais por exemplo da classe

trabalhadora ou camponesa497. É portanto, no caso particular de Moçambique, que o CEA

vem desafiar esta perspectiva, trazendo através da Oficina de História, relatos do “outro”

excluído da historiografia convencional e no caso de Moçambique colonial. Uma outra forma

de desafiar a historiografia colonial, na óptica da Oficina de História, era de conceptualizar o

grupo dos operários e dos camponeses como “classes produtivas”. Segundo a Oficina de

História, “em Moçambique as classes produtivas devem ser entendidas não somente como

produtores de riqueza material, mas mais importante, como produtoras das zonas libertadas, o

que quer dizer, produtores de um contra-Estado”.498

Esta abordagem em termos de “classe”, significou também na visão da Oficina de

História, “uma rejeição da sua antropologização, que se reflectia na tendência da disciplina

relegar os camponeses para o seu aspecto tribal”499. A Oficina de História concentrou

inicialmente os seus esforços na produção da história da luta armada de libertação nacional a

partir da experiência das “zonas libertadas”, consideradas como o “laboratório da

496 NÃO VAMOS ESQUECER!,, nº2/3, Dezembro, 1983, p.5. 497 Vide, por exemplo, ISAACMAN, Allen. Peasants and Rural Social Protest in Africa. African Studies Review,

Vol. 33, nº 2, Setembro, 1990, p. 1-120. 498 OFICINA DE HISTÓRIA., CEA. Towards a History of the National Liberation Struggles in Mozambique;

Problematics, methodologies, analysis. Reunião de especialistas sobre problemas e prioridades na formação em Ciências Sociais na África Austral, Maputo, 9-13, de Agosto, 1982.

499 Idem,p.3.

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revolução500”, por terem sido uma espécie de primeiro ensaio (antes da conquista do poder do

Estado) da FRELIMO, em “governar” as suas populações.

A Oficina de História sustentava, que a problematização da nova história de

Moçambique deveria vir de referências locais e não de aproximações ou associações com

outros contextos ou modelos. Daí a necessidade, segundo os historiadores do CEA, de se

focalizar na experiência concreta e ainda viva dos moçambicanos, que tinham participado

directamente na luta de libertação nacional. No entanto, a Oficina de História estava também

ciente do perigo que poderia significar na produção da historia nacional, uma ênfase excessiva

na experiencia da luta armada e das “zonas libertadas”. Para a Oficina de História, “ uma

compreensão total dessa história significava também olhar para as “zonas não libertadas” e o

contexto geral da luta no continente africano501.

A interacção com as populações rurais (camponeses, ex-combatentes da luta armada,

trabalhadores migrantes, etc.), e a preocupação em torná-los desta vez sujeitos da história, em

clara antítese a sua “invisibilidade” na historiografia colonial, traduziu de facto num novo

desafio para a maior parte dos pesquisadores do CEA, principalmente dos “jovens

historiadores moçambicanos que, de uma forma geral, tinham tido pouca experiencia de

trabalho empírico nas comunidades. Segundo Bridget O'Laughilin,

Os historiadores não faziam nenhuma formação, porque não sabiam investigação de campo. A experiência de investigador normalmente era fazer documentação, mas quando chegou o Jacques e depois a Ana Maria Gentili, formaram a Oficina e começaram a fazer investigação de campo, aquela em Cabo Delgado502.

Ana Maria Gentili, historiadora italiana, que tinha estado também a leccionar na

Universidade de Dar-es-Salaam e que em 1981 juntava-se à equipe da Oficina de História, é

quem afirma,

500 OFICINA DE HISTÓRIA. Towards a History of the National Liberation Struggles in Mozambique;

Problematics, methodologies, analysis. Reunião de especialistas sobre problemas e prioridades na formação em Ciências Sociais na África Austral, Maputo, 9-13, de Agosto, 1982.

501 Idem. 502 Entrevista com Bridget O´Laughilin, agosto, 2007.

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Para mim foi uma experiência muito dura. Eu não estava habituada a trabalhar assim. Era uma acadêmica, antes de vir para Moçambique. Estava mergulhada nos livros, lia todos os livros, tinha uma posição muito intelectual. Comecei a ter dúvidas na Tanzânia, mas aqui tive muito mais, porque aqui, na investigação, nós os investigadores, confrontávamos com as nossas ambiguidades, os nossos problemas, os nossos privilégios503.

7.2 “Tensões Criativas504” no Nascimento da Oficina de História

Na secção anterior procurou-se mostrar que um dos propósitos principais na criação da

Oficina de História tinha sido a necessidade premente de construir uma nova história de

Moçambique, livre dos preconceitos da ciência colonial e em consonância com os desígnios

da reconstrução nacional e do futuro socialista. No entanto, houve também outros factores que

impulsionaram a sua emergência. Por exemplo, podemos olhar para a fundação da Oficina de

História, como uma forma do director do CEA, Aquino de Bragança, tomar também parte

activa na pesquisa e de certa maneira, contrabalançar, a partir de uma abordagem do campo

da História, as análises “economicistas” lideradas por Ruth First, Marc Wuyts e Bridget

O´Laughilin505. Como afirmou Isabel Casimiro,

Eu penso também que o Aquino queria ter um grupo de moçambicanos que pudessem fazer uma reflexão, um grupo onde se sentisse mais integrado, é a minha interpretação, porque todos os outros sectores, a Ruth First, como directora de investigação, controlava muito mais, e o Aquino achava que era fundamental que a gente fizesse a tal reflexão crítica sobre a luta armada.506

Uma outra razão para criação da Oficina de História esteve ligada às críticas por parte 503 Entrevista com Ana Maria Gentili, junho, 2007. 504 Esta foi uma das frases que João Paulo usou para descrever os conflitos internos do CEA, como também na

sua interacção com outros departamentos da universidade naquele contexto histórico, a quando da conferência sobre Ruth First realizada em Maputo em Agosto de 2007.

505 Esta questão dos diferentes programas de pesquisa do CEA, como também das “tensões “ entres os vários investigadores do Centro, serão discutidos com mais detalhe no capítulo nº10.

506 Entrevista com Isabel Casimiro, agosto, 2007.

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de outros investigadores da universidade de que o CEA estava demasiadamente circunscrito a

pesquisa sobre a economia política de Moçambique e questões geo-estratégicas da África

Austral, sem nenhum aporte de pesquisa histórica. É assim, que Aurélio Rocha, historiador,

professor e investigador no departamento de história da UEM afirma que,

Quase como respondendo à nossa crítica de que era preciso introduzir uma perspectiva mais da História, o Aquino acabou por ser determinante na criação da Oficina de História. Foi criada já numa fase tarde do CEA, e ai começaram-se a desenvolver alguns estudos de História interessantes, com a coordenação de Jacques, Ana Maria507.

É ainda Carlos Serra quem partilha da mesma opinião,

O CEA na altura era criticado, por exemplo, pelo Departamento de História da UEM de se dar muita ênfase numa abordagem da economia política. Isto, vai contribuir para o surgimento da Oficina de História sob a direcção de Jacques Depelchin508”.

Não obstante encontrarmos aqui diferentes leituras sobre a fundação da Oficina de

História, um factor que não pode ser descurado é segundo as palavras do sociólogo, José Luís

Cabaço, o “sentido apurado da história em Aquino de Bragança.509” De facto, só poderemos

compreender a existência de um colectivo de pesquisa histórica no CEA, idealizado e

concretizado por Aquino de Bragança, se levarmos em conta o percurso intelectual e o

contexto em que este personagem viveu. Como observou Immanuel Wallerstein (1987),

Aquino de Bragança jogou três diferentes papéis na sua vida. O de militante, quando ainda

507 Entrevista com Aurélio Rocha, setembro, 2007. 508 Entrevista com Carlos Serra, agosto,2007. 509 Entrevista com o autor, setembro, 2007.

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jovem em Goa (Índia) e mais tarde em Lisboa, Paris, Rabat e Argel, mergulhou

profundamente no activismo anti-colonial a favor dos países africanos de expressão

portuguesa.

Como jornalista radical510 e também como um elemento chave na criação (juntamente

com nacionalistas africanos como, Agostinho Neto, Amílcar Cabral e Marcelino dos Santos)

da Conferência das Organizações Nacionalistas das Colônias Portuguesas (CONCP). Aquino

de Bragança jogou um papel preponderante na emergência dos movimentos de libertação

nacional nessas colônias, como também no sucesso das independências africanas. Marcelino

dos Santos afirmara a propósito que, “os primeiros fornecimentos de armas aos movimentos

de libertação fizeram-se por intermédio de Aquino de Bragança, que organiza igualmente o

apoio logístico aos movimentos de libertação”511.

Em 1974 com o fim do colonialismo, Aquino teve um papel central nas negociações

que levariam aos acordos de Lusaka, onde Portugal reconheceu a independência de

Moçambique governado pela FRELIMO. Estávamos então em presença, do segundo papel de

Aquino de Bragança, o de diplomata. Devido à sua integridade e compromisso com a luta

anti-colonial, Aquino tinha conquistado a confiança dos líderes da FRELIMO e especialmente

do presidente Samora, tendo sido em outras ocasiões, chamado para missões diplomáticas em

várias partes do mundo. Depois da independência em 1975, com a FRELIMO no poder,

Samora logicamente disse: Aquino vamos para casa e ele naturalmente veio para casa. E ele me disse uma vez que nunca na vida, ele sentiu que não estivesse em casa dele aqui512. Sentiu-se sempre parte desta comunidade, da comunidade da FRELIMO e também da própria comunidade aqui, porque já tinha cá estado no período colonial e tinha também amigos que não eram da FRELIMO513.

510 Escreveu sob temas relacionados com os países africanos então colónias portuguesas nos jornais radicais,

“Revolution Africaine” e “Afrique-Asie” e que viria a ter um grande impacto, numa primeira fase, na formação dos movimentos de libertação e mais tarde numa maior consciencialização do mundo sobre a legitimidade da luta armada desses movimentos e das atrocidades do colonialismo português.

511 Elogio fúnebre de Aquino de Bragança, por Marcelino dos Santos, In: Research Bulletin – Southern Africa and the World- Economy, Fernand Braudel Center for study of Economics, historical systems, and civilizations, State University of New York, Binghamton, New York, USA, Junho, 1987.

512 Aquino de Bragança nasceu em 1928 em Goa, Índia. 513 Entrevista com José Luís Cabaço, setembro, 2009.

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Aquino de Bragança muda-se então definitivamente para Moçambique, “onde Samora

Machel deu-lhe muitas posições e ele apenas requereu uma: a criação do CEA514”. Quatros

anos, é fundada a Oficina de História. A sua linha de trabalho com a Oficina de História a

não era de simplesmente fazer a história dos movimentos de libertação, mas sim transformar

as mentalidades e as condições de produção do país. Como afirmou Isabel Casimiro,

O Aquino considerava que era muito importante que a FRELIMO se pensasse, que a FRELIMO se reflectisse para que não acontecesse com este movimento de libertação o mesmo que tinha acontecido com outros movimentos de libertação que não criaram essa capacidade de se criticar e a história passou a ser feita por outros. E foi na Oficina de História, que nós começamos de facto a pensar no poder popular nas antigas zonas libertadas, que se começa a fazer estudos sobre a produção nas antigas zonas libertadas e aí surge também o estudo sobre a participação da mulher na luta armada515.

É então a partir do seu compromisso com a transformação das condições sociais

através da liderança de uma pesquisa crítica e honesta, que se nos revela, na óptica de

Wallerstein o terceiro papel de Aquino de Bragança: o de “revolucionário”. Para este autor,

Aquino preferiu criar um centro de pesquisa não porque estivesse “enamorado com a pesquisa

ou os arquivos”, ou mesmo que almejasse alcançar a “torre de marfim”. Pelo contrário, na

opinião de Wallerstein, Aquino teria feito essa escolha porque,

Queria ser mais do que um militante afrontando o inimigo ou um diplomata defronte do interlocutor. Ele queria ser um revolucionário e ele sabia que revolucionários enfrentam os seus camaradas, lutando com eles na busca de como realmente transformar o mundo516.

514 WALLERSTEIN, Immanuel, Southern Africa and the World- Economy. Research Bulletin, Fernand Braudel

Center for study of Economics, Historical Systems, and Civilizations, Binghamton: State University of New York Press, Junho, 1987.

515 Isabel Casimiro na Conferencia sobre Ruth First, organizada pelo CEA/UEM, Maputo, Agosto, 2007. 516 WALLERSTEIN, Immanuel, op.cit, 1987.

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7.3 Produzir uma História Crítica ao Cânone

O que significava pesquisa histórica objectiva e crítica, num contexto de partido único

e da agravação das condições sociais e econômicas? Quais eram as possibilidades e limites

dessa isenção na pesquisa? Quais os limites da critica aberta, isenta e imparcial em relação a

FRELIMO? Como fazer a crítica da crítica?

Uma das chaves que poderá responder a algumas destas questões pode ser encontrada,

no artigo, “Da idealização da FRELIMO à compreensão da História de Moçambique,517

escrito em 1986, pelos fundadores da Oficina de História, Aquino de Bragança e Jacques

Depelchin. Este artigo é basilar para se compreender os limites do engajamento crítico da

Oficina de História, na análise da realidade moçambicana a partir das prioridades políticas do

Partido/Estado.

O texto, apresentado num seminário organizado pelo CEA em fevereiro de 1986,

pretendia reflectir sobre as possibilidades de uma re-escrita da história da FRELIMO e de

Moçambique a partir das contradições que o país vivia na altura. Seria assim, um convite à

produção de uma pesquisa objectiva e iconoclasta sobre o percurso da FRELIMO desde a luta

de libertação nacional até a situação presente do controle do poder do Estado. Esta reflexão é

realizada a partir de uma análise critica das obras de John Saul A difficult road – the transition

to socialism in Mozambique publicado em 1984, e de Joseph Hanlon, Mozambique - The

revolution under fire de 1985518. Aquino de Bragança e Jacques Depelchin519 (1986), ao

fazerem a resenha crítica das duas obras, trazem também dados que nos permitem reflectir

sobre a visão do CEA em relação à metodologia da investigação histórica, como também a

sua concepção de como deve ser abordada a história de Moçambique.

Bragança e Depelchin (1986), argumentaram que estes “autores não são neutros e que

517 Vide, ESTUDOS MOÇAMBICANOS, nº 5/6, Maputo: CEA, 1986. 518 Dois autores com grande interesse de pesquisa sobre Moçambique pós-colonial. John Saul, sociólogo

canadiano, tinha estabelecido contacto com a Frelimo, antes da independência, quando este foi convidado por Samora Machel a visitar as “zonas libertadas” da Frelimo. Nos anos subsequentes à independência nacional, veio trabalhar em Moçambique como professor, tanto na escola do partido, como também na Faculdade de Marxismo-Leninismo. Joseph Hanlon, jornalista britânico. James Cobbe, sucintamente descreveu estes dois autores como red and expert, quer dizer, ambos pesquisadores, tinham conhecimento profundo sobre a história pós-colonial mocambicana e estavam comprometidos com os objectivos da Frelimo de construir uma “nação socialista” em Moçambique.

519 Tendo em conta que estes foram os fundadores da Oficina de História do CEA.

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concordam inteiramente com as opções da FRELIMO”520, sendo esse facto, que na óptica de

Bragança/Depelchin constitui um dos problemas centrais das suas obras. É então este

engajamento (a-crítico) à ideologia da FRELIMO que leva John Saul e Joseph Hanlon a

produzirem uma “crónica de uma historiografia vitoriosa521”, onde são somente abordados os

aspectos positivos da FRELIMO e sempre de uma forma inquestionável, não se detendo no

mais importante, segundo a Oficina de História, que seria a análise das contradições que

levaram a FRELIMO vitoriosa à situação actual522.”

Para Aquino de Bragança e Jacques Depelchin (1986), era preciso formular novas

perguntas, escrevendo deste modo, a história da FRELIMO à luz das contradições que

existem no seio da sociedade moçambicana contemporânea. A análise histórica deveria ir

deste modo, para além da história “oficial”, do “texto inalterável”, aprofundando a crítica e

analisando a “realidade tal como ela é523” e não procurando dar respostas que simplesmente

reforçam a ideologia dominante e não baseadas numa crítica objectiva dessas mesmas

ideologias. Para estes autores, a história oficial tem a “tendência a ser uma história teleológica

e auto-justificativa524”.

Na óptica dos fundadores da Oficina de História, “ nenhum dos autores tenta

problematizar as fontes oficiais525”, utilizando por exemplo acontecimentos chaves na história

da FRELIMO, como os congressos, os discursos oficiais do presidente Samora, como se não

necessitassem de serem postos à prova na pesquisa empírica. Aquino de Bragança e Jacques

Depelchin (1986), tocaram ainda num ponto crítico das ciências política, quando afirmam que

John Saul e Joseph Hanlon não conseguiram discernir que em alguns casos “as intenções

demonstram a existência formal de estabelecer o poder popular, mas que estas não são

concretizadas526”. Para os dirigentes da Oficina de História, se a investigação não souber

colocar a questão do, “porquê” da não coincidência entre as intenções e a realidade, “o campo

ficará totalmente aberto para as respostas do inimigo527.”

520 BRAGANÇA, Aquino; DEPELCHIN, Jacques. Da idealização da Frelimo a compreensão da História de

Moçambique. Estudos Moçambicanos, nº.5/6, Maputo: CEA/UEM, 1986, p.30-52. 521 BRAGANÇA, Aquino; DEPELCHIN, Jacques, op.cit, p.31. 522 Ibid. 523 Ibidem,p.33. 524 Idem.Ibid. 525 Ibidem,p.38. 526 Idem.Ibid. 527 Ibidem, p39.

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Há ainda uma crítica dirigida à John Saul, pelo facto deste autor, na óptica de Aquino

de Bragança e Jacques Depelchin, reduzir a relação entre ideologia, partido e Estado a um

problema técnico e pedagógico de escolha do melhor método de ensino do marxismo-

leninismo528. Aquino de Bragança e Jacques Depelchin dão o exemplo do enceramento da

Faculdade de Marxismo-Leninismo: para Saul a razão do seu encerramento se devia ao facto

de a referida disciplina ser ensinada de uma “forma abstracta, e desligada das condições

materiais de Moçambique”. Aquino de Bragança e Jacques Depelchin, concordaram

parcialmente com este argumento, porém afirmam que o problema é ainda mais complexo e

tem que ser analisado tendo em conta as contradições e as lutas a nível de toda a sociedade,

pois que a alusão a uma “abstracção ao nível do ensino do marxismo-leninismo” era reflexo

duma divergência mais profunda entre a teoria e prática. Segundo Aquino de Bragança e

Jacques Depelchin, o processo de abstracção do marxismo-leninismo começava primeiro pelo

“afastamento do partido das massas”, onde esta causa principal tem depois efeitos no

ensino529.”

É então a partir desta análise que estes autores fazem aos livros de Saul e Hanlon, que

poderemos surpreender a proposta (teórica e prática) de um ethos científico em relação ao que

deveria ser a postura crítica do trabalho do CEA e, neste caso particular, da Oficina de

História. Em suma, de acordo com o director do CEA, na produção da nova história de

Moçambique pós-colonial, era preciso primeiro começar por uma reanálise da história da

FRELIMO a partir das suas contradições e não de se focalizar exclusivamente nas suas

vitórias, políticas e liderança. Em segundo lugar, esta análise das contradições deveria ser

feita separando aquilo que era a história da FRELIMO como movimento que desencadeou a

luta armada e conquistou a independência, da própria história de Moçambique. Em terceiro,

era preciso sempre ter em conta a análise crítica das relações entre as intenções e a realidade

concreta, desconfiando sempre da “história oficial”, “teleológica e auto-justificativa530”.

Fica no entanto uma questão a ser avaliada: até que ponto estes postulados que

Bragança e Depelchin, propõem na investigação crítica da história de Moçambique, foram, de

facto, inerentes à praxis científica da Oficina de História? Já de seguida iremos apresentar

alguns dos trabalhos históricos realizados pela Oficina e publicados na sua revista, Não

528 Ibidem,p.45-46. 529 BRAGANÇA, Aquino; DEPELCHIN, Jacques, op.cit, 1986. 530 Ibidem, p,33.

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Vamos Esquecer! e, por último, na secção seguinte531, esses artigos serão criticamente

analisados, tendo como pano de fundo a questão acima delineada.

7.4 Não vamos Esquecer!: História Social Contada pelos “de baixo”

Em 1983 nasce a revista teórica de história da Oficina de História intitulada, Não

vamos Esquecer!, onde eram publicadas os trabalhos dos historiadores do CEA, como

também de outros departamentos de pesquisa da universidade. Esta revista, de periodicidade

irregular, teve somente 4 edições, onde o primeiro número saiu em Fevereiro de 1983, o

segundo e terceiro em Dezembro do mesmo ano e finalmente o quarto número, em Julho de

1987.

Era uma revista que pretendia chegar a toda a comunidade (diferentemente por

exemplo dos Relatórios de Investigação do CEA, que tinha um público alvo, restrito, ligado

ao aparelho do Estado e membros do governo. Por outro lado, havia também a revista Estudos

Moçambicanos, mais virada para um publico fundamentalmente acadêmico. A Não vamos

Esquecer!, reivindicou uma postura “anti-intelectualista”, dai também ter como um dos seus

objectivos essenciais, encorajar, por exemplo, a produção da história da luta armada, pelas

pessoas que nela participaram. Como observou Ana Maria Gentili, “a revista Não Vamos

Esquecer!, era para os camponeses lerem. A ideia era levar lá e depois vender”532.

É a partir da publicação desta revista que se vai materializar o desiderato do CEA e

dos dirigentes da FRELIMO, de se estabelecer uma ligação primária entre “história e

memória colectiva”, na construção de uma nova “pedagogia” da existência da nação533. Como

veremos a seguir, através da análise dos trabalhos publicados nesta revista, houve sempre uma

grande preocupação da Oficina de História, de recolher, documentar e construir a história de

toda a resistência colonial que culminaria com a luta armada, através da memória dos seus

intervenientes, desde os ex-combatentes, até aos simples camponeses, operários ou

trabalhadores migrantes, etc. Daí encontrarmos em todas as edições da revista, uma “secção

sobre a luta armada”, onde eram apresentados textos diversos como análises históricas,

531 Intitulado: OFICINA DE HISTÓRIA. O colectivo de artesãos da Oficina: Historiadores como activistas?

Maputo: CEA/OFICINA DE HISTÓRIA, 1983. 532 Entrevista com Ana Maria Gentili, julho, 2007. 533 BALIBAR, Etienne. A forma nação: historia e ideologia: WALLERSTEIN, Immanuel & Balibar, Etienne.

Race, Nation, Class: Ambiguous Identities. London & New York, 1991.

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narrativas biográficas, entrevistas com antigos combatentes e outros actores que tinham

participado directamente na luta anti-colonial. Para isso, a Oficina de História não deixa

qualquer dúvida sobre a centralidade da luta armada na revista,

Esta secção será uma das partes principais do Boletim, porque constitui de facto uma das suas razões de ser: Fazer ouvir directamente e com um mínimo de intermediários a voz dos participantes e porque (…) a história vive no seio do povo e é aí que está a fonte principal, não só de inspiração mas também de produção534.

Encontramos nesta revista, uma tendência de se privilegiar aqueles aspectos da

história da luta de libertação nacional que poderiam servir de ensinamento à fase em que o

país vivia da “transição socialista”. Daí por exemplo, a ênfase na experiência das “zonas

libertadas”, abordadas tanto em termos do seu legado na constituição, do que os historiadores

do CEA, denominavam de um “contra-Estado” (quer dizer, a emergência ainda no período

colonial das primeiras formas de “governo” das populações, que viviam nestes territórios

livres da dominação colonial) como também na introdução, pela primeira vez, da “produção

colectiva”, da “cooperativização” e da “unidade ideológica”.

Uma outra questão, ainda neste tópico da luta armada, que vai ter particular ênfase na

revista era o tema das “contradições da FRELIMO durante a luta” e que se reflectiam na

polarização de dois grupos antagónicos. Um grupo que pretendia, na visão da Oficina de

História (como também da FRELIMO), reproduzir o sistema capitalista colonial, através da

iniciativa privada, eram rotulados de os “novos exploradores”. De outro lado, encontrávamos

a ala dos “revolucionários”, que pretendiam romper com as formas de acumulação capitalista

e criar uma sociedade socialista. Este tema procurou também servir de ensinamento sobre os

desafios do presente na constituição de novas formas de produção colectiva, da socialização

do campo e cooperativização da produção.

Estas histórias são então contadas a partir da recolha de depoimentos de camponeses,

operários, heróis da luta, seus familiares etc., e, na maior parte das vezes publicadas, ainda na

534 NÃOVAMOS ESQUECER nº1 op.cit , p.5.

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forma de entrevistas, trazendo assim ao público, material em primeira mão sobre a

experiência histórica do moçambicano comum. Como vimos anteriormente, a prioridade que

a Oficina de História deu aos “dados orais” na reconstituição da memória colectiva da luta

armada, e por exemplo na produção de pequenos extractos biográficos dos participantes na

luta, esteve ligada a três razões: primeiro, porque era um método que permitiu romper com o

passado colonial e da ”história imperial”; segundo, “porque a luta armada vitoriosa contra o

sistema colonial português deu ao povo moçambicano uma consciência popular e

revolucionária da sua forma535.” E por último, porque na óptica da Oficina de História “a

forma como foram conquistadas essas vitórias536” permanecia ainda desconhecida da maior

parte dos moçambicanos.

É assim, que o primeiro número vai estar exclusivamente focalizado na história da luta

de libertação nacional, desde o período anterior à formação da FRELIMO. É nele discutido o

contexto no qual surgiram as primeiras formas de mobilização política que culminariam com

a formação dos partidos nacionalistas moçambicanos no exílio, que iriam mais tarde se fundir

na FRELIMO. O segundo e terceiro número, são inteiramente dedicados à “classe

trabalhadora moçambicana”. Há aqui uma tentativa de elaboração da história do proletariado

moçambicano, que surgira segundo a Oficina de História com a presença do capitalismo

colonial estrangeiro. O quarto e último número retomam ao tema clássico da revista, que é a

história da FRELIMO e da luta armada de libertação nacional. Este número é assim dedicado

a questão da produção nas “zonas libertadas” criadas pela FRELIMO durante a luta colonial.

Como podemos depreender estes quatros números estão todos interligados a esta questão da

experiência da luta armada como um dos pontos de referência mais importante para os

desafios do pós-independência. A edição sobre as classes trabalhadoras de certa forma se

relaciona com esta tema, uma vez que de acordo com a Oficina de História,

Em Moçambique as classes trabalhadoras devem ser compreendidas não apenas como produzindo bens materiais, mas, e o que é mais importante, como tendo produzido as zonas libertadas, ou seja, tendo produzido um Estado alternativo que, no contexto da luta armada, nasceu do esforço consciente da direcção da FRELIMO no sentido de criar uma alternativa democrática, popular e revolucionaria ao Estado colonial537.

535NÃOVAMOS ESQUECER nº1 op.cit, p.23. 536 Idem, Ibid. 537 NÃOVAMOS ESQUECER nº1, op.cit, p.7.

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7.5 Não Vamos Esquecer! nº1: Resistência Africana e Luta armada

O primeiro número da Revista, Não Vamos Esquecer!, traz quatro temas: primeiro, um

artigo sobre as “cooperativas Ligualanilu no planalto de Mueda”; segundo, “Os novos

exploradores”, que são excertos do discurso do presidente Samora Machel em 1974, onde este

faz uma crítica aberta à iniciativa privada, aos comerciantes que, segundo Samora Machel,

praticavam a usura e contrabando de produtos. Ainda segundo o presidente da FRELIMO e

do país, eram estes que “tinham preenchido os lugares dos comerciantes portugueses e tinham

ficado nos lugares dos verdadeiros colonialistas”538. Lazaro Nkavandame, e-xmembro

(sénior) da FRELIMO, e também comerciante, encarnava eloquentemente este perfil do

“novo explorador” do “reaccionário”.

O terceiro tema se insere no projecto de apresentar narrativas biográficas dos heróis da

luta armada. Estas entrevistas tinham como objectivo fazer conhecer as formas como a

FRELIMO, segundo a Oficina de História, ultrapassou os obstáculos encontrados e como esta

ainda mesmo antes da conquista da independência nacional, experimentou através das “zonas

libertadas”, novas formas de “exercício do poder popular”. E, por outro lado, este projecto da

“luta armada através de biografias”, pretendia também mostrar as formas de opressão e

exploração colonial que os moçambicanos sofreram e, sobretudo, de mostrar as formas de

resistência e de recuperação da dignidade do “povo moçambicano”.

É assim que encontramos nesta primeira publicação, um texto escrito por Eduardo

Mondlane, intitulado, “Notas posteriores sobre a morte de Paulo Samuel Kankhomba”, onde o

fundador da FRELIMO começa por descrever sucintamente alguns aspectos biográficos da

vida de Kankhomba, sua integração na FRELIMO e participação na luta armada. De seguida,

Mondlane discorre sobre os motivos do assassinato de Kankhomba relacionado directamente

com a “ambição pessoal de Lázaro Nkavandame, que queria ter poder absoluto para controlar

toda a província de Cabo Delgado”539. São ainda apresentadas entrevistas com pessoas que

estiveram directamente ligadas ao ex-combatente, como a sua sogra, o presidente da aldeia de

Mtamba, o secretário da Célula da FRELIMO na aldeia de Mpeme e por último dois

participantes da luta armada.

538 Ibidem, p.20. 539 NÃOVAMOS ESQUECER nº1, op.cit, p.27.

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Quadro 4 - Não Vamos Esquecer! nº1 (Fevereiro, 1983)

Autor Artigo Pags.

Oficina de Historia As Cooperativas Ligualanilu 7-19

Samora Machel Os Novos Exploradores 20-22

Oficina de História A Luta Armada através de Biografias 23-25

Eduardo Mondlane Notas Posteriores sobre a Morte de P. S Kankhomba

26-29

Jacques Depelchin, Isabel Casimiro, Maria João Homem e Benigna Zimba

Entrevistas 30-37

Oficina de História Cabo Delgado: Fontes para uma História 38-42

Encontramos por fim, neste número, mais um artigo540, que vem enfatizar a

centralidade das fontes orais na reconstrução histórica da luta armada na província de Cabo

Delgado e da análise da economia política daquela região, onde se tinha iniciado, pela

primeira vez, o confronto bélico contra o colonialismo português. Para estes historiadores, a

fonte oral constituía “uma oportunidade excepcional de dar a palavra ao povo” e de assim

romper com uma historiografia colonial eurocêntrica, imbuída de distinções e mistificações

sobre Moçambique e seus povos. No caso particular de Cabo Delgado, os historiadores do

CEA afirmavam que existia “muito pouco de útil na maior parte dos casos, nestes livros e

artigos que ilustram a incapacidade do Estado colonial português em penetrar e controlar

efectivamente. Os autores dão o exemplo da caracterização dos Macondes como guerreiros

ferozes, vivendo isolados no Planalto de Mueda com uma forma específica de organização

(sem chefes). Os historiadores reiteram ainda, que é então a partir da revista Não Vamos

Esquecer!, que estas visões distorcidas são postas em questão, a partir da reconstrução da

história a partir dos actores moçambicanos que nela participaram.

O estudo discute ainda as “fontes não publicadas” sobre Cabo Delgado, onde se

incluem quatro grupos principais de entrevistas, nomeadamente os resultados de um projecto

de pesquisa colectiva sob direcção de Aquino de Bragança e Allen Isaacman, sobre a

540 Cabo Delgado: Fontes para uma história da luta armada e para uma economia política do planalto de Mueda”.

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“resistência popular em Moçambique”, uma colectânea de histórias da luta armada coligidas

pelo cineasta brasileiro, Licínio de Azevedo, um manuscritos de vinte e duas páginas

contendo notas de uma entrevista com um dos intervenientes principais do movimento

cooperativo de algodão do planalto de Mueda. Os historiadores referem ainda as “fontes

primárias impressas” sobre a luta armada, consistindo fundamentalmente em documentos

oficiais da FRELIMO, comunicados de guerra, jornal do movimento, como também de fontes

impressas estrangeiras como, periódicos, boletins e revistas.

7.6 Não Vamos Esquecer! nº2/3: Reconstituindo a História da “Classe Operária Moçambicana”

O segundo e terceiro número, foram exclusivamente dedicados às “classes

trabalhadoras moçambicanas”. Na óptica dos historiadores, esta necessidade de se escrever a

história dos operários moçambicanos “se tornou mais premente após a vitória do poder da

aliança operária -camponesa no nosso país541”. A Oficina de História pretendia assim,

“elaborar a história do proletariado moçambicano, desde a sua emergência, no período da

implantação do capitalismo colonial, até à fase do pós-independência”. Acreditavam ainda

que este projecto iria contribuir para “os desafios do presente” e que seria também “uma

modesta contribuição (da Oficina de História), para o seu conhecimento de modo a poder

transformar-se, construindo o socialismo542.”

A escolha deste tema - que não estava directamente ligado ao principal leitmotiv

destes dois números, que era “a produção da história da luta armada” – deveu-se, por outro

lado, às críticas apresentadas pelos leitores da revista, à excessiva ênfase, do primeiro

número, ao estudo da luta armada e, em particular, das “zonas libertadas”, o que demonstrava,

segundo os leitores, uma ”estreiteza do objecto de estudo que excluía, logo à partida, as zonas

sob controlo do governo colonial durante o processo da luta armada543.”

A forma como a Oficina de História abordou nestes dois números a história do

proletariado moçambicano, rompia definitivamente com a historiografia colonial no sentido

541 NÃOVAMOS ESQUECER nº2/3, Boletim Informativo da Oficina de História, Dezembro, 1983,p.4. 542 Idem, Ibid. 543 NÃOVAMOS ESQUECER, nº 1, Fevereiro,1983, p.3.

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em que alguns do seus artigos tinham sido produzidos com a “participação activa dos

operários544”. Estes operários tinham, de facto participado como entrevistadores em

colaboração com a equipe da Oficina de História, na definição dos métodos de trabalho e na

recolha de informação nos seus locais de trabalho. Os historiadores do CEA argumentavam,

numa linguagem quase que gramsciniana, que embora embrionária, a experiência tinha

provado, claramente, que os operários eram capazes de realizar trabalhos de carácter

intelectual545, e que este empreendimento científico tinha sido, apesar de tudo, uma pequena

contribuição para a luta contra a divisão de trabalho manual e intelectual, herdada do

colonialismo546.

Há então nestas duas edições da Não Vamos Esquecer! cinco temas centrais: primeiro,

uma introdução que reflectia sobre questões metodológicas e políticas em relação à produção

de uma história da classe operária moçambicana; Segundo, um bloco de entrevistas com

operários de fábricas, como também de trabalhadores migrantes. É nesta secção onde alguns

dos operários tinham também participado como “entrevistadores”. Um terceiro, que abordava

a questão da “classe operária na África do Sul”, seu papel na luta de libertação nacional, como

também do processo de sindicalização, das lutas sindicais e mobilização política do

proletariado e os sectores onde o movimento sindical enfrenta problemas. O quarto tema,

ligado ao período colonial, examinava a problemática do trabalho forçado, as formas de

opressão colonial, como também as formas de resistência e luta dos trabalhadores

moçambicanos face ao sistema colonial-capitalista. O quinto consistia basicamente numa

compilação de canções de trabalho dos estivadores do porto de Maputo

Esta revista inicia com uma pequena introdução à problemática das classes

trabalhadoras moçambicanas. Com o título “Por uma História da classe operária”, este artigo

é o resultado - síntese de um projecto levado a cabo pelo CEA no primeiro semestre de 1980,

onde seguindo as directivas saídas do III congresso da FRELIMO, a Oficina pretendia

alcançar três grandes objectivos de pesquisa: (1), orientar os trabalhadores na recolha de

dados orais numa perspectiva histórica; (2), iniciar os trabalhos no processo de análise

científica dos dados recolhidos e, por último, criar as condições para os trabalhadores

assumirem, dentro das dificuldades existentes, o papel dinâmico não só na recolha como

544 NÃOVAMOS ESQUECER, nº2/3, Dezembro,1983 545 Idem,p.4 546 Idem,Ibid.

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também na elaboração de textos”547. Estes objectivos estavam, com podemos notar, dentro de

um princípio geral que era o de, “destruir a tradição herdada do sistema colonial-capitalista,

que defendia a divisão entre o trabalho manual e o trabalho intelectual, que afinal só servia

para encorajar o elitismo e arrogância”548.

Quadro 5 - Não Vamos Esquecer !nº2/3 (Dezembro, 1983)

Autor Artigo Pags.

Oficina de História Por uma História da Classe Operaria 5-6

Rafael Babane, José Munguambe, Alexandrino José, Jacques Depelchin e Cláudio Gentili

Companhia de Cimentos da Matola (Entrevista)

7-13

Oficina de História Fabrica Facobol – Maputo (Entrevista)

14-21

Anónimo Canção de Trabalho dos Estivadores 22- 26

Núcleo da África Austral/Oficina de História

Papel da Classe Operaria na Luta de Libertação da Africa do Sul

27 - 31

South African Labour Bulletin

O 1º de Maio na Africa do Sul 32 - 33

Alpheus Manghezi A Primeira Viagem ao Rand (Entrevista)

34 - 38

Judith Head Opressão Colonial e Formas de Luta dos Trabalhadores; O caso da Sena Sugar States

39 - 44

Valdemir Zamparoni Aspectos do Trabalho Forçado em Moçambique nas Décadas de 1910/1920

45 - 52

Oficina de História Trabalho Forçado no Norte do País (Entrevista)

53 - 55

Foi então a partir deste “megaprojecto” inovador, que foram envolvidas várias

instituições tais como o Arquivo Histórico de Moçambique, o Departamento de História da

547 NÃOVAMOS ESQUECER nº2/3, op.cit, p.5. 548 Idem, Ibid.

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UEM e o próprio CEA, que se realizaram várias pesquisas de campo em fábricas e locais de

recrutamento de mão-de-obra para as minas sul-africanas, procurando sempre integrar os

operários e camponeses, na organização, recolha de dados e elaboração do relatório da

pesquisa.

As quatros entrevistas apresentadas neste número (realizadas na “Companhia de

Cimentos” e na fábrica de calçado, “Facobol”) e que compõem as histórias biográficas dos

operários, são deste modo, o resultado desses objectivos. Nestas entrevistas são abordados

temas: condições de trabalho no tempo colonial, o sistema repressivo colonial, o contexto

internacional e regional das lutas de independências e, por último, a luta armada e as formas

como estes operários seguiam a luta a partir da cidade de Maputo. Há também dois artigos

relacionados com o contexto sul-africano (“Papel da classe operária na luta de libertação da

África do Sul” e “ O 1º de Maio na África do Sul), elaborados pelo “Núcleo de Estudos da

África Austral” do CEA.

Os últimos dois artigos abordaram a questão do operariado no período colonial,

focalizando na questão do trabalho forçado (Chibalo) em Moçambique nos anos 1910/1920.

No artigo intitulado, “Aspectos do trabalho forçado em Moçambique nas décadas de

1910/1920”, Valdemir Zamparoni selecciona alguns textos do jornal ”O Africano” e “O

Brado Africano” para mostrar as diversas facetas do sistema opressivo e de discriminação

colonial em relação aos negros moçambicanos. São também apresentados as variadas formas

de resistência dos “colonizados,” onde através destes periódicos, um pequeno grupo de

“mulatos”, colonos progressistas e “indígenas”, instruídos, criticavam, de forma acutilante, as

formas de opressão colonial, como o trabalho forçado, o imposto de palhota, etc.,

reivindicando assim melhores condições vida e de trabalho para a maioria negra.

E, finalmente foi publicado um texto de Judith Head (1983), investigadora do CEA

(porém não da Oficina de História), intitulado, “Opressão colonial e forma de luta dos

trabalhadores”. O estudo cinge-se às plantações de açúcar do Sena Sugar Estates, no Luabo,

província da Zambézia. O argumento central da autora é de que, apesar de os trabalhadores

moçambicanos, das plantações de açúcar do Luabo, estarem sob um domínio colonial

hegemónico e baseado na exploração e opressão da força de trabalho, estes utilizaram formas

organizadas de resistência, que se caracterizava por acções como a não comparência ao

trabalho, a fuga, greves de grande números de trabalhadores.

Estas dinâmicas mostravam, na óptica de Head, que havia indícios de um trabalho

prévio de discussão, persuasão e mobilização destes trabalhadores, mostrando deste modo que

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estes já começavam a organizar-se no sentido “clássico”: dando voz às suas reivindicações de

uma maneira aberta e unida. Judith Head (1983), neste artigo pretendia ainda mostrar, através

do exemplo da Sena Sugar States, que também549 os “trabalhadores das plantações, migrantes,

ainda com um pé no campo, estiveram também sempre conscientes da sua exploração e

lutaram contra ela.

Este é assim mais um estudo levado a cabo pelos investigadores do CEA, que dá

centralidade ao conceito de “resistência” africana, mostrando assim, que apesar do Estado e

burguesia colonial, através do trabalho forçado nas plantações e formas de exploração nas

fábricas e outros lugares, coibirem o “desenvolvimento de formas clássicas de luta”, isto por

si só não implicou uma atitude passiva dos trabalhadores moçambicanos. Pelo contrário, estes

sempre encontraram “formas de oposição ao capital, formas disfarçadas, não dramáticas,

modestas, mas cujos efeitos limitavam a produção de lucros dos capitalistas.550”

7.7 Não Vamos Esquecer! nº4: Persistindo na Reconstituição Histórica da Experiencia da Luta de Libertação Nacional

O quarto e último número da Não Vamos Esquecer! reapareceu em 1987, quatros anos

depois do seu anterior número e pela primeira vez agora, sem o seu principal impulsionador,

Aquino de Bragança, morto um ano antes juntamente com o presidente Samora Machel, num

misterioso acidente de viação, supostamente com envolvimento do regime sul-africano do

apartheid. A morte de Aquino de Bragança iria ter um grande impacto na Oficina de História,

tanto mais que nenhum outro número da revista iria aparecer. Como afirmaram o colectivo de

historiadores da Oficina de História,

Ele era uma fonte inesgotável de informação sobre a luta armada de libertação nacional (…) continuar o trabalho iniciado por Aquino de Bragança é, para nós, na Oficina de História, a única forma de honrar

549 Pois que segundo Head, na “historiografia de Moçambique, sobre os últimos 15 anos antes da independência,

havia uma tendência implícita para pensar que os únicos trabalhadores que se organizaram de uma maneira clássica, contra as condições da sua opressão, tivessem sido o proletariado das cidades, exemplo, os trabalhadores portuários”. Vide, HEAD, Judith, “Opressão colonial e formas de luta dos trabalhadores – O caso da Sena Sugar Estates”, Não Vamos Esquecer!, nº 2/3, Dezembro, 1983,pp.39-44.

550 HEAD, Judith. Opressão colonial e formas de luta dos trabalhadores – O caso da Sena Sugar Estates, NÃOVAMOS ESQUECER nº2/3 op.cit, p.39-44.

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a sua memória e o seu exemplo551.

No intervalo de tempo entre o lançamento da edição nº2/3 de 1983 e este último

número da revista (1987), Moçambique vivia um novo contexto social, econômico e político.

Nesses últimos 4 anos, desde a assinatura dos Acordos de Nkomati com a África do Sul, o

país tinha iniciado um processo de reformas políticas, decorrente de uma grande crise causada

pela guerra contra a RENAMO e por uma má gestão econômica552. O governo moçambicano

tinha, aparentemente, abandonado o seu ambicioso plano da transformação socialista através

da criação das empresas estatais e o lançamento de grandes projectos, adoptando em vez

disso, um pacto de reformas econômicas orientadas para o mercado.

Um ano depois do lançamento da revista nº2/3, Moçambique filiou-se às instituições

de Bretton Woods (BM/FMI), como também a agência de ajuda para o desenvolvimento do

governo americano (USAID), que pressionaram o governo moçambicano a fazer reformas

políticas em particular na ajuda às formas de comércio privado. Na óptica de Ottaway, estas

reformas não significaram, no entanto, que o sector econômico socialista tinha sido

desmantelado. Moçambique, como observou, continuava ainda comprometida com o

socialismo, pelo menos em teoria.553

Nesta linha de pensamento, a morte do presidente Samora Machel esteve já dentro de

todo um cenário de reformas políticas principalmente no sector econômico, pois que a

sucessão de Samora Machel por Joaquim Chissano, Ministro dos Negócios Estrangeiro e

membro pleno da Nomenklatura (os funcionários de alto nível do partido), não significou

modificações no sistema político moçambicano. Segundo Marina Ottaway, a morte de

Samora Machel em 1986, serviu apenas para enfatizar a continuidade na liderança da

FRELIMO, em vez de fazer uma nova viagem do cenário político moçambicano.554

Este número nº4 da Não Vamos Esquecer! continuou abordando o mesmo tema

“clássico” da Oficina: escrever a história da luta armada de libertação de Moçambique levada

a cabo pela FRELIMO, dando especial ênfase na história das “zonas libertadas”. Desta vez, o

551 NÃO VAMOS ESQUECER nº4, Julho, 1987. 552 Vide, OTTAWAY, Marina. Mozambique: From simbolic socialism to simbolic reform. The Journal of

Modern African Studies,Vol. 26, nº2, junho, 1988, p.211-226. 553 Vide, OTTAWAY, Marina. Mozambique: From simbolic socialism to simbolic reform. The Journal of

Modern African Studies,Vol. 26, nº2, Junho, 1988, p.211-226. 554 Idem.

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foco central de análise é sobre a “produção, durante a luta armada”. Podemos notar que houve

um fio condutor nas escolhas dos temas de pesquisa: o primeiro, como vimos, tinha se

debruçado sobre o papel das “zonas libertadas” no “experimento” de formas de governação de

“participado popular”. O segundo e terceiro número pretendiam reconstituir a história das

“classes trabalhadoras” em Moçambique, dando particular destaque, ao seu papel na luta

armada, de resistência e luta laboral, como também na organização da produção colectiva no

interior das “zonas libertadas”.

Quadro 6 - Não Vamos Esquecer! nº4 (Julho, 1987)

Autor Artigo Pags.

Oficina de História (dir. Aquino de Bragança)

Para uma Historia da Luta de Libertação de Moçambique

6- 12

Oficina de História/TBARN

Resenha Histórica sobre as Zonas Libertadas (Entrevistas)

13 - 18

Oficina de História Algumas Lições da Luta Armada 19 - 23

Oficina de História A produção nas Zonas Libertadas 24 - 28

Oficina de História/TBARN

Trabalhar para Quem? (Entrevista) 29 - 31

Com o foco principal na produção durante o período da luta armada, este último

número, trouxe ao debate cinco artigos, que pretenderam reflectir sobre as dinâmicas de

produção viradas fundamentalmente para a alimentação dos guerrilheiros nas “zonas

libertadas”. São apresentados dados (principalmente através das entrevistas com actores que

participaram directamente na luta) que tencionavam demonstrar que as formas de poder

popular, as estratégias da produção colectiva e socialização do campo, não tinham sido

realidades “externas” ao contexto moçambicano, mas que tinham surgido no interior do

próprio processo da luta armada.

O primeiro artigo, “Para uma História da luta de libertação de Moçambique” foi um

texto fundador da Oficina de História, na medida em que pretende decidir sobre os elementos

determinantes (metodologias, quadro teórico, análises etc) na constituição de uma

problemática geral sobre a história da luta armada em Moçambique. Assim de acordo com a

Oficina de História, haveria três pontos importantes a se considerar para a elaboração de um

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quadro teórico. Primeiro, elaborar a história das “zonas libertadas” a partir do conceito de

“classes produtoras” na medida em que, segundo este autores, os operário e camponeses de

Moçambique, não somente produziam bens materiais, como também produziram as espaços

livre do domínio colonial e “governados” pela FRELIMO.

Em segundo lugar, esta conceptualização em termos de “classes” iria permitir romper

com uma historiografia colonial, que tendia através principalmente, da Antropologia “a

caracterizar os camponeses pelos seus aspectos tribais555.” E, por último, teria que ser uma

abordagem “não-exclusivista”, no sentido em que não deveria centralizar-se unicamente nas

“zonas libertadas”, ou mesmo no período da luta armada, reflectindo também em temas

diversos como “a classe operária”, as “formas de resistência urbana ao colonialismo etc.

Os historiadores do CEA reiteravam ainda neste artigo, que deveria ser privilegiado o

método da história oral, pois que não só resgataria as “vozes silenciadas”, dos guerrilheiros e

operários e camponeses que participaram directamente na luta como também permitiria

romper, como acreditava a Oficina de História com “as práticas anti-democráticas da

pesquisa histórica e acadêmica (burguesa).556” E este tema levou, incontornavelmente a uma

reflexão sobre a utilização, a selecção e limites das fontes históricas. A Oficina de História

apelou para uma análise crítica das fontes escritas, tanto no sentido da tendência para a

“dominação do documento escrito”, como também para se olhar para o seu contexto

ideológico. Umas das fontes privilegiadas por estes historiadores eram as chamadas “fontes

de vanguarda da luta”, que era constituída por elementos da direcção político-militar da

FRELIMO e soldados das forças armadas. Incluíam também as “fontes do lado do inimigo” e

daqueles actores “exteriores à vanguarda da luta” e que eram solidários com a luta de

libertação nacional.

O segundo artigo, “Resenha histórica sobre as zonas libertadas”, também se insere na

abordagem da história oral, onde se conjuga análise histórica com depoimentos, na primeira

pessoa, de homens e mulheres que vivenciaram os problemas e contradições das “zonas

libertadas”. Foram apresentados testemunhos de dois participantes na luta armada que falam

sobre a ligação entre os produtores alimentares e os combatentes, descrevendo o processo de

engajamento dos camponeses na luta, através do fornecimento de produtos alimentares aos

combatentes e do transporte de material bélico. Foram também apresentados dados sobre a

555 Para uma História da luta de libertação de Moçambique, NÃO VAMOS ESQUECER nº4, Julho, 1987.p.7. 556 Ibidem, p.8.

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evolução da participação camponesa, na luta armada, para níveis mais organizados de

produção, através por exemplo, das machambas colectivas e, numa fase posterior, da

comercialização dos produtos através das cooperativas de consumo nas “zonas libertadas”.

Como afirmara um dos entrevistados,

Os produtos da machamba colectiva, não eram mexidos, eram reservados para os tempos mais difíceis, em que a população não conseguia abastecer os guerrilheiros (…) outra parte dos produtos era vendida e usada para os participantes da machamba colectiva comprarem aquilo de que necessitavam557.

O terceiro artigo, “Algumas lições da luta armada”, fez uma reflexão sobre os

ensinamentos da história da luta armada para os desafios do pós-independência,

argumentando que era preciso olhar para este passado de uma forma crítica, focalizando

também nos seus aspectos contraditórios, pois só assim, segundo a Oficina de História se

poderia avaliar a sua real contribuição para os desafios do presente. Daí então a Oficina de

História afirmar, que as próprias “zonas libertadas” tinham sido palco de “interesses de classe

antagónicos aos do proletariado e campesinato”. Existia, ainda segundo a Oficina de História,

uma “pequena burguesia”, que tinha uma visão divergente de como levar a cabo a luta armada

e a organização e planificação da produção.

A independência nacional e a conquista do aparelho de Estado colonial, na óptica

destes historiadores, não tinham significado o fim imediato destas contradições de classe, pois

que o país ainda encarava problemas como a corrupção, uso indevido de bens do Estado,

contrabando etc. A Oficina de História, enfatizou assim a necessidade de se olhar para o

contexto ao se fazer uma reflexão crítica sobre as lições da luta armada, evitando assim o erro

de querer, de uma forma mecânica, replicar os sucessos dessa experiência histórica. Os

historiadores do CEA defenderam ainda a elaboração de uma reflexão crítica a cerca da

escolha da ideologia e da utilização do marxismo-leninismo. Segundo a Oficina de História,

“o conhecimento teórico do marxismo-leninismo se torna estéril se não é posto em prática no

557 Para uma História da luta de libertação de Moçambique, op.cit, ,p.15.

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dia-a-dia, em todos os aspectos da vida558.”. Como podemos notar, a Oficina de História

propôs aqui, mais uma vez, a partir de postura crítica, uma ligação estreita entre a experiência

histórica da luta armada, as suas “lições”, com os desafios do pós-independência.

O quarto artigo “A produção das zonas libertadas”, discutia de uma forma detalhada o

contexto do aparecimento das “zonas libertadas” em Moçambique, durante a luta armada, em

três diferentes províncias de Moçambique (Cabo Delgado, Niassa e Tete). É dada particular

ênfase na questão das campanhas de produção, das formas de organização da produção e das

contradições de “classe”, com o surgimento por exemplo, nas primeiras “zonas libertadas”,

em Cabo Delgado, dos “novos exploradores”, que emergiram nas próprias dinâmicas do

aumento da produção e organização em moldes colectivos. Segundo a Oficina de História,

estes “novos exploradores”, liderados por Lázaro Nkavandame, estavam mais preocupados

com o seu enriquecimento pessoal do que para o benefício colectivo da comunidade. É a

partir daí que o “ embate entre duas linhas ideológicas” na FRELIMO se agudizam, no II

Congresso deste partido, realizado em 1968. Nas próprias palavras dos historiadores do CEA,

Uma linha que exigia o engajamento completo das massas populares, e outra linha, oportunista e confusionista, incapaz de definir claramente os seus fins por pensar numa formulação abstracta do nacionalismo e dos objectivos a atingir559.

De acordo com a “Oficina”, havia nestas províncias três principais formas de

organização da produção: as machambas da FRELIMO, onde eram trabalhados por elementos

das forças armadas, do destacamento feminino, das escolas, hospitais e outros organismos da

FRELIMO. O seu principal objectivo era o de resolver os problemas de alimentação dos

integrantes destes sectores. A segunda forma de organização estava ligada ao sistema de ajuda

mútua entre os camponeses, onde esta se desenvolvia através de machambas colectivas

organizadas e trabalhadas pelos camponeses. A terceira e última forma, era a produção

individual ou familiar, onde em última instância, se pretendia que se transformasse em moldes

colectivos e politicamente mobilizados. 558 “Ibid., p.23. 559 A produção nas zonas libertadas, NÃO VAMOS ESQUECER nº4, Julho, 1987,p.26.

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Encontramos, por ultimo, o artigo “Trabalhar para quem?”, que trouxe à discussão a

questão da integração do campesinato na economia do trabalho forçado durante o período

colonial. O texto apresentou, a partir de depoimentos orais de alguns dos intervenientes, as

condições de trabalho durante o período colonial, as razões que levavam este camponeses a

emigrarem para os países fronteiriços, como também os conflitos de integração destes

trabalhadores nos países vizinhos. O texto mostrou também como se tinha dado a evolução da

consciência de luta destes trabalhadores moçambicanos em relação as distintas formas de

exploração que vinham sofrendo, mostrando assim que a criação das cooperativas esteve

intimamente ligada a uma forma de consciência de luta.

Este artigo, como muitos outros publicados na Não Vamos Esquecer!, não restringiu a

discussão sobre o conceito de ”exploração” unicamente para o contexto colonial,

conceptualizando também esta questão na própria história da luta armada e das contradições

internas no seio da FRELIMO. O objectivo final foi então, “pedagógico”, no sentido de

mostrar os perigos da sua continuidade no pós-independência e na construção do socialismo

em Moçambique. Foi assim que a questão dos “conflitos de interesse de classe”, entre a linha

representada pelos “novos exploradores” e a linha “revolucionária” engajada com as massas

se tornou num tema recorrente em todos os números da revista. E, neste caso, a questão de

“trabalhar para quem?” se punha novamente no pós-independência, uma vez que ainda

encontrávamos vestígios da estrutura de classes herdadas do aparelho colonial. Neste sentido,

para a FRELIMO, o pós-independência significou também uma maior atenção ao “inimigo”

representado pelos “ novos exploradores”, “que se aproveitavam das formas de organização

cooperativa e da produção do campesinato para enriquecer.560”

7.8 O Colectivo de Artesãos da Oficina de História: Historiadores como Activistas?

A Oficina de História vincou ab initio, que o seu trabalho de investigação e difusão da

história das experiências da luta armada seria efectuado através de um “processo semelhante a

de um colectivo de “artesãos”561”, significando não só uma prática de investigação que era já

peculiar ao trabalho do CEA, mas também de uma nova abordagem na pesquisa histórica, que

560 Ibidem, p.30. 561 NÃO VAMOS ESQUECER! nº 1, Boletim Informativo da Oficina de História, Maputo, Fevereiro,1983, p.6

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ao romper com a historiografia colonial, construía uma história social “dos debaixo”562, dando

assim centralidade às “vozes subalternas” - os camponeses, operários, mulheres e

combatentes da luta de libertação – e assim descobrir, desvendar, compreender e interpretar as

experiências dos moçambicanos que viveram sob dominação colonial.

O uso de dados orais tornou-se um dos meios fundamentais para colocar os actores

históricos moçambicanos no “palco da história”. Os depoimentos destes camponeses,

operários e guerrilheiros, que como vimos, foram publicados em todas as edições da Não

vamos Esquecer!, ajudaram a reescrever e a reflectir sobre a história de Moçambique a partir

de uma perspectiva africana, quer dizer, “uma história contada por aqueles que a viveram563”.

O uso, por exemplo, de testemunhos em forma de “canções”, com foi apresentado na edição

nº1 de 1983 (“Canção de trabalho de Estivadores”), não só foi uma forma de mostrar as

condições de trabalho dos migrantes, suas preocupações, sofrimentos, estratégias e formas de

resistência, como também, colocado num campo mais geral da historiografia pós-colonial,

como um contraponto crucial em relação às narrativas dominantes564.

Nestes artigos publicados na revista da Oficina de História, a tónica foi sempre posta a

partir da fundação da FRELIMO. Os artigos começavam por fazer uma reflexão a partir do

nascimento da FRELIMO e da sua liderança no processo da luta armada, como também, por

volta do ano 1968, na edificação das “zonas libertadas”, numa primeira fase, em duas

províncias do país, Cabo Delgado e Niassa (daí se tornarem os lugares privilegiados da

pesquisa empírica da Oficina de História).

Foi então a partir deste contexto, que a Oficina de História aborda a questão das

“contradições” da história da FRELIMO. Segundo os historiadores do CEA, à medida que se

iam organizando as “zonas libertadas”, conflitos ideológicos no interior da FRELIMO, acerca

não só da organização das “zonas libertadas”, como também do próprio movimento e da sua

562 A Historiografia de África a partir dos anos 60 e 70 esteve dominado pelos estudos sobre a resistência ao

domínio colonial onde emergiram pesquisas que tinham como ponto de partida os africanos, que tinham sido marginalizados pela “História Imperial”. É neste contexto que começa a emergir a necessidade de escrever a história africana a partir “dos de baixo”, que dizer, resgatar estas vozes africanas de camponeses, operários, que tinham sido “silenciados” no período colonial. Vide, COOPER ,Frederick. Conflict and Connection: Rethinking Colonial African History. The American Historical Review, vol. 99, No. 5, Dezembro, 1994, p. 1516-1545. ISAACMAN, Allen. Peasants and Rural Social Protest in Africa. African Studies Review, vol. 33, nº. 2, Setembro. 1990, p. 1-120; VAIL ,Leroy, White ,Landeg. Forms of Resistance: Songs and Perceptions of Power in Colonial Mozambique. The American Historical Review, vol. 88, nº. 4, Outubro, 1983, p. 883-919.

563 Ibidem, p.23 564 Vide, ALINA - PISANO, Eric. Resistance and the Social History of Africa. Journal of Social History, vol.

34, nº 1, 2003, p.187-198.

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estratégia para o pós-independência foram emergindo. Esta “crise” interna na FRELIMO,

viria a culminar com a morte do seu presidente, Eduardo Mondlane e da expulsão de

membros séniores da FRELIMO como Lazaro Nkavandame e o vice-presidente, Uria

Simango, saindo vitoriosa a “linha revolucionária” da FRELIMO.

Estas seriam então as “contradições” na história da FRELIMO e neste caso, da luta

armada e que vão estar presentes na maioria dos artigos da Oficina de História publicados na

sua revista. Na óptica dos historiadores do CEA, aprofundar a crítica em relação aos

processos contraditórios da luta nacionalista e social de Moçambique serviriam também como

uma espécie de “pedagogia” nacional para a construção do Estado nacional pós-independente,

como também para realçar o carácter de classe na sociedade moçambicana, que era preciso

combater, herdado do período colonial.

Podemos então aqui encontrar várias similaridades ente o trabalho da Oficina de

História e as obras de John Saul565, A Difficult Road e de Joseph Hanlon, Revolution Under

Fire ironicamente dois autores severamente criticados por Aquino de Bragança e Jacques

Depelchin566. O primeiro ponto em comum estaria ligado à questão do “engajamento crítico”

de todos estes autores. Todos eles, sem excepção, apoiavam (de uma forma geral), a estratégia

da FRELIMO em relação à construção do socialismo em Moçambique. Este compromisso

não significou, no entanto, uma aderência cega e acrítica aos desígnios da FRELIMO. Pelo

contrário, todos estes investigadores, dentro do paradigma da análise marxista, procuram ter

uma postura crítica em relação ao que escrevem e continuavam acreditando na possibilidade e

nos méritos da construção do socialismo em Moçambique.

Este “engajamento crítico” teve, no entanto, diferentes rumos nestes autores, se

olharmos especificamente para a produção científica aqui em escrutínio. Enquanto Saul e

Hanlon estavam preocupados em analisar a sociedade moçambicana pós-colonial em todos os

seus sectores (agricultura, indústria, saúde…), com o intuito não só de problematizar os

“erros” da FRELIMO e os seus pontos fortes, mas também de realçar a confiança num futuro

socialista para Moçambique, os historiadores da Oficina de História, estavam mais

preocupados em resgatar a memória colectiva da luta armada que pudesse servir como

565 É de referir que esta obra não é inteiramente de John Saul. Este autor foi o editor e escreveu a primeira parte

do livro (The context: colonialism and Rrevolution)e a ultima parte, o posfácio, sobre os Acordos de Nkomati e suas repercussões. A segunda parte do livro contém 6 casos de estudos de outros autores, basicamente cooperantes que trabalharam durante vários anos em Moçambique e particularmente nos sectores onde baseiam seus estudos.

566 Vide, BRAGANÇA & DEPELCHIN. Da Idealização da Frelimo a compreensão Da Historia de Moçambique, Estudos Moçambicanos nº 5/6, Maputo: CEA, UEM,1986, p.29-52.

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ensinamento para os desafios do pós-independência. Daí a Oficina de História ter enfatizado

no primeiro número da sua revista, que “o passado não pode ser analisado e compreendido

senão em função das exigências do presente e dos objectivos do futuro567”.

Olhando atentamente para os artigos publicados nos quatros números desta revista,

podemos então descortinar uma tendência do colectivo de História (como também de Saul e

Hanlon) em contribuir - ainda que em alguns momentos a partir de uma abordagem critica e

iconoclasta da experiência moçambicana - para o estabelecimento das “narrativas estatais”

sobre a história de Moçambique568 e, neste caso particular, sobre a história da luta armada.

Encontramos tanto nos trabalhos da Oficina de História, como também nas obras em

discussão de Saul e Hanlon, uma análise da história de Moçambique a partir de uma lógica

que começa primeiro por abordar a questão da opressão e exploração colonial passando pela

fundação da FRELIMO, do desencadeamento da luta armada, das diferentes formas de

resistência, de rebelião (“o massacre de Mueda”, por exemplo) e que tem como clímax, a

independência nacional e dos desafios da “transição socialista”.

Olhando para as três edições desta revista, encontramos uma maior ênfase nos

“grandes heróis” da “revolução” moçambicana, pese embora encontramos também nestas

edições, entrevistas com pessoas comuns – operários e camponeses que tinham resistido ao

colonialismo. Mas foi de facto o privilégio de figuras singulares na descrição da experiência

da luta armada que predominava. Encontramos, por exemplo, na revista nº1 e nº 3 a biografia

do ex-combatente, membro da FRELIMO e chefe provincial das operações, Paulo Samuel

Kankhomba, mostrando como o seu engajamento revolucionário e intrepidez de carácter

seriam um exemplo a seguir no pós-independência.

O terceiro ponto esteve relacionado com o uso do paradigma da “resistência569” na

análise histórica de Moçambique. Como podemos notar, a partir dos artigos da Oficina de

História, como “opressão colonial e formas de luta”, “Aspectos do trabalho forçado em

Moçambique nas décadas de 1910/20”, e “Trabalho forçado no norte do país”, todos estes

artigos, a partir do binómio dominação – resistência, mostravam as diferentes formas de

567 NÃO VAMOS ESQUECER! nº 1, 1983,op.cit. 568 A produção dos volumes, História de Moçambique pelo Departamento de Historia é sintomático desta

necessidade de construir narrativas oficiais, estatais, enfim de um discurso hegemónico sobre a história de Moçambique.

569 O artigo de Allen Isaacman, “Peasants and Rural Social Protest in Africa”, é uma das grandes referências na literatura sobre “Resistência. Vide também, KLAAS van Walraven/ John Abbink. Rethinking Resistance in African History: An introduction. ABBINK, Jon, de BRUIJN, Mirjam & WALRAVEN, Klaas ( eds). Rethinking Resistance: Revolt and violence in African History, Leiden: ed. Koniklijike, 2003.

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exploração e resistência do sistema, em que os moçambicanos, tanto no campo como na

cidade, estiveram envolvidos.

Podemos vislumbrar na pesquisa histórica da Oficina de História, a tendência para

estabelecer uma conexão primária entre o começo e o final do colonialismo, onde o

movimento de libertação, a FRELIMO, encarnaria o elemento primordial em relação àqueles

que resistiam à conquista colonial e a vitória através da independência nacional. Encontramos

indícios desta lógica, por exemplo, na “secção de entrevistas” da revista, onde foi enfatizada a

ligação entre as diferentes estratégias individuais dos trabalhadores em relação as formas de

exploração colonial do trabalho e a uma possível luta anti-colonial. Pode-se notar, a partir do

teor das questões dirigidas aos “trabalhadores da classe operária” (Fábrica “Facobol”/

Companhia de Cimentos da Matola), a intenção de estabelecer este tipo de conexão. São

assim, repetidamente, colocadas questões sobre a ligação destes trabalhadores, suas formas de

luta no interior das fábricas e o desenvolvimento da luta da FRELIMO.

Houve assim uma tendência de olhar para as acções dos camponeses e operários

inseridos no mundo colonial, como que representando formas coesas e monolíticas de luta ou

e resistência à dominação colonial. Deixando também de explorar, as próprias estratégias

individuais destes actores em termos de acumulação de capital, sustento familiar etc. É certo,

que em alguns momentos estas pessoas resistiam ou colaboravam (como muito bem mostrou

a Oficina de História no seu artigo “Os novos exploradores). Todavia, estavam também

presentes, um complexo muito vasto de actividades humanas, como por exemplo, “actos de

negociação570”, ou mesmo de “estratégias de sobrevivência” que nem sempre caíam em

categorias de “dominação”, “resistência” ou “colaboração” e que poderiam ajudar a produzir

uma paisagem cognitiva mais completa da realidade. Por exemplo, numa das entrevistas

efectuadas pela Oficina de História a um dos trabalhadores migrantes moçambicanos, o

entrevistado contou como um dos seus companheiros, refreia a sua a curiosidade de querer

saber como funcionavam os elevadores no interior das minas afirmando: “fazes muitas

perguntas. Lembra-te que vieste aqui por dinheiro e nada mais”571.

É então provável, queestaríamos aqui em presença de estratégias individuais destes

trabalhadores, no sentido de acumular algum capital para seu sustento próprio ou do agregado

familiar.

570 Vide, ALINA - PISANO, Eric. Resistance and the Social History of Africa. Journal of Social History, vol.

34, nº 1, Special Issue, 2003, p.187-198. 571 “A Primeira Viagem ao Rand”, NÃO VAMOS ESQUECER, nº2/3, Dezembro, 1983, p.37.

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198

Uma outra limitante desta abordagem sobre a resistência” dos actores africanos, com

particular enfoque nos seus “heróis”, é o de dar pouca atenção à questões de gênero, como por

exemplo, análises sobre o papel da mulher na luta de libertação nacional572 etc. O historiador

e africanista, Frederick Cooper, foi um dos autores que reflectiu sobre esta exclusão de

abordagens sobre a mulher nos primeiros anos da historiografia pós-colonial, onde reiterava

que “ as meta narrativas das vitórias nacionalistas – e muitas das histórias de “resistência” têm

sido freqüentemente contadas como histórias de homens, impregnada, muitas das vezes, com

um “ar machista” nessas narrativas de confrontação573.

É no entanto Eric Alina-Pisano, quem nos mostra de forma mais elaborada a ineficácia

do uso exclusivo do paradigma da “resistência, colaboração, dominação” para capturar toda a

gama de intenções e acções dos actores africanos. Como observou este autor,

As identidades das pessoas não eram somente constituídas pelos seus estatutos como sujeitos coloniais: eles eram simultaneamente mulheres, homens, velhos, jovens, membros de linhagens ou grupos étnicos, produtores e consumidores de bens materiais, donos de terra, portadores de crenças espirituais e mais. As suas identidades eram sobre-determinadas por esses interesses e preocupações574.

Os historiadores do CEA estavam bastante conscientes sobre os perigos de uma

abstracção teórica marxista, que não tivesse em conta o contexto particular da sociedade

moçambicana. Como sabemos, umas das razões da criação da Oficina de História, segundo

Aquino de Bragança, tinha sido precisamente o de evitar que a história marxista de

Moçambique fosse escrita como o estudo, da “patagónia575”. A perspectiva sobre a

“resistência”, estava dentro de numa concepção materialista da sociedade e da luta de classes,

onde a produção era vista como o pilar de toda a ordem social. Como afirmou Ana Maria

Gentili,

572 Houve, no entanto, um pequeno artigo da Oficina sobre a “Participação da Mulher na Luta Armada”, que foi

apresentado numa reunião da UNESCO, sobre “mulher no desenvolvimento”, ocorrida em Bissau nos anos 80. (Entrevista com Isabel Casimiro, agosto, 2007).

573 COOPER, Frederick. Conflict and Connection : Rethinking Colonial African History. The American Historical Review, vol. 99, nº5, Dezembro, 1994, p.1516-1545, p.1523.

574 ALINA - PISANO, Eric, op.cit, 2003. 575 Vide, JEWSIEWICKI, Bogumil. African historical studies – Academic knowledge as “usable past” and

radical scholarship. Afriican Studies Review, Vol.32, nº3, 1989, p.1-76.

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Para nós historiadores não tinha muita necessidade de falar de Poulantzas, Althusser, as referências eram mais de ver como desenvolver a historiografia africana, historiografia pós-colonial, sobretudo tentar analisar as iniciativas africanas e depois a historiografia mais marxista, claro, que tinha a ver com toda a complexidade de relações de classe576.

Os artigos “Os novos exploradores”, “ Para uma história da classe operária em

Moçambique”, “As cooperativas Lingualanilu”, utilizando a análise marxista de classes,

argumentaram que o operário moçambicano, diferia largamente da sua contraparte

metropolitana porque ele não estava divorciado dos meios de subsistência. Daí então os

investigadores do CEA falarem do operário-camponês, como um grupo social sui generis no

contexto moçambicano, que ainda continuava ligado à terra. O argumento central do CEA era

de que a história do operariado moçambicano estava intimamente ligada à natureza e

peculiaridades do capitalismo colonial português, que tinha como estratégia a perpetuação da

dependência dos operários aos meios de subsistência no campo.

Não se pretende aqui, a partir de este argumento, discutir o problema da “exportação”

de quadros conceptuais do ocidente (onde eles foram concebidos) para o contexto

moçambicano, como foi por exemplo, o uso por parte do CEA da análise marxista de

classes577. Não se aspira, na mesma senda, discutir a existência ou não de uma ”classe

operária” africana578. Nossa intenção é de somente chamar a atenção para aquilo a que

576 Entrevista com a autora, junho, 2007. 577 Jean Copans foi um dos autores que se debruçou sobre as implicações teóricas e políticas do uso do conceito

de classes em África. Na óptica deste autor, classe continua sendo a importação de um item “luxuoso”. Vide, COPANS, Jean. The Marxist Conception of Class: Political and Theoretical elaboration in the African and Africanist Context. Review of African Political Economy, nº32, Abril, 1985, p.25-38.

578 Vide, PENVENNE ,Jeanne Marie. African Workers and Colonial Racism: Mozambican Strategies and Struggles in Lourenco Marques, 1877-1962. The International Journal of African Historical Studies, vol. 29, No. 1 (1996), pp. 173- 175; SANDBROOK, Richard & COHEN, Robin, (Eds.). The Development of an African Working Class: Studies in Class Formation and Action. Toronto: University of Toronto Press 1975; NZUKA, A.T, POTEKHIN, LI., ZUSMANOVICH, A.Z.. Forced Labour in Colonial Africa, London: Zed Press 1979. COHEN, Robin, GUTKIND, Peter, BRAZIER, Phyllis, (eds.), Peasants and Proletarians: The Struggles of Third World Workers, New York: Monthly Review 1979. GUTKIND, Peter, COHEN, Robin, COPANS, Jean, (eds.), African Labor History , Beverly Hills: Sage 1978. PERRINGS, Charles, Black Mineworkers in Central Africa , London: Heineman, 1979.

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200

Richards Roberts579, no seu texto sobre “as “peculiaridades da história do operariado

africano” afirma da assumpção fácil, de que os operários tinham interesses e objectivos

comuns e universais.

Na óptica deste autor, as divisões de classe dentro da população africana, previamente

existentes e muitas vezes intensificadas durante os anos da dominação colonial, moldaram

respostas distintas entre os diferentes grupos em relação a exploração do capitalismo colonial.

A Oficina de História não levou em consideração estas várias nuances existentes nos

diferentes grupos sociais. Por exemplo, o tema sobre os “colaboradores” africanos do

colonialismo (Nkavandame, Simango, dentre outros), é analisado a partir de uma oposição

binária entre os “ bons” e os “maus” revolucionários, ou por outra, entre os “colaboradores” e

“revolucionários”, ou mesmo a questão já referida entre “resistência” e “dominação”.

A Oficina de História olhou para esta questão a partir das “lentes” da FRELIMO,

onde este grupo de “colaboradores” era simplesmente visto, como “reaccionário,” “inimigo

do povo”, e “anti-revolucionário”. Não houve assim, uma tentativa de conceptualizá-los como

estando inseridos num espaço mais alargado e dinâmico que envolvia, estratégias individuais,

actos de negociação580 e de sobrevivência, não necessariamente ligados a uma oposição

política ao partido no poder. A preocupação do CEA, na interpretação histórica e explicação

dessa “colaboração” esteve, deste modo, ligada a uma tentativa de se aliar ao poder do Estado

e do que este considerava como a narrativa histórica “oficial”. A esse propósito, Richard

Roberts, já argumentava que “as narrativas estatais servem para promover um sentido de

poder de Estado e legitimação e como consequência, silenciar leituras alternativas e narrativas

do passado.”581

Daí então podemos compreender aquele contexto histórico da “euforia “ pós-

independência, onde a Oficina de História, logo depois da sua fundação, desenvolveu grandes

projectos de pesquisa histórica sobre a luta armada, sobre as “zonas libertadas” e sobre a

construção dos heróis nacionais. Mais do que a construção de uma história da FRELIMO

problematizada, e despolitizada, a Oficina de História, tal como Saul e Hanlon, procuraram

579 ROBERTS, Richard. The Peculiarities of African Labour and Working-Class History. Labour / Le Travail,

Vol. 8/9, 1981 - 1982, p. 317-333. 580 ALINA - PISANO, Eric, op.cit, 2003. 581 ROBERTS, Richard. History and Memory: The power of statist narratives. The International Journal of

African Historical Studies, vol.33, nº 3, 200, p.513-522.

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201

estar sempre ligados à “narrativa estatal582”.

Houve no entanto alguns temas “tabus” na Oficina de História, que nem por isso

deixaram de ser perscrutados pelos autores de A Difficult Road e Revolution Under Fire. Os

dois autores apresentam de forma detalhada, os “erros” da actuação da FRELIMO, no que

concerne à questão da centralização excessiva do partido e governo, os abusos de poder,

autoritarismo da FRELIMO, evacuação forçada de desempregados da capital, açoitamentos

públicos como também a introdução da reintrodução da pena de morte em Moçambique583.

E, por último, encontramos nestes autores uma discussão sobre a natureza do

movimento rebelde, a RENAMO e as dinâmicas internas e externas da guerra no pós-

independência. Como sabemos, um tema que Bragança e Depelchin, em pleno ano de 1986,

ainda se mostravam relutantes em reconhecer indícios de uma possível base social deste

movimento armado. Segundo estes, a RENAMO continuava sendo um grupo “a-social”. No

entanto, Saul e Hanlon argumentavam que o crescimento deste movimento repousava em

parte, nos “erros”governamentais que levaram a um desastre econômico.

A Oficina de História não esteve, de facto, preocupada em reflectir e questionar sobre

as contradições do presente e da sua relação com a eficácia ou não da estratégia socialista

adoptada pela FRELIMO, nem mesmo em perscrutar as dinâmicas internas, que tinham

levado o país a uma guerra civil. O seu leitmotiv era distinto. Mais do que questionar o status

quo, os “artesãos” da Oficina de História estavam profundamente ocupados em “não

esquecer” o passado, especialmente a experiência da luta armada de libertação nacional, os

seus heróis, as suas vitórias, contradições, e ao mesmo tempo construir, a partir de uma

historiografia que desafiasse o modelo colonial, um futuro radicalmente novo.

582 Vide, ROBERTS, 2000, op.cit. 583 Segundo clarence-Smith, a pena de morte tinha sido abolida pelo colonialismo português já no século

XIV.Vide, CLARENCE - SMITH, Gervase. The third Portuguese empire, 1825-1975 – A study of economic imperialism. Manchester, Manchester University Press, 1988.

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202

8. ESTUDOS MOÇAMBICANOS: PENSAR MOÇAMBIQUE NO CONTEXTO DA

ÁFRICA AUSTRAL

8.1 A fundação da revista e a sua linha teórica

A divulgação dos trabalhos científicos do CEA foi realizada de quatro modos. Havia

os “Relatórios de Investigação” saídos do Curso de Desenvolvimento e na sua maioria

“encomendados” pelos órgãos do governo, como ministérios, empresas estatais, direcções

províncias, etc., e que eram vendidos ao público. No entanto, havia dentro destes, alguns de

difusão mais “restrita” que iam directamente para “às mãos” dos tecnocratas e dirigentes do

partido. Em segundo lugar, havia pequenos ensaios, resenhas ou artigos, de “circulação

interna,” (no CEA e em outras faculdades) também produzidos pelo CEA, sobre temas

directamente ligados aos conteúdos do Curso de Desenvolvimento e que eram usados pelos

seus estudantes. Uma terceira forma de divulgação científica do Centro era como vimos

anteriormente a revista Não Vamos Esquecer! que pretendia chegar a uma audiência mais

alargada, incluindo a população não universitária.

A quarta e última forma de divulgação científica do CEA foi a sua revista semestral584

Estudos Moçambicanos, fundada em 1980. Esta publicação tinha como grupo alvo, estudantes

do ensino médio, universitário, professores, funcionários públicos, mas também uma

audiência internacional585. Acabou sendo de facto, uma das formas mais profícuas que o

Centro encontrou de expor as suas pesquisas e permitir que se abrisse um espaço de debate de

ideias, tanto a nível local como internacional sobre a realidade moçambicana, tendo sido

considerada como “a maior expressão organizada de contribuição para o debate histórico e

sociológico em Moçambique.586”.

A Estudos Moçambicanos pretendia ser um veículo de divulgação científica que

levasse em conta um dos objectivos primordiais do Centro, que era o de reflectir criticamente

sobre Moçambique contemporâneo “rumo ao socialismo”, tendo em conta o contexto regional

584 A revista nem sempre conseguiu publicar os seus números duas vezes por ano. Com o assassinato de Ruth

First em 1982, a publicação nº5/6 só viria a sair em 1986 e o número a seguir 4 anos depois (1990). 585 Era intenção do CEA publicar também em língua inglesa, contudo somente foi publicada a nº 2, de 1981. 586BUSSOTI, Luca. Saber, Cidadania e Dependência – Estudos sobre a sociedade moçambicana

contemporânea. Torino : L´Harmattan, 2008, p.14,

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das lutas de libertação contra a África do Sul. Esta reflexão sobre a actualidade moçambicana

pressupunha examinar as peculiaridades do colonialismo português em Moçambique e os

processos de integração da economia moçambicana no subsistema da África Austral,

dominado pelo capitalismo sul-africano. Neste sentido, não era propriamente uma revista de

análise histórica, apesar de encontrarmos em todos os textos uma preocupação com os

métodos da história, como também de vários artigos escritos por jovens historiadores

moçambicanos. Mais do que uma revista acadêmica, a Estudos Moçambicanos pretendia ter

um enfoque de intervenção na realidade social, tentando assim contribuir, através da análise

crítica das políticas de desenvolvimento socialista da FRELIMO. Daí a revista enfatizar no

seu primeiro número que os diversos artigos publicados, reflectiam uma preocupação em

tentar confrontar,

Aspectos do que consideramos ser tarefa principal de uma revista de Ciências Sociais neste país: como analisar o funcionamento do colonial-capitalismo, não como simples curiosidade de um passado morto e enterrado, mas sim ao serviço da transformação da sociedade pela revolução moçambicana (…) e isto não só no interior de Moçambique, mas na África Austral como um todo587.

E é ainda no primeiro número da revista, que o CEA explicitou o seu modelo teórico,

O estudo de Moçambique tem que ser efectuado, na nossa opinião, através do método da economia política aplicada, não só nas condições específicas do Moçambique de hoje, como as de uma sociedade surgida das lutas do passado588.

Este “método da economia aplicada”, no concernente, por exemplo, à análise da 587 ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº1, Revista Semestral de Ciências Sociais, 1980,UEM,CEA,Maputo. 588. ESTUDOS MOÇAMBICANOS ,op.cit, “Subdesenvolvimento e Trabalho Migratório” (Editorial), 1980,p.2-

9.

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204

economia colonial-capitalista, implicava não só olhar para os processos econômicos ligados à

produção, distribuição e consumo de bens, mas também de examinar quem se beneficiava,

controlava e influenciava esses mesmos processos. Para o CEA, o método da economia

política assentava, por outro lado, numa “insistência de que era artificial e arbitrária a

separação entre os aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais de um mesmo todo589”.

Daí então a presença de vários artigos que enfatizavam a questão da dependência política de

Moçambique em relação a Portugal e a dependência econômica ao capital estrangeiro não

português, principalmente do capital mineiro sul-africano.

No que se referia ao pós-independência, este método dava particular ênfase à análise

dos conflitos e interesses de classes herdados do passado colonial, particularmente nas

estratégias de acumulação de uma “burguesia” emergente interna (“os novos

exploradores590”), como também as estratégias de dominação do capital sul-africano, através

por exemplo do controle da rede de transportes de carga na região austral como também no

fluxo migratório para as minas de ouro na África do Sul. Havia ainda a preocupação em

reflectir criticamente sobre as políticas do desenvolvimento socialista da FRELIMO,

principalmente no sector da agricultura e indústria.

8.2 A Hierarquia dos Objectos de Pesquisa

Podemos surpreender três grandes temas presentes em todos os números da revista nos

primeiros dez anos da sua história. Em primeiro lugar nos deparamos com a questão da

transformação socialista de Moçambique com particular enfoque na estratégia de

transformação rural de “rumo ao socialismo”. Este tema se desdobrava em questões mais

práticas ligadas às formas de tornar bem sucedidas a socialização do campo. Por exemplo, no

estudo sobre a diferenciação social e interesses do campesinato, no âmbito da construção das

aldeias comunais e cooperativização do sector familiar. Encontrávamos também estudos

empíricos sobre o processo de construção das aldeias comunais, das machambas estatais, da

agricultura familiar, do desenvolvimento de novas formas de produção, como por exemplo as

aldeias comunais em Mueda, Chokwé, etc. A pesquisa sobre estas políticas de

desenvolvimento da FRELIMO implicou por outro lado, uma ênfase também na publicação

589 Revista Estudos Moçambicanos, nº,1981,UEM,CEA,Maputo. 590 Repetidamente aludidos por exemplo pela revista de história do CEA, Não Vamos Esquecer.

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de artigos sobre a economia política do colonialismo português em Moçambique, pois que

como vimos anteriomente, os investigadores do CEA defendiam que para se empreender as

necessarias tranformações sociais rumo ao socialismo era imperiso, primeiro, examinar a

“maquinaria” colonial-capitalista que Mocambique tinha herdado do período histórico

anteiror.

Encontramos em segundo lugar, a omnipresença do tema sobre Moçambique colonial.

Eram basicamente estudos ligados à economia política do colonialismo português e que

procuravam olhar para as especificidades do capitalismo colonial, nomeadamente na

dependência política da colônia em relação a Portugal como também da dependência

econômica em relação ao capital sul-africano, principalmente na sua característica dominante

que foi o trabalho migratório para as minas da África do Sul. O terceiro e último tema que

teve grande destaque na Estudos Moçambicanos, estava relacionado com os trabalhos na área

da pesquisa oral, levadas a cabo pelo sociólogo sul-africano, membro do ANC e investigador

do CEA, Alpheus Manghezi591.

Com a presença deste pesquisador no CEA, novos horizontes de pesquisa se abriram,

principalmente na recolha de dados orais nas comunidades rurais de Moçambique. Um dos

grandes projectos que se beneficiou da qualidade cientifica deste pesquisador foi de facto a

obra o “Mineiro Moçambicano”, que tinha sido enriquecida com documentos orais sobre a

experiência do trabalho mineiro dos operários-camponeses moçambicanos. Manghezi tinha

estudado sociologia na Costa do Marfim tendo concluído nos anos 1960, o doutoramento na

Suécia592.

No CEA, Manghezi iria estabelecer, logo depois da sua chegada, uma “secção

especial593” que lidava com o tema da metodologia da história oral. Esta pesquisa oral

591 Manghezi tinha sido convidado pela MAGIC - tal como muitos outros investigadores estrangeiros do CEA –

para vir trabalhar no novo Moçambique pós - independente. Chega ao país em 1976 tendo sido inicialmente colocado no departamento de história da UEM. Por sugestão de Ruth First, Manghezi iria em 1979, transferir-se para o CEA.

592 A sua tese de doutoramento foi publicada em livro, em 1976, como o título, Class, Elite and Community in African Development. Seu argumento principal nesta obra era de que os modelos convencionais da análise social ocidental não somente não tinham relevância para as sociedades africanas mas que de facto intensificavam os problemas que eles propunham resolver nessas sociedades. Como forma de sair desse impasse, Manghezi defendia a introdução de abordagens teóricas radicais para análise social e superação do subdesenvolvimento. Um tema, é preciso frisar, que vinha fazendo parte da retórica frelimista em relação ao corte radical com os métodos da historiografia colonial e que através da aliança entre teoria e prática (no sentido de olhar a especificidade do contexto moçambicano) se pudesse construir um novo conhecimento social sobre Moçambique e que pudesse também contribuir para a transformação socialista.

593 Entrevista com o autor, 28/05/2010.

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consistia na análise das formas de exploração colonial da força de trabalho, e do trabalho

migratório para as minas sul-africanas através da recolha de informação, experiências vividas

pelos seus participantes directos, através de entrevistas e recolha de canções da população

rural moçambicana594 e, mais particularmente, daqueles que tinham vivido as experiências do

trabalho forçado colonial (Chibalo) nas plantações de algodão, cana de açúcar, arroz, na

construção de estradas como também com os mineiros moçambicanos.

Desde o lançamento do primeiro número em 1980, até a publicação do número 5/6,

(último número sob direcção de Aquino de Bragança), a revista ininterruptamente publicou

textos deste autor, nomeadamente entrevistas e canções sobre os mineiros moçambicanos,595

sobre o trabalho forçado,596 como também pela primeira vez na revista, um estudo de

gênero597e por último um estudo sobre as estratégias de sobrevivência contra a fome no sul de

Moçambique.598 Este facto vem, por outro lado, refutar as críticas de autores como Christian

Geffray, que afirmaram que o CEA não olhava para as questões culturais, ou mesmo que o

trabalho de Manghezi no CEA tinha sido marginalizado pela “facção” da Ruth First.599 A

publicação dos estudos de Manghezi em todos os números da revista durante a fase

Aquino/Ruth, é pois, um exemplo eloquente de que a liderança do CEA, acreditava também

na relevância da história oral e da análise cultural para os desafios do pós-independência.

Estes autores tinham de facto lido e interiorizado o pensamento de Amílcar Cabral

sobre o papel da cultura na construção da história de um povo e do seu valor como um

elemento de resistência ao domínio estrangeiro600. Por exemplo, o texto , “A mulher e o

trabalho601” de Alpheus Manghezi, que consistiu em entrevistas e canções colhidas por ele em

Gaza, Maputo e Inhambane, mostra como essas mulheres “recordavam com um misto de

594 É de referir o facto de que Manghezi era dos poucos investigadores do CEA que falava e escrevia

fluentemente a língua Shangana, dai a sua mais valia na recolha de informação com o campesinato moçambicano que na sua maioria não falava português.

595 Vide, “A voz do Mineiro”, ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº 1, 1980. 596 Vide, “O Trabalho forçado por quem o vivei”, ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº 2, 1981. 597 Vide, “A Mulher e o Trabalho”, ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº 3, 1981. 598 Vide ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº4, 1983. 599 Dan O’Meara, e João Paulo Borges Coelho por exemplo, afirmaram que o trabalho de Manghezi era de certa

forma marginalizado pelo grupo da Ruth First. 600 Para uma leitura mais atenta sobre o pensamento de Cabral, Vide, CABRAL, Amilcar. National Liberation

and Culture. Transition, nº. 45, 1974, p. 12-17; CHILCOTE, Ronald H. The Political Thought of Amilcar Cabral. The Journal of Modern African Studies, vol. 6, nº. 3, Outubro, 1968, p. 373-388; KARIAMU, Welsh – Asante. Philosophy and Dance in Africa: The views of Cabral and Fanon. Journal of Black Studies, vol.21, nº 2, Dezembro, 1990, p.224-232.

601 Vide, ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº3, 1981, p.45-56

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orgulho, amargura e desabafo as experiencias vividas durante o domínio colonial.”

Como forma de melhor compreender o papel e o lugar desta revista no contexto

histórico moçambicano da “transição para o socialismo”, iremos de seguida olhar atentamente

para cada um dos números publicados, desde a sua fundação em 1980 até a sua publicação nº

8 de 1990, exactamente no limite do período de análise deste estudo. Esta revista publicava

em cada uma das suas edições quatro a seis artigos. Uma vez que se tornaria inviável

apresentar nesta tese, todos os artigos produzidos pela revista, por uma questão metodológica

forma seleccionados, de forma aleatória, até três artigos de cada uma das edições da revista,

que nos permitirão primeiro conhecer os objectivos de pesquisa escolhidos pelo CEA, a sua

linha teórica, análise crítica, limitações e relação com o contexto político e social da

“transição socialista” em Moçambique.

8.2.1 Estudos Moçambicanos nº 1: Uma análise sobre como o colonialismo português empobreceu Moçambique

O primeiro número da revista saiu em 1980 e seguindo a linha teórica do CEA, vai ter

como tema central a economia colonial portuguesa e seu impacto em Moçambique, tanto em

termos de como Portugal “subdesenvolveu” Moçambique a la Walter Rodney; como também

na dependência econômica de Moçambique à economia capitalista sul-africana.

Nesta edição encontramos dois artigos, “a economia política do colonialismo” de

Marc Wuyts (1980) e o artigo de Luís de Brito (1980), “ A dependência colonial e integração

regional, que podem ser considerados como os marcos teóricos da pesquisa do CEA sobre a

economia política de Moçambique colonial.

O artigo de Marc Wuyts apresentou uma nova periodização da história colonial de

Moçambique, tendo em conta o contexto da integração regional e da dependência em relação

ao capital sul-africano. Esta periodização, produzida a partir da análise marxista, baseava-se

na fase da luta de classes dentro da colônia, onde estava subjacente o pressuposto teórico de

que o colonialismo em Moçambique não poderia ser compreendido a partir unicamente de

Portugal, uma vez que “a burguesia portuguesa nunca conseguiu moldar a colônia

exclusivamente em função das suas próprias necessidades de acumulação de capital602”. Na

visão de Marc Wuyts era preciso então levar em consideração a dominação do capital

602ESTUDOS MOÇAMBICANOS, nº.1,1980,p.23.

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imperialista (não português)603.

Quadro 7 - Índice Temático da Estudos Moçambicanos nº1 (1980)

Autor Artigo Pags.

Marc Wuyts Economia política do colonialismo em Moçambique

9 – 22

Luís de Brito Dependência colonial e integração regional

23 – 32

Carlos Serra Capitalismo na Zambézia 33 – 52

Judith Head A Sena Sugar States e o trabalho migratório

53 – 72

Conferencia sobre Trabalho Migratório na África Austral

Documento: carta aos direitos dos trabalhadores emigrantes na África Austral

73 - 76

CEA Entrevistas e canções: A voz do mineiro

77 - 90

Miguéis Lopes Júnior

Processo de acumulação da RSA e a situação actual no sul do Save

91 – 110

Colin Darch Análise bibliográfica: Escritos e investigação sobre Moçambique, 1975/1980

11 - 120

Assim, para Marc Wuyts o primeiro período que ia de 1885-1926 estaria dominado

pelo capital estrangeiro (não-português); o segundo de 1926-1960 era caracterizado como a

fase do nacionalismo econômico português sob liderança do ditador António Salazar; o

terceiro, de 1960 - (1963/64) 1973 seria a fase da crise do Salazarismo e da reestruturação do

capital. É a partir desta periodização histórica da presença colonial portuguesa em

Moçambique, que todos os trabalhos sobre a economia política do colonialismo português

levados a cabo pelo CEA se vão basear. Como podemos depreender, este artigo de Wuyts,

mais do que descrever um contexto histórico específico de Moçambique, pretendia fornecer

um quadro teórico que pudesse analisar e interpretar o impacto da estrutura colonial-

capitalista em Moçambique.

O segundo artigo, “Dependência colonial e Integração Regional” de Luís de Brito

603 Idem, Ibid..

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(1980), foi uma das primeiras análises históricas sobre Moçambique colonial, produzidas no

pós -independência, que mudava a ênfase no impacto de Portugal na colônia, para uma maior

focalização na integração de Moçambique no subsistema regional dominado pelo capital sul-

africano. Segundo Luís de Brito, o erro de muitos estudos anteriores se devia ao facto de se

circunscreverem simplesmente à análise das políticas coloniais e de não procurarem estudar

previamente a sociedade colonial em termos de dominação capitalista, das formas que esta

assume e dos mecanismos que lhe asseguram a sua reprodução604. Para Luís de Brito, a

debilidade da industrialização portuguesa e a dependência em relação a Inglaterra iria ter

efeitos profundos na gestão colonial de Moçambique. Não dispondo de capital para investir

nas suas colônias, Portugal tornou incapaz de explorá-las de forma efectiva, acabando por ter

um papel de “arrendatário”, submetido aos interesses do capital estrangeiro605.

Neste artigo, Luís de Brito apresenta aquilo que seria os principais aspectos da

estrutura da economia colonial de Moçambique: uma importante penetração de capital

estrangeiro não-português com grande margem de manobra em relação ao poder colonial;

uma importante “exportação de mão-de-obra; uma rede ferroportuária destinada

fundamentalmente a servir o exterior606. São estes aspectos que na visão deste autor, iriam se

traduzir numa “radical integração e dependência de Moçambique em relação ao complexo da

África Austral e particularmente ao seu principal centro de acumulação capitalista, a África

do Sul607”.

O artigo de Luís de Brito discute em seguida a questão do impacto do fascismo no

Moçambique colonial. Para este autor, o advento do “Estado Novo” em Portugal nos anos

1926, não implicou mudanças significativas na estrutura econômica de Moçambique, pois que

a colônia continuava ainda dependente de capital não-português. Uma tese, é preciso frisar,

que contrariava a visão de muitos outros autores, que olham para a chegada do novo regime

político em Portugal como um marco histórico importante na periodização de Moçambique.

Como asseverou este investigador do CEA, até aos anos 1960, os colonos “não dispunham de

capital que lhes permitia competir com o poderoso capital mineiro”. Ainda segundo este

investigador, Portugal continuava tirando vantagens da “exportação da força de trabalho

604 Idem,p.24. 605 Vide, BRITO, Luís de. Dependência colonial e integração regional. Estudos Moçambicanos nº 1, 1980,

Maputo : CEA,UEM, , p.23-32. 606 BRITO, 1980, op.cit, p.26. 607 BRITO 1980, op.cit. p.27.

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210

migrante, tanto para o financiamento da sua colônia, como também em esquemas de

corrupção envolvendo altos funcionários do Estado, como também administradores coloniais

passando até pelos régulos. Enfim, uma situação da qual o Estado português não podia

controlar - e mais importante ainda - da qual “se beneficiava, ainda que em prejuízo de um

sector da burguesia colonial.608”

Este artigo fazia parte de todo um contexto político, onde a nível governamental,

Moçambique discutia a questão da sua dependência econômica em relação ao capital sul-

africano. A questão por exemplo, da necessidade ou não, de se efectuar um corte radical com

fluxo de mão-de-obra migrante para as minas da África do sul, era de facto um tema actual do

debate. Daí então Luís de Brito advertir, que com a conquista da independência nacional se

tenha tornado mais difícil quebrar os laços de dependência regional (daí então o grande

desafio que seria quebrar essa dependência estrutural) do que os que ligavam Moçambique a

Portugal609”.

8.2.2 Estudos Moçambicanos nº 2: Olhando para as Formas de Exploração Colonial do Trabalho e Lutas de Liberação na África Austral

A Estudos Moçambicanos nº 2 continua, tal como o número anterior, dando ênfase na

análise de Moçambique colonial. São publicados ao todo oito textos que abordam assuntos

diversos como a questão do trabalho forçado (Chibalo) na colônia (urbano e rural), como

também alguns artigos sobre a região austral, com especial enfoque na questão do trabalho

migratório para a Rodésia. Há ainda um texto de Aquino de Bragança sobre a UNITA, de

Jonas Savimbi, que reduz toda complexidade da guerra civil em Angola, aos factores externos

do conflito armado. O texto olha para Savimbi, como um “contra-revolucionário” ao serviço

das forças armadas sul-africanas. Na visão de Aquino de Bragança, o conflito armado que

estava tendo lugar em Angola e Moçambique caracterizava-se apenas por “ exércitos de

soldados negros, dirigidos e instruídos por altos comandados de oficias sul-africanos brancos,

peritos em contra insurreição610.

Ainda nesta edição, Colin Darch, investigador e documentalista do CEA, apresenta

608 BRITO, 1980, op.cit. p.32. 609 Ibidem, p.27. 610 BRAGANÇA Aquino de. Savimbi – Itinerário de uma contra-revolução. Estudos Moçambicanos nº2, 1981,

p.87-104., p.89.

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211

também uma análise bibliográfica sobre documentos do partido FRELIMO. Por fim, são

incluídas também neste número, uma série de entrevistas com as vítimas do trabalho forçado.

“Chibalo e Classe Operária, Lourenço Marques, 1870-1962”, de Jeanne Penvenne

(1981), é mais um artigo publicado nesta revista que põe a tónica na debilidade do capitalismo

português e o seu impacto na gestão colonial de Moçambique. Este “capitalismo barato” de

Portugal iria assim, de acordo com Penvenne, concorrer para a emergência de dois principais

sistemas de exploração colonial da força de trabalho: a exportação de mão-de-obra para as

minas da África do sul e aquilo que Penvenne chama de “sistema nacional de coerção de mão-

de-obra, ou Chibalo, para a então cidade de Lourenço Marques. É neste segundo ponto, que a

autora se detém com mais pormenor, discutindo as suas características, as estratégias de

resistência usadas pelos trabalhadores negros moçambicanos, como também as repercussões

do Chibalo no desenvolvimento de uma classe operária na então cidade-capital de Lourenço

Marques.

Quadro 8 - Índice Temático da Estudos Moçambicanos nº2 (1981)

Autor Artigo Pags.

Aquino de Bragança/Ruth First

Editorial: Do Chibalo à libertação da África Austral

2- 8

Jeanne Penvenne Chibalo e classe operaria: Lourenço Marques, 1870/1962

9 - 26

CEA Entrevistas: O trabalho forçado por quem o viveu

27 - 36

Kurt Habermier Algodão: Das concentrações à produção colectiva

37 - 58

Robert Davies Comité Luso-Rodesiano para assuntos econômicos e comerciais, 1965/1970

73 - 78

SADCC Documento: África Austral pela libertação económica

79 - 86

Aquino de Bragança Savimbi: Itinerário de uma contra-revolução

87 - 104

Colin Darch Analise bibliográfica: As publicações da FRELIMO: Um estudo preliminar

105 - 120

Para esta autora a existência destas duas formas específicas de exploração da força de

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212

trabalho estavam directamente ligadas à debilidade do capital português no interior de

Moçambique, como também no sector de serviços, da indústria e construção nas cidades.

Tanto o sector estatal como privado, não conseguiam competir com o capital sul-africano,

nem mesmo também de garantir uma força de trabalho voluntária com níveis de salários

competitivos. O Chibalo acabava assim tendo a função de fornecer, de forma segura, força de

trabalho a níveis salariais mínimos. Esta forma de exploração da força de trabalho iria

perdurar até aos anos 1960, constituindo assim na “espinha dorsal da indústria de construção

da cidade611.” De acordo com Penvenne, apesar de os portugueses terem legalmente abolido o

Chibalo nos anos 1960, este ainda era largamente utilizado nas zonas rurais e na cidade.

Este artigo, como muitos outros produzidos pelo CEA, no pós-independência, dava

também ênfase às estratégias de resistência dos trabalhadores negros moçambicanos contra o

Chibalo. A autora alude, por exemplo, as deserções de trabalhadores para os países vizinhos à

procura de melhores condições salariais, como também a outras formas de estratégias

empregues por estes trabalhadores, como “biscates”, “sistema de gorjeta” etc. Por fim, a

autora discute a questão da repercussão que esta forma de exploração do trabalho teve no

desenvolvimento de uma classe operária moçambicana. Para Penvenne, este sistema tinha

impedido o desenvolvimento de operários negros especializados. Tinha sido assim um sistema

“utilizado para manter a classe operária marginal e sem força.” Para esta autora, mais do que

criar uma “classe operária”, o Chibalo tinha mantido os trabalhadores negros moçambicanos

na condição de “operários-camponeses612”.

Encontramos de seguida o artigo de autoria de Kurt Habermeier (1981), investigador

do CEA intitulado, “Algodão: das concentrações a produção colectiva”. Este texto tinha sido

baseado num projecto de investigação levado a cabo por uma brigada do CEA na província de

Nampula nos meses de Julho e Agosto de 1979. Habermeier neste artigo, discute a questão da

transformação das novas formas de produção socialista a partir da história da machamba de

um colono português abandonada anos após a independência nacional e que fora transformada

por um grupo de 80 camponeses na província de Cabo Delgado numa machamba colectiva. A

partir deste caso particular, o autor descreve a forma como estava estruturado o sistema de

exploração colonial na produção de algodão, tendo tido o seu apogeu “com a chegada da

FRELIMO que significou fundamentalmente o fim da cultura obrigatória do algodão, o fim

611 PENVENNE, Jeanne. Chibalo e Classe Operária, 1870-1962. Estudos Moçambicanos, nº2, Maputo:

UEM/CEA,1981. 612 PENVENNE, 1981, op.cit, p.26.

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213

do odiado sistema das concentrações algodoeiras613.”

Habermeier não deixa no entanto de analisar, de forma crítica, a relação ente Estado e

camponeses cooperativistas, afirmando que a falta de experiência e formação técnica e

organizacional (dos camponeses), deu lugar a um apoio (do Partido/Estado) “um tanto ou

quanto paternalista614” Ainda segundo este autor, “em vez de capacitar os camponeses a gerir

e planificar eles próprios a sua produção colectiva, a actuação do Estado tendeu a perpetuar a

dependência”.615 Enfim, para este autor, um dos principais travões para um desenvolvimento

mais rápido do movimento cooperativo era devido à “capacidade de apoio limitada e mal

dirigida do aparelho do Estado616.” Habermeier termina o artigo, dando recomendações ao

poder de como contornar a fraca aderência dos camponeses à produção colectiva. Nas

palavras de Habermeier, a solução “exige antes de tudo um esforço gigantesco de

mobilização, formação, organização e planificação por parte do Partido e do Estado617.”

8.2.3 Estudos Moçambicanos n º 3: Contribuindo na Reflexão sobre a Socialização do Campo

É então com a publicação da Estudos Moçambicanos nº 3 em 1981, que se vai colocar

a ênfase na análise contemporânea de Moçambique. O governo tinha acabado de aprovar o

“plano prospectivo indicativo618”. Como corolário, foi dada grande prioridade à socialização

do campo, que seria concretizada, na visão da FRELIMO, através do desenvolvimento de

cooperativas e machambas estatais. Estas eram, de facto, questões chaves da estratégia

613 HABERMEIER, Kurt. Algodão: Das concentrações a produção colectiva. Estudos Moçambicanos, nº.2,

Maputo: UEM/CEA,1981,p.42. 614 HABERMEIER, 1981, op.cit, p.56. 615 Idem, p.55. 616 Idem, p.57. 617 Ibid.Idem. 618 De acordo com Brazão Mazula, cumprindo a orientação do III Congresso, o Partido divulgou, em 1980, o

Plano Prospectivo Indicativo (PPI). O PPI apresentou-se como um plano de ajuste da situação econômica e de modernização da sociedade. Definia metas e idealizava grandes projectos econômicos pela indústria pesada que aceleraria a socialização do campo, criaria bases para a eliminação do subdesenvolvimento em dez anos, e, assim, situaria o país ao nível dos países desenvolvidos. Ainda segundo este autor, o PPI reproduzia, na prática, o modelo de desenvolvimento dos países socialistas. A Frelimo pretendia dar «o grande salto» para o socialismo. Criava-se a ilusão, como possibilidade racional" de o subdesenvolvimento ser vencido numa década e o sucesso da educação resultar do rápido desenvolvimento econômico. Essa ilusão enquadrava-se, também, no espírito triunfalista que ainda predominava na Frelimo. Vide, MAZULA, Brazão. Educação, Cultura e Ideologia em Moçambique: 1975-1985, ed. Afrontamento, Lisboa 2004.

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214

política da FRELIMO para a transformação da agricultura como também para o seu objectivo

maior da “transição socialista”. Daí então encontrarmos como tema central deste terceiro

número: a socialização do campo e planificação”. Aquino de Bragança e Ruth First na

redacção do editorial tornam ainda mais nítido o carácter aplicado da pesquisa social do CEA

e a sua articulação com as prioridades políticas do desenvolvimento da sociedade, e que vale

apenas citar demoradamente,

O III congresso da FRELIMO (1977) estabeleceu a linha estratégica do desenvolvimento de Moçambique. Nesta estratégia a agricultura é a base e a industria o factor dinamizador e decisivo. Isto implica que numa primeira fase a agricultura constitua a principal fonte de acumulação para o desenvolvimento econômico. Isto significa que a socialização – a extensão e consolidação do sector estatal e a cooperativização de produção familiar – é uma tarefa imediata e imperativa.619

Encontramos assim neste número dois artigos que abordam esta questão da

transformação social da agricultura, mas são também publicados artigos sobre variados temas.

Encontramos por exemplo, temas como o trabalho migratório na África austral, a

relação entre gênero e trabalho, como também um artigo produzido pelo grupo de pesquisa da

África Austral do CEA. Neste texto, os pesquisadores do CEA trazem à discussão duas

estratégias regionais diametralmente opostas, onde cada uma delas tinha como objectivo

integrar vários países no interior de uma associação econômica e política. Por um lado,

tínhamos a CONSAS620, dirigida pelo regime sul-africano, por outro lado, a SADCC621,

abordada como uma contra-estratégia dos países africanos (os “paises da linha da Frente”)

para fazer face ao poderio econômico da África do Sul. Há também uma secção de entrevistas

e canções recolhidas por Alpheus Manghezi e uma análise bibliográfica do documentalista do

CEA, Colin Darch, sobre o trabalho migratório na África Austral.

Um dos principais artigos neste número é sem dúvida, “ A Questão agrária em

619ESTUDOS MOÇAMBICANOS, nº.2,UEM,CEA,1981,p.2 620 “Constelação de Estados da África Austral”. 621 “Conferência de Coordenação do Desenvolvimento da África Austral”.

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215

Moçambique” de Bridget O’Laughilin622 (1981). Este é mais um texto que traduz claramente

a postura de “engajamento crítico” do CEA (que será discutido mais detalhadamente no

último capítulo). Neste artigo, a autora reflecte sobre uma das grandes preocupações do

governo na altura, que era de aferir os motivos do fracasso da edificação das aldeias comunais

em algumas regiões, da fraca participação camponesa, como também do persistente domínio

da produção individual familiar em detrimento da política da produção colectiva e

cooperativa. Para esta autora, as suas causas estavam relacionadas com a natureza da estrutura

de classe rural deixada pela dominação do capitalismo colonial em Moçambique, mas

também “ com a falta de tomada de consciência do carácter urgente da cooperativização,

como tarefa imediata da revolução, por alguns sectores do próprio aparelho do Estado623.”

Quadro 9 - Índice Temático da Estudos Moçambicanos nº3 (1982)

Autor Artigo Pags.

Aquino de Bragança/Ruth First

Editorial: Socialização do campo e planificação

2- 8

Bridget O’Laughilin A questão agrária em Moçambique 9 – 32

Marc Wuyts Sul do Save: Estabilização e transformação de força de trabalho

33 – 44

Alpheus Manghezi A mulher e o trabalho 45 – 56

Alexandrino José Chamavam-me terrorista 57 – 64

Yussuf Adam, Robert Davies, Sipho Dlamini

A luta pelo futuro da África Austral: As estratégias dos CONSAS e SADCC

65 – 80

Colin Darch Análise bibliográfica: Trabalho migratório na África Austral: Um apontamento crítico sobre a literatura existente

81 – 96

O’Laughilin inicia a discussão a partir da constatação do governo de que ao longo dos

seis anos de independência e do processo de socialização do campo, havia uma grande

622 Pesquisadora do CEA e docente do Curso de Desenvolvimento. 623 O’LAUGHLIN, Bridget, A Questão agrária em Moçambique, Estudos Mocambicanos, nº.3,UEM,CEA,1981,

p.27.

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216

debilidade no funcionamento das aldeias comunais e do movimento cooperativo. O artigo vai

ser assim principalmente uma tentativa de responder à questão do fraco crescimento da

produção cooperativa nas aldeias comunais, como também da persistência de formas de

produção individual familiar. Como podemos notar, estávamos assim em presença de mais

um estudo que tinha como objectivo principal apresentar “soluções” para os problemas sobre

a implementação das políticas agrárias da FRELIMO em Moçambique. Para esta

investigadora parte do problema da cooperativização do campesinato estava ligada à estrutura

de classes rural deixada pela dominação do capitalismo colonial em Moçambique. E, segundo

esta autora, umas das primeiras medidas a empreender na análise da estrutura de classes no

campo era de se primeiro “romper abertamente com todas as formas de análise dualista, que

consideram o campesinato como “pré-capitalista” e assente na produção de “subsistência.624”

Como alternativa à “análise dualista”, era preciso então olhar mais de perto as formas de

exploração colonial e como estas, através do trabalho forçado e do trabalho migratório

(assalariado), tinham destruído aquilo que ainda existia de “economia de subsistência”. Pois

que, como observou Bridget O'Laughilin, os camponeses continuavam a produzir nas suas

machambas não só para a sua sobrevivência, mas também para o mercado.

Daí então Bridget O'Laughilin argumentar, que o facto de os camponeses não

cooperarem na edificação do movimento cooperativo, não significava que eles fossem

“atrasados”, ou mesmo “ancorados” numa agricultura de subsistência. Pelo contrário, havia

condições estruturais resultantes da herança colonial, mas também na visão desta autora, de

“erros” do Partido/Estado no pós-independência. Bridget O’Laughilin, aponta ainda a questão

da carência de investimento estatal, de organização interna do campesinato, aliada à falta de

novas formas de planificação, de contabilidade e um índice elevado de analfabetismo, como

os factores principais na baixa produtividade das aldeias comunais e do sistema cooperativo

de produção colectiva.

O artigo de Bridget O’Laughilin não deixa assim, de ser também uma crítica ao

desempenho do partido/Estado onde, segundo esta autora, em alguns sectores da estrutura do

Estado estavam ainda influenciados por essa “visão dualista” da estrutura de classes no

campo, tendo assim impacto na produtividade dos movimentos cooperativos. A crítica desta

investigadora do CEA, é incisiva neste aspecto,

A falta de tomada de consciência do carácter urgente da cooperativização como tarefa imediata da revolução, por alguns

624ESTUDOS MOÇAMBICANOS, nº.3,UEM,CEA,1981, p.9

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217

sectores do próprio aparelho de Estado, também contribuiu para a estagnação do movimento. Alguns dos elementos que participam na implementação da política agrária continuam a encarar o campesinato basicamente como produtor de subsistência. Desta forma subestimam tanto a necessidade imediata como a possibilidade de construção de um forte movimento cooperativo.625

Segundo Bridget O’Laughilin, esta postura do partido/Estado levou também a um

“dualismo político que mobilizava o campesinato e alimentava o cinismo;”. Quer dizer, o

governo reiterava nos seus discursos oficiais sobre a importância estratégica das aldeias

comunais e das cooperativas. No entanto, na prática, grande parte dos recursos tinham sido

direccionados para as necessidades das machambas estatais. Tendo em conta as duras críticas

endereçadas ao poder, a autora adverte, que o artigo não estava contra as machambas estatais,

pois que esta constituía o outro elemento fundamental para a transformação socialista da

agricultura626.

No final, Bridget O’Laughilin acaba apoiando a linha política da FRELIMO, que via o

sector agrícola estatal como o instrumento por excelência, que poderia transformar a

economia rural. Daí a autora afirmar, que só poderia haver transformação da economia

política rural, quando se privilegiasse a cooperativização da agricultura e o alargamento do

sector estatal agrário; uma vez que ambas eram parte intrínseca do mesmo processo de

superação das condições de produtividade e estrutura de classe herdadas do colonialismo

português. O artigo, termina deste modo, defendendo a “necessidade histórica da

cooperativização do campo e a sua posição numa estratégia total de transformação socialista”.

8.2.4 Estudos Moçambicanos nº 4, 1983: Enfatizando a Participação do CEA na “Reflexão de Problemas Nacionais627”

A Estudos Moçambicanos nº 4, que deveria ter saído ainda no segundo semestre do

625ESTUDOS MOÇAMBICANOS, nº3,UEM,CEA,1981, p.27. 626 A questão da importância do sector estatal, será também assunto de um outro artigo de autoria de Marc Wuyts

publicado no mesmo número: “Sul do Save: estabilização e transformação de força de trabalho” fala-nos da importância do sector das machambas estatais e da formação de um forte proletariado agrário como base da construção do socialismo em Moçambique.

627 Segundo Aquino de Bragança no Editorial deste número.

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218

ano de 1981, é somente publicada dois anos depois, em 1983 e com a particularidade de ser o

primeiro número sem a presença de Ruth First. Como sabemos, assassinada em Agosto de

1982 nos escritórios do CEA, através de uma encomenda armadilhada enviado pelo regime

sul-africano do apartheid. O CEA ressente-se profundamente desta perda. E é pela mão de

Aquino de Bragança, no Editorial deste número, que notamos este facto,

Pela primeira vez, o nome de Ruth First não figura na nossa ficha editorial. O seu assassinato, através de uma bomba armadilhada, deve ser interpretado também como um atentado contra o CEA. Um vazio imenso foi criado dentro de nós, que com ela diariamente convivíamos e trabalhávamos.628

Quadro 10 - Índice Temático da “Estudos Moçambicanos nº4 (1983)

Autor Artigo Pags.

Aquino de Bragança Editorial: Relançamo-nos 1 -4

Fernando Ganhão Problemas e prioridades na formação em Ciências Sociais

5 - 17

Alpheus Manghezi Kuthekela: Estratégia de sobrevivência contra a fome no sul de Moçambique

19 - 40

Yussuf Adam e Ana M. Gentilli

Movimento dos Lingulanilu no planalto de Mueda, 1957/1962

41 – 75

Maureen Mackintosh

Comercio e acumulação: A comercialização de milho na alta Zambézia

77 – 102

Colin Darch Análise bibliográfica: Notas sobre fontes estatísticas oficiais referentes a economia colonial Moçambicana: Uma crítica geral

103 – 125

Judith Head/ David Hedges

Crítica e Comentário: Problemas da História da Zambézia

127 – 139

628ESTUDOS MOÇAMBICANOS, nº 4, 1983.

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219

Esta edição de 1983, continuou pondo a ênfase em temas ligados aos desafios do

presente. Encontramos por exemplo, artigos que discutem as estratégias de sobrevivência

contra a fome no sul de Moçambique, como também a questão da comercialização de milho

na Zambézia. Não deixa no entanto de também publicar artigos sobre a economia política do

colonialismo em Moçambique, como foi o caso por exemplo do artigo de Yussuf Adam e Ana

Maria Gentili intitulado “O Movimento dos Liguilanilu no Planalto de Mueda, 1957-1962”629,

que mostra como a base do nacionalismo em Moçambique não era algo endógeno ou elitista,

mas que pelo contrário, estava profundamente ligada a actividade dos camponeses. O artigo

argumenta ainda que os camponeses do planalto de Mueda, no norte de Moçambique tinham

já um tipo de associação política tendo se tornado num terreno fértil na emergência da

FRELIMO como movimento de libertação nacional.

Aparece neste número uma nova rubrica, “Critica e Comentário”, que pretendia,

segundo o CEA, “tornar a Estudos Moçambicanos um palco de debate e critica630”. Este

espaço começa assim com uma resenha crítica de Judith Head e David Hedges, sobre o livro

“Capitalism and Colonialism, de Leroy Vail e Langed White. A principal crítica a obra refere-

se ao facto de os autores não terem usado o conceito de “exploração” e de “lutas de classes”,

para explicar o papel do Estado colonial como também de aclarar a sua derrota pela

FRELIMO. Colin Darch apresenta mais uma vez neste revista, uma análise bibliográfica,

desta vez, apelando a necessidade de se examinar de forma crítica, as fontes oficiais e

estatísticas coloniais, quando se aborda a história colonial em Moçambique.

Há ainda neste número dois textos fulcrais para se entender melhor esta questão do

engajamento crítico do CEA e da submissão das prioridades de pesquisa às prioridades

políticas. Um dos artigos é o discurso inaugural do reitor Ganhão na reunião de peritos sobre

Ciências Sociais intitulado “Problemas e prioridades na formação em Ciências Sociais.” O

segundo artigo é de autoria de Maureen Mackintosh, investigadora associada ao CEA,

chamado, “Comércio e acumulação: a comercialização do milho na Alta Zambézia." Estes

dois artigos inserem-se na nova dinâmica de pesquisa do CEA de abordar temas actuais e

urgentes no debate sobre os grandes desafios da transição socialista me Moçambique.

No primeiro, Fernando Ganhão (1983), reflecte sobre os problemas do ensino e

629 Este texto é discutido de forma mais pormenorizada na secção sobre a Oficina de História. 630ESTUDOS MOÇAMBICANOS, nº 4,1983,UEM,CEA, “Editorial”.

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220

investigação que os países da África austral e em particular de Moçambique têm enfrentado

na sua luta pela emancipação regional contra o domínio capitalista sul-africano, bem como

contra os desafios locais da construção do socialismo. Para Ganhão, a tarefa dos cientistas

sociais da região não levanta ambiguidades: “compreender as formas que permitem alterar as

condições sociais631.” E, para levar a cabo esta empreitada, nada melhor do que a “teoria da

mudança social”, em oposição à “teoria da ordem social”, considerada pelo autor como “uma

das mais reaccionárias da ciência social burguesa632”.

O Reitor apela aos cientistas sociais a usarem a análise de classes e da contradição

social, pois só assim estariam engajados no processo de transformação social. Na óptica de

Ganhão, não deveria haver distinção entre as ciências sociais e o marxismo-leninismo. Toda a

discussão e análise da realidade moçambicana devia, segundo o Reitor, estar necessariamente

ligada à teoria marxista. Na perspectiva deste autor, a escolha da “ciência do marxismo-

leninismo633”, significava também uma investigação social engajada na mudança social.

Como forma de ilustrar melhor a conexão entre e a teoria e prática, Ganhão discorre

sobre o percurso biográfico de Eduardo Mondlane e os vários constrangimentos que este

encontrou na busca de uma educação formal condigna. Foi a partir daí então que começou a

surgir, gradualmente, uma maior consciencialização da necessidade de lutar contra o domínio

colonial, tendo culminado com a fundação da FRELIMO e o desencadeamento da luta

armada. É a partir deste exemplo, que Fernando Ganhão argumenta que a génese da teoria

deve também ser parte das lutas sociais e políticas e não algo exclusivamente ligado ao meio

acadêmico e ao ensino formal. Neste sentido, na óptica de Fernando Ganhão, deveria haver

sempre uma teorização a partir da prática. Este vai-se tornar num dos pressupostos do

trabalho do CEA de pesquisa em Moçambique, com especial destaque paras o seu “Curso de

pós-graduação em Desenvolvimento”, que, como vimos, sempre procurou aliar a teoria à

prática, onde o trabalho de campo colectivo e sistemático se tornou no símbolo ex-líbris do

CEA.

Por fim, Fernando Ganhão discute a questão das escolhas das prioridades da pesquisa,

insistindo na necessidade de abordar problemáticas de carácter imediato, muitas das quais

relacionadas com o desafio das lutas de libertação dos países da África Austral em relação ao

sistema do apartheid sul-africano. Segundo o Reitor da UEM, “existe a necessidade urgente 631ESTUDOS MOÇAMBICANOS, nº 4,1983,UEM,CEA,p. 5. 632 Ibidem,p.7. 633 Ver, ESTUDOS MOÇAMBICANOS, nº 4,1983,UEM,CEA, p.7.

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221

de investigar e controlar regularmente o sistema sul-africano, de estudar e prever os

desenvolvimentos da sua economia, na medida em que afecta os restantes Estados da

região”.634

O CEA não vai ficar alheio a estas propostas apresentadas pelo Reitor, principalmente

o grupo de pesquisa sobre a Africa Austral, que de facto tinha como pressuposto teórico

básico a análise de Moçambique (em “transição para o socialismo), da África do Sul e da

Namíbia no contexto das dinâmicas sociais, políticas e econômicas que se vivia em toga a

região austral, dando primazia àqueles tópicos de carácter “urgente” para os desafios da

construção do socialismo em Moçambique, como também na luta de libertação nacional dos

países vizinhos. É preciso no entanto referir que havia excepções, como por exemplo, as

pesquisas levadas a cabo pelo “Oficina de Historia” (particularmente sobre a experiência da

luta armada nacional, protesto social, resistência etc), alguns trabalhos realizados no âmbito

do Curso de Desenvolvimento que abordavam questões pontuais da realidade moçambicana,

como por exemplo, a “socialização do campo”, “transformação rural” ou mesmo a

“desagregação” das aldeias comunais.

Voltando a análise da Estudos Moçambicanos nº4: há ainda um segundo artigo,

“Comércio e Acumulação: a Comercialização do Milho na Alta Zambézia635,” escrito pela

economista Maureen Mackintosh. A autora analisa criticamente alguns dos problemas

surgidos na planificação estatal do comércio privado, no pós-independência, a partir de um

distrito da província de Nampula, no norte de Moçambique: Alto-Molocué. Maureen

Mackintosh argumenta que estes problemas se deviam primeiro à herança colonial (por

exemplo, o “fracasso” do Estado colonial em controlar o mercado privado); e segundo - já no

contexto do pós-independência - a própria fragilidade do Estado moçambicano (na sua

estratégia da transformação socialista), em criar políticas activas para o mercado privado e de

assim superar as formas coloniais de organização do comércio agrário.

E foi esta “falta de uma política activa” em relação ao comércio privado, que originou

uma renovação da acumulação em mãos privadas. Como afirmou Maureen Mackintosh,

“constatamos em 1981, que se estava a processar uma reintegração entre o comércio e a

agricultura privada.”636 Realça ainda a autora, “os comerciantes deste distrito estão a

consolidar-se, enquanto nova classe empregadora, expandindo a agricultura privada, 634ESTUDOS MOÇAMBICANOS, nº 4,1983,UEM,CEA, p.16. 635 Vide, ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº 4, 1983. 636 MACKINTOSH, op.cit, 1983, p.92.

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222

controlando uma parte cada vez maior do sector de processamento.”637

A autora afirma que o Estado pós-colonial deveria ter uma política mais activa de

comercialização para não criar condições próprias à especulação de preços e ao

desenvolvimento do mercado paralelo, que somente beneficiava o comércio privado em

detrimento do sector estatal. Argumenta ainda, que a política comercial da FRELIMO teve o

efeito - não desejado - de aumentar as dificuldades da empresa estatal de comércio e

contribuir para colocar nas mãos dos comerciantes privados mais fundos, à custa tanto do

sector familiar de produtores, como dos consumidores.638

Maureen Mackintosh (1983), através de uma abordagem de “crítica responsável639” e

de esclarecimento ao poder das “estratégias correctas”, não deixa de advertir de que apesar de

ser importante que a FRELIMO tenha uma política mais activa em relação ao comércio, nem

tudo poderia ser transformado apenas por mudanças ao nível de políticas. A autora dá o

exemplo do controlo dos meios comerciais (armazéns, camiões, moagens, etc) e sua relação

com a estrutura de produção agrícola em si. O que acontece, segundo esta autora, é que os

produtores familiares não tinham capacidade financeira de investir por exemplo em camiões

individuais. E, por outro lado, o Estado moçambicano dificilmente conseguiria operar como

retalhista, onde os comerciantes privados eram mais fortes. Daí então a autora sugerir uma via

alternativa (o que não deixava de ser também um dos objectivos principais da estratégia da

socialização do campo da FRELIMO), “ o controlo sobre o comércio apenas pode ser retirado

das mãos dos privados através do desenvolvimento de um movimento cooperativo e através

da integração da política comercial com a política de socialização do campo”.640

Defendia ainda, que apenas as cooperativas em contraste com os produtores familiares

individuais, poderiam utilizar os rendimentos gerados pela produção comercializada para

controlar os meios de comércio: mas neste caso para fins socialistas e não para renovar a

dominação dos comerciantes/agricultores privados”641. O artigo termina elucidando ao

governo sobre os factores a ter em conta na elaboração de uma “política comercial socialista”.

O mercado, na visão de Maureen Mackintosh, não podia ser abolido rapidamente, ou

controlado, devido a inexistência de recursos estatais que permitiriam tal tipo de acção.

637 Ibidem, p.93. 638 Ibidem, p.94. 639 Este tema será elaborado com mais detalhe, no último capítulo. 640 MACKINTOSH, 1983, op.cit. p.100 641 Ibidem, Idem.

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223

Advertia ainda Maureen Mackintosh que uma política comercial inerente à “transformação

socialista” deveria envolver incentivos para o aumento da produção do sector familiar e

permitir que o excedente investível gerado fosse colocado ao serviço do sector cooperativo

em termos de meios de produção, comércio e processamento642. Esta seria a única forma, de

acordo com a autora, de se poder controlar o mercado agrário, permitindo que o sector

familiar e cooperativo se beneficiasse mais do que o sector privado, criando assim uma

estrutura de comércio em moldes socialistas.

8.2.5 Estudos Moçambicanos nº 5/6: A Importância da Investigação Histórica

A Estudos Moçambicanos nº 5/6 só sairia ao público em 1986, três anos depois do

número anterior, publicado, como vimos, em 1983. O aparecimento desta edição, tem um

significado particular, pois que, de acordo com os seus editores,

Foi o último que foi preparado sob direcção de Aquino de Bragança, fundador e director do CEA. Por razões diversas este número é publicado cerca de 1 ano depois da sua morte, em Outubro de 1986, quando regressava com o presidente Samora Machel de uma reunião em que foram analisados aspectos da resposta dos Estados da Linha da Frente a agressão política e militar sul-africana na região da África Austral643.

Neste interregno (1983-1986), o país experimentava algumas mudanças econômicas e

políticas que teriam grande impacto no que era antes considerada como a grande “meta-

narrativa” da FRELIMO: a construção do socialismo em Moçambique. Podemos aqui

referenciar dois grandes acontecimentos: os acordos de Nkomati em 1984 e a adesão de

Moçambique em 1984 ao Banco Mundial (BM) e ao Fundo Monetário Internacional (FMI). O

país estava assim num lento mas longo processo de reformas das suas políticas. Tendo em

mãos uma crise econômica aguda e por outro lado, o agravamento da guerra contra a

RENAMO, a FRELIMO começava a repensar nas suas estratégias políticas da transformação

642 MACKINTOSH, 1983, op.cit. p.101. 643 ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº 5/6, 1986,”Editorial”.

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224

socialista, particularmente no privilégio dos grandes projectos estatais, adoptando em vez

disso programas de reformas econômicas mais direccionados para o mercado, o que

significou uma maior ênfase na importância do campesinato e do investimento privado e da

necessidade fornecer mais apoio a estes actores644.

Encontramos neste número uma dominância de temas ligados ao campo da história,

em detrimento da abordagem da economia política marcadamente presente nas edições

anteriores da revista. Traz dois artigos escritos por Aquino de Bragança (1986), tendo um

deles, “Da idealização da FRELIMO a compreensão da história de Moçambique645” sido

elaborado em parceria com o historiador e também membro fundador da Oficina, Jacques

Depelchin (1986). Este artigo (que como vimos, foi discutido no capitulo oito) pode ser

considerado como um dos textos mais elucidativos do engajamento crítico, que de facto

caracterizou o trabalho científico do CEA durante a primeira década do pós-independência e

da “transição para o socialismo.

O segundo artigo, “Independência sem descolonização, a transferência do poder em

Moçambique, 1974-1975,” foi escrito por Aquino de Bragança, e tinha sido originalmente

concebido para ser apresentado na conferência sobre “ Transferência do poder em África”,

decorrida em Harare no ano de 1985. Este texto apresenta a forma vitoriosa como a

FRELIMO conseguiu em suas negociações com o Estado colonial português de Spínola,

concretizar a transferência do poder, sem pôr em causa o princípio da independência nacional

objectivo primordial da luta armada. Muita informação contida neste texto pode ser

considerada como sendo de “primeira mão”, uma vez que Aquino de Bragança tinha jogado

um papel central no processo de negociação da “transferência do poder”, entre a FRELIMO e

o governo português.

Encontramos ainda nesta edição, um artigo do economista, Kenneth Hermele (1986),

“Lutas contemporâneas pela terra no Vale do Limpopo”, que analisa o surgimento e a queda

da “mais famosa de todas as empresas estatais no pós-independência: o Complexo Agro-

Industrial do Limpopo (CAIL)”. O complexo tinha as suas raízes no período colonial, quando

o Estado colonial português decidiu nos anos 50, implantar um sistema de regadio no vale do

Limpopo (Colonato do Limpopo) e que se tornaria numa das mais importantes regiões

644 Para uma discussão mais atenta sobre esta questão das reformas políticas em Moçambique, Vide,

OTTAWAY, Marina. Mozambique: from symbolic socialism to symbolic reform. The Journal of Modern African Studies, vol. 26, nº2, June, 1988, pp.211-226; PITCHER, Anne. Transforming Mozambique: the politics of privatization, 1975-2000, Cambridge University Press, 2002.

645 Este texto, como vimos, foi discutido na secção sobre a Oficina de História.

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225

agrícolas do país. Segundo Hermele, “esta iniciativa foi resultado de uma política colonial

consciente para fixar agricultores brancos a terra, de modo a salvaguardar a presença no poder

colonial da colônia numa área tão vasta quanto possível646.” E é precisamente no período

colonial que o autor situa a emergência das contradições sociais e das lutas pela terra no vale,

contradições estas advindas da natureza e organização social do colonato, que se caracterizava

pela “divisão racista” entre colonos brancos, que detinham as melhores terras e a maior parte

dos instrumentos de produção e os “colonos negros”, com menos terras e poucos instrumentos

de produção.

Quadro 11 - Índice Temático da Estudos Moçambicanos nº5/6 (1986)

Autor Artigo Pags.

S/Ref. Editorial: Na linha da frente 3-5

Aquino de Bragança Independência sem descolonização: A transferência do poder em Moçambique

7 – 28

Aquino de Bragança/ Jacques Depelchin

Da idealização da FRELIMO à compreensão da história de Moçambique

29 – 52

Keneth Hermele Lutas contemporâneas pela terra do vale do Limpopo. Estudo do caso de Chokwé,

Moçambique, 1950/1985

53 – 81

Maureen Mackintosh Capital privado e o Estado no sistema de transportes da África Austral: As

implicações da actual organização do transporte de carga na planificação de

Moçambique

83 – 128

Jeanne Stephen Baixa de preços e preservação da dependência: A resposta sul-africana às iniciativas do sector de transportes em

Moçambique e na SADCC

129 – 171

Robert Davies Apartheid em fúria: Uma análise das acções do regime de Botha na conjuntura actual

173 – 183

Com a independência e o fim dos colonatos, deu-se o êxodo de grande parte dos

colonos portugueses do Vale do Limpopo e onde muitos dos colonos negros e outras

646 HERMELE, Kenneth. Lutas contemporâneas pela terra no Vale do Limpopo – Estudo de caso do Chokwé,

Moçambique (1950-1985). Estudos Moçambicanos, nº 5/6, UEM, CEA, 1986, Maputo.

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226

populações circunvizinhas se fixaram nas melhores terras, com o intuito de se tornarem, nas

palavras de Hermele, nos “verdadeiros colonos”. Esta situação, segundo Hermele, iria mais

tarde criar tensões com o Estado Freliminiano e a sua politica das machambas estatais e

produção colectiva.

Como afirmou Hermele, a FRELIMO em 1977, no seu III Congresso, decide criar o

CAIL, transformando o antigo colonato do Limpopo, numa “empresa estatal”. Hermele

aponta precisamente este ano de 1977 como significando um ponto de mudança decisiva.

Primeiro porque foi o ano em que seguindo as directivas do III congresso a FRELIMO

“apontava inequivocamente para as machambas estatais e cooperativas e a constituição das

aldeias comunais como fundamentais para o desenvolvimento agrícola647.” Segundo, porque

nesse ano, o Vale do Limpopo tinha sido considerado como o “celeiro da nação”, e a grande

esperança no aumento da produção agrícola. Em terceiro lugar, 1977 foi o ano em que o país

foi assolado pelas cheias onde grandes áreas do vale ficaram inundadas.

De acordo com o investigador do CEA, esta situação iria também forçar as populações

a serem realojadas nas terras altas, onde estariam as aldeias comunais. As machambas estatais

e cooperativas passaram assim a ter prioridade em termos das melhores terras do vale, e todas

aquelas terras subaproveitadas (na maioria nas mãos dos camponeses), seriam transferidas

para as machambas estatais ou cooperativas. Na mesma senda, as populações que se

recusassem a aderir poderiam, segundo directiva da FRELIMO, ser sujeitas a “medidas

administrativas (ou seja a força)648” É assim que Hermele acaba argumentado que o conflito

entre os camponeses e o Estado acabou sendo também um conflito entre a agricultura

individual e a agricultura colectiva.

A “severidade da linha de acção da FRELIMO649” segundo Hermele acabaria criando

resistência e contradições antagónicas com os camponeses, tornando-se assim “numa das

razões básicas para os problemas enfrentados pelo CAIL e pela agricultura colectiva em

geral650.” Estas contradições iriam levar ao fracasso do CAIL, na medida em que as

cooperativas e empresas estatais dependiam do trabalho dos camponeses651. Keneth Hermele

tenta explicar as razões deste falhanço a partir das contradições sociais pela posse de terra,

647 HERMELE, 1986, op.cit. p.63. 648 Ibidem, p.65. 649 Ibidem, p.63. 650 Ibidem, Idem. 651 Ibidem, p.,66.

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que tiveram as suas origens no período colonial e que teriam sido agravadas pela política da

FRELIMO no pós-independência, que dava prioridade às machambas estatais e cooperativas.

Keneth Hermele defende, que a sua ênfase nos factores sociais e políticos para

explicar o fracasso do CAIL, procurava se distanciar de autores que olhavam para a questão

do grau de mecanização da agricultura no pós-independência, como a causa principal da crise

de produção. Sem contudo pôr de lado o problema da mecanização, Keneth Hermele defende

que esta posição tendia a sobrevalorizar as limitantes técnicas em detrimento dos factores

socioeconômicos e políticos652.” Uma posição aliás, que tinha também sido defendida em

1979, por Marc Wuyts,653 que argumentara que a produtividade era mais do que tudo,

socialmente e não tecnicamente determinada. Estes autores salientavam que o grau de

mecanização, em alguns aspectos, não tinha ultrapassado o existente no período colonial.

O que realmente se modificou na óptica deste investigador foi que com a

independência nacional, se deu uma maior concentração da propriedade nas mãos do Estado,

onde a responsabilidade tinha sido transferida de uma camada disseminada para umas poucas

unidades. O autor dá o exemplo do Ministério da Agricultura, que tinha aumentado a sua

posse de tractores em 100% e onde esta concentração continuava até o momento da produção

do texto.654 Assim, segundo este investigador, não foi a mecanização per se que criou as

dificuldades, mas a concentração (que não existia anteriormente), desses tractores nas mãos

de uma “estrutura do Estado incapaz de os cuidar.655”

Sem no entanto pôr de lado a questão da mecanização como um dos factores para o

falhanço do CAIL, Hermele defende que para se ter um entendimento mais completo do

fenómeno é preciso tomar em consideração as contradições políticas e sociais que estas

empresas estatais projectadas pela FRELIMO encerravam. Segundo Hermele, “os

camponeses do Limpopo não estavam interessados em trabalhar na machamba estatal, nem

em viverem nas aldeias comunais. Nem mesmo após as cheias registadas em 1977, eles

tinham vontade de serem removidos para as áreas seguras656.” A transferência dos

camponeses para as aldeias comunais, depois das cheias de 1977, também, segundo Hermele,

652 Ibidem, idem. 653 Vide, WUYTS, Marc. On the question of mechanization of Mozambican agriculture today: some theoretical

comments, Maputo: UEM/IICM/CEA, 1979. 654 Ibidem, idem. 655 HERMELE, 1986, op.cit, p.67. 656 HERMELE, 1986, op.cit, p.67.

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não melhorou a sua situação, pelo contrário, piorou ainda mais, uma vez que estas aldeias

“caracterizavam-se por uma escassez geral, uma falta de orientação e organização e,

finalmente, por um estado generalizado de fome657.”

O autor critica também um estudo produzido pelos dirigentes da empresa estatal,

CAIL, sobre o grande fracasso da colheita de 1981, onde das 52.000 toneladas de arroz que

constavam no Plano, tinham sido colhidos somente 26.000 toneladas. Na óptica de Hermele,

as conclusões deste estudo tinham saído “parcialmente contraditórias”, uma vez que os seus

autores, “por um lado propunham uma revisão total de toda a estrutura operacional do CAIL

e, por outro lado, enfatizavam que as elevadas taxas de crescimento propostas pelo plano

decenal (PPI) tinham que ser atingidas e que o CAIL em particular estava sob obrigação de

realizar as altíssimas taxas de crescimento estipuladas pelo Plano658”.

Kenneth Hermele critica ainda a forma como o estudo explicava as causas do fracasso

do CAIL. Como afirmou o autor, “os problemas enfrentados eram explicados pela falta – ou

chegada tardia – de sementes, pesticidas, adubos, ou mesmo da falta de equipamento

operacional, de trabalhadores sazonais para a ceifa etc.659 Para Hermele ainda que todas estas

razões arroladas pelo estudo do CAIL contenham elementos que deviam ser considerados na

análise do falhanço desta empresa estatal, “a razão básica, no entanto, deveria ser procurada

no processo de criação e nas raízes do CAIL”.

É aqui onde o argumento central de Hermele se encontra com toda uma perspectiva

teórica do CEA, durante esta fase de “transição para o socialismo”: investigar primeiramente

a estrutura concreta da economia rural herdada, como também a natureza da crise da

economia capitalista colonial depois da independência660. Daí então Hermele argumentar que

as razões do “fracasso do CAIL” deveriam ser procuradas, tendo em conta três factores.

Primeiro, as “contradições implantadas na área – sobrepostas numa velha estrutura social

diferenciada – com a instalação do Colonato; segundo, as forças representadas pelos colonos

moçambicanos e camponeses em regime de fruição; terceiro, a expulsão subsequente destes

agricultores e a sua reinstalação após as cheias de 1977. No final, o autor acaba enfatizando

que “todos estes factores considerados em conjunto seriam suficientes para explicar a razão

657 Ibidem, p.68. 658 Ibidem, Idem. 659 HERMELE, 1986, op.cit, p.67. 660 Vide, WUYTS, Marc. On the question of mechanization of mozambican agriculture today: some theoretical

comments, Maputo: UEM/ IICM/CEA, 1979.

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dos camponeses não se tornarem “diligentes, disciplinados, dedicados e conscientes no seu

novo papel de trabalhadores assalariados no CAIL661.”

Apesar de Keneth Hermele apresentar de forma honesta e crítica alguns aspectos da

estratégia agrária da FRELIMO, o artigo não chega a questionar, por exemplo, os efeitos de

uma política agrária que dava prioridade às empresas estatais e cooperativas em Moçambique.

Por exemplo, não explora, com profundidade, o papel do sector privado, como também do

sector familiar na direcção da produção e comercialização no Vale. Enfim, este autor continua

concebendo o sector estatal, tal como os dirigentes da FRELIMO, como “essencial para a

estratégia moçambicana de desenvolvimento agrícola662” e as “machambas estatais como a

espinha dorsal de todo o empreendimento estrutural663”.

Encontramos por último um artigo do investigador do CEA e membro do ANC,

Robert Davies, intitulado, “O Apartheid em fúria: Uma análise das acções do regime de Botha

na conjuntura actual.664” O texto analisa a evolução da luta do ANC e a crise que provocou no

sistema do apartheid e na sua “estratégia total”, instituída pelo governo de Botha em 1978,

que visava aliar a repressão a uma serie de medidas sociais e econômicas para um maior

controlo do poder. O autor descreve deste modo, o processo que levou o governo sul-africano

a intensificar a guerra contra o ANC e alguns países da África austral.

Para Robert Davies, o estado de emergência decretado pelo regime do apartheid e a

intensificação de actos de agressão contra os Estados vizinhos faziam parte “de uma tentativa

desesperada dum regime que não encontra solução para a crise que se acentua, para se manter

no poder665.” A nível regional, afirma Robert Davies, o regime lançou a sua estratégia da

“constelação de Estados” com o objectivo de criar uma firme aliança de Estados regionais,

cooperando a nível econômico, militar e politico com a autoproclamada “potência regional” –

a África do Sul.

Robert Davies termina o seu artigo discutindo o futuro da África do Sul, prevendo em

primeiro lugar que a curto prazo o regime ainda teria capacidade de mobilizar repressão

suficiente para impedir certas forças de acção e organização de massas. O autor conclui com 661 HERMELE, 1986, op.cit. p.69. 662 HERMELE, 1986, op.cit.p.74. 663 Ibidem, Idem. 664 Este texto tinha sido primeiramente apresentado no “Seminário Internacional sobre a paz”, em Maputo, de 9

a 11 de Julho de 1985. 665 DAVIES, Robert. O Apartheid em fúria: Uma análise das acções o regime de Botha na conjuntura actual.

Estudos Moçambicanos, nº 5/6, 1986.

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um vaticínio que se ia concretizar anos mais tarde: “ele poderá indubitavelmente cometer

mais atrocidades contra os povos não só da África do Sul como da África Austral. Porém, no

fim será impotente para resistir à entrega do poder666.”

8.2.6 Estudos Moçambicanos nº 7: As Dinâmicas da Política Externa na Região Austral

Desde a sua fundação em 1980 que a Estudos Moçambicanos apenas conseguiu

manter a sua periodicidade semestral durante dois anos. Tinha sido primeiramente muito

afectada com a morte de Ruth First em 1982. A partir daí, a revista nunca conseguiria manter

a sua regularidade, tendo tido o seu grande interregno com a morte de Aquino de Bragança.

Depois da edição de 1986, a Estudos Moçambicanos nº 7 e nº 8, só seriam publicadas quatro

anos depois, em 1990.

Quadro 12- Índice Temático da Estudos Moçambicanos nº7 (1990)

Autor Artigo Pags.

Sergio Vieira Editorial 5 - 6

Mario Pinto de Andrade

As ordens do discurso do “Clamor Africano”: Continuidade e ruptura na ideologia do Nacionalismo Unitário.

7 - 28

Sergio Vieira Vectores da política externa da Frente de Libertação de Moçambique (1962-

1975)

29 - 56

Peter Vale A inevitabilidade dos Generais: A anatomia do poder branco na Africa do

Sul

57 - 94

Mac Maharaj Determinantes internos da política externa de Pretoria

95 - 118

Calisto Pachaleque Bibliografia (1977-1989) 119 - 136

Estas duas edições, publicadas dez anos depois do seu primeiro número, continuariam

fiéis à filosofia do CEA de olhar para a realidade moçambicana no contexto da África Austral

e das lutas de libertação nacional contra o regime sul-africano. No entanto, pode-se notar,

666 DAVIES, Robert, 1986, op.cit, p. 182.

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231

nesta primeira edição pós-Aquino, uma maior preocupação com temas ligados à política

externa de Moçambique, às questões estratégicas em relação a África do Sul como também,

pela primeira vez, a estudos da área militar. A predominância deste tipo de abordagens nesta

nova fase da história da Estudos Moçambicanos, deve ser entendida tendo em conta as

mudanças que se operaram dentro e fora do Centro. Com o desaparecimento físico de Aquino

de Bragança, a FRELIMO nomeia como director do CEA, Sérgio Vieira, um Coronel (na

reserva) e membro do Comité Central da FRELIMO.

Nota-se nesta nova fase da revista o prenúncio de novos desafios para um futuro ainda

incerto, tanto a nível interno, no CEA, como também no contexto social e político do país. E

começa logo, pelo punho do novo director, no editorial do nº7, arrolando uma série de

factores, como reorganização do Centro e a escassez de meios financeiros, que determinaram

o não aparecimento regular da revista. Encontramos já algumas mudanças significativas nas

duas edições “pós-Aquino”: o desaparecimento de termos com uma forte conotação marxista

presente em quase todos os editoriais da revista, como estratégia de cooperativização do

campo667” “transformação socialista668” “conquista do poder pelos operários-camponeses669”,

“aliança de classes” “luta de classes670” etc.

A lógica do discurso parece agora estar mais ligada aos desafios do presente e não

mais numa “utopia” a fazer advir. Parafraseando Jean-François Lyotard (1990), diríamos que

estávamos em presença do fim da “meta-narrativa671,” de um grande projecto, que era o da

construção do socialismo em Moçambique. É assim, que Sérgio Vieira, afirmava, no editorial

da sétima edição, “ amiséria quase impossibilita a definição de prioridades reais e assim,

muitas vezes, a ciência e cultura embora indispensáveis, são relegadas a segundo e terceiro

planos em nome da sobrevivência imediata”672.

Este período pós-Aquino, vai assim ser palco de mudanças significativas tanto a nível

667 ESTUDOS MOÇAMBICANOS (EM), nº2 668 Ibidem, EM nº 3 669 Ibidem, EM nº4 670 Ibidem, EM nº3 671 Vide, LYOTARD, Jean – Francois Lyotard. A Condição Pós – Moderna. Lisboa : Gradiva, 1989. 672 ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº 7, 1990.

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232

político como também econômico. Começava-se gradualmente a estabelecer os primeiros

encontros entre o governo e os representantes da RENAMO, sem contudo se vislumbrar ainda

uma saída para a guerra de destabilização” que ainda assolava o país. A RENAMO até esta

altura continuava sendo abordada a partir das suas dinâmicas externas e em estreita ligação

com as “acções desestabilizadoras das forças de defesa sul-africana, como afirmou o director

do CEA, que continuava sustendo a sua “frankensteiniana criatura673”.

Num contexto mais geral, o país começava a manifestar as primeiras mudanças

políticas que acabariam com o fim do compromisso formal com o marxismo-leninismo e da

tentativa da transformação socialista. É ainda em Julho de 1990, que a FRELIMO anuncia a

abertura às eleições multi-partidárias, introduzindo deste modo, uma nova Constituição da

República. Por outro lado, como corolário da entrada de Moçambique nas instituições de

Brettons Woods, os anos 1990, vão testemunhar também um maior incremento e aceleração

dos programas de privatização, com grande enfoque naquelas grandes empresas que

anteriormente pertenciam ao Estado674. Um programa que era consequência da mudança de

uma economia planificada pelo Estado por uma economia de mercado.

Apesar destas mudanças no contexto político moçambicano, não vislumbramos ainda

nestes dois números de 1990, o início de um novo debate sobre os temas da actualidade.

Como podemos notar, permanecia ainda a questão da luta política do ANC na África do sul

que ainda constituía um dos temas chaves nas publicações da Estudos Moçambicanos. Os

artigos que vão aparecer nestes dois números, abordam temas ligados às políticas externas de

Moçambique e da África do Sul. Como também às formas de integração regional para fazer

face ao avanço das estratégias desestabilizadoras do regime do apartheid. São também

publicados estudos sobre a estratégia política e econômica da África do Sul e o seu impacto

em Moçambique.675

A edição nº 7, por exemplo, apresenta um total de cinco textos, maioritariamente

dominado por questões relacionadas com a política externa de Moçambique e da África do

Sul. Há no entanto duas únicas excepções. Um texto de Colin Darch (1990), que faz um

levantamento bibliográfico de todos os trabalhos produzidos e publicados pelo e no CEA

673 Vide, Editorial da ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº 8, 1990. 674 Para uma leitura mais atenta sobre a privatização em Moçambique, vide, CRAMER, Christopher.

Privatization and Adjustment: A hospital pass?. Journal of Southern African Studies, Vol. 27, nº1, 2001, 79-103. PITCHER, Anne, op.cit, 2002.

675 Curiosamente é na fase “pós Ruth”, que temas ligados a África do Sul tiveram maior destaque na revista.

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(1977-1989); e o artigo de Mário Pinto de Andrade (1990), “veterano das lutas de libertação

das ex-colônias portuguesas676”, escritor, sociólogo e investigador associado do CEA. Este

intelectual angolano, já tinha colaborado com Centro na altura do Curso de Desenvolvimento,

dando um curso sobre os movimentos de libertação nas ex-colônias portuguesas.

O artigo de Mario Pinto de Andrade677 vai então discutir o processo da constituição do

proto-nacionalismo nas ex-colônias portuguesas. Este esteve segundo Mario Pinto de

Andrade, baseado inicialmente num movimento unitário formado por uma elite africana a

residir em Portugal. São mencionados nomes como Agostinho Neto, Marcelino dos Santos,

Viriato da Cruz, Noémia de Sousa e outros. Afirma Mario Pinto de Andrade, que a praxis

nacionalista desta nova elite africana se deu nas associações legais, nas igrejas e nos

agrupamentos literários.678 O tema da raça e da africanidade dominava os seus discursos até

ao final da segunda guerra mundial. A partir daí, surge um discurso nacionalista, mais

localizado, com pretensões de conquista da independência nacional dos países africanos

colonizados por Portugal.

Há ainda um artigo, escrito por Mac Maharaj (1990), cientista político, economista,

membro do ANC679 e investigador associado do CEA, intitulado, “Determinantes Internos da

Política Externa de Pretoria de 1977 a 1989.” Mac Maharaj neste artigo, apresentado num

seminário em Maputo, realizado em homenagem a Aquino de Bragança e Ruth First, examina

alguns dos factores internos que estavam por detrás da guerra não declarada do regime do

apartheid aos países da região. A audiência pretendida do texto de Maharaj também não

permite ambiguidades: “nós que estamos engajados na luta para eliminar o apartheid, total e

completamente.680“

O autor traça o percurso histórico da política interna do regime do apartheid, que tinha

procurado, ainda no período colonial, manter alianças com as potências coloniais como forma

de expandir e assegurar a sua dominação política e econômica da região austral. O seu

objectivo era assim o de criar uma constelação de Estados regionais sob tutela da África do

Sul. Mac Maharaj discute ainda as mudanças de estratégia do regime de Botha, a utilização de

676 ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº 8, 1990. 677 As ordens do discurso do “Clamor Africano”: continuidade e ruptura na ideologia do nacionalismo. 678 Ver, As ordens do discurso do “Clamor Africano”: continuidade e ruptura na ideologia do nacionalismo,

Revista Estudos Moçambicanos, nº 7,1990,UEM,CEA,Maputo, p.9-27. 679 Em 1994, na nova África do Sul do governo de unidade nacional, Maharaj foi nomeado ministro dos

transportes. 680 ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº 7,1990,UEM,CEA,Maputo. p.98.

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novos instrumentos de desestabilização, como a criação de comandos mercenários e batalhões

étnicos.

Um outro instrumento utilizado pela África do Sul para desestabilizar o país e

perpetuar os laços de dependência em relação ao poder sul-africano foi, segundo Maharaj, as

“formas de substituição”, que no caso moçambicano seria a criação e financiamento do então

Movimento Nacional de Resistência (MNR) actual RENAMO. O autor refere ainda às

“técnicas econômicas de coação”, como por exemplo, restrições de importação de mercadoria,

diminuição de provisão de assessoria técnica e limitação da importação da mão-de-obra

migrante, usadas também pelo regime do apartheid para desestabilizar economicamente os

países da região.

Enfim, estamos em presença aqui de mais um texto “politicamente engajado”, escrito

por um investigador, que participou directamente na luta de libertação nacional do ANC. A

forma discursiva do texto tem esse cunho pessoal e partidário. Podemos assim surpreender

esse “comprometimento” quando no final do texto, Mac Maharaj afirma,

A aliança revolucionária liderada pelo ANC nunca teve a ilusão de que a nossa libertação (grifo meu) resolveria automaticamente todos os profundos problemas do desenvolvimento econômico e do progresso social na África Austral. Mas reafirmamos que é uma pré-condição necessária. Só através do estabelecimento de uma África do Sul livre e democrática serão criadas as condições para a paz na região681.

8.2.7 Estudos Moçambicanos nº 8: Moçambique no contexto da África Austral: conflitos, estratégias e perspectivas pós-apartheid

A Estudos Moçambicanos nº 8, publicada em Novembro de 1990 e ainda sob direcção

de Sérgio Vieira, continua analisando questões fulcrais da dependência histórica dos países da

África Austral em relação ao capitalismo sul-africano. São publicadas nesta edição dois

artigos, “ África Austral: Conflitos, percepções e perspectivas na arena internacional”, do

681 MAHARAJ, Mac. Determinantes Internas da Política Externa de Pretoria. Estudos Moçambicanos nº 7,

1990, p.117, Maputo: CEA, p.95-118.

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director do CEA, Sérgio Vieira, como também “África do Sul e seus vizinhos. Estratégias

regionais em confrontação”, de Thomas Ohlson, investigador sueco, perito na área de “paz e

conflito” e recentemente admitido no CEA. Robert Davies (1990), investigador do “Núcleo da

África Austral”, assina mais um texto sobre os possíveis cenários pós-apartheid na região

austral. Encontramos, no entanto, dois artigos mais direccionados para o contexto

moçambicano. Um estudo de Marc Wuyts que reflecte sobre os constrangimentos e as

alternativas políticas face ao programa de reajustamento estrutural iniciado após as

negociações com as instituições do Bretton Woods682. E, por fim, o artigo de Teresa Cruz e

Silva sobre a história da FRELIMO, com particular enfoque no papel da rede clandestina em

Lourenço Marques nos anos 1964-65.

Quadro 13 - Índice Temático da Estudos Moçambicanos nº8 (1990)

Autor Artigo Pags.

União dos Escritores Angolanos

Declaração da União dos Escritores na morte de Mario Pinto de Andrade

11 - 14

Thomas Olson

Africa do Sul e seus vizinhos - Estratégias regionais em confrontação

15 - 62

Sergio Vieira

Africa Austral: Conflitos, percepções e perspectivas na arena internacional

63 - 93

Marc Wuyts

Gestão econômica e política de reajustamento em Moçambique

97 - 124

Teresa Cruz e Silva

A “IV Região” da FRELIMO no sul de Moçambique: Lourenço Marques,

1964-65

125 - 142

Rob Davies

Algumas implicações dos possíveis cenários pós-apartheid para a região da

Africa Austral

143 - 192

Encontramos nos artigos de Thomas Ohlson, como também de Sérgio Vieira, uma

alusão (pela primeira vez abordado pelo CEA), ainda que breve, ao tema da “guerra de

desestabilização”. Até então, esta questão nunca tinha sido, abordada como objecto

682 “Gestão econômica e política de reajustamento em Moçambique”.

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epistémico relevante. De facto, para alguns investigadores do CEA, a RENAMO, como um

movimento político, nem sequer existia683. Ambos a FRELIMO e os cientistas sociais do

CEA, olhavam para a guerra em Moçambique como um fenómeno estritamente exógeno à

realidade moçambicana.

Para a maioria dos investigadores do CEA, em Moçambique havia apenas “bandidos

armados”, ao serviço do regime do apartheid, tendo como um dos objectivos principais a

destruição de alvos econômicos, como transportes, vias de comunicação, etc. Notamos ainda

este tipo de interditação do conceito de “guerra civil” nos artigos publicado pela Estudos

Moçambicanos. O MNR/RENAMO,684 era assim interpretado tendo somente em conta as

dinâmicas externas da sua emergência.

O artigo de Thomas Ohlson e Sérgio Vieira vão reflectir nitidamente esta ênfase nas

dinâmicas externas da guerra civil em Moçambique. Ohlson discute alguns aspectos das

estratégias regionais em confronto (na sua dimensão militar, econômica e politica) utilizadas

tanto pelo “inimigo comum” a África do Sul, como pelos países vizinhos. Estes autores dão

maior ênfase ao contexto regional, examinando a politica de desestabilização econômica e

militar do regime sul-africano. Segundo eles essa estratégia tinha como objectivo enfraquecer

a economia do país e perpetuar a sua dependência em relação ao governo de minoria branca

sul-africana, “forçando a FRELIMO a seguir uma política mais submissa aos desejos de

Pretoria”685.

A criação do MNR, na óptica de Thomas Ohlson, fazia parte de uma estratégia militar

“para impedir a recuperação econômica de Moçambique e tornar inviável a cooperação

econômica regional686.” Daí Thomas Ohlson, afirmar que os instrumentos de desestabilização

usados pela África do Sul contra Moçambique serem uma mistura de coerção econômica e

agressão militar. Para Thomas Ohlson este movimento de resistência, não passava de

“bandidos armados”, “terroristas” debaixo do controlo da África do Sul, sem nenhuma base

683 Segundo Colin Darch, José Mota- Lopes que chegou a ser Editor da Estudos Mocambicanos tinha declarado

a um Diário português em Maio de 1986, “ que a Renamo não existia e que era uma “ficção, servindo a política sul-africana”. Ver, DARCH, Colin. Are warlods in provincial Mozambique? Questions of the social base of MNR banditry. Review of African Political Economy ,nº 45/46, Militarism, Warlods and problems of Democracy, 1989, p.34-49.

684 A questão do nome da organização foi amplamente discutida por vários autores. Segundo, Darch (1989),HALL, (1990), e YOUNG (1990), até 1982, a organização era referida como MNR um acrónimo inglês para Movment of National Resistence. A designação de RENAMO é vista por esses autores como uma forma desta organização politica mocambicanizar-se.

685 ESTUDOS MOÇAMBICANOS, nº 8, 1990, UEM, CEA, p.41. 686 Ibidem, Idem.

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social de apoio no campo. Na mesma senda, Sérgio Vieira, no seu artigo também publicado

neste número, vai utilizar a mesma linguagem ao falar deste movimento, definindo a situação

de guerra em Moçambique como de “banditismo”. Como afirmou Sérgio Vieira, “não existe

qualquer programa ou esforço de mobilização política quer da população, quer dos próprios

recrutas.687”

Assim, podemos então considerar que até aos anos 1990, a pesquisa sobre as

dinâmicas internas e a antropologia da guerra contra a RENAMO era de facto um tema “tabu”

no CEA. O mais surpreendente é que este tipo de abordagem tenha se mantido dominante

dentro do CEA, mesmo depois de autores como Christian Geffray e Morgens Pedersen, terem

conduzido trabalho de campo688 no distrito de Erati na província de Nampula, onde acabam

argumentando de que, (pelo menos nesse distrito,)689 havia evidências que a RENAMO

poderia ter sido capaz de assegurar algum tipo de base social. Segundo estes autores, a

politica de reunir os camponeses em aldeias comunais do governo teria criado

descontentamento das populações rurais do distrito e levado a uma crise social. A RENAMO,

explorava estes potenciais conflitos ao prometer por exemplo a restauração do poder para os

antigos chefes tradicionais ou incentivando as populações a deixarem as aldeias comunais e

regressarem as suas terras antigas.690 Michel Cahen, também tinha sustentado

(cautelosamente, no entanto), em 1987, que a guerra em Moçambique estava num processo de

mudança de uma guerra de agressão para guerra civil691.

8.3 Estudos Moçambicanos: Uma Revista Interdisciplinar?

A Estudos Moçambicanos desde a sua fundação que procurou ser uma revista

interdisciplinar. Os textos publicados cobriam, de facto, uma gama variada de áreas

disciplinares tradicionais: abordagens mais do campo da sociologia sobre a transformação 687 Ibidem, p.78. 688 Foram mais posteriormente publicados como, Transformação da organização social do campo e diferenciação

social, Maputo, Março 1985, e, Nampula en Guerre, Politique Africaine 29, MarÇO, 1988. também publicado como Sobre a guerra na província de Nampula, Revista Internacional de Estudos 4/5, Janeiro – Dezembro 1986, apud, DARCH, Colin (1989).

689 Segundo, autores como DARCH (1989), HALL (1990) YOUNG (1990), Geffray foi muito cauteloso em termos que querer generalizar o que aconteceu em Erati para todo o país.

690 Ver, YOUNG (1990), HALL (1990). 691 Vide, CAHEN, Michel. Check on Socialism in Mozambique: What Check? What Socialism?. Review of

African Political Economy, nº 57, julho, 1993, p. 46-59.

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social da produção, pesquisas exclusivamente históricas, estudos sobre a economia política do

colonialismo português, como também questões do âmbito da história oral na forma por

exemplo de canções e entrevistas. A revista não deixou também de publicar documentos

oficiais, discursos políticos e resenhas científicas.

Dentro desta diversidade temática podemos surpreender duas tendências principais, e

que poderiam, ambas, constituir-se numa espécie de arcabouço metodológico da revista.

Encontramos assim a presença dominante do paradigma da “economia política marxista”, que

focalizava através de método interdisciplinar no domínio da produção como a última instância

da realidade. Como afirmaram os pesquisadores do CEA,

Não se pode separar a economia da política; rejeitamos veementemente a noção de economia “pura” ou técnica, concebendo-a antes como uma economia política em que a esfera política – as condições em que se desenrola a luta de classes e o papel do Estado – é uma componente que faz sempre parte da análise.692”

Eram utilizados conceitos como forças e relações de produção, socialização dos meios

de produção, Estado, relações de classe, etc. Asseverava ainda o CEA, “uma análise

materialista assenta, afinal, numa insistência de que é artificial e arbitraria a separação entre

os aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais de um mesmo todo.”693 Em segundo

lugar, notamos também a preocupação da revista em estabelecer uma ligação íntima entre a

teoria e prática, através da produção de estudos de caso, indo desde a análise da performance

de uma machamba colectiva até por exemplo a investigação do sistema de transporte na

região da África Austral. Como vimos na secção anterior, estes estudos envolviam pesquisa

de campo aliado a um trabalho de arquivo e análise documental colectiva.

Podemos por outro lado surpreender também três grandes temas predominantes no

percurso intelectual da revista, desde a sua fundação até aos finais dos anos 1990. O primeiro

tema estava relacionado com a reconstrução da história de Moçambique, a partir da presença

colonial portuguesa em Moçambique, culminando com um especial enfoque na experiencia da

luta de libertação nacional desencadeada pela FRELIMO. É dentro deste tema que

692 ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº 1, 1980, Editorial. 693 Ibidem, Idem.

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encontramos por exemplo os artigos sobre a “economia política do colonialismo português”,

“capitalismo na Zambézia”, etc. Encontramos, na mesma senda, artigos sobre a história da

FRELIMO, como foi o caso do texto de Teresa Cruz e Silva, sobre a rede clandestina da

FRELIMO em Lourenço Marques694.

O segundo tema girava em torno das dinâmicas econômicas e políticas dos países da

região austral, tendo como principal vector a sua integração na economia sul-africana. Este

tema vai-se desdobrar também em estudos sobre as estratégias políticas e econômicas e

militares, usadas pelo regime do apartheid, como forma de garantir a sua hegemonia regional,

como também, em última instancia, de desestabilizar todos os Estados da região que não

entrassem em “sintonia” com as suas políticas. Encontramos assim, artigos como, “A luta

pelo futuro da África Austral: As estratégias dos CONSAS e SADCC,”695 do Núcleo da

África Austral, como também artigos individuais, como foi o caso da análise de Mac Maharaj

sobre as dinâmicas internas da política externa da África do sul.

Por fim, encontramos o tema sobre Moçambique contemporâneo, com bastante

incidência na zona rural, e em estudos sobre a transformação da produção e socialização (no

sentido de quebrar com o sistema de produção capitalista herdado do período colonial e criar

um novo sistema de produção colectiva baseado nas machambas estatais e cooperativas de

produção e consumo). Daí então encontramos nesta revista artigos como “A questão agrária

em Moçambique”, de Bridget O'Laughilin, o artigo de Mackintosh sobre a comercialização

do milho da Alta Zambézia696 ou mesmo o artigo de Judith Head sobre a Sena Sugar States697.

Estes estudos, que mais do quaisquer outros, reflectiam nitidamente esta característica do

trabalho de investigação do CEA, de subordinar as suas prioridades de pesquisa às prioridades

políticas da FRELIMO para o desenvolvimento rural de Moçambique. Como afirmaram os

investigadores do CEA, no seu texto sobre as estratégias de pesquisa do CEA, “ a pesquisa do

Centro sentiu a necessidade de responder directamente, através da sua escolha dos problemas

às questões cruciais que a FRELIMO teria que confrontar na implementação da sua estratégia

da transição [ socialista]”.698

694 Vide, ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº8, 1990. 695 Ibidem, nº3, 1981. 696 Vide, ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº 4, 1983. 697 Ibidem, nº2. 1980 698 Vide, CEA. Strategies of Social Research in Mozambique”, Review of African Political Economy nº 25,

1982, p.29-39, p.35.

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A tentativa de Ruth First de, através da revista, “construir uma economia política de

Moçambique699” privilegiando temas directamente ligados à transformação socialista da

produção, não permitiu de facto uma abordagem holística da sociedade, para além daquela

prometida pela economia política. Esta abordagem holística iria permitir por exemplo olhar

para a guerra pós-colonial em Moçambique, não só a partir dos seus factores externos, mas

também, e mais importante ainda, a partir das suas dinâmicas internas envolvendo assim

factores culturais, sociais, econômicos e políticos no interior do campesinato moçambicano.

Portanto, podemos então argumentar, que mesmo apesar de os seus fundadores reiterarem que

a revista utilizaria “um método interdisciplinar, tentando efectuar uma análise integrada da

sociedade moçambicana700”, a Estudos Moçambicanos não conseguiu reconhecer os méritos

de uma abordagem, “não-marxista”, ligada por exemplo aos estudos culturais, antropológicos,

da teoria da ordem social etc. Podemos até surpreender este exclusivismo no uso da análise

materialista da sociedade moçambicana, quando o reitor da UEM e fundador do CEA,

Fernando Ganhão, afirmava que “teoria da ordem social”, era “uma das teorias mais

reaccionárias da ciência social burguesa.701”

699 Vide, ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº1, 1980, (o “Editorial” foi escrito por Ruth First). 700 Vide, “Editorial”, Estudos Moçambicanos nº1, 1980. 701 Idem.

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9. O TRABALHO CRÍTICO E POLITICAMENTE ENGAJADO DO CEA

9. 1 A emergência de Culturas Epistémicas no Centro: “Facções” e Versões Contestadas

Durante as entrevistas efectuadas aos investigadores do CEA, um dos tópicos mais

referenciados por estes, tinha sido, de facto, a relação de “complementaridade” (mas também,

como veremos, de “ambiguidade”), entre Aquino e Ruth, na liderança do CEA. Para a maior

partes dos entrevistados, o “motor” do CEA era encarnado pela figura de Ruth First. Foi

recorrentemente referenciado as suas capacidades de liderança e de organização do trabalho

de pesquisa e ensino no CEA. Dan O’Meara, por exemplo, não hesitou em reiterar que, “

todos no CEA, incluindo Aquino, claramente perceberam que era a Ruth quem comandava o

lugar, quem tomou quase todas as decisões e quem angariava a maior parte do dinheiro para

financiar os trabalhos do CEA”.702 Ana Maria Gentili, foi também uma das investigadoras que

destacou a capacidade de liderança de Ruth First, “ a Ruth First era uma pessoa que tinha uma

grande qualidade de investigadora, jornalista e uma grande capacidade de investigação e de

organização. Com ela não se brincava, tinhas que demonstrar que eras bom investigador, que

tinhas tudo terminado dentro dos prazos”.703

É ainda Teresa Cruz e Silva quem não deixa de reconhecer a mais-valia que tinha sido

a presença de Ruth First no CEA, “com Ruth First nós aprendemos o método, como trabalhar,

como interrogar (…) ela era organizada, metódica, sistemática, exactamente o oposto de

Aquino de Bragança”704. Os entrevistados, não deixaram também de relacionar a sua

“personalidade forte” com o aparecimento de ressentimentos e tensões entre os investigadores

do Centro, como também com outros departamentos de pesquisa e ensino da UEM. A

propósito, Teresa Cruz e Silva vai afirmar que, “ havia uns certos conflitos por causa da

personalidade dela. Ruth First, com aquele seu feitio e aquela sua maneira de comando, não

aceitava muito bem as pessoas da Faculdade de Letras, como também da Faculdade de

Economia”.705

702 Entrevista com Dan O'Meara. 703 Entrevista com Ana Maria Gentili, Junho, 2007. 704 Entrevista, Agosto, 2007. 705 Entrevista com Teresa Cruz e Silva, agosto, 2007.

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E O’Meara vai ainda mais fundo afirmando que Ruth chegou ao ponto de conotar uma

provável posição contrária à sua, como um indicador de que o interlocutor não estava

suficientemente comprometido com o socialismo e a “linha de classe” da FRELIMO. Num

contexto de Moçambique profundamente politizado, um tipo de refutação com esta tinha

indubitavelmente um poder de intimidar qualquer um dos participantes. É de referir que não é

intenção deste estudo discorrer sobre questões de foro psicológico sobre a personalidade de

Ruth First, mas tão-somente, tentar compreender como o contexto social e político da

construção do socialismo em Moçambique e ao mesmo tempo da luta de libertação nacional

do ANC teriam jogado um papel fundamental na forma como esta investigadora levou a cabo

o seu trabalho na direcção científica do CEA. Não podemos assim separar a Ruth First,

activista política, membro do ANC e do partido comunista sul-africano de Ruth First

investigadora e directora científica de um Centro de investigação e pesquisa. Esta intelectual

procurou sempre conciliar o seu trabalho de pesquisa e ensino em prol da “revolução

moçambicana”, com os objectivos da sua luta como militante do ANC. João Paulo Borges

Coelho sintetizou de forma clara a influência destas duas personas de Ruth First quando

afirmou,

Dentro do CEA vão-se criando tensões quando chega a Ruth First em meados de 79 e quando ela chega, ela entra como investigadora para montar um projecto, mas que ela há-de ter trazido também uma agenda própria relativamente a este núcleo acadêmico do ANC que se criou aqui, uma espécie de actividade de contra-inteligência ou de investigação da situação a partir de um ponto de observação muito mais próximo da África do Sul706.

Dan O’Meara, investigador sul-africano, que juntou-se em 1981707 ao “Núcleo da

África Austral”, aludiu também a esta ligação entre o trabalho politicamente engajado de Ruth

na construção do socialismo em Moçambique.

Nós estávamos em Londres num aniversário para celebrar o 70º 706 Entrevista com o autor, agosto, 2007. 707 O´Meara, referiu que tinha sido convidado, em 1979 por Ruth First para trabalhar no CEA, mas devido aos

seus compromissos académicos na Universidade de Dar es Saalam, Tanzânia, só viria a fazer parte do CEA em 1981.

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aniversário de Yussuf Dadoo, na altura Secretário -Geral do Parido comunista sul-africano. Joe Slovo e Ruth estavam lá. Ruth chama-me à parte e pergunta-me se eu estava interessado em vir trabalhar para o CEA. Ela explicou que ela tinha o apoio do presidente Machel e o vice-presidente, Marcelino dos Santos e que o entendimento da política e sociedade sul-africana, era vital para o sucesso do socialismo em Moçambique708.

Ruth acreditava que o seu trabalho na direcção da pesquisa no CEA iria também

contribuir para a luta do ANC. Estando de facto num país independente e engajado numa

alternativa socialista, esta experiência política dos moçambicanos de gerir um país soberano

poderia ser instrutivo para os membros do ANC na luta clandestina e no futuro almejado de

uma África do Sul livre. O trabalho de pesquisa do Núcleo da África Austral iria também

produzir “inteligência política”, para o governo moçambicano e para o ANC709, uma vez que

Moçambique tinha assumido como sua a luta do povo sul-africano. A propósito desta ligação

entre pesquisa cientifica e luta política, O’Meara afirmou mais uma vez que Ruth First,

Também enfatizou que sentia que era importante que analistas do ANC deveriam estar no CEA por duas razões. Primeiro, os problemas que Moçambique enfrentava ofereciam uma “ante-estreia” útil que iria ajudar-nos a ganhar uma experiencia útil nos tipos de problemas que o ANC iria se confrontar depois que a África do Sul fosse libertada. Segundo, ela disse que os intelectuais de esquerda estavam tão acostumados a estar na oposição, e que era importante que nós aprendêssemos a temperar o nosso criticismo natural com um entendimento dos dilemas de estar no poder710.

Ruth First, conhecida nos corredores do CEA como “a dama de ferro711”, com a sua

708 Entrevista com o autor, agosto, 2007. 709 O’Meara mencionou a propósito que muitas das pesquisas realizadas pelo Núcleo eram usadas como fonte de

debate e discussão dentro do ANC sobre a evolução da sociedade sul-africana e, particularmente, as reformas a serem introduzidas pelo governo de P.W. Botha. Entrevista com o autor, Julho, 2007.

710 Entrevista com O'Meara, agosto, 2007. 711 Entrevista com Isabel Casimiro, agosto, 2007.

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capacidade organizativa e disciplina férrea, acabou sendo o “motor” desta instituição,

dirigindo a grande maioria dos projectos de investigação como também do Curso de

Desenvolvimento. Aquino de Bragança iria ter um papel mínimo na definição, formulação,

organização e aprovação da pesquisa. O “capital intelectual” de Aquino de Bragança estava

mais ligado ao seu volume de conhecimento e experiência sobre a história dos movimentos de

libertação em África, como também na sua proximidade com os “bastidores” do poder

político. Daí então Isabel Casimiro afirmar que,

A morte da Ruth teve um impacto muito grande porque o Aquino era uma pessoa maravilhosa, mas ele não tinha capacidade de gestão, de organização. Ele era uma pessoa de conseguir contactos, para fazer diplomacia junto do partido e lá fora. Era uma pessoa para conversar conosco aqui, para nos ouvir. O assassinato da Ruth foi terrível, porque ela era uma pessoa que tinha todas essas tarefas organizativas em termos de pesquisa712.

E de facto, esta predominância de Ruth First na direcção científica do CEA iria, de

alguma forma, ter repercussões na relação profissional com o director do Centro. Dan

O’Meara ilustrou muito bem a fonte destas clivagens, quando afirmou que,

Aquino frequentemente dizia que tinha uma relação problemática com Ruth First. Ele respeitava profundamente o trabalho dela e as análises levadas a cabo pelo CEA, mas ele sentiu que ela tinha lhe levado demasiado poder e melindrava-se, várias vezes, com o tratamento brusco em relação à sua pessoa e às suas sugestões.713.

No seu trabalho de direcção da pesquisa através principalmente do Curso de

Desenvolvimento, Ruth First confiou quase totalmente num pequeno “circulo interno” de

pesquisadores do CEA. Três destes se sobressaem: Marc Wuyts, Bridget O'Laughilin e Kurt

712 Entrevista, agosto, 2007. 713 Entrevista com Dan O´Meara, julho, 2008.

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Habermeier. No entanto, este último iria deixar o CEA mais cedo, nos princípios dos anos

1980.

De uma forma geral, Marc Wuyts e Bridget O´Laughlin eram de longe a grande

influência intelectual de Ruth First. Quer dizer, enquanto Ruth First fornecia a linha política e

disciplina (muito do respeito nutrido por ela advinha disso), a análise da sociedade

moçambicana vinha fundamentalmente de Marc Wuyts e Bridget O´Laughlin. Marc, como

macro-economista, segundo Luís de Brito, a “alma teórica do CEA,714fornecia um

entendimento coerente sobre a evolução econômica de Moçambique e dos problemas criados

pela economia colonial, como também pelas políticas da FRELIMO.

Bridget O´Laughlin, antropóloga, providenciava à Ruth um entendimento convincente

de como a sociedade rural funcionava. Helena Donly, agrónoma inglesa, que no entanto

chegara ao Centro mais tarde, em 1980. Era de facto, o “trio715” Ruth/Marc/Bridget, quem em

última instância, decidia sobre a natureza da pesquisa e ensino que o CEA deveria

desenvolver, principalmente no que concernia ao Curso de Desenvolvimento. Ruth First deu a

estes dois investigadores uma nítida preeminência e confiava-os plenamente. Foi então a este

três investigadores que Isabel Casimiro se referiu quando a certa altura, durante a entrevista,

disse: “os temas a pesquisar eram discutidos por todos, mas era o “núcleo duro” quem

dirigia716.

Uma segunda “facção,” a Oficina de História, que esteve organizada a volta de

pessoas como Aquino de Bragança, Jacques Depelchin, Ana Maria Gentili, Valdemir

Zamparoni e o grupo dos jovens historiadores moçambicanos, Luís de Brito, Teresa Cruz e

Silva, Marco Teixeira, Yussuf Adam, Alexandrino José e Isabel Casimiro. Este grupo

procurava afastar-se do controle de Ruth First, onde muitos destes investigadores achavam

que Ruth abusava do seu poder e se ressentiam da sua atitude em relação ao Aquino de

Bragança. Como afirmou Judith Head, “Ruth não queria saber da Oficina de História, o seu

trabalho era o Curso de Desenvolvimento717”.

A criação da Oficina de História, pode então ser lida como uma forma de Aquino de

714 Entrevista com o autor, março, 2010. 715 Poderíamos também acrescentar a agrónoma inglesa Helena Donly, não obstante ter chegado ao Centro muito

mais tarde, em 1980. Donly também providenciou à Ruth, um melhor entendimento da agricultura em Moçambique.

716 Entrevista com Isabel Casimiro, agosto, 2007. 717 Entrevista com a autora, agosto 2007.

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Bragança garantir um espaço de manobra, (fora da alçada de Ruth), nas escolhas dos objectos

de pesquisa do Centro e parafraseando Pierre Bourdieu, se concentrar na produção de capital

simbólico, ao fazer também pesquisa científica. No mesmo diapasão, os pesquisadores do

“Núcleo da África Austral”, que sob iniciativa de Ruth First produziram “dossiers” sobre a

análise política na África austral, para serem distribuídos aos membros do governo, lutavam

constantemente para adquirir um espaço próprio, livre do comando de Ruth First e, onde

pudessem desenvolver outro tipo de abordagens sobre África Austral, com particular

incidência para as questões sul-africanas.

Uma terceira e última “facção” era formada pelos restantes investigadores do CEA.

Investigadores como Robert Davies, Dan O´Meara, Sipho Dlamini, Gottfried Wellmer e

Alpheus Manghezi e Yussuf Adam que constituíam o “Núcleo da África Austral”. Em relação

a este grupo, a sua principal luta estava relacionada com a garantia/manutenção de um espaço

de pesquisa próprio e que não tivesse o controlo de Ruth First. O depoimento de O´Meara é

elucidativo desta tensão,

Nós sentíamos, (O Núcleo da África Austral) que Ruth não seguia as questões políticas sul-africanas tão profundamente como nós seguíamos e que o entendimento dela sobre alguns aspectos da luta na Africa do sul não estava actualizado, o que se resumia em repetir uma linha política em vez de uma análise detalhada da evolução de vários aspectos da luta dentro da Africa do Sul718.

É assim, que o CEA pode então ser definido como um “sistema cognitivo” que

incorporava distintas “culturas epistémicas”, quer dizer, espaços de lutas, tensões criativas719

onde diferentes pessoas e grupos com distintas praticas, crenças, estratégias, objectos de

pesquisa e metodologias, cujos interesses eram por vezes distintos720 (sem contudo ab-rogar

do objectivo primordial de apoiar, através da produção de conhecimento socialmente

relevante, para o desenvolvimento socialista de Moçambique no contexto da África Austral).

718 Entrevista com Dan O’Meara, julho, 2009. 719 Termo usado por João Paulo Borges Coelho, durante a entrevista, por mim efectuada. Maputo, Agosto, 2007 720 Vide, de BRITO, Ângela Xavier. Rei morto, rei posto? As lutas pela sucessão de Pierre Bourdieu no campo

académico francês. Revista Brasileira de Educação, Jan/Fev/Mar/Abr, 2002, nº19, p.5-19.

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9.2 Intelectuais orgânicos e a legitimação do Estado

Como vimos anteriormente, os pesquisadores do CEA, em vários lugares e de formas

distintas, estiveram engajados na mudança social, e acreditaram na via socialista proposta pela

FRELIMO. Alguns deles tinham tido já nos seus países experiências de luta pela emancipação

social, estavam ligados a campanhas contra o colonialismo português, como também

consideravam-se de “esquerda”, “progressistas” e “anti-imperialistas”.

Muitos destes pesquisadores souberam combinar de forma única um trabalho, avant la

lettre, de “advocacia” política com o ofício de pesquisador. Ruth First é, de facto, um

exemplo paradigmático. Nos seus anos de exílio na Inglaterra, esta intelectual trabalhou em

campanhas políticas e de consciencialização sobre a necessidade das independências das ex-

coloniais portuguesas, onde também conduziu pesquisa sobre as dinâmicas de integração

econômica na região austral de África. Em Moçambique já sob um novo contexto pós-

colonial e da possibilidade da construção de um sistema alternativo à hegemonia capitalista,

estes acadêmicos e pesquisadores iriam se engajar e apoiar à causa da “revolução

moçambicana” e ao projecto socialista da FRELIMO da construção de uma nova sociedade e

do “homem novo”.

Por outro lado, o trabalho científico do CEA procurou sempre responder aos interesses

das várias instituições estatais, como também colocar questões chaves relevantes para a

emancipação de toda a África Austral, nomeadamente nas lutas de libertação nacional que se

desencadeavam na região austral, com particular destaque para a África do Sul, Zimbabwé e

Namíbia. Os dirigentes do CEA partiam do pressuposto de que um estudo profundo e

sistemático da “anatomia do poder branco da África do Sul “era vital", tanto para o sucesso do

socialismo em Moçambique, como também para o êxito da luta política do ANC. Só assim,

poderemos compreender, por exemplo, a preocupação de Ruth First em ter no CEA,

pesquisadores sul-africanos e membros do ANC721.

Como podemos depreender, a partir dos vários “Relatórios de Investigação”

apresentados neste estudo, os investigadores do CEA sempre procuraram aliar as suas

721 Dan O'Meara, na entrevista por mim realizada, lembrava-se claramente de Ruth First lhe ter dito dizer,

(quando lhe convidou em 1981 para vir trabalhar no Centro) que “ o nosso grupo iria produzir “inteligência política” para o governo moçambicano e para o ANC”.

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prioridades de pesquisa às prioridades políticas da FRELIMO para o desenvolvimento

socialista de Moçambique. Daí então a produção de estudos focalizados (alguns destes, como

vimos, directamente solicitados por vários órgãos do Estado, como ministérios, direcções

nacionais, presidência da república, etc.), sobre a transformação socialista da produção,

socialização do campo, construção das aldeias comunais, reestruturação da rede de transportes

na África Austral, dentre outros.

Era, de facto, um Centro focalizado aos objectivos concretos da luta, onde o trabalho

intelectual era subsidiário dos objectivos dessa mesma luta e não o inverso. E foi

precisamente aqui nesta ligação entre trabalho intelectual e “revolução” que residiu a maior

parte das críticas dos seus detractores, (principalmente de Christian Geffray e Michel Cahen).

Michel Cahen, deu o exemplo dos relatórios de “difusão restrita” do CEA (que

segundo ele eram “controlados” pela FRELIMO por razões políticas) para mostrar que o CEA

se encontrava “refém” do poder722. De facto, as publicações saídas fundamentalmente,

durante os vários “Cursos de Desenvolvimento” tinham duas características. Eram por um

lado trabalhos que seguiam uma dinâmica interna do próprio “Curso”, e por outro lado havia

também pesquisas que eram “encomendadas” por vários órgãos do Estado, como ministérios,

direcções províncias, presidência da República etc. Alguns destes trabalhos, apareceram com

o carimbo de “difusão restrita”, mas como iremos discutir mais adiante, os conteúdos destes

relatórios de pesquisa, não tinham nada que pudesse ameaçar a soberania do Estado ou algum

tópico “tabu” para o poder. Não poderíamos deste modo, falar num organismo do Estado com

mecanismos de censura no concernente ao que era produzido ou publicado. No entanto, não

podemos descurar do facto que o CEA esta situado dentro de num campo de relações de

poder, onde ao mesmo tempo que lutava por conquistar um espaço onde pudesse exercer um

trabalho crítico, estava também engajado na legitimação de um projecto que se pretendi

hegemónico na sociedade: a tentativa da construção do socialismo em Moçambique.

O binómio saber/poder de Michel Foucault poderá ser útil aqui para clarificar melhor

este situação. Assim, para este o poder não apenas reprime, censura, exclui, controla e pune,

mas também produz realidades, campos de saber, objectos e rituais de verdade723. Este aporte

teórico permitirá compreender as dinâmicas de pesquisa do CEA e como essa mesma

722 Vide, CAHEN, Michel. Publicações do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane.

Politique Africaine, II (5), Fev. 1982, pp.113 – 115, Mimeo (Tradução ano oficial do texto feita por Calisto Pachaleque do CEA, Abril de 1997).

723 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1981.

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produção científica se relacionava com o contexto social e político do Moçambique pós-

colonial e com a estratégia do desenvolvimento socialista da Frelimo. Pois que, como

asseverou este pensador,

O conhecimento científico estaria primariamente estruturado pelos limites do que é possível dizer, em um dado ponto histórico, a respeito de um sistema particular de discurso. O conhecimento científico repousaria sobre um suporte institucional, sendo reforçado e acompanhado por outros estratos e práticas sociais, tais como a política, pedagogia, o sistema de comunicação do conhecimento, incluindo as instituições de produção do saber, sistemas de editoração.”724

É no entanto, o antropólogo francês Christian Geffray quem elaborou mais sobre a

ligação entre o CEA e o poder725. Christian Geffray, que escreveu também um livro sobre a

guerra civil em Moçambique, “a convite da Frelimo726”, fez uma critica ao trabalho do Centro

de Estudos Africanos, pois que segundo o autor, houve uma submissão dos objetos de

pesquisa às prioridades definidas pela linha política do Partido-Estado. Christian Geffray teve

uma posição peremptória em relação ao trabalho do CEA. O antropólogo francês via esta

instituição simplesmente como uma espécie de braço intelectual do poder, onde o seu trabalho

se resumia em “caucionar” cientificamente a ideologia do partido. Afirmava ainda Christian

Geffray que o trabalho científico do Centro estava assente na “ideologia da página branca”;

quer dizer, os seus investigadores, ao analisarem o campesinato moçambicano, não tinham

prestado a devida atenção às especificidades culturais deste grupo social727.

Uma limitação da crítica de Christian Geffray, liga-se ao facto de não conseguir

perceber as mudanças fundamentais que o trabalho científico do CEA sofreu, desde a sua

fundação em 1976 até ao momento da sua vinda a Moçambique (1984-85). Um contexto do 724 ALVARENGA, Lídia. Bibliometria e arqueologia do saber de Michel Foucault - traços de identidade

teórico-metodológica. s/d., Disponível em: « (http://www.ibict.br/cionline/270398/-22k)», .p.15, Acesso em março, 2007.

725 Vide, GEFFRAY, Christian. Fragments dun discours du pouvoir (1975-1985): Dun bon usage d’une meconnaissance scientifique. Politique Africaine nº 29, 1988.

726 CABAÇO, op. cit., p.245. 727 Vide, GEFFRAY, Christian. Fragments dun discours du pouvoir (1975-1985): Dun bon usage d’une

meconnaissance scientifique. Politique Africaine n.29, 1988.

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recrudescimento da guerra contra a RENAMO, do escalar da crise econômica e que culminou

com a assinatura dos acordos de Nkomati e dos seus efeitos na rede clandestina do ANC em

Maputo. Por outro lado, esta situação levou a que Christian Geffray não conseguisse

destrinçar uma diferença pequena, mas vital, entre um “órgão do Estado” e uma instituição de

pesquisa comprometida em apoiar os objectivos desse Estado. Um órgão do Estado, estaria

assim, directamente sob alçada de um comando legalizado, estruturas de coerção e

mecanismos desse Estado. Não era claramente o caso do CEA (pelo menos durante os

primeiros 10 anos após a independência nacional).

A proposta analítica de António Gramsci pode aqui ser mais uma vez útil para

esclarecer melhor esta questão. Como sabemos, na óptica deste autor, havia uma diferença

nítida entre “hegemonia política”, um conceito leninista que implicava a ditadura do

proletariado, da “hegemonia ideológica”, que significava em Gramsci, uma “liderança

intelectual e moral" conseguida através do “consentimento ideológico das massas”728. Neste

sentido, os investigadores do CEA seguiram a linha política da FRELIMO, não porque eram

“coagidos” (como aconteceria se o CEA fosse de facto um órgão do Estado), mas porque

“consentiram espontaneamente”, uma vez que, parafraseando António Gramsci, eles tinham

“internalizado” o projecto hegemónico da FRELIMO729, ou pelo menos a interpretação que se

dava a esse projecto frelimista, e o seu trabalho crítico servia, em última instância como um

factor legitimador do Estado. Só deste modo poderemos então compreender a “organicidade”

destes intelectuais. Daí Dan O’Meara, investigador do Núcleo de Estudos da África Austral,

reiterar,

Cada um dos pesquisadores empregados pelo CEA via o seu trabalho “acadêmico” como profundamente, politicamente engajado. Nós todos acreditávamos que tínhamos um compromisso com o socialismo moçambicano e para a libertação da África do Sul e Namíbia, e tudo o que nós fazíamos era moldado por isso730.

728 Vide, SALAMINI, Leonardo. Gramsci and Marxist Sociology of Knowledge: An Analysis of Hegemony-

Ideology-Knowledge. The Sociological Quarterly, vol. 15, nº 3, 1974, p. 359-380. 729 Realçamos aqui a ideia de “projecto”, como algo dinâmico, em construção e não propriamente de uma

“hegemonia” da Frelimo. É problemático afirmar que a Frelimo foi de facto hegemónica em Moçambique. Vimos anteriormente que autores como OTTAWAY (1988), SCOTT (1988), CAHEN (1993), questionam até a possibilidade do socialismo em Moçambique e de se conceber a Frelimo como um “partido de vanguarda marxista-leninista”.

730 Entrevista com Dan O'Meara, julho, 2009..

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Um outro indicador desta diferença entre “dominação” e “consentimento”, ou mesmo

entre poder coercivo do Estado moçambicano e a ideologia consensual da FRELIMO, que

levou a muitos destes investigadores a aceitarem a linha do partido, foi a revolta de alguns

investigadores do CEA contra a decisão do reitor da UEM de nomear Marc Wuyts para

“director científico” do CEA, que deveria ocupar o lugar deixado vago por Ruth First, após o

seu assassinato731. Uma situação destas, em que vários investigadores (nacionais e

estrangeiros), assinam uma petição contra a decisão de um superior hierárquico, seria

impensável nas estruturas do Estado e do Partido. Neste sentido, o Reitor não poderia

“coagir” os investigadores a aceitarem Marc Wuyts como novo director de investigação.

Estávamos no ano de 1982, e de facto a estruturação do CEA em facções, as tensões entre os

investigadores, derivada em parte pela postura de “dama de ferro732” associada à Ruth First,

mas também da percepção de alguns investigadores do CEA de que havia sido dada uma

ênfase excessiva num programa de pesquisa virado para a economia política, comandado pelo

“trio” (Ruth First, Marc Wuyts e Bridget O'Laughilin), e de uma o geral todo o contexto da

limitação da dissensão e da pesquisa sobre o ANC, levariam então a esta objecção em relação

a eleição de Marc Wuyts. Assim, é nomeada no seu lugar, principalmente pela vontade de

Aquino de Bragança, a investigadora moçambicana Isabel Casimiro. A percepção que Isabel

Casimiro teve na hora em que tomou posse como a nova directora científica, leva-nos

nitidamente a pensar na definição Bourdesiana do campo científico, dos seus actores, suas

tensões, disputas, capitais diversos, lutas pelo monopólio da autoridade e competência

científica733. Senão vejamos, “eu era nova, estava no meio de tubarões científicos, quer dizer

eram pessoas que tinham uma grande experiência de pesquisa e eu não tinha, mas eu tive que

fazer isso, e fiquei durante um ano”.734

Christian Geffray acabou assim fazendo uma leitura do CEA como se fosse uma

instituição de pesquisa homogénea e unívoca guiada pelo Partido/Estado. Não conseguindo

deste modo captar as diferentes e múltiplas (algumas vezes, conflitantes) “vozes” no interior

do Centro sobre temas ligados aos objectivos da pesquisa, metodologias, finalidades e formas

de engajamento político distintos. Por exemplo, o engajamento dos investigadores do “Núcleo

de Estudos da África Austral” (particularmente dos pesquisadores membros do ANC) ao

731 Entrevista com Dan O´Meara e Bridget O'Laughilin, agosto, 2007. 732 Nas entrevistas por mim realizadas, investigadores como Isabel Casimiro, Teresa Cruz e Silva, Calisto

Pachaleque e Alexandrino José, mencionaram este termo ao falar sobre Ruth First. 733 BOURDIEU, Pierre. A dissolução do religioso: Coisas Ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990. 734 Entrevista com a autora, agosto, 2007.

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projecto socialista em Moçambique, esteve baseado não somente num compromisso em

seguir a linha da FRELIMO, mas em avaliar, através de uma análise individual e colectiva, o

grau em que o partido e o governo moçambicano continuavam a avançar nos objectivos

políticos que eram em última instância, a luta clandestina do ANC e a libertação nacional da

África do Sul.

Só a partir desta lógica, poderemos então compreender a saída vertiginosa (ver

gráfico1) de grande parte destes investigadores com a assinatura dos acordos de Nkomati em

1984, uma situação que se ira manter definitivamente. Muitos destes investigadores olharam

para os “Acordos” como uma espécie de “traição735” do governo moçambicano a causa do

ANC que era a da libertação nacional da África do Sul, e uma vez que o trabalho político

clandestino deste movimento em Moçambique tinha sido interdito, acreditavam que não

restaria outra alternativa senão deixar o país. Como afirmara, O’Meara, “ a nossa lealdade

política primária era para o ANC e o nosso apoio a FRELIMO estava dependente da sua

relação com o ANC e a sua atitude para com a luta no interior da África do Sul”.736

Encontrávamos também uma outra diferença subtil entre alguns dos investigadores do

CEA, que vinham de meios acadêmicos que defendiam o “apoio crítico” e a análise a partir de

um marxismo não ortodoxo, como foi o caso, por exemplo de Marc Wuyts e de Bridget

O’Laughilin, mas também de alguns investigadores sul-africanos como Dan O’Meara, Davies

e Manghezi, que não tinham desenvolvido a sua maturidade intelectual dentro de um partido

comunista e de luta revolucionária. De outro lado, encontrávamos intelectuais como Ruth

First, profundamente influenciada pela socialização política e disciplina férrea, no interior do

partido comunista sul-africano. Foram então estas realidades que Christian Geffray e Cahen

não conseguiram captar quando analisaram criticamente o trabalho intelectual do CEA no

pós-independência e dentro do contexto da tentativa da construção do socialismo.

9.3 Engajamento Critico: Um Oxímoro?

No cerne destas assumpções críticas ao trabalho de investigação do CEA, estava

subjacente um dilema clássico das Ciências Sociais, nomeadamente se a pesquisa científica

deveria guiar-se por uma suposta “neutralidade à valores,” ou se pelo contrário deveria ser

735 Vide, MANGHEZI, Nadja. Amizade Traída e Recuperada. Maputo : Promédia, 2007. 736 Entrevista com Dan O'Meara, agosto, 2007.

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“politicamente “ engajada, no sentido de levar em conta na produção do conhecimento,

questões políticas, éticas, sociais etc. Os proponentes da “neutralidade à valores”, defendem

que a pesquisa social é considerada como sendo eticamente e politicamente neutra, livre de

valores, objectiva e que desenvolve em termos da sua própria racionalidade e lógica

autónoma737.

As suas prioridades de pesquisa seriam então geradas internamente, e não pelas

necessidades práticas ou por considerações ideológicas. Para estes proponentes, à ciência

deveria ser garantida protecção da intervenção política. Esta é a posição por exemplo

defendida pelo clássico da sociologia, Max Weber738, mas também por autores

contemporâneos como Alan Bloom739 e Dinesh D´Souza740. No outro extremo encontramos a

perspectiva que nega a possibilidade da “neutralidade à valores” nas Ciências Sociais e

defende que a pesquisa social deve ser relevante para as preocupações políticas e sociais da

sociedade. Karl Marx pode ser considerado como um dos principais proponentes que desta

concepção de ciência, e mais recentemente, Karl Popper741. Llewellyn Gross742 e Jürgen

Habermas743.

Na visão do historiador sul-africano, Harold Wolpe (1985), ambas as perspectivas são

defeituosas, porque elas assumem que os tópicos da pesquisa são derivados numa forma pura,

pela “lógica” do trabalho científico. Elas diferem, segundo este autor, apenas no facto de que

a segunda perspectiva defende que a pesquisa científico-social produz as questões que

precisam de ser politicamente respondidas.

O problema com ambas abordagens, na óptica de Wolpe, é o seu falhanço de

compreender as condições para as quais todos nós somos sujeitos, que afecta a prática da

pesquisa social. Ainda segundo Harold Wolpe, teoria social e modos de investigação, não

737 Para uma discussão sobre estas duas formas de concepção da ciência, vide, WOLPE, Harold. The Liberation

Struggle and Research. Review of African Political Economy, nº 32, Abril, 1985, pp.72-78, e também, ISAACMAN, Allen . Legacies of Engagement: Scholarship Informed by Political Commitment. African Studies Review, vol. 46, nº. 1, Abril, , 2003, p. 1-41

738 WEBER, Max. Metodologia das Ciências Sociais. Sao Paulo : Ed. Unicamp,1992, (2vols). 739 BLOOM, Allan. The Closing of the American Mind. New York : Ed. Simon and Schuster, 1987.

740 D'SOUZA, Dinesh. Illiberal Education. Atlantic Monthly , nº 267, p.51-79, 1991. 741 Vide por ex., POPPER, Karl. O Mito do Contexto”, Lisboa: Ed.70, 2009. 742 GROSS, Llewellyn. Values and Theory of Social Problems. Applied Sociology:

Opportunitiesa nd Problems edited by Alvin Gouldner and S. M. Miller, New York: Free Press,1995. 743 HABERMAS, Jürgen. Técnica e Ciência como Ideologia”. Lisboa : Ed. 70, 1994.

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menos do que os tópicos de investigação são condicionados pelo contexto social, como

também pela estrutura interna da ciência. O estabelecimento de teorias dominantes e práticas

de pesquisa, a selecção dos objectos da pesquisa e o conhecimento gerado são o resultado de

lutas dentro da ciência através do qual pressões extra-cientificas são mediadas.744

Daí então tornar-se necessário, ao analisar-se as dinâmicas de pesquisa do CEA,

abandonar a simples oposição entre autonomia da pesquisa social e a sua redução a uma

função ideológica. Neste sentido, a exigência de uma pesquisa “pura”, “objectiva “ e livre de

valores, não nos permitiria compreender todo um contexto social e politico que foi

determinante na definição das prioridades de pesquisa do CEA. Foi pois este “engajamento

crítico” do CEA na produção de conhecimento cientifico-social, que iria tornar o seu trabalho

relevante e importante para um audiência vasta, dentro e fora da academia. Por exemplo, o

discurso do Reitor da UEM Fernando Ganhão sobre os “problemas e prioridades na formação

em Ciências Sociais745”, reflectiu nitidamente esta escolha de um tipo de ciência social virada

para a mudança das condições sociais e tendo como paradigma teórico a análise marxista da

sociedade. Na mesma senda, o CEA, também advogou que a “pesquisa deveria ter um papel

imediato e activo no processo de transformação socialista746”. Afirmou ainda, que era preciso

“fazer da pesquisa social um instrumento prático para a revolução moçambicana.747”

Podemos assim encontrar três características principais deste “engajamento crítico” do

CEA (que estão intimamente relacionadas com as três inovações que a pesquisa do Centro

trouxe para o campo da pesquisa no pôs – independência, discutidas no capitulo três). Em

primeiro lugar, foi desenvolvido no Centro um trabalho de pesquisa, predominantemente

colectivo, que dava ênfase à “unidade entre a teoria e a prática748”, demonstrando, que as

“soluções” para desenvolvimento socialista de Moçambique residia numa ruptura com toda a

historiografia colonial e na escolha de uma nova “teoria para a mudança social749.” Este

binómio teoria-prática significava também uma ligação estreita entre ensino teórico e

pesquisa empírica da realidade sócio-econômica moçambicana. Era, por outro lado, uma

744 Vide, WOLPE, Harold. The Liberation Struggle and Research. Review of African Political Economy, nº 32,

p.72-78, Abril, 1985. 745 Vide, ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº4, 1983. 746 CEA. Strategies of Social Science Research in Mozambique. Review of African Political Economy, nº. 25

Set. - Dez., 1982, p. 29-39. 747 Idem. 748 GANHÃO, Fernando. Sobre a Formação em Ciências Sociais. Estudos Moçambicanos, nº4, 1998, p.9. 749 Idem, ibidem .

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pesquisa colectiva que estava preocupada com a libertação nacional dos países da África

Austral sob domínio da África do Sul e do regime rodesiano. Daí então a grande divisa do

CEA ser o de ”analisar Moçambique no contexto da África Austral”.

Em segundo lugar, foi uma pesquisa com um carácter urgente e actual e que procurou

examinar as estratégias de desenvolvimento do Partido/Estado e a sua validade para a

transformação social de Moçambique. Uma pesquisa científica com um propósito de no final,

esse conhecimento produzido ter uma função prática na sociedade. Os relatórios “restritos”,

solicitados pelos vários órgãos do aparelho do Estado são um exemplo eloquente da escolha,

por parte do CEA, de uma ciência social aplicada e que pudesse reflectir sobre os desafios da

“transição socialista”.

E, por último, foi uma pesquisa que pretendeu ter um compromisso social com a

sociedade moçambicana como um todo: na formação de estudantes universitários e quadros

do aparelho do Estado, através do Curso de Desenvolvimento também na criação de formas de

disseminação e debate dos resultados das suas pesquisas, através da revista Não Vamos

Esquecer! e Estudos Moçambicanos, como também da distribuição em vários órgãos dos

Estados, como os ministérios, dos seus relatórios de investigação.

O grande desafio do CEA foi assim o de manter em aberto um espaço analítico para a

dúvida e de estar predisposto a olhar criticamente as causas e movimentos que eles apoiavam.

E aqui o papel deste “engajamento crítico”, não é unicamente o de revelar as injustiças do

imperialismo e no caso moçambicano da desestabilização promovida pelo regime do

apartheid, mas de formular questões cruciais de como este regime poderia ser aniquilado e

como construir uma sociedade socialista em Moçambique. Por outras palavras, não somente

apoiar o modelo de desenvolvimento proposto pela FRELIMO, mas de mostrar, quando for o

caso, os seus pontos fracos ou as suas incongruências.

Por outro lado, pesava também o facto de o CEA ter tido uma autonomia financeira

tanto em relação à universidade como ao governo moçambicano. Não foi preciso apoio

financeiro algum das instituições estatais para pôr a “máquina” da pesquisa e do ensino (no

Curso de Desenvolvimento), a funcionar. Estas instituições colaboraram de outro modo. Por

exemplo, em questões logísticas, e no caso particular do governo, fundamentalmente na

facilitação do trabalho de campo com as comunidades rurais, juntos às estruturas

administrativas locais, ou mesmo providenciando transporte para o contacto com as

comunidades rurais. Em termos financeiros o CEA, recebia apoio de instituições

governamentais mas também não governamentais estrangeiras. Segundo Teresa Cruz e Silva,

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O CEA tinha dois financiadores privilegiados e incondicionais, que estiveram sempre com o CEA, a SIDA750 e a SAREC751 que deu um financiamento institucional que foi até aos tempos do Sérgio Vieira752. O CEA recebia o dinheiro e fazia o que queria com dinheiro e não prestava contas. A ideia da SAREC, que os suecos sempre foram amigos da FRELIMO; a ideia da SAREC era permitir que houvesse uma instituição que desempenhasse um papel pivô na transformação da visão do que eram as Ciências Sociais e principalmente permitir que houvesse uma investigação e sem imposição de temas de pesquisa753.

Isabel Casimiro, acrescenta ainda,

Era o Centro que geria os seus dinheiros e as suas pesquisas, não precisava reportar à reitoria e tinha controlo sobre os seus fundos. O dinheiro estava no Centro. Isso foi uma das coisas que Ruth First conseguiu com seu capital social e o Aquino também. E havia dinheiro para capacitação, para a pesquisa depois isso deixou de acontecer anos 90754.

Foram então todas estas características (a presença de investigadores com sentido

critico, autonomia financeira do Centro em relação ao governo e a universidade), que

tornaram o trabalho de investigação do CEA, no pós-independência, único e que deveria ser

750 SIDA – Swedish Internacional Development Cooperation Agency (Agência internacional Sueca para o

Desenvolvimento Internacional) 751 SAREC – Swedish Agency for Research Cooepratiom with Developing Counties (Agência Sueca para a

Cooperação na Pesquisa com os Países em Desenvolvimento. 752 Sérgio Vieira, Coronel na reserva e membro do “núcleo duro” da FRELIMO, tornou-se director do CEA,

depois da morte de Aquino de Bragança em 1986. Fica no seu lugar Mota Lopes, que era director-adjunto, e nos finais dos anos 1980, a FRELIMO nomeia Sérgio Vieira como director. Este período pós- 1990, como sabemos, não faz parte do escopo de análise desta Tese. Fica assim uma divida para um posterior estudo sobre a fase mais contemporânea da historia intelectual do CEA.

753 Entrevista com a autora, agosto, 2007. 754 Entrevista com a autora, agosto, 2007.

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visto não como um fim em si mesmo, mas como um ponto de partida para a investigação

científica755. Quer dizer, o CEA começava por apoiar e fazer das directivas econômicas e

sociais do partido FRELIMO, as suas prioridades de pesquisa756 e, no final, acabava pondo

em questão aquelas políticas, quando os resultados das suas pesquisas empíricas

demonstravam os equívocos quer na concepção quer na aplicação das mesmas. Não obstante

sabermos, que havia também limites impostos pelo contexto social e político e que

estruturavam a formação discursiva do CEA. Pois que como assegurou Michel Foucault,

Em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, seleccionada, organizada e redistribuída por certos números de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade757.

Assim, o paradigma da economia política marxista que o CEA (fundamentalmente

através do Curso de Desenvolvimento), acabou sendo mais “economicista” que “politico”,

pois o CEA nunca se propôs a abordar questões relacionadas por exemplo com uma análise

empírica na realidade moçambicana sobre “como aqueles que governam, governam? Ou

mesmo “como os dominantes e os dominados percebem essa mesma dominação? Poderíamos

também incluir o tema sobre o conflito armado contra a RENAMO. Como sabemos, para esta

instituição como também para o partido no poder, a RENAMO era vista unicamente como

uma força desestabilizadora criada fora de Moçambique.

Durante este período da “transição socialista”, era de facto, improvável a discussão,

nos círculos acadêmicos moçambicanos, a existência de uma “guerra civil” em Moçambique,

ou mesmo dos factores internos associados, por exemplo, àquilo que Geffray com a

publicação d´A causas das Armas em 1990, se referiu como o descontentamento popular

755 Harold Wolpe, sociólogo sul africano e ativista anti-apartheid, defendia esta posição. Ele insistia que o

trabalho intelectual e investigativo tinha que produzir conhecimento para a política, sem, no entanto desligar-se da investigação objetiva e cientifica do mundo. Ver, ALEXANDER, Peter. Harold and History. Keynote delivered at the Harold Memorial Trust’s Tenth Anniversary Colloquium, “Engaging silences and unresolved issues in the political economy of South Africa”, 21-23 de setembro 2006, Cape Town, South Africa.

756 Christian Geffray tinha também chegado a este argumento porém este autor não conseguiu captar na sua totalidade as duas facetas do trabalho crítico do CEA.

757 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo :Loyola, 1996.

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advindo da ineficácia das políticas agrárias da FRELIMO no campo e da desconsideração

pelas tradições locais e estruturas de autoridade758. Podemos então argumentar, que o CEA

permanecia ainda “refém” de uma “ordem do discurso”, que implicava procedimentos de

exclusão e interdição do que deveria ser dito, onde ainda existiriam os tabus, o direito

isentado ou absoluto de um sujeito particular ou de um grupo. Enfim, uma produção cientifica

que tinha sido “estruturada pelos limites do que era possível dizer, em um dado ponto

histórico.759”

Como afirmou Michel Foucault (1981), o poder não apenas reprime, censura, exclui,

controla e pune, mas também produz realidades, campos de saber, objectos e rituais de

verdade.760 A produção científica do CEA durante o período de 1976-1986, não pode assim

ser analisada e compreendida desligada do seu contexto social, político e econômico. Os seus

produtores, parafraseando Gramsci, “consentiram”, de facto, o projecto hegemónico da

FRELIMO da construção de uma alternativa socialista em Moçambique e, a partir daí, as

prioridades definidas ao nível político tornaram-se também prioridades da pesquisa, embora,

não raro, os resultados (como vimos ao longo deste trabalho), questionassem aspectos

específicos e concretos de tal política. Pode-se então dizer que esta instituição de pesquisa e

ensino, acabaria por funcionar mais como um leal e responsável crítico do governo do que

como um agente autónomo de mudança radical.

758 GEFFRAY, Christian. A Causa das Armas – Antropologia da guerra contemporânea em Moçambique. Porto:

Afrontamento, 1991. 759 ALVARENGA, Lídia. Bibliometria e arqueologia do saber de Michel Foucault - traços de identidade teórico-

metodológica, Disponível em: (http://www.ibict.br/cionline/270398/-22k, , s/data, .p.15 760 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1981.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando Moçambique se tornou independente em 1975, o partido no poder, a

FRELIMO, tentou reestruturar e redefinir uma nova sociedade, livre da opressão colonial e

guiada por objectivos relacionados à construção do Estado-Nação moderno. Uma das

prioridades da FRELIMO foi então, a tentativa, de “destradicionalização761” do mundo social,

que se reflectiu no combate aos líderes “tradicionais”, práticas religiosas, ritos de iniciação,

estatuto subordinado da mulher, bem como na extinção de todo o aparelho colonial

“retrógrado”, para que uma nova sociedade liderada pelo homem novo pudesse emergir. Por

outro lado, o “projecto modernizante” da FRELIMO propunha também uma profunda reforma

agrária, com a proibição da propriedade privada e a introdução de cooperativas de consumo e

produção colectiva. Estávamos assim em presença de uma tentativa de constituição de uma

nova ordem social. Como observou Carlos Serra, “trata-se para os camaradas da utopia, de

fazer tábua rasa do passado, de destradicionalizar a colonização e de descolonizar a tradição

[...] se na era colonial o objectivo central era o de gerir corpos úteis produtores de matérias-

primas, agora o objectivo central é de gerir mentalidades revolucionárias produtoras de uma

sociedade nova”762.

O papel das Ciências Sociais para a “reconstrução nacional” se pôs também com a

maior acutilância nesta fase ”revolucionária”. A FRELIMO defendia uma ciência social

armada com a teoria do marxismo-leninismo, que privilegiasse a teoria da transformação

social e excluísse peremptoriamente, a “teoria da ordem social”, encarada como “reaccionária

e burguesa.763” Fernando Ganhão, reafirmava assim o que era na altura a “visão de mundo”

do poder político em relação ao modelo de sociedade a construir. Todos os sectores da

sociedade, e o meio acadêmico não era excepção, teriam que unir forças para um único

objectivo: a construção de um Moçambique socialista. Vale a pena voltar a mencionar as

761Des-tradicionalização é usado aqui no sentido de uma tendência a romper com o passado colonial e com os

valores considerados retrógrados” tanto as herdadas do poder colonial como também das tradições “obscurantistas” e “supersticiosas” das comunidades locais. Veja, SERRA, Carlos. Novos combates pela mentalidade sociológica. Maputo : Livraria Universitária, 1997, p.97.

762 SERRA, op.cit, p.97. 763Veja, GANHÃO, Fernando. Sobre a formação em ciências sociais. Estudos Moçambicanos, nº 4, CEA,

Maputo, 1983. p.7 (Fernando Ganhão, primeiro Reitor da Universidade Eduardo Mondlane. Este texto é o “discurso de abertura da Reunião de peritos sobre os problemas e prioridades na Formação em Ciências Sociais na Africa Austral”, organizado pela UNESCO e CEA, em Agosto de 1982.

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palavras do Reitor,

Numa universidade como a nossa pretende ser, numa sociedade em transição para o socialismo, os problemas das Ciências Sociais são bastante diferentes. A universidade é uma estrutura organizada para produzir conhecimento; para a formação de estudantes e professores em métodos científicos; para a produção de intelectuais que estejam decididos a engajar-se no processo prático de transformação social. No caso de Moçambique, capazes de construir e consolidar a aliança com outras classes e grupos, as bases duma sociedade socialista.764.

O desenvolvimento do ensino e pesquisa em Ciências Sociais no novo Moçambique

implicou na sua génese, uma tentativa de romper com o sistema de ensino colonial e das suas

limitações. O sistema de educação colonial, porque baseado em princípios discriminatórios,

racistas e elitistas, esteve mais ao serviço dos filhos dos colonizadores portugueses do que da

maioria africana. A fundação da primeira Universidade em Moçambique em 1962, data de um

tempo onde o próprio sistema colonial começava a ruir, abalado pelo desabrochar dos

movimentos anti-colonialistas e das lutas pelas independências nacionais africanas. No fim do

sistema colonial, como vimos ao longo do estudo, mais de 90% da população moçambicana

não tinha tido nenhum acesso à educação formal765. Este facto pode nos ajudar a compreender

melhor os constrangimentos que os “revolucionários” da FRELIMO se depararam no

processo de transição socialista e na tentativa da construção do Estado-Nação.

Com a independência nacional, a educação iria ser concebida como instrumento

fundamental para reverter os constrangimentos da herança colonial, de resgatar a dignidade

do povo moçambicano, a sua cultura e, ao mesmo tempo, dar sustentação ao projecto

sociopolítico da FRELIMO766. Como vimos, por exemplo, através da criação da Oficina de

História, era preciso de um lado reescrever a “verdadeira” História de Moçambique, onde

africanos não seriam mais “objectos”, mas sim sujeitos activose onde através da experiência

764 Ibid.loc.cit.p.12 765BUENDIA, Miguel. Educação Moçambicana – História de um processo: 1962-1984. Maputo: Livraria

Universitária, UEM, 1999, p.218. 766Ibidem, p.223.

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da luta de libertação armada construiriam uma História “revolucionária” e dignificante767.

A própria fundação da Oficina de História, por Aquino de Bragança teve como

objectivo também de ir para além de um marxismo abstracto, e assim fazer uma reflexão

crítica sobre a história da FRELIMO, “uma tentativa de ir mais fundo numa certa concepção

da história “oficial” da FRELIMO”768, uma interrogação, um contacto com os antigos

combatentes das antigas zonas libertadas de Cabo Delgado, para que a partir dessas narrativas

orais se pudesse “usar o passado769” de forma revolucionária.

O que implicava ir para além de um “passado útil” para o orgulho e dignidade dos

moçambicanos, mas que fosse útil na estratégia do desenvolvimento socialista, tendo agora

como sujeito activo da história, os “operários e camponeses”, que tinham sido “silenciados”

pela historiografia colonial. A universidade, neste período de transição socialista, e mais do

que nunca nos primeiros anos da independência, também tinha um papel decisivo, tanto como

formadora de uma nova mentalidade, do “homem novo”, como também na produção de

conhecimento, de soluções para a transformação das condições sociais dos moçambicanos.

O CEA iria, de facto, assimilar profundamente este princípio marxista da

“transformação social” e do carácter urgente da solução dos problemas sociais770, fazendo

então emergir no contexto moçambicano uma nova forma de pesquisa social, com o

desenvolvimento da sua primeira pesquisa colectiva, que foi o estudo, “A Questão

Rodesiana”. Mesmo que este estudo não possa ser considerado como a melhor produção

científica do CEA, uma vez que, nenhum dos seus investigadores na altura, era especialista

em assuntos ligados à realidade Zimbabweana, tentamos mostrar, que mesmo assim, “A

Questão Rodesiana” teve o condão de mudar radicalmente a dinâmica de pesquisa do Centro e

permitiu a emergência de um novo campo da pesquisa no pós-independência, ao introduzir

três inovações: (1) uma abordagem no “actual” (sem contudo deixar de levar em consideração

as suas raízes históricas), em vez de focalizar na história como tal; (2) uma mudança de uma

767A Frelimo não fez menção de forma insistente ao passado pré-colonial, diferentemente por exemplo de alguns

líderes africanos, como Senghor, Nyerere que glorificavam uma África, “tradicional”, comunitária, solidária, onde não existiriam conflitos de qualquer ordem. O novo poder político em Moçambique apelou mais por um projecto modernizante, que procuraria construir o “homem novo” e uma sociedade “socialista sem exploração do homem pelo homem.”

768 Idem. 769 RANGER, Terence. “Toward a Usable African Past,” in FYFE, C.H. (ed.) African Studies since 1945: A

Tribute to Basil Davidson. London: Longman, 1976, p. 28-39. 770 Em alusão à máxima de Marx, de que não devemos satisfazer-nos em interpretar o mundo – precisamos

ajudar a transformá-lo. Vide, POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações, Brasilia: ed. Universidade de Brasilia, 1972.

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pesquisa individual para uma pesquisa colectiva; e (3) a introdução de um sentido de urgência

na pesquisa para responder a preocupações imediatas. Este último ponto, também significava

que o tempo para se fazer uma determinada pesquisa era restrito e que os resultados desta

tinham que se sujeitar a prazos muito claros.

A partir daí, o CEA iria se tornar na principal instituição de pesquisa e ensino (através

por exemplo do Curso de Desenvolvimento) em Ciências Sociais no pós-independência

trazendo para o contexto moçambicano não só na vanguarda na produção e difusão de

conhecimento científico, como também na construção de um novo método e abordagem

científica. E de facto, o paradigma da economia política e da análise de classe marxista

acabou sendo a principal referência teórica, fundamentalmente a partir do Curso de

Desenvolvimento (que como vimos, produziu a maior partes dos trabalhos científicos do

CEA), como também na liderança da pesquisa levada a cabo pelo “trio” dirigente do CEA:

Ruth First/Marc Wuyts/Bridget O’Laughilin. Um modelo teórico, diga-se de passagem, que

estava profundamente em sintonia com o projecto ideológico da FRELIMO da transformação

social rumo ao socialismo

Podemos então falar de uma dupla vinculação da maioria dos investigadores do CEA

a um contexto particular de Moçambique pós independente. Por um lado houve uma simpatia

geral com o projecto frelimista da construção de uma alternativa socialista para Moçambique,

e por ouro lado, houve também uma adesão, destes investigadores ao contexto intelectual do

paradigma da economia política marxista e da análise de classes, fundamentalmente através

do privilégio de uma ciência social aplicada focada nas questões da transformação social e das

condições de vida dos moçambicanos. Daí então, depararmo-nos logo depois da criação da

Oficina de História (que tinha como um dos seus objectivos principais construir de facto essas

narrativas do passado), a questão de saber “quem irá controlar o que a história771” é era uma

das preocupações centrais dos historiadores da Oficina de História772, o que implicava muita

apreensão por parte tanto do poder, como também do próprio CEA de quem controlaria essa

história.

A apreensão do poder em relação a quem deveria produzir a nova história, era de facto

devido ao objecto primordial deste empreendimento, que estavam directamente relacionados

771 Vide, Revista, NÃO VAMOS ESQUECER! nº1, CEA,1980. 772 Vide, JEWSIEWICKI, Bogumil. African historical studies – Academic knowledge as “usable past” and

radical scholarship. African Studies Review, vol.32, nº3, 1989, p.1-76.

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com a questão da manutenção de uma “visão de mundo” que se ambicionava hegemónica773.

Pois que, como afirmou o sociólogo Richard Roberts, “as narrativas estatais, servem para

promover um sentido de poder de Estado e legitimação, e como consequência silenciar

leituras alternativas e narrativas do passado”. As alianças com o poder serviam tanto para

criar confiança institucional e assim participar mais directamente nos desafios da “transição

socialista”, como também para demarcar um espaço em que os investigadores do CEA

pudessem exercer, de forma autónoma, a crítica e a dúvida na análise do social. Bridget

O'Laughilin, dá-nos uma imagem desta articulação ao afirmar, “quando nós íamos ao campo,

nós não tínhamos um mandato do partido. Quando estávamos a fazer investigação as pessoas

pensavam que nós vínhamos do governo e nós repetíamos sempre: não somos do governo.”774

O grande desafio do CEA foi assim o de manter em aberto um espaço analítico para a

dúvida e de estar predisposto a olhar criticamente as causas e movimentos que eles apoiavam.

E aqui o papel deste “engajamento crítico”, não é unicamente o de revelar as injustiças do

imperialismo e, no caso moçambicano da desestabilização do regime do apartheid, mas de,

colocar questões cruciais para o desenvolvimento socialista de Moçambique e da eliminação

do apartheid na África do sul. E, foi de facto esta característica, que tornou o trabalho de

investigação do CEA, no pós-independência, sui generis e, que deveria ser visto, não como

um fim em si mesmo, mas como um ponto de partida para a investigação científica775. Quer

dizer, o CEA fazia das directivas econômicas e sociais do partido FRELIMO, as suas

773 O projecto político da Frelimo nunca foi absolutamente hegemónico (pelo menos no sentido gramsciniano do

termo).Como sabemos para Gramsci, Hegemonia envolvia uma combinação de liderança (ou direção moral, política e intelectual) com dominação, onde estaria presente também uma supremacia exercida através do consentimento e da força, da imposição e da concessão, de e entre classes e blocos de classes e fracções de classe. A tentativa de construção do socialismo em Moçambique pela Frelimo, estava mais assente na “dominação” e “coerção” do que propriamente no “consentimento espontâneo das massas”, basta para isso lembrar, as rusgas, os campos de reeducação e a guerra civil. Para mais, os projectos nacionais, mesmo no concernente ao controlo social ou da história, nunca são hegemónicos, pois que as narrativas estatais estimulam o aparecimento e desenvolvimento de narrativas contra - hegemônicas. O exemplo da guerra civil em Moçambique é eloqüente deste argumento. Para uma leitura mais atenta deste conceito na perspectiva gramsciniana, vide, GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, Vol.II, São Paulo: Civilização Brasileira,2004; FATTON, Robert. Gramsci and the legitimization od the State: The case of the Senegalese Passive Revolution. Canadian Journal of Political Science, vol.19, nº.4, 1986; SANTOS, João de Almeida. O princípio da Hegemonia em Gramsci. Col. Vega Universidade, Lisboa, s.d; SHUMWAY, David. Review: Intellectuals in the University. Poetcis Today, Vol.11, nº.3, 1990, p.673-688; KARABEL, Jerome. Towards a theory of intellectuals and politics. Theory and Society, vol. 25, nº.2, 1996, p.205-233.

774 Entrevista com Bridget O'Laughilin, agosto, 2007. 775 Harold Wolpe, sociólogo sul-africano e activista anti - apartheid, defendia esta posição. Ele insistia que o

trabalho intelectual e investigativo, tinha que produzir conhecimento para a política, sem no entanto desligar-se da investigação objectiva e científica do mundo. Ver, ALEXANDER, Peter. Harold and History. Keynote delivered at the Harold Memorial Trust’s Tenth Anniversary Colloquium, “Engaging silences and unresolved issues in the political economy of South Africa”, Cape Town, South Africa, 12pp., 21-23, Setembro, 2006.

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prioridades de pesquisa776 sem contudo deixar de analisar criticamente a sua pertinência e a

validade para o contexto moçambicano.

A criação das machambas estatais e colectivização dos camponeses, por exemplo, que

segundo a FRELIMO (profundamente influência pelo pensamento de Lenine, que acreditava

que o caminho principal dos camponeses para o socialismo era a formação de cooperativas de

produção777), iria não só permitir a criação de um proletariado rural, como também a

introdução da mecanização, foi sustentada também pelos investigadores do CEA que a

tornaram num dos temas mais pesquisados778. No entanto, o CEA acabou criticando a grande

ênfase nos grandes projectos e a subestimação do sector familiar. Encontramos esta posição

por exemplo, nos artigos de Marc Wuyts, “Camponeses e Economia Rural em

Moçambique779” e “On the Question of Mechanization of Mozambican Agriculture

Today780”. Como vimos ao longo deste trabalho, não obstante o CEA defender a posição da

FRELIMO das aldeias comunais como a base da transformação rural em Moçambique, os

investigadores advertiram ao governo, que a escolha de técnicas de mecanização não era uma

simples questão técnica, mas sim uma opção política, que afectava a estrutura social da

economia rural. Para o CEA, não existia um modelo qualquer de escolha de técnicas; pelo

contrário, a escolha envolvia uma investigação concreta da estrutura da economia rural, que

implicava necessariamente um estudo da crise da economia capitalista, a quebra da

comercialização e a redução do trabalho assalariado para os chefes de família camponesa781.

Encontramos também esta postura crítica do CEA, em relação, por exemplo, à

estratégia política de privilegiar as machambas estatais e a organização dos camponeses em

“aldeias comunais”. Os investigadores do CEA mesmo concordando na sua totalidade com

estas políticas agrárias, argumentavam que as orientações da FRELIMO para a agricultura,

subestimavam a real contribuição dos excedentes comercializados por parte da produção

familiar; e, que a política estatal incentivava a concentração da ajuda às cooperativas e

machambas estatais, mais do que a produtividade do sector familiar (para o CEA, o sector

776 Christian Geffray tinha também chegado a este argumento, porém este autor não conseguiu captar na sua

totalidade as duas facetas do trabalho crítico do CEA. 777 Vide, LENINE, Vladimir. A Questão Agrária. Lisboa:Avante! 1975. 778 Vide Quadro nº2. 779 Wuyts, Marc, op.cit, CEA, 1978, 31p. 780 Wuyts, Marc, op.cit, 1979. 781 Vide, Wuyts, Marc, op.cit, 1978, 1979; O Mineiro Moçambicano: Um Estudo Sobre a Exportação de Mão-

de-obra , 1978, Wuyts, Marc, op.cit, 1979.

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familiar era a principal base produtiva para as culturas alimentares essenciais)782. Em suma,

mesmo apoiando a ênfase da FRELIMO nas machambas estatais e produção colectiva dos

camponeses, o CEA também se debateu com a questão de como transformar o sector familiar,

ao mesmo tempo que reconheceu a importância de agricultura familiar (considerada pelo

CEA, como a principal base da produção e o garante do abastecimento alimentar).

Esta prática científica do CEA, de olhar de forma não-dogmática as causas que

apoiava, como também de analisar a realidade social de forma crítica, com o objectivo último

da transformação social das condições de vida dos moçambicanos, começou (gradualmente) a

declinar com a morte de Ruth First em 1982 e se agravou após a morte de Aquino de

Bragança em 1986. No entanto, outros eventos - no entremeio – também iriam concorrer para

este declínio, reflectindo-se, por exemplo, na saída de vários dos investigadores cooperantes

do CEA (particularmente daqueles ligados ao ANC): a assinatura dos acordos de Nkomati, a

crescente crise económica e o agravamento da guerra civil no país. A FRELIMO se tornou

assim cada vez mais coerciva e dominante na sociedade, apertando ainda mais o espaço de

discussão aberta, que o CEA tinha conquistado na primeira década da independência nacional.

Não que a pesquisa crítica tivesse desaparecido completamente, mas tinha-se tornado mais

difícil e requeria agora uma grande coragem para aqueles que ainda continuavam a fazê-lo.

Foi então neste ambiente que investigadores como Dan O’Meara, Sipho Dlamini, Judith

Head, dentre outros, decidiram sair de Moçambique, abandonando o seu trabalho de pesquisa

e ensino no CEA. E este talvez tenha sido o momento em que o CEA se tornou num “órgão

do Estado,” como foi caracterizado por Christian Geffray.

Este período “pós-Nkomati”, ou ainda “pós-Aquino de Bragança”, até aos dias de hoje

- no que concerne as dinâmicas de pesquisa em ciências sociais do CEA - fica ainda por se

estudar.

782 Vide, os seguintes “Relatórios de Investigação” do CEA, apresentados neste estudo: Wuyts, Marc, op.cit,

1978, 1979; O Mineiro Moçambicano: Um Estudo Sobre a Exportação de Mão-de-obra , 1978; CEA, Problemas de Transformação Rural na Província de Gaza – Um Estudo sobre a Articulação entre Aldeias Comunais seleccionadas, Cooperativas Agrícolas e a Unidade de Produção do Baixo Limpopo (uplb), 1979; CEA, A Transformação da Agricultura Familiar na Província de Nampula; 1980.

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266

OBRAS CONSULTADAS

Livros, Teses & Artigos

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ANEXOS