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O CARLISMO PARA ALÉM DE ACM: ESTRATÉGIAS ADAPTATIVAS DE UMA ELITE POLÍTICA ESTADUAL * Paulo Fábio Dantas Neto * O presente trabalho pretende lançar algumas luzes sobre recíprocas influências que as dimensões estadual e nacional da dinâmica institucional brasileira exerceram — e exercem — sobre a estratégia de um grupo político detentor de prolongada hegemonia sobre as arenas de competição constituídas no Estado da Bahia, agrupamento — aqui denominado carlismo 1 — liderado historicamente pelo senador Antônio Carlos Magalhães e cujo perfil, em vários momentos de sua trajetória, confunde-se com o da própria elite governante daquele estado. Para tanto, procede-se aqui a uma discussão sobre: a) o modo pelo qual uma situação de domínio regional herdada de um regime autocrático garantiu ao grupo detentor desse domínio a possibilidade de não só resistir a emergência de um quadro institucional de competição democrática no país, como de conquistar influência relevante nesse novo quadro: b) se, como e por quais meios, no desdobramento do regime democrático, mudanças em regras institucionais e/ou em comportamentos de atores políticos nacionais balizam a ação do grupo carlista e repercutem sobre o status quo político baiano. O caminho trilhado para enfrentar a questão acima enunciada foi, em parte, o da continuação de um esforço de interpretação histórica realizado no âmbito de um trabalho mais amplo (DANTAS NETO, 2004). Por outra parte, representa investimento inicial no estado de alguns aspectos da dinâmica atual do carlismo, empreendimento que requer outras iniciativas de pesquisa, até aqui apenas esboçadas. Uma das proposições em que se desdobra o mencionado estudo sobre a história do carlismo é a de que a trajetória do grupo pode ser representada por uma periodização que contempla um primeiro carlismo (que se estende do final dos anos 60 a primeira metade dos 70, com atuação basicamente restrita ao plano estadual), um carlismo baianonacional 2 (que vai de meados da década de 70 até perto do final da década de 90), conhecendo dois subperíodos distintos, que correspondem, respectivamente, a década final do regime militar e a primeira década do regime da Constituição de 1988, interligados pela chamada transição democrática, em ambos desempenhando papel preponderante a influência nacional de Antônio Carlos Magalhães e, no segundo momento, também a do seu filho, Luís Eduardo Magalhães e, por fim, o carlismo pós-carlista, denominação aqui referida ao período mais recente, em que a estratégia do grupo vem sofrendo revezes, mediante o declínio político de seu protagonista e após o prematuro falecimento de Luís Eduardo, em 1998, situações que não devem sugerir a ideia de ocaso do grupo, mas que, certamente, obrigam a constatar o seu retorno — ainda que venha a ser temporário — a uma atuação mais restrita ao plano estadual. O chamado primeiro carlismo tem como ponto de partida a investidura, em 1967, por indicação militar, de Antônio Carlos Magalhães na Prefeitura de Salvador, fato que marca a fundação do carlismo, com a emancipação de seu chefe da corrente "juracisista", 3 ramo *Este texto e uma versão atualizada e ampliada de artigo publicado anteriormente publicado na Revista Caderno CRH (DANTAS NETO, 2003). * Este texto foi retirado do livro: SOUZA, Celina (org.); DANTAS NETO, Paulo Fábio (org.). Governo, Políticas Públicas Elites Políticas Nos Estados Brasileiros. Rio de Janeiro: REVAN, 2006. 1 O carlismo e/ou a personalidade política de ACM tem sido analisado por pesquisadores de várias áreas acadêmicas, como mostram trabalhos como os de Souza (1997), Cordeiro (1997), Almeida (1999), Carvalho (2001), D'Araújo (2001), Rubim (2001) e Dantas Neto (1997; 2000; 2001; 2002; 2003; 2004). 2 O termo é tornado de empréstimo a socióloga Maria Brandão, que o criou (Brandão, 1994) para qualificar um idioma, ou "língua franca", que, para ela, assume diferentes conotações no Brasil contemporâneo, conforme sua utilização no contexto regional ou nacional. 3 Denominação referente a liderança de Juracy Magalhães, chefe do grupo, que foi interventor da Revolução de 30 na Bahia, dual vezes governador do estado, presidente nacional da UDN, presidente da Petrobras, senador e, nos primeiros anos do regime militar, ministro das Relações Exteriores e da justiça e embaixador nos EUA.

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O CARLISMO PARA ALÉM DE ACM: ESTRATÉGIAS ADAPTATIVAS DE UMA ELITE POLÍTICA ESTADUAL* Paulo Fábio Dantas Neto*

O presente trabalho pretende lançar algumas luzes sobre recíprocas influências que as dimensões estadual e nacional da dinâmica institucional brasileira exerceram — e exercem — sobre a estratégia de um grupo político detentor de prolongada hegemonia sobre as arenas de competição constituídas no Estado da Bahia, agrupamento — aqui denominado carlismo1 — liderado historicamente pelo senador Antônio Carlos Magalhães e cujo perfil, em vários momentos de sua trajetória, confunde-se com o da própria elite governante daquele estado. Para tanto, procede-se aqui a uma discussão sobre: a) o modo pelo qual uma situação de domínio regional herdada de um regime autocrático garantiu ao grupo detentor desse domínio a possibi lidade de não só resistir a emergência de um quadro institucional de competição democrática no país, como de conquistar influência relevante nesse novo quadro: b) se, como e por quais meios, no desdobramento do regime democrático, mudanças em regras institucionais e/ou em comportamentos de atores políticos nacionais balizam a ação do grupo carlista e repercutem sobre o status quo político baiano. O caminho trilhado para enfrentar a questão acima enunciada foi, em parte, o da continuação de um esforço de interpretação histórica realizado no âmbito de um trabalho mais amplo (DANTAS NETO, 2004). Por outra parte, representa investimento inicial no estado de alguns aspectos da dinâmica atual do carlismo, empreendimento que requer outras iniciativas de pesquisa, até aqui apenas esboçadas. Uma das proposições em que se desdobra o mencionado estudo sobre a história do carlismo é a de que a trajetória do grupo pode ser representada por uma periodização que contempla um primeiro carlismo (que se estende do final dos anos 60 a primeira metade dos 70, com atuação basicamente restrita ao plano estadual), um carlismo baianonacional2 (que vai de meados da década de 70 até perto do final da década de 90), conhecendo dois subperíodos distintos, que correspondem, respectivamente, a década final do regime militar e a primeira década do regime da Constituição de 1988, interligados pela chamada transição democrática, em ambos desempenhando papel preponderante a influência nacional de Antônio Carlos Magalhães e, no segundo momento, também a do seu filho, Luís Eduardo Magalhães e, por fim, o carlismo pós-carlista, denominação aqui referida ao período mais recente, em que a estratégia do grupo vem sofrendo revezes, mediante o declínio político de seu protagonista e após o prematuro falecimento de Luís Eduardo, em 1998, situações que não devem sugerir a ideia de ocaso do grupo, mas que, certamente, obrigam a constatar o seu retorno — ainda que venha a ser temporário — a uma atuação mais restrita ao plano estadual. O chamado primeiro carlismo tem como ponto de partida a investidura, em 1967, por indicação militar, de Antônio Carlos Magalhães na Prefeitura de Salvador, fato que marca a

fundação do carlismo, com a emancipação de seu chefe da corrente "juracisista",3 ramo

*Este texto e uma versão atualizada e ampliada de artigo publicado anteriormente publicado na Revista Caderno CRH (DANTAS NETO, 2003). * Este texto foi retirado do livro: SOUZA, Celina (org.); DANTAS NETO, Paulo Fábio (org.). Governo, Políticas Públicas Elites Políticas Nos Estados Brasileiros. Rio de Janeiro: REVAN, 2006.

1 O carlismo e/ou a personalidade política de ACM tem sido analisado por pesquisadores de várias áreas acadêmicas, como mostram trabalhos como os de Souza (1997), Cordeiro (1997), Almeida (1999), Carvalho (2001), D'Araújo (2001), Rubim (2001) e Dantas Neto (1997; 2000; 2001; 2002; 2003; 2004). 2 O termo é tornado de empréstimo a socióloga Maria Brandão, que o criou (Brandão, 1994) para qualificar um idioma, ou "língua franca", que, para ela, assume diferentes conotações no Brasil contemporâneo, conforme sua utilização no contexto regional ou nacional. 3 Denominação referente a liderança de Juracy Magalhães, chefe do grupo, que foi interventor da Revolução de 30 na Bahia, dual vezes governador do estado, presidente nacional da UDN, presidente da Petrobras, senador e, nos primeiros anos do regime militar, ministro das Relações Exteriores e da justiça e embaixador nos EUA.

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hegemônico da UDN baiana durante o regime da Constituição de 46 e a mais forte entre as correntes que formaram a Arena, naquele estado, após a reformulação partidária de 1965/66. O ponto de chegada deste primeiro carlismo é, por sua vez, a conclusão, no início de 1975, do primeiro mandato de Antônio Carlos Magalhães como governador da Bahia, posto ao qual ascendeu em 1971, indicado, no ano anterior, logo após deixar a prefeitura. Sua saída do governo sem ter conseguido fazer um sucessor revelou, no refluxo que se seguiu aquele revés, as dimensões reais da expansão do grupo até então e o fato de que ele ainda não se constituía em grupo hegemônico no estado, embora já fosse, individualmente, o mais forte, depois de uma bem-sucedida estratégia de use do governo estadual para esmagar e/ou cooptar grupos rivais. Concorreu fortemente para o revés o fato de as sucessões estaduais decididas em 1974 — já no âmbito do chamado processo de "distensão lenta, gradual e segura" do regime autocrático — terem permitido certo nível de influência de círculos civis, com destaque para o que se formou em torno do senador Petrônio Portela, a quem se atribui papel decisivo no encaminhamento de uma solução "não carlista" para a sucessão baiana. Esta abertura controlada de cima foi crucial para o caso baiano, porque excluiu dois caminhos para os quais Antônio Carlos se achava preparado: a escolha restrita exclusivamente a cúpula militar e a via eleitoral, em que certamente contariam a expansão do prestígio político do governador no estado e o comando centralizado que firmou sobre a elite parlamentar e as lideranças municipais. Todavia, para além do revés, o que mais interessa ao argumento aqui trabalhado — é o que responde pelo fato de aquele momento ser visto como de inflexão na periodização da trajetória do grupo — é a refração da tendência ao refluxo, permitida pela ocupação, por Antônio Carlos, já em 1975, da presidência da Eletrobrás. Este novo patamar de inserção político-administrativa no plano federal possibilitou ao carlismo a articulação nacional que lhe faltara, tanto na sucessão estadual de 1974 como um ano antes, quando uma tentativa de resistir à venda de um banco baiano a um grande grupo financeiro nacional terminou em fracasso por falta de suficiente clareza, por parte da elite dirigente baiana, das regras do jogo em vigor. Na segunda fase da periodização aqui apresentada, movimentos do agora carlismo baiano-nacional obedecem a uma dialética entre o nacional e o estadual, cuja compreensão permite supor razões da longevidade do poder carlista na Bahia e de sua capacidade de resistir e até crescer em presença de mudanças institucionais que, em tese, lhe seriam adversas. Flagra-se, então, uma práxis do grupo pela qual, no plano local, a aderência a um ambiente político marcado pela persistência de lógicas paroquiais e avessas ao pluralismo político mescla-se a uma ética administrativa sempre ajustada a exigência da modernização e aos requerimentos da ordem econômica vigentes no país, a cada momento; já na ação política no plano nacional, ocorrem inflexões ainda mais fortes para acolher a ênfase no moderno, passaporte para a comunicação — no contexto democrático que ia se configurando a medida que avançava a transição de um regime político a outro — com uma emergente sociedade civil e para a interlocução com a elite econômica e o centro político do país, combinando, porém, essas inflexões aos elementos de caráter autoritário e personalista colhidos da práxis local, os quais emprestavam, ao seu perfil, também o trago de reserva de conservadorismo, assegurador de seu trânsito e representatividade junto a interesses ameaçados pela dinâmica democrática. Foram muitos os momentos exemplares da observação dessa dialética no comportamento político do carlismo. Se ela valeu para devolver-lhe, em 1978, o controle da política estadual — mediante articulações feitas a partir da presença de Antônio Carlos Magalhães, como presidente da Eletrobrás, no circulo palaciano que gestou a candidatura do general F igueiredo a sucessão do general Geisel permitindo-lhe voltar ao governo, desta vez para pulverizar definitivamente os demais grupos governistas do estado e fazer com que carlismo e elite governante se tornassem sinônimos na Bahia, a mesma lógica atuou

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também durante a transição democrática, quando recursos de poder oriundos do Ministério das Comunicações e da atuação compacta de sua bancada legislativa na Constituinte, defendendo o mandato de cinco anos para o Presidente Sarney, serviram de alavanca para novo revide a situação política do estado, a qual, outra vez, escorrera-lhe pelos dedos, em razão de ampla derrota eleitoral sofrida pelo grupo em 1986. Não foi diferente em plena democracia dos anos 90, quando a experiência de relacionamento do carlismo com o governo FHC (especialmente durante o primeiro mandato), se, por um lado, iluminou a importância de um arranjo político nacional para viabilizar um processo de afirmação hegemônica de uma elite governante em nível estadual, por outro, ilustrou o velho/novo papel que governos e elites estaduais passaram a desempenhar, no cenário posterior a democratização, como sustentáculos da coalizão governante em nível federal. Com efeito, o acordo político entre PSDB e PFL para eleger Fernando Henrique Cardoso, desdobrando-se, primeiro, na implementação de um programa de reformas orientadas ao mercado e, depois, na mudança constitucional que permitiu a reeleição do Presidente da República, encontrou nos Magalhães baianos, pai e filho, ancoras seguras, fiadoras de apoio legislativo em troca de uma influencia do grupo carlista na administração federal, que muito superou, em grau, as exercidas durante o regime militar e o governo Sarney. Foi esta influência um fator decisivo para permitir, a este carlismo baiano-nacional, ampliar, em pleno regime democrático, sua condição de grupo hegemônico na Bahia, a ponto de configurar-se, como se vera, no subsistema político estadual baiano, uma situação dominante.4 O terceiro momento da periodização — o do carlismo pós-carlista — inaugura-se com a desestabilização desse arranjo que já atravessava duas décadas, sendo renovado e, com isso, sobrevivendo a mudança do regime político e de parte significativa da elite política nacional. A morte prematura do deputado Luís Eduardo Magalhães alterou as condições de operação da estratégia do carlismo, pela perda de uma interlocução privilegiada com o centro do poder nacional e pelo surgimento, na agenda carlista, do problema de sua continuidade, cuja solução era antes unívoca e "natural" e agora implica um complexo de atores que tendem a disputar o comando do grupo, razão pela qual a saída de cena de Luís Eduardo pode ser tomada como o marco fundador do carlismo pós-carlista, no qual o elemento nacional do arranjo se mostra mais poroso, concluindo a estratégias defensivas para manter a coesão no plano estadual. Admite-se ainda que, contemporaneamente a morte de Luís Eduardo — e sem guardar com ela relações causais necessárias ocorre, a partir da implementação da regra da reeleição do Presidente da República e no transcorrer do segundo mandato de FHC, um realinhamento no interior do campo governista, que cumpre um papel catalizador da tendência apontada acima, contribuindo ainda mais para ilhar regionalmente o carlismo, comprometendo o seu dinamismo expansionista e obrigando-o a intensificar as estratégias defensivas, sob risco crescente de rompimento da sua coesão interna. A trajetória assim periodizada mostra o carlismo contemporâneo como resultado de uma sucessão de estratégias adaptativas da elite política estadual a circunstancias institucionais e/ou conjunturais da política nacional. A análise dessas estratégias transcende a da individualidade política de ACM, a qual, em temos de relevância na política estadual, transita da situação de coadjuvância (nos primórdios da modernização baiana) a de protagonismo compartilhado com outros atores (durante a maior parte do regime militar), daí a de domínio unipessoal (no ocaso daquele regime e, paradoxalmente, durante quase toda a década de 1990), até entrar em lento

4 A expressão está sendo usada aqui no sentido de uma situação caracterizada pela presença, em contexto pluripartidário, de um partido dominante, tal como definido por Charlot (1982: 200-207), isto é, um partido cujo domínio incontrastável conduz, de um lado, a estabilidade crescente e, de outro, a representatividade limitada.

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declínio, retornando ao protagonismo compartilhado, em que se vê agora. Uma regularidade, entretanto, a contracenar com as oscilações personagem, é a presença de um pacto sólido e duradouro das elites baianas e destas com as forças governantes, nacionalmente, a cada época, pacto que seria o principal responsável, segundo essa interpretação, pela longevidade do arranjo de poder carlista. Nesse sentido, será de particular interesse observar a evolução — inclusive eleitoral — do carlismo, sob o inédito contexto político de afastamento mais prolongado em relação ao poder federal, que s e verifica desde 2003. Uma continuidade metodológica em relação ao que foi real izado em Dantas Neto (2004) para o primeiro carlismo aponta para um trabalho similar de reconstrução da trajetória histórica, agora dos outros dois períodos. Desse modo, o produto de um Plano de pesquisa a médio prazo seria uma espécie de "história do carlismo" em três atos, ou em quatro — se considerados, em separado, os dois subperíodos em que se reparte o período do carlismo baiano-nacional. Certas questões de ciência política, suscitadas por aquele próprio trabalho, surgiram, porem, no caminho da continuidade da pesquisa histórica: a) eventuais vínculos do carl ismo, enquanto ator político, com o que se pode chamar de "campo político liberal", isto é, campo defensor de um sistema político competitivo, sob regras mais ou menos pluralistas, numa sociedade "aberta", ligada a uma economia de mercado; b) a discussão sobre a excepcionalidade ou caráter exemplar do carlismo, em comparação a outras elites estaduais ou atuantes na política nacional. Questões que, embora sejam parte do argumento, não recebem tratamento conclusivo neste artigo, pois requerem esforços adicionais de pesquisa, inclusive comparada. As duas questões — formuladas, mas não resolvidas em Dantas Neto (2004) — surgiram da consideração quase intuitiva de que os três elementos apresentados como pi lares de sustentação e condicionamento da estratégia do primeiro carlismo (tradição, autocracia e carisma) tem vigência revogada ou alterada a partir da transição democrática, da emergência da ordem política da Constituição de 1988 e da inserção do país nas novas circunstancias do capitalismo globalizado, com a adoção das chamadas reformas orientadas ao mercado e do tipo de políticas publicas decorrentes, sejam as de ajuste fiscal, sejam as chamadas políticas sociais compensatórias. A mudança mais evidente é a revogação, pela transição democrática e pela nova Constituição, da ordem autocrática anterior, pelo que removido um dos três pilares (o da autocracia), este fato forçando uma mudança relevante na estratégia do grupo. Mas também a tradição que combinava personalismo e liberalismo autonomista e caracterizava o ambiente político estadual durante a fase do primeiro carlismo vai sendo induzida a adaptar-se a lenta, mas continua institucionalização de regras nacionais e impessoais na política brasileira e a modulação dos localismos econômicos pela perspective de sua integração a dinâmica da economia global. Esses dois processos também conduzem ao contingenciamento mais forte do carisma na política, ainda mais no caso em foco, de um carisma bifronte, despótico e modernizante, atributos que se tornam negativos (o despotismo) ou se reconfiguram (a ideia de modernização), no novo contexto. O pertenci mento (ou não) ao campo liberal, assim como o seu caráter excepcional ou exemplar, na condição de elite política estadual passam a ser, assim, fatores importantes para explicar como o carlismo baiano-nacional pôde enfrentar, com relativo êxito, esses desafios de adaptação e como desafios análogos estão sendo enfrentados hoje, pelo carlismo pós-carlista. Admite-se aqui que a transição democrática brasileira e a consolidação do regime da Constituição de 1988 contextualizaram uma estratégia adaptativa do carlismo baiano-nacional rumo a uma maior aproximação com o campo político liberal, da qual o deputado Luís Eduardo Magalhães era mentor e operador. No horizonte dessa inflexão, estariam o reforço do caráter nacional do grupo e sua gradativa imersão no conjunto da elite política brasileira. Os fatos que se sucederam a partir de

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1998 (a morte de Luís Eduardo, a crise da violação do painel do Senado e desentendimentos na coalizão de governo, durante o segundo mandato de FHC) teriam revertido esta tendência e ajudado, além disso, a tornar mais complexas as condições de conservação do poderio estadual do grupo, também afetado por processos endógenos. Seria difícil validar essa suposição se as questões se mantivessem, exclusivamente, nesse grau de generalidade e se os aspectos considerados pertencessem exclusivamente ao campo das evidencias macro históricas. Daí a ideia de, sem prejuízo das indagações mais gerais, recorrer a um nível intermediário de análise, qual seja, a de saber como, no caso em questão, mudanças institucionais e polí ticas, em nível nacional, tem afetado a seleção e a reprodução da elite estadual. Eis as novas questões suscitadas por essa inflexão metodológica: a) se havia e ainda há marcos programáticos estratégicos e/ou regras institucionalizadas de operação internas ao carlismo que possam defini-lo como algo além da projeção da vontade pessoal do seu personagem principal; b) com que intensidade e em que direção a estratégia programática e regras operati vas do grupo mudam quando mudanças institucionais e/ou nas coalizões políticas nacionais; c) como as mudanças de estratégia e regras (externas e internas ao carlismo) afetam o status quo político estadual, na linha de ruptura ou continuidade da renovação incremental de sua elite política. Os achados expostos neste artigo são preliminares e provisórios. O exame de algumas estratégias adaptativas flagradas na empiria histórica e feito aqui como ponto de partida para o enfrentamento posterior das três questões acima enunciadas, embora antecipem, ao mesmo tempo, respostas transitórias a segunda e, em menor intensidade, a terceira questão. As estratégias estudadas — e suas inflexões — reportam a alguns elementos da política eleitoral do grupo, a saber: a) seus vínculos com políticas de aliança mais gerais; b) a cooptação de quadros; c) o manejo eleitoral dos partidos políticos no interior do carlismo. Reportam-se, também, a aspectos da sua operação interna, como: a) estilo de comando, variando entre o personalizado e o col egiado, esclarecendo em que a variação altera, ou não, o caráter vertical do comando; b) relevância de atores ocupantes do lugar institucional de governador do Estado; c) lugar dos partidos políticos na hierarquia do "metapartido" carlista; d) a disciplina parlamentar. Um estado mais sistemático ainda será necessário, mesmo nesses dois planos abordados neste artigo, para esclarecer, no caso da política eleitoral, os critérios de comando para o manejo de redutos eleitorais individuais e atribuição, reconhecimento e limitação de espaços eleitorais no interior do grupo, enquanto no plano da organização interna será preciso analisar a influência real dos quadros carlistas atuantes na administração pública e o lugar ocupado pela política municipal e suas lideranças. Além desses complementos no esforço analí tico aqui empreendido, outro eixo de pesquisa preliminar ao enfrentamento das três questões formuladas tem de se dirigir ao modo de recrutamento, formação e atuação de quadros carlistas, cabendo, neste plano, indagar se há uma política carlista de recrutamento, quem são os recrutadores, em que ambientes sociais e políticos ocorre o recrutamento, sob que tipo de incentivos, que itinerário os quadros seguem entre a administração pública e a política e se guardam coerência programática em sua ação. F ica, assim, fixado o sentido do presente trabalho como, no mesmo tempo, continuidade de um esforço de interpretação histórica do carlismo (formalização de uma periodização de sua trajetória) e abertura de picadas a uma futura análise institucional do mesmo objeto. Sob tais premissas, o carlismo é tratado aqui como instituição da pol ítica baiana e nacional, parte constitutiva e constituinte de uma situação política que, sem se reivindicar singular, é um arranjo regionalmente peculiar de elementos presentes na política brasi leira do último meio século e, ao mesmo tempo, a projeção nacional dessa "síntese" política regional, realizada em contexto polí tico autoritário e de fraca

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polarização ideológica. O itinerário da exposição será, primeiro, a caracterização do lugar histórico ocupado por ACM em resposta a requerimentos — anteriores a 1964 — de elites baianas incorporadas a um certo campo político nacional e o modo de renovação dessa demanda, durante a década seguinte, quando o carlismo se constrói como grupo político regional, iniciando, ao final do período, sua trajetória de fenômeno baiano-nacional; segundo, análise do binômio carlismo/anti-carlismo, elemento marcante da política baiana desde meados dos anos 70, cumprindo papel de relevo para a hegemonia alcançada pelo grupo, nos anos 90; terceiro, análise da erosão do poderio carlista — do poder pessoal de ACM, em particular — a partir de 1999 e a indicação de como a aceleração dessa erosão, a partir de 2002, abriu uma oportunidade a afirmação de um carlismo pós-carlista e, por fim, como o grupo tem procurado usar a crise que afetou o PT — seu principal adversário na Bahia — para refratar a pressão erosiva e caminhar para a sua pluralização e mesmo expansão, na condição de corrente política, no novo contexto. Sem elos perdidos: o “primeiro carlismo" e seus antecedentes O golpe mi litar de 1964 não representou — do ponto de vista dos interesses socioeconômicos que alavancou — ruptura, só ajustes, nos planos modernizantes da elite baiana, os quais, desde meados da década anterior, haviam se atrelado, definitivamente, a objetivos desenvolvimentistas do estado brasileiro (GUIMARAES, 1987; OLIVEIRA, 1987; DANTAS NETO, 2004). Ao contrário, o golpe removeu obstáculos que, no plano nacional, interpunham-se ao projeto daquela elite e abriu brecha ao protagonismo de grupos políticos regionais5 porta-vozes daqueles interesses modernizantes. Esses grupos passaram a atuar em contexto compatível com a adoção da perspectiva política que Santos (1998) chamou de autoritarismo instrumental. 6

Do ponto de vista político, a adesão a via prussiana (Coutinho, 1984) 7 foi — assim como

antes foram a aceitação do modelo industrialista e a opção de realizá-lo via revolução passiva em sentido "fraco" (Vianna, 1997b)8 — a condição de acesso daqueles interesses ao novo centro de decisão política. Conforme a reflexão de Guimaraes (1987), os militares apenas sucederam tecnocracia nacional-desenvolvimentista na direção política da modernização regional, a qual a burguesia baiana já renunciara antes. A compreensão desse processo exige visão retrospectiva a chegada da Petrobras a região de Salvador, quando a elite baiana confrontava-se com o enigma baiano,9 incapacidade de

5 Sobretudo a UDN, da qual Antônio Carlos Magalhães era o presidente, na Bahia. 6 A expressão demarca, segundo o autor, o uso pragmático de mecanismos institucionais autoritários como artificio temporário, voltado a concretização de metas (em geral, econômicas), diferindo de outras posições, que defendem ideologicamente o autoritarismo político (e até o totalitarismo). 7 Termo leninisno convergente à ideia de Barrington Moore Jr., de modernizações pelo alto. Em Coutinho, evoca o caráter coercitivo do processo de industrialização e unificação alemãs, em analogia ao caso do Estado brasileiro, cujo autoritarismo, no marco da revolução passiva, amarraria pleitos de mudança a pactos políticos conservadores. 8 O conceito gramsciano, alusivo a processos de mudança social de longo curso em que se ausenta um elemento ativo de ruptura política, e aqui entendido em dupla chave interpretativa, conforme proposição de Werneck Vianna, distinguindo-se revolução passiva como programa de ação de forças dominantes, de revolução passiva como critério de interpretação de cursos históricos, cenário permeável à ação de grupos antitéticos a ordem estabelecida, em que é possível a dinâmica da mudança ultrapassar a da conservação (VIANNA, 1997b: 30). 9 Para Oliveira (1987), a ideia do enigma é um modo de atribuir indevidamente ao conjunto da sociedade baiana um traço que singularizava sua elite. Em parcial convergência, Nelson de Oliveira (2000) capta-o como discurso dissimulador da violência econômico-social causadora do atraso baiano. Abordagens do "enigma", como foco ou ponto subsidiário de análise, estão também em Aguiar (1958), Almeida (1951), Azevedo (1975),

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modernização e industrialização enfatizada em comparações desfavoráveis com outros centros urbanos, especialmente Recife.10 A este "atraso", governantes estaduais procuraram, entre 1947 e 1954, responder com iniciativas modernizantes de cunho liberal, que pretendiam fazer o progresso (inclusive industrial) aflorar a partir do reforço da dinâmica agromercantil tradicional e do capital bancário que se acumulara na região. Outra foi a opção do estado nacional, empenhado numa estratégia industrial focada na região Sudeste. Em vez de reforço do papel diretivo de burguesias regionais, incrementou-se a capacidade de planejamento e intervenção do estado, cujo corpo técnico, crescentemente insulado, torna-se formulador e diretor de políticas. Assim, praticamente anularam-se as chances de implementação da estratégia liberal, que tivera no governo Octávio Mangabeira (1947-1951) seu momento máximo de fermentação e no isolamento daquele líder político, com o retorno de Vargas ao poder, em 1951, sua curva de inflexão. Com a ascensão de Rômulo Almeida à Secretaria da Fazenda do governo Balbino (1955-1959),11 desenhou-se o mapa que guiou a elite estadual a conciliação com a modernização nacional. Entre 1955 e meados da década seguinte, formou-se um consenso entre os vários ramos da elite baiana: a modernização local não seria feita nem apesar, muito menos contra, prioridades e interesses do estado nacional. O problema, então, era saber como arrancar do centro político nacional as decisões e os recursos materiais viabilizadores da nova alternativa. O rumo do governo Goulart (1961-1964) era politicamente desfavorável ao pleito, ainda que houvesse tentativas de entendimento, por parte do governo estadual e de círculos importantes da elite baiana. Ainda mais desfavoráveis a esses círculos eram a radicalização política e a mobilização social que vigoravam no país sob Jango. Por isso, a percepção do auto-interesse modernizante regional demonizava o conflito social, solvente da ideia da Bahia una e cordial, cuja defesa era articulada pelo discurso apologético da baianidade. Mais que contrafação do moderno, numa reiteração dissimulada da tradição oligárquica (OLIVEIRA, 2000), e menos que ruptura disfarçada na aparência de continuidade (OLIVEIRA, 1987), aquele discurso era a versão baiana do conservantismo moderno, também em ascensão no Brasil (CARDOSO, 1973). Ao contrário de Pernambuco, onde Miguel Arraes venceu as eleições de 1962 com um programa nacional-popular, na Bahia este caminho foi evitado com o apoio maciço da elite modernizante a vitória eleitoral de Lomanto Jr. (PFB/UDN/PR), contra Waldir Pires (PSD), não obstante a retórica populista e a circunstancial filiação petebista do vitorioso. A aglutinação majoritária do campo do conservantismo moderno em torno de Lomanto Jr. representou a linha de menor risco, opção que se revelaria eficaz no contexto do golpe militar, ao

qual o governador aderiu, submetendo-se a udenização de seu governo e da política baiana12

, sendo este um traço do processo baiano no pós-golpe que, decerto, facilitou a metabolização do contencioso político estadual numa futura síntese carlista. Com o auxílio adicional de uma vigorosa campanha anticomunista13, antecipou-se, na Bahia,

Brandão (1997), Guimarães (1982, 1987), Risério (1993, 2000), Tavares (1966), Teixeira & Guerra (2000) e Viana Filho (1984). 10 Autores como Azevedo (1975), Brandão (1978, 1980, 1985), Mattedi, Brito & Barreto (1979), Santos (1956), Souza (1978), Souza & Faria (1980) e Teixeira & Guerra (2000) tratam, sob diversos ângulos e perspectivas disciplinares e metodológicas, da urbanização e da industrialização da região de Salvador. 11 A eleição de Balbino ao governo do Estado, em 1954, por uma coligação de forças reformistas até então rivais, reunidas por obra de Getúlio Vargas, foi um marco tardio de consolidação da Revolução de 30 na Bahia. 12 Quase deposto por sua ligação com Jango até a véspera do golpe, Lomanto Jr. foi preservado no cargo mediante acordos com os militares e fiança do comando udenista baiano. Uma reforma do secretariado subtraiu autonomia política ao governador, incluindo militares e técnicos em postos-chave e excluindo partidos adversários da UDN. 13 Movida não só contra a esquerda, mas também contra a candidatura de Waldir Pires e de outros pessedistas.

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naquelas eleições de 1962, o mote do golpe militar: em nome da modernização econômica com tranquilidade social, pregou-se a saída de cena de supostos inimigos de uma e outra, para abrir caminho a uma democracia átona, sem "irracionalidade" sindicalista e ideologias "exóticas". Mas os agentes locais da “modernização conservadora"14 baiana só aderiram ao golpe na segunda metade de 1963 e a ideia de institucionalizar um regime autoritário ao final do governo Castelo (1964-67). Tal cronograma guardou sintonia fina com o cronograma de ação da maior parte do campo político liberal brasileiro. A recepção entusiástica da elite baiana a essa via (passiva e prussiana) e o seu peso político-eleitoral, preservado com a eleição de Lomanto Jr. e potencializado com a adesão deste a nova ordem, renderia ao regime militar um longevo consenso pol ítico na Bahia e um plantel de quadros técnicos ascendentes a burocracia federal, a serviço de prioridades ditadas pelas políticas econômicas. Em troca, o golpe e a orientação política do governo Castelo Branco foram funcionais aos udenistas baianos e, além disso, a Bahia logrou, sob o regime militar, a expansão econômica desejada, mercê de espaços de influência nacional concedidos a sua liderança política e a quadros técnicos que, aos poucos, foram sendo estrategicamente situados. De outro lado, essa "simbiose" dissolveria até fisicamente a burguesia regional (certos grupos mais relevantes deixaram de ser "regionais", para se integrarem ao novo quadro), submeteria trabalhadores e camadas médias baianas a um ambiente/político ultradespótico e restringiria muito o campo (da ação da "vontade política" na formulação e execução de estratégias complementares de desenvolvimento regional ou de políticas públicas capazes de reverter um quadro de concentração de renda e exclusão social). Chamar de modernizante tal cenário provoca compreensível reserva ética, uma vez que a esse termo normalmente se associam significados positivos. Lidando cautelosamente com o adjetivo, mas sem paralisia diante da ambiguidade substantiva do moderno, comendo, a seguir, o processo político baiano pós-golpe, quando transcorre a primeira idade do carlismo histórico, coetânea dessa modernização. De 1964 a 1967 a tessitura da obra política carlista dera-se em ambiente palaciano e nacional, sendo a autocracia mi litar a principal via da articulação e a explicação para os êxitos alcançados. Mas, além dela, a tradição política estadual também contribuiu, pois a influencia de Juracy Magalhães aproximou dois quadros políticos baianos que desfrutavam de alguma visibilidade, no plano nacional — Luís Viana Filho15 e Antônio Carlos Magalhães16 — da copula do grupo castelista que, em 1966, os indicou para ocupar, respectivamente, o governo do Estado e a prefeitura de Salvador, durante o quadriênio seguinte. A tradição não influiu apenas naquele ato crucial para o advento do carlismo na Bahia. Também contaram vários episódios e processos da política baiana entre 1954 e 1966, dos quais Luís Viana e Antônio Carlos emergiram como porta-vozes de reivindicações endógenas das elites locais, que demandavam um mix de continuidade e mudança, isto é,

14 Uso a expressão como difundida a partir da caracterização das modernizações "pelo alto", por Barrington Moore Jr. (1983), em que a autoridade política constrange a ação de grupos situados fora da ordem e promove mudança social politicamente orientada, compatibilizando interesses e valores de elites modernizantes e conservadoras. Dessa abordagem, aproxima-se Cardoso (1985). 15 Político e intelectual de família ramificada no Recôncavo e região do são Francisco, cujo pai e homônimo governou a Bahia no inicio da Primeira República. Iniciou sua vida pública nos anos 30, como autonomista, sob a liderança de Mangabeira, tendo exercido, até 1964, seis mandatos de deputado federal, com alguma projeção. 16 Antônio Carlos já não era, no início do regime militar, político obscuro, ou ainda restrito ao plano regional. Depois do mandato de deputado estadual (1955-1959), exercia seu segundo mandato federal e, mesmo sem integrar o primeiro time da Câmara, era próximo a JK e a "banda de música" da UDN, tinha atuação ruidosa e agressiva contra o governo Jango nos seis meses anteriores ao golpe, relatara uma CPI, presidira outra, coordenara a campanha de Juracy Magalhães pela indicação udenista, em 1960, a Presidência da República e era o presidente da UDN baiana, cargo obtido depois de ter sido o deputado federal mais votado do partido, nas eleições de 1962.

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compromissos simultâneos com as pautas modernizantes nacionais de 1930 e de 1964 e com modulações políticas regionais de liberalismo e populismo. Seria este figurino de quatro dimensões que ACM e seu grupo iriam encarnar, aí agregando, a autocracia e a tradição, como terceiro elemento explicativo do seu êxito, o carisma de administrador dinâmico e de político despótico. De 1967 a 1974, o carlismo firmou-se como a principal força da Arena na Bahia, embora se mantivesse como grupo polí tico apenas estadual. A Prefeitura de Salvador (1967-1970) serviu de vitrine administrativa e trampolim político, e o esforço prosseguiu durante o primeiro mandato de governador de ACM (1971-1975), quando, ao tempo em que mantinha a sociedade civil baiana sob forte constrição autoritária, investia contra bases político-eleitorais de grupos conservadores rivais, no intuito, em parte consumado, de neutralizá-los, ou pulveriza-los

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. O carlismo renovou, gradativamente, os quadros dirigentes da administração estadual, nela introduzindo, em grau inédito — e em sintonia com o processo nacional de profissionalização da burocracia estatal —, jovens técnicos que, obstruídos os canais de participação política, passavam a crer naquele tipo de mecenato insulado como caminho de infiltração do moderno no aparelho de governo, opção que trazia para eles a vantagem adicional, nada desprezível, da realização profissional e, para alguns, o acesso tutelado ao então fechado mundo do poder. Em linha com esse "entrismo" estranho à tradição dos grupos políticos locais, os primeiros passos do carlismo já eram dados em direção ao fomento de (e interação com) atividades econômicas diversas do perfil agro-mercantil-financeiro predominante na Bahia: conflitos com o comércio e as finanças estabelecidos, em torno da polí tica tri butária, compensavam-se com a aproximação ao Banco Econômico, articulações em prol da petroquímica e o fomento de um mercado

capitalista numa Salvador enfitêutica.18

Já então insinuava-se um traço que jamais deixaria de marcar o carlismo: a simultânea ação na política institucional, na estrutura da administração pública e na interface de ambas com o mundo do mercado. Nos vértices formados por esses três fronts, ou "momentos", de atuação, a política obedecia a duas diretrizes articuladas: desmonte ou esvaziamento de instituições e valores poliárquicos (Dahl, 1997) existentes ou em gestação na polí tica baiana e apoio estadual a construção de um mercado capitalista nacional e internacionalmente conectado — ainda que carente de alicerce econômico local — e de um estado autoritário, capaz de alavancá-lo.

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Apesar da transformação urbana de Salvador, da racionalização administrativa do estado e de sucessivas vitórias na política industrial — colhidas, desde a gestão de Luís V iana, com a implantação definitiva do Centro Industrial de Aratu e a fixação, contra os interesses paulistas, do Polo Petroquímico de Camaçari2 0—, ACM encerrou seu primeiro governo

17 A afirmação do poder pessoal de ACM deu-se, principalmente, contra as bases do juracisismo e dos ex-governadores Lomanto Jr. e Luís Viana Filho. Mas cabe frisar que a estratégia não se resumiu a coerção, recorrendo a fórmulas de acomodação e cooptação, por exemplo, o manejo hábil de sublegendas nos municípios. 18 Durante sua gestão na Prefeitura de Salvador, ACM promoveu uma "reforma urbana" que alienou grande quantidade de terras públicas até então aforadas sob contratos que garantiam ao foreiro o domínio útil do imóvel mas não sua propriedade plena. O fato de boa parte das terras estar situada em áreas de expansão da cidade, por meio de grandes obras várias, conferiu-lhe súbito valor de mercado. 19 Duas premissas institucionais do que Florestan Fernandes (2000) chamou ordem social competitiva. 20 Além do trabalho de Azevedo (1975), já citado, há, sobre o Pólo, o relato memorialista de Viana Filho (1984), uma análise histórica, econômica e da estratégia política dos agentes, de Suarez (1986) e depoimentos de Rômulo Almeida (1986), idealizador da estratégia da industrialização baiana e um de seus mais decisivos articuladores junto ao empresariado e a burocracia estatal federal, mesmo neutralizado politicamente pelo regime militar.

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com duas derrotas, já mencionadas na introdução deste trabalho: nas relações econômicas, a venda, em 1973, estimulada pelo governo federal, do centenário Banco da Bahia ao Bradesco, na contramão dos seus planos de criar, via fusão do BB com o Banco Econômico, uma base de sustentação econômica para a almejada hegemonia política regional; no plano político, o insucesso, em 1974, na indicação do seu sucessor, impedida por articulação reativa dos demais grupos arenistas, a qual levou Roberto Santos2 1 ao governo (1975-79). Os revezes desnudaram os limites do carlismo enquanto resposta regional a reclamos ligados a solução do enigma baiano. Nos dois episódios, desfez-se a veleidade de uma dominação autárquica da Bahia por um sátrapa periférico ao regime autoritário. E mostrou-se a necessidade de elevar o carlismo a condição de ator baiano-nacional, sem o que nenhuma supremacia estável seria obtida na Bahia, face a radicalidade da centralização decisória, superlativizada durante o governo Médici. A rigor, sem este salto de qualidade que extremasse a magnitude dos recursos de poder de ACM daqueles retidos por seus rivais, não seria possível falar em carlismo, salvo como situação conjuntural, o que não atenderia ao sentido da ação de ACM: inscrição permanente do grupo na estrutura da política baiana, como ocorreria após 1978. O salto foi dado, como já visto, em 1975, a partir da ocupação, por Antônio Carlos, da presidência da Eletrobrás. Datam dai as suas relações doravante próximas com segmentos do empresariado nacional; o início da constituição de um grupo econômico, a princípio regional, a ele ligado diretamente; as suas primeiras incursões importantes na burocracia estatal brasileira; a recuperação — sob Geisel e na indicação do General F igueiredo para sucedê-lo — do grande influência palaciana que desfrutara durante o Governo Castel o Branco e a reconci liação, sob sua supremacia, dos diversos grupos da Arena baiana, antes conflagrados contra si, por conta da polí tica expansiva de seu grupo, adotada durante o seu primeiro governo. Dicotomia e hegemonia: o carlismo baiano-nacional Um amplo acordo arenista garantiu, em 1978, o retorno de ACM ao governo da Bahia,22 revelando, sem meios-termos, o quanto as posições políticas dos vários grupos arenistas eram condicionadas por uma convergência de fundo da elite a qual eles se reportavam, em torno da liderança carlista. Acirradas rivalidades pessoais passavam a plano secundário, desautorizando interpretações de que o "personalismo" impedia o exercício da "grande política". Ao contrário, o poder pessoal a viabilizava em contexto político autoritário, garantindo aos "interesses baianos", situados nos vértices entre política, administração pública e mercado, a continuidade de um tratamento diferenciado, por parte do estado nacional, pacto do qual ACM era o fiador. Aos demais grupos políticos da ordem, sobrava a partilha de fatia cada vez mais exígua do varejo político, ou o isolamento, pois na Bahia do exitoso conservantismo moderno objeções ao carlismo havia poucas e o espaço públ ico 21 Médico e professor até então sem projeção política, fora Reitor da Universidade Federal da Bahia e presidente do Conselho Federal de Educação. Suas relações com Antônio Carlos eram antigas, pois seu pai, Edgard Santos, primeiro reitor da universidade, fora uma amizade de resultado (ALMEIDA, 1999) que abriu portas a ACM, no início de sua carreira. Mas Santos não era do gosto de ACM para sucedê-lo. Admitido na lista tríplice enviada pelo governador ao governo federal, sua escolha resultou de coalizão de veto das demais lideranças arenistas contra o real nome carlista, Clériston Andrade. Após o revés, ACM tentou, em vão, aproximar-se do escolhido. 22 Luís Viana Filho indicou seu filho, Luís Viana Neto, para vice-governador; a Jutahy Magalhães, ferrenho opositor de ACM dentro da Arena, destinou-se a vaga de senador "biônico". E a Lomanto Jr., restou a missão de disputar a vaga eletiva ao Senado. De fora, ficou só o governador Roberto Santos, que não compareceu ao ato público que sagrou o acordo, migrando, Bois anos depois, com a extinção da Arena, para o PP de Tancredo Neves.

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para que circulassem era surdo e quase mudo. Quanto ao MDB baiano, apenas engatinhava, na condição de partido de oposição. T ive ocasião de analisar, em outro trabalho (Dantas Neto, 2000), a sua defasagem na constituição de uma frente democrática contra o regime militar. Tal se deu por uma conjunção de fatores, entre os quais avulta o próprio consenso conservador que perfi lou a elite baiana ao carlismo, além da ação carlista de infiltrar, no partido oposicionista, desde o início dos anos 70, uma corrente adesista que lhe tolheu o crescimento e a capacidade de galvanizar a insatisfação das camadas médias urbanas, que crescia na Bahia, como em todo o país, desde 1974. Só no final da década, o MDB passou a dialogar com a sociedade civil e a se organizar com visibil idade no estado. Contrariando impressões de senso comum, a consolidação do carlismo como força política baiano-nacional coincide com o declínio do regime militar. A conciliação de 1978 é, neste sentido, um marco. A partir dela, o carlismo não é mais um grupo, entre outros (ainda que o mais forte), de arenistas baianos, mas uma política da elite estadual, operada por um agrupamento que atua, regional e nacionalmente, sob comando centralizado, na política institucional, na administração pública e em interfaces de ambas com o mundo do mercado para respaldar os movimentos de seu chefe,

23 enquanto ator de "grande política", no bloco de

forças dominantes na política brasileira, ligadas a afirmação da ordem social competitiva. A ação transcorre sob condições de revolução passiva, padrão da modernização brasileira (V ianna, 1997a), para cuja sustentação historicamente contribuíram alianças de interesses econômicos capitalistas de ponta com elites políticas dominantes em regiões ditas atrasadas, razão pela qual o discurso reivindicatório regionalista do grupo concilia-se, assim como o anterior a 64, com a subordinação a prioridades estratégicas do estado nacional. ACM concorre, nacionalmente, com políticos de outras regiões, ao privilégio de ser selecionado para o papel acima referido. No plano regional, é ele mesmo o condutor político do processo seletivo. As sociedades política e civil baianas mostram-se maleáveis à modificação parcial e contínua na composição de blocos hegemônicos de poder, mediante cooptação e incorporação de personalidades e/ou grupos originários da oposição, desativando, previamente, eventuais focos de ruptura política. A marcação do jogo é feita pelo binômio carlismo/anticarlismo, cuja força vigora na Bahia, durante as duas décadas seguintes, de modo tão intenso que este formato de disputa e seu conteúdo político surgem, em muitas análises da política baiana e na prática efetiva de seus atores, alienados dos seus aspectos institucionais e tornados como parte da "natureza das coisas", isto é, uma singularidade da Bahia, incorporada a sua cultura e estrutura políticas, pela configuração — dita também singular e/ou "atrasada" — de sua sociedade. Este binômio resumia (e, em certo sentido, ainda resume) o contencioso político baiano desde o final dos anos 70, quando avançou a transição democrática. Já então, o comando de ACM sobre os quadros da Arena e da administração do Estado firmara-se de modo incontrastável, até porque, durante o segundo mandato de governador (1979-1983), operando num tempo político em que se tornavam mais complexes as partilhas de um varejo político emagrecido pela crise de legitimidade do regime que apoiava, usou o poder que lhe foi dado pelo acordo de 1978 para acabar de anular os grupos rivais, cujos resíduos somar-se-iam a oposição, na década seguinte. Consequentemente — e simetricamente —, no campo oposicionista, as alternativas políticas estreitavam-se no leito Único de frentes eleitorais anticarlistas, acomodando, sob discurso em registro negativo e escassa definição programática, atores políticos de variados matizes. Se o cenário maniqueísta guardava sintonia com o regime autoritário agonizante no país, tornar-se-ia peculiar ao se manter praticamente intacto no retorno da democracia política. 23 A chefia passou a ser partilhada com Luís Eduardo no final dos anos 80. Com sua morte, em 98, houve um breve retorno a unipessoalidade e o comando hoje e disputado por ACM com alguns quadros do carlismo pós-carlista.

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Mesmo depois que o carlismo, em 1986, sofreu ampla derrota eleitoral, a política baiana continuou pautada pelo binômio, só invertido o sinal da contenda, ao se instalar, no estado, um governo cujo perfil tinha como trago mais nítido o anticarlismo. Assim, foi até a fênix carlista, a retomada do poder estadual por ACM, em 1990, desta vez pelo voto (Dantas Neto, 2000). A partir daí que se dá — sem cancelar, contudo, a dicotomia — uma inflexão tática no carlismo, sintonizando-o ao tempo neoliberal que se firmava, na qual cumpriu papel relevante o deputado Luís Eduardo Magalhães. Apesar de importante, ela não deixou de ser mais uma entre várias inflexões observadas na trajetória de ACM e seu grupo, todas elas realizadas, por outro lado, no interior de um mesmo campo político,24 como estratégias adaptativas ditadas, menos, como já frisado, pela situação estadual (ademais, a derrota eleitoral de 1986 inscreve-se num amplo quadro de vitórias do PMDB em todo o país, na esteira do Plano Cruzado) e mais por mudanças políticas nacionais que a experiência histórica do grupo ensinava que, mais cedo ou mais tarde, acabariam repercutindo sobre a base estadual. A estratégia adaptativa praticada na adesão a Aliança Democrática (1984/85) e, de todas, a mais emblemática da capacidade carlista de extrair vantagens de situações agonísticas dos governos que apoia. Prestando solidariedade ao general Figueiredo por mais tempo que a maioria do campo liberal-conservador ao qual era ligado nacionalmente, ACM tirou proveito dessa condição tanto para auferir recursos de poder, enquanto o governo os propiciou, como ao aderir à candidatura de Tancredo Neves, não em bloco, mas como força individualizada.

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A mesma perícia para se mover com eficácia em contextos próprios de situações-limite, ACM revelaria ao manter-se ao lado de Sarney nos estertores do seu governo (1985-1990) e ao ser um dos que apagaram a luz do governo Collor (1991-1992), para, em seguida, fazer oposição ao governo Itamar Franco (1992-1993), mas com o foco dirigido, em parceria com Luís Eduardo, a estabilidade e a reforma liberal da economia, que seriam o cimento da aliança entre PFL e PSDB, em 1994. Também nessas "transições", se o compasso da ação era pessoal, o pano de fundo (o script) coincidia com o do campo político liberal e, mesmo no compasso diferenciado, o interesse do grupo carlista e do seu chefe tinha sempre o cuidado de se manifestar acoplado a antiga mística do "interesse baiano". Ai se mostra, em plena dinâmica, a dialética baiano-nacional que marcou o modo de atuação do grupo por mais de duas décadas. Mas o que distingue os dois subperíodos em que se divide o tempo do carlismo baiano-nacional — diferenciando a estratégia adaptativa encetada nos anos 90 das que ocorreram sob o regime militar ou durante a transição democrática e aproximando-a, em complexidade, da que foi operada pelo juracisismo, em 1963/64, na adesão ao golpe — e que, dessa vez, como em 64, mudava o regime político e com ele mudava não só a política de alianças, como todo um modo de exercer o poder regional. Institucionalmente, o novo script implicava, em jargão gramsciano, não recuperar, na política baiana, o tipo de supremacia perdida na eleição de 86, fincada em mera dominação, mas a desafio de conquistar, processualmente, a condição da hegemonia.

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24 Em 64, como se viu, os udenistas baianos ajustaram seus planos as circunstâncias do golpe; entre 67 e 70, fizeram acrobacias para que sua condição de castelistas não os castigasse durante o período de Costa e Silva, AI-5 e Médici; já ACM reviu sua estratégia depois dos revezes de 73 e 74; e contorcionismo bem mais arriscado o fez embarcar, em 84, afinado ao campo liberal, mas com assento personalizado, na canoa de Tancredo Neves. 25 No primeiro momento, ACM, embora contra a candidatura Maluf, não migrou para o recém-formado PFL, mantendo-se no PDS para introduzir-lhe uma cunha útil ao interesse de Tancredo, fato que, ao lado do poder de fogo da bancada carlista no Congresso, explica o espaço privilegiado de ACM na composição do novo governo. 26 A situação hegemônica forma-se, para Gramsci, quando um bloco de forcas detém, mais que controle dos aparelhos coercitivos da sociedade política — o que configuram a dominação o predomínio cultural (intelectual e moral) na sociedade civil. Importante considerar que hegemonia não exclui coerção, mas complementa, dando lugar a que se afirme a supremacia de um dado bloco de forças em sociedades de

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A estratégia adaptativa tornava-se mais complexa porque, entre as inúmeras regras alteradas pelo processo de democratização e/ou pela promulgação da Constituição de 1988, várias tinham repercussão direta, tanto sobre o modo de selecionar e reproduzir as elites estaduais como sobre as relações federativas, o jogo político entre os Poderes do Estado e entre os partidos políticos, ou ainda sobre as condições de operação administrativa das máquinas governamentais estaduais, incluídas aí a formulação e a implementação de políticas públicas. Era o caso da instituição de eleições diretas (primeiro para governadores, depois para presidente), da adoção do sistema de dois turnos nessas eleições (repercutindo sobre as políticas de aliança), da recuperação de prerrogativas do Congresso Nacional e assembleias legislativas (valorizando o capital político de lideranças detentoras de influência nessas Casas), do advento de um sistema partidário mais plural, da instituição do regime jurídico Única para a admissão de pessoal, também nos estados, das novas regras de repartição de tributos, da implantação do Sistema Única de Saúde, das transferências federais de uso carimbado etc. Ao longo da década de 1990, outras mudanças sinalizavam a necessidade de aprofundamento da estratégia adaptativa, como a instituição da regra da reeleição para a chefia do Poder Executivo, nos plano nacional e subnacional e outras alterações (ou propostas de alteração, num ambiente de recorrente aceno a uma reforma política), na legislação eleitoral e partidária, ou na sua regulamentação, o novo enquadramento legal das medidas provisórias, a Lei de Responsabilidade Fiscal, mudanças em procedimentos legislativos relativos, por exemplo, a discussão do orçamento, novas exigências para financiamento de políticas publicas (ligadas a questões como ambiente, participação da comunidade e outras), enfim, toa uma nova exigência de governança, sem falar no influxo exercido sabre a política pelas reformas orientadas ao mercado e pela ação das políticas de ajuste fiscal, desdobradas nos estados. Relacionar e enfatizar esses requerimentos institucionais ajuda a ver o caráter realmente adaptativo das mudanças operadas na práxis do carlismo nos anos 90, algumas das quais serão adiante abordadas. E previne o leitor contra a possibilidade de interpretar a análise histórica aqui empreendida como uma atribuição de sentido democratizante à reciclagem liberal que então se deu. Nunca e demais assinalar que o processo da inflexão, em seu conjunto, não contradiz, ao contrário, realça e pereniza tragos do subperíodo anterior do carlismo baiano-nacional (e mesmo do primeiro carlismo), deixando a Bahia um legado de "pensamento Única", que afirma o moderno enquanto trunca o pluralismo político. Compõe esse legado um padrão aclamativo de legitimação, sendo o carlismo o demiurgo de uma "nova" Bahia, imagem reforçada, ao longo dos anos 90, pelo prestígio nacional do grupo e pela atualização midiática do tema da baianidade. Já sem o "h" aristocrático (Brandão, 5 1994) de outrora, esta passa a ser, na forma hegemônica que o carlismo adquire em contexto pós-autoritário, o cimento ideológico que aspira conectar elite e povo, mantendo assimetrias sociais, mas subsumindo potenciais contestações, ao recorrer ao costumeiro ethos tecnocrático — proclamador do "arrojo" e "tino" administrativos da elite dirigente — e métodos de cooptaçã o da s oci ed ade civi l . Na s imulação de uma monocracia27, uma interdição democrática, na qual a política, vítima de racional estratégia de neutralização, naufraga em espaço público algemado, limítrofe da religião2 8. Nada, a rigor, singular, mas tudo peculiar e reiterado como paradoxo, na medida

tipo ocidental (onde a sociedade civil "sitia" politicamente o estado, ampliando-o) como uma hegemonia revestida de coerção (GRAMSCI, 1978). 27 Simulação, pois sob o invólucro de poder pessoal, atualizava-se longevo arranjo político, socialmente sustentado. 28 A abordagem da cultura baiana, nos anos 90, tenta fazer do carlismo o credo oficial da baianidade. Opondo cidadania política e vida cultural, limita a primeira e enaltece a segunda, acercando-se da religiosidade popular e, recentemente, do tema da negritude, acoplado ao elogio da mestiçagem brasileira e da cordialidade

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em que o país, constitucionalizado e estabilizado, cria-se mais laico, moderno e plural. Durante o primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, esse trago de hegemonia regional a muitos pareceu anacrônica, quando projetou sua sombra sobre a política nacional, rendendo a ACM e seu grupo uma influência que causava espanto. Como sempre ocorreu, a este reforço nacional correspondeu, reativamente, um reforço simétrico do anticarlismo estadual. Parte da responsabilidade por esse dito "atraso" político baiano na contemporaneidade cabe ao próprio carlismo, a cuja reprodução política interessava a reiteração obsessiva do maniqueísmo. Ai reside, inclusive, uma armadilha que hoje ameaça o grupo, pois o seu êxito nessa reiteração esterilizou o ambiente político a ponto de privar o binômio carlismo/anticarlismo de uma efetiva dinâmica bipolar. O acúmulo de poder em um dos polos emasculou o outro e desenhou o cenário de situação dominante, no qual degenerou-se a hegemonia alcançada nos anos 90. Na falta de adversário viável, uma metástase endógena é o modo pelo qual o poder carlista seguiu reproduzindo tecidos "esclerosados" como se fossem sãos, em processo autodestrutivo às vezes tratado como novidade, quando já deitava raízes no tempo. Também a oposição contribuiu para esse cenário de esterilidade política, ao tratar o carl ismo como persistência fantasmagórica do coronelismo, termo de uso tão largo quanto inapropriado, ao se reportar a um personagem que sempre esteve, no balcão da política tradicional, do lado oposto ao que estava o coronel, isto é, como encarnação do estado que, cada vez mais, dava as cartas e subordinava, a seus desígnios, declinantes oligarquias tradicionais. Estas só obtinham, do ascendente poder do dirigente estatal, a garantia (em termos) de conservação do status quo agrário e concessões cada vez mais parcas na ocupação de cargos públicos, desde que em troca de absoluta fidelidade político-eleitoral, a qual, via de regra, passava, por adesão, ao governo de candidaturas oligárquicas aos Legislativos e, por imposição, a líderes interioranos, de nomes palacianos, noviços tecnocratas vindos de camadas medias urbanas, através dos quais o carlismo cumpria o script modernizante. E, como se pode ver, uma lógica diversa da coronelística, mesmo que se desvincule, metaforicamente, a figura do "coronel" do sistema político da República Velha, que funda o conceito clássico (LEAL, 1976).29 A subversão do conceito de Nunes Leal pela oposição baiana, estimulada pela mídia nacional e pelos bolsões anticarlistas sobreviventes na imprensa local, foi subestimação suicida do adversário, pois desprezava a principal razão de sua hegemonia: o fato de o carlismo ter sido, por três décadas, o protagonista político, na Bahia, da modernização conservadora brasileira. A miopia (lê seus adversários facilitou o êxito carlista em cooptar quadros políticos, intelectuais, artísticos, empresariais e comunitários, convencidos por argumentos pragmáticos a compor o ambiente aclamativo de uma hegemonia política exercida sobre uma Bahia mais moderna e diversa do que supunha um estereótipo que chegaria ao paroxismo, em 2001, com o episódio da violação do painel do Senado. Uma opinião muito frequente em círculos ligados ao governo federal de então "esquecia" o papel cumprido pelo carlismo na viabilização de reformas orientadas ao mercado no Brasil e chocada com atitudes públicas solidárias a ACM, verificadas no local que ele comandou, politicamente, por trinta anos, quase ininterruptos.

baiana, atualização relevante, pelo peso que as relações raciais tem no delineamento da questão democrática em Salvador. 29 Fugindo ao uso irrefletido e indiscriminado do termo há um texto de José Murilo de Carvalho (2001) que procura compatibilizar o conceito de Nunes Leal com a personalidade política de ACM. Ainda que o argumento não considere aspectos da práxis carlista, aqui assinalados, que o ligam, também, a um campo político liberal, é precise reconhecer seu poder de persuasão, desde que se o restrinja ao perfi l pessoal do senador, sem estendê-lo ao conjunto da ação do grupo e aos seus resultados, analisados no tempo e nos planos da política baiana e nacional.

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Este autoengano, que discuti na ocasião (DANTAS NETO, 2001), consistiu em explicar a supremacia carlista na Bahia por uma suposta impermeabilidade da sociedade baiana a institucionalização da política . Mal d isfarça ndo preconceitos regional istas, ess a suposição desconsiderava a gradual legitimação da lógica do interesse na cultura política baiana e sua crescente relevância na vida institucional do Estado. Efeito não antecipado da própria modernização carlista inaugurada nos anos 70, esse traço explica melhor do que a etiqueta de coronel o apoio obtido por ACM em, por exemplo, amplos segmentos do mundo artístico e do entretenimento na Bahia, lócus de uma absorvente racionalidade instrumental derivada do culto ao mercado e do estiolamento de valores republicanos na Bahia onde o carlismo reinava. Até 1998, o carlismo reciclado aproximava-se de uma conclusão indolor de sua transição rumo à integração plena e competitiva ao campo político liberal. Influente na política nacional e detendo amplos espaços de poder na administração federal (mais amplos do que explicam o seu peso eleitoral e a relevância econômica da Bahia, mesmo que se considere que ela detém o sexto PIB do Brasi l ), o grupo, já comandado em parceria por pai e filho, expandia-se a ponto de ostentar a condição de um "metapartido", dominante e hegemônico. De fato, o PFL baiano era a sigla mais importante de uma constelação de satélites que gravitavam em torno de um comando central, cujas diretivas valiam tanto para a organização interna das legendas como para a ação parlamentar (o carlismo tinha maioria qualificada e disciplinada na Assembleia Legislativa e coesa ação no Congresso Nacional) e as estratégias eleitorais (política de alianças, organização de chapas, hierarquização dos redutos a serem contemplados pela ação governamental). Além do carlismo estrito senso, distribuído por quatro legendas (PFL, PTB, PL e PPB) e do seu núcleo duro, mais assentado no PFL, a hegemonia carlista havia atraído siglas menores e alcançara o PMDB, tradicional adversário. Na administração, a ideia-força que abriu a década, com a reconquista do governo estadual, continha-se no trinômio publicitário "ação competência-moralidade" (A-C-M), embora, na prática, os três atributos, além de formarem, com as iniciais, a sigla do personagem central da fênix, convergissem para o leito único do ajuste fiscal. Aliás, a Bahia foi, na primeira metade dos anos 90, como mostra Souza em um dos capítulos desta coletânea, um estado onde se extraiu prestígio político e eleitoral de uma carti lha administrativa e financeira de cunho

impopular.30

Naquele mandato de ACM (1991-1995), pouco se viu de investimento em obras, grandiosas ou não, programas estruturantes, inovação em serviços, políticas públicas, ou ações administrativas de impacto sobre a economia e a sociedade, exceção talvez ao que diz respeito a área cultural, que, nas gestões carlistas, terminou se convertendo, ao mesmo tempo, em carro-chefe da construção de imagem em subárea da função turismo. O apelo midiático completava-se com a ostentação da paixão incondicional pela Bahia e com um espírito de revanche contra os seus "inimigos", quer dizer, os que a governaram no quatriênio anterior e a teriam enterrado no abismo do qual o ajuste fiscal haveria de tirá-la. Sem embargo da análise crítica, política e administrativa (que aqui não cabe, por fugir ao foco do artigo) das gestões dos governadores do PMDB Waldir Pires (1987-1989) e Nilo Coelho (1989-1991), a responsabilização de ambos, na campanha carlista de 1990, pela "destruição" da obra modernizadora anterior não resiste ao confronto com o quadro crítico das finanças estaduais legado pelas últimas administrações carlistas31 e com o contexto de

30 Converge neste ponto com uma experiência anterior do Ceará, como analisado também em Bonfim (1999). 31 João Durval Carneiro, cujo governo (1983-1987) foi alvo de denúncias de corrupção e má gestão de recursos públicos, com contratações em massa de servidores por inclinação política, exerceu todo o seu mandato sob a tutela política de ACM e somente no início dos anos 90 consumaria seu rompimento com o chefe. Já durante o segundo mandato do próprio ACM (1979-1983), vinha se dando a quebra do Banco do Estado da Bahia, cuja gestão promoveu sua instrumentalização política na campanha eleitoral de 82. Todos esses processos tiveram

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dificuldades econômicas (dívida externa, inflação, ausência de estratégia de desenvolvimento econômico e crise fiscal do estado, em nível nacional, em que tais administrações transcorreram). Para essa desqualificação dos governos dos adversários, a ocupação do Ministério das Comunicações foi estratégica, pois, além da influência que ACM exerceu sabre decisões federais, rendeu-lhe posição privi legiada no controle dos meios de comunicação do estado.

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Em contraste com o governo de ACM, a primeira gestão de Paulo Souto (1995-99) foi tempo de colheita farta, na administração e na política, de bônus oriundos da rígida poupança de recursos do período antecedente, da nova situação política nacional sob FHC e da expansão hegemônica do grupo no Estado, sob comando conjugado de ACM e Luís Eduardo Magalhães. Largo consenso blindava a performance administrativa carlista, que gozava de reputação de estabilidade, eficiência e austeridade, valores caros a tempos neoliberais, ainda que, entre a imagem de finanças saneadas e a realidade adversa dos fatos, houvesse uma fronteira tênue. A fronteira foi cruzada, na sequencia, em razão do esforço empreendido, a partir de 1999, de levar para a Bahia uma fabrica da Ford, em meio ao qual dissipou-se a capacidade de investimento do Estado, alcançada com o ajuste fiscal do início da década e pela privatização da empresa de eletricidade. A adequação a Lei Camata tornou-se meta dependente, a partir de 99, da dispensa do Tesouro estadual do pagamento de aposentados, manobra que legou ao futuro incertezas sabre a solvência do recém-criado fundo previdenciário estadual, que ficou com o ônus. Erosão de uma "situação dominante": o "carlismo pós-carlista" A suposição de que a Bahia se perfilava a um "coronel" foi reiterada na eleição de 2002, quando o carlismo conservou o governo estadual, manteve a representação senatorial e elegeu numerosas bancadas legislativas, federal e estadual. O crescimento do PT no Estado, lento e seguro desde o início da década passada, foi tornado como mero efeito de uma "onda Lula" e até na ampla vitória deste no pleito presidencial na Bahia houve quem notasse o dedo de ACM. A mitologia era persuasiva pela impressão vigente — embora contestada por fatos eleitorais — de que não havia, no horizonte político baiano, contraste possível ao poder do carlismo. Na realidade, os anos de 1999 a 2002 já foram os do início da administração da crise, durante o mandato de César Borges, hoje senador, período em que a racionalização de métodos cedeu e retornou, transitoriamente, ao estilo de mando unipessoal de ACM. A expansão regional do grupo estancou, além de ter diminuído sua influência na política nacional. Reforçou-se a percepção do governo do Estado como um departamento do carl ismo e a impressão era de que tudo vo ltara ao ponto de recomeço, isto é, ao apelo carismático de 1990. A morte súbita de Luís Eduardo desorientou e, na sequência, trincou a política carlista. Mas, se foi um infortúnio que deflagrou a erosão do poderio do grupo, seu fomento foi a conduta política que o senador ACM passou a observar. Iniciou, como é do conhecimento geral, uma queima de navios que, em meses, o fez alvo de fogo cruzado, em pé de guerra com simultâneos adversários, inclusive segmentos do seu partido. Além disso, cometeu atos fragilizadores de sua retaguarda política

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que, sendo sólida e vinculada a uma hegemonia real, pode retardar a combustão e evitar o naufrágio. Mas a virtual impermeabilidade da hegemonia carlista cedeu aos fatos e ao proveito que deles tirariam adversários e aliados, antigos e novos. desdobramentos durante o governo Waldir Pires, que a propaganda carlista acusa de ter "destruído" a Bahia. 32 Durante a gestão de ACM no ministério, a família Magalhães obteve, para um canal de TV de sua propriedade, então recentemente criado, os direitos de transmissão da programação da Rede Globo na Bahia. 33 Refiro-me, mais uma vez, ao episódio da violação do painel do Senado Federal.

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Os primeiros reflexos das derrotas feriram a aura de onipotência e infalibilidade que cercava o poderio carlista (Dantas Neto, 2001), percepção compartilhada por Carvalho Neto (2001). Privado desse anteparo mitológico, o grupo ficou a mercê da pura lógica dos interesses. Por isso, a medida que refluía seu peso em Brasília, começou a perder também o controle sobre importantes recursos de poder na Bahia: rompimento do PMDB; defecção de deputados; confronto com o movimento estudantil; greve radical das policias estaduais; oposição de A Tarde, principal opção da imprensa escrita baiana; limitação, pela Rede Globo, do use político da sua repetidora na Bahia, propriedade da família Magalhães, e perda do controle sobre o TRE e a copula judiciaria do Estado, tudo isso formando uma cadeia de eventos erosivos, que se precipitaria sobre o cenário eleitoral de 2002. Nas urnas, o desempenho refletiu a erosão. Mesmo vencendo no conjunto da Bahia, o carlismo amargou derrota em Salvador e outras das maiores cidades baianas, além de ver crescer muito a oposição de esquerda em todo o Estado.

3 4 Mas as urnas refletiram também, além da erosão, a radicação social do carlismo na Bahia, pois, sem admiti-la, não se entende como o grupo manteve sua retaguarda eleitoral no patamar anterior (históricos 30%) mesmo com a aura suprimida e os recursos de poder sensivelmente reduzidos, nacional e localmente. Conservação do patamar de votos e perda de força política em razão do resultado eleitoral: para esclarecer a aparente contradição, e preciso analisar, no lado da oposição, alguns movimentos, já antes ensaiados, que ganharam velocidade entre 1998 e 2002. Fortaleceu-se, como em todo o país, o campo de esquerda liderado pelo PT, beneficiado pela maré montante, também nacional, da insatisfação com o governo federal. Outros segmentos da oposição anticarlista — especialmente PMDB e PSDB —, em franco desgaste, vislumbraram, para compensar inconvenientes do seu governismo nacional, oxigênio local na crise pessoal do senador. De fato, em 2001, o PMDB beneficiou-se de defecções carlistas na área parlamentar, mas a i lusão acabou nas umas, que reduziram a força do partido (e a do PSDB) a um nível inferior ao de 1998, firmando, na polí tica baiana, uma tendência à bipolarização carlismo/PT. A situação dominante que reinava em 1998 revogava-se graças ao estancamento da expansão do carlismo e ao avanço da esquerda sobre o espólio da outra banda da oposição e sobre o saldo da marcante queda da alienação eleitoral historicamente alta na Bahia

carlista, notoriamente a dos votos em branco3 5. Da análise desses e de outros dados das

eleições de 2002, emergiu a ideia da transição pós-carlista, inferência que qualifiquei como uma prospecção no vácuo (DANTAS NETO, 2002). Considerava, naquele quadro, a possibilidade de que viesse a ocorrer, na oposição, a atenuação da lógica da mera frente anticarlista, deslocamento que refletiria o papel do governo Lula como novo móvel de aglutinação. A esta modulação mais propositiva, moderada e menos provinciana do discurso oposicionista, chamei de nepotismo. De outro lado, raciocinando ainda sobre a transição ao pós-carlismo como novo cenário,

34 Na eleição para governador, quase houve 2º turno, no qual o carlismo teria de enfrentar a união dos dois blocos oposicionistas que disputaram separados o 1º turno e, aí sim, a "onda Lula" da reta final. Nas eleições legislativas, as vitórias do carlismo latu sensu (núcleo duro, mais aliados) tiveram, quando muito, sabor de sobrevivência, pela perda, em relação ao pleito de 98, de 25% da bancada federal e 17% da estadual. Análises mais detalhadas do desempenho do carlismo e da oposição nas eleições de 2002 na Bahia estão em Dantas Neto (2002). 35 A alienação eleitoral na Bahia — que explica, em parte, como o carlismo pode ser força dominante, conservando um patamar eleitoral em torno de 30% do total do eleitorado — caiu de 56%, em 1998, para 37,6% em 2002, percentuais também referidos ao conjunto do eleitorado baiano. Já os votos em Branco, especificamente, caíram de 17,9 para 3,7%, no mesmo período, logo, tiveram variação negativa de quase 80%. Maiores detalhes e comparações com resultados de outros estados e com médias nacional e regionais estão em Dantas Neto (2002).

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considerava o grupo de ACM desafiado a retomar o rumo interrompido com a morte de Luís Eduardo ou expor-se à erosão mais radical de sua base eleitoral. Em conexão, cogitava da quase Obvia hipótese de o segundo governo Souto ser mais autônomo face a liderança pessoal de ACM. Até 2005, a erosão do carlismo ampliou-se. Os espaços perdidos não foram retomados e abriu-se uma nova temporada de revezes, a partir de denúncias36 que, além de provocarem desgaste ainda não de todo mensurado a imagem de ACM, no tocante a sua vida privada, envolveram diretamente a estrutura do governo baiano. Para além desse fato (e em interação com ele), o antes compacto bloco carlista ficou mais poroso. Se antes já renunciara a planos imediatos de expansão, agora renunciava também ao enquadramento hierárquico de seus quadros e se tornava refém de estratégias defensivas, dependentes de acordos internos num grupo antes monolítico. Eram constrangimentos a cultura do grupo, repercutindo na retaguarda partidária, na arena parlamentar e na relação com os executivos que ele controla na Bahia: o governo do Estado e, em tese, quase 90% das prefeituras, inclusive a da capital. Quanto à estrutura partidária, pode-se dizer que o carlismo foi ficando mais próximo do tamanho do PFL e só uma pálida lembrança do antigo pool de siglas, que funcionavam como aparelhos institucionais de um "metapartido". Os satélites, com ênfase variada, foram deixando a órbita carlista para se declararem aliados (PP), independentes (PL) ou em oposição (PTB). Há implicação reciproca entre a dinâmica de descolamento desses partidos e a ati tude defensiva imposta ao comando do grupo pelos riscos de implosão. A complexidade do ambiente interno, aumentando a incerteza, reduz a mobilidade política, levando a uma menor

eficácia na interlocução com os comandos nacionais dessas agremiações.37

A defecção do PTB e a entrega do seu comando estadual a um grupo de ex-carlistas recém-saídos de um estágio no PMDB foram sintomas conspícuos do que acabo de referir; com o PFL nacional, no qual a lógica inversa (pois o comando partidário nacional queria se firmar na oposição e encontrava no senador ACM um óbice), as dificuldades não eram menores. O carlismo "puro-sangue" era, então, no começo de governo Lula, um intruso incômodo — e necessário — a situação e a oposição. No plano parlamentar, a orientação de ACM, perseverante na corte malsucedida ao governo, encontrava contraponto na do líder da bancada pefelista, o carlista pós-carlista José Carlos Aleluia. Sem acesso fluente, embora cultivando simpatias, no governo federal, o proverbial comando de ACM sobre os deputados federais carlistas ficou dependente só do seu prestígio eleitoral e da sua influência sobre o governo estadual. Cabe assinalar, também, o comportamento institucional da bancada carlista no tratamento parlamentar de pleitos estaduais. Trabalho de Celina Souza sobre relações federativas refletidas na Comissão de Orçamento do Congresso Nacional mostra que a hegemonia pefelista na representação baiana privilegiava, na discussão do orçamento federal (mesmo antes da fixação de normal nesse sentido), emendas coletivas sobre as individuais, mostrando cooperação entre bancadas partidárias, na representação baiana, como ocorria na do Paraná, que atuava sob a condição antípoda de representação política pulverizada (SOUZA, 2003). Este dado modera diagnósticos — inspirados em estereótipos sobre modernidade e atraso em política — de que a disputa "personalista" entre ACM e setores não-carlistas do PFL nacional afetam, de modo relevante, a conduta da bancada do PFL baiano. Mais parecem afetá-la razões institucionais ligadas, primeiro, a interesses administrativos do governo da Bahia, fator ao qual 36 Refiro-me, agora, ao episódio das escutas telefônicas ilegais realizadas por agentes do governo baiano contra adversários políticos e desafetos pessoais de ACM e denunciadas no início de 2003. 37 Quando as escolhas políticas das legendas-satélite trocam a satelitização por conveniências referidas ao governismo federal, o ambiente no carlismo tenciona-se ainda mais. No PFL, passaram a ser constantes as cenas de dissidio, seguidas de malabarismos conciliatórios, sendo sempre ACM uma das pontas do contencioso e da trégua.

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prometia se juntar, na época, o aumento da competividade do PT na política estadual. Assembleia Legislativa, a unidade de comando do grupo passou a depender ainda mais da relação entre ACM e Paulo Souto. Ai e no trato com prefeituras e lideranças interioranas, o governador promovia, com cautela, certa demarcação de terreno, que vai lhe conferindo — em parte por conta do lugar insti tucional que ocupa, em parte pelo desgaste político do senador — a primazia no comando político da bancada, ainda que sem ostentação. Apesar desse realinhamento,

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não se nota mudança de qualidade no estilo "rolo compressor" que sempre predominou na ação parlamentar carlista, terreno no qual bem se mostra a continuidade entre primeiro carlismo, carlismo baiano-nacional e carlismo pós-carlista. Quanto à atuação da bancada oposicionista, segue, também, via de regra, a tradição, já meio deslocada dos fatos da política real, de concentrar o combate ao carlismo na pessoa do senador ACM. Habitualmente, setores mais conservadores da oposição combinam essa postura confrontacionista (de anticarlismo personalizado), com simpatia para com um virtual "estilo-Souto" de governar, cuja peculiaridade continua pedindo confirmação empírica. A conciliação inclui até, em alguns casos, frequência ao ambiente palaciano, e sua acolhida discreta, pelo Executivo, mostra, a um só tempo, a disposição deste de descolar-se, mesmo sem ruptura, da sombra de ACM e a plena vigência, sob Souto, do animo cooptador do carlismo histórico. Fantasias adesistas, à parte, no governo do estado e na prefeitura da capital — enquanto esta esteve, até 2004, sob controle do carlismo —, vigorava um ethos tecnocrático que, embora já compusesse a política do grupo desde os anos 70, é marcante do carlismo pós-carlista, tendo primazia sobre a ostentação do carisma, agora mais difícil, com o desgaste da imagem do senador ACM. Ajustada a agenda liberal, mas sem pauta relevante em privatizações, a estratégia é de use extenso de terceirizações, dando a parcerias do tipo público-privado atributos de panaceia. Adotando sotaque de ONG, as gestões carlistas pós-carlistas acabam estimulando, ao seu redor, a articulação de redes de negócios de apetites cartoriais, na contramão de argumentos racionais que podem justificar as parcerias como instrumentos suplementares de gestão. Por outro lado, demandas da sociedade política e da sociedade civil tem cobrado dos poderes executivos, em geral, posturas mais institucionais. A resposta carlista tem sido o cumprimento formal de requisitos de governança, acoplando-os, porém, a seu estilo despótico de gestão, isto é, conservando o padrão aclamativo de legitimação da l iderança política, o andamento passivo e prussiano das inovações e o perfil tecnocrático do seu ethos modernizante. Os orçamentos, mesmo legalmente adaptados, seguem inacessíveis ao controle social; temas como o desenvolvimento sustentável são obrigatórios no jargão administrativo, mas relações com os órgãos e entidades civis voltadas ao tema ambiental carecem de transparência; o Plano Diretor de Salvador seguiu, durante a gestão do prefeito Imbassahy, determinada tramitação, mas foros de debate foram submetidos a ritos sumários; a gestão da saúde pública conformou-se, a partir da segunda metade dos anos 90, a requisitos de participação previstos pelo SUS, mas a adesão tardia deu-se mediante utilização de redes de influência tradicionais e processos decisórios verticais (GUIMARAES, 2000), o que inibe, na ponta do sistema, a substância da inovação. Também Ivo (2001) mostra o caráter estratégico do controle do carlismo sobre instâncias de poder municipal, potencializado na década de 1990, quando novos procedimentos em favor do poder local e a própria reforma cio Estado conferem a essa instância maior controle social das políticas públicas. Nas relações do governo Souto com o senador ACM, não há escaramuças públicas, 38 O realinhamento é, porém, apenas interno ao grupo, que conserva praticamente a mesma maioria obtida nas umas e em cooptações pós-eleitorais, contando com 38 deputados fieis a situação (um a menos que no momento da posse), contra 25 integrantes da oposição.

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nem sobressaem, a diferença da gestão anterior, ingerências extra-institucionais. Desde a

montagem da equipe de governo3 9, em atitudes como a da neutral idade adotada pelo

chefe do Executivo baiano no duelo travado entre ACM e o deputado Aleluia pela liderança efetiva da bancada federal, como até mais recentemente, nos entendimentos internos relativos às eleições de 2006, a aparência mais de contemporização do que de submissão reverencial dos quadros dirigentes do governo a figura do senador. Autoimposição de silêncio obsequioso na polí tica e coordenação ativa da administração tem correspondido ao perfil "gerencial" de Paulo Souto. É difícil avaliar, sem critérios fortemente subjetivos, a conduta do governo estadual em termos de continuísmo ou inflexão, face às gestões da década passada. A linha forte é, sem dúvida, a da continuidade, nos marcos da reciclagem orientada ao mercado. Mas não é simples discernir, nessa continuidade, aqui lo que reitera o estilo empreendedor de ACM e o que é automatismo derivado da imersão do aparelho governamental baiano na lógica de prioridades e procedimentos próprios de um padrão globalizado de gerenciamento de políticas públicas. O fato de o centro real do poder na Bahia não se ter situado, no primeiro mandato de Paulo Souto, nem na figura pessoal, nem no lugar institucional do governador — cujo perfi l em nada aderia ao de um barão da federação (ABRÚCIO, 1998) — permitiu a sua gestão beneficiar-se de insulamento técnico-burocrático radical e da possibi lidade de sustentar um discurso universalista, moderno, exercitado, contudo, em ambiente aclamativo, de baixo risco de contestação, pela esterilização política dos conflitos sociais. O escritório de ACM no Correio da Bahia, seu gabinete e o de Luís Eduardo, no Congresso — e não a governadoria do Estado ou o Palácio de Ondina eram os endereços das demandas do varejo polí tico tradicional e de grupos corporativos ligados à política carlista, de que o Banco Econômico foi exemplo notório. A imagem do aparelho governamental baiano, nos dourados anos 90, era de inovação e gerencial ismo austero, praticamente sem restar vestígio de operações clientelísticas como as fartamente praticadas durante o segundo governo ACM (1979-83) e o de João Durval Carneiro (1983-87), as duas últimas administrações estaduais do primeiro subperíodo do carlismo baiano-nacional. Mas, como ocorria desde os anos 70, todas as quatro gramáticas de Edson Nunes

4 0

eram operadas, pelo metapartido carlista, nos vértices em que se tocavam política, administração e mercado. As condições "Ótimas" de operação do primeiro governo Souto já não existem no segundo e hoje a ação carlista lembra imagem da perfuração lenta de tábuas duras (Weber, 1985). Agora as vacas são magras e o dilema e entre austeridade real ou a nudez do rei. A política praticada pela administração municipal carlista de Salvador, entre 1997 e 2004, também i lustra como aqui lo que aqui chamo de carlismo pós-carlista, ao tempo em que segue a cartilha político administrativa do carlismo, tenta preservar sua imagem pública do desgaste a que se expõe a do senador ACM. A capital baiana, anticarlista dos anos 70 até meados da década passada, foi conquistada pelo grupo em 1996. O apelo principal da campanha de Antônio Imbassahy foi o convencimento dos cidadãos soteropolitanos — face a experiência concreta de asfixia da gestão municipal fundante por um embargo financeiro e um implacável cerco político, nos planos federal e estadual41 — de que obras públicas, serviços razoáveis e a própria solvência da Prefeitura dependiam da eleição de um prefeito carlista. 39 Em que a influência de ACM se fez presente, mas, afinal, prevaleceram critérios técnicos, ou nomes ligados a confiança pessoal do governador. 40 Clientelismo, corporativismo, insulamento burocrático e universalismo de procedimentos (NUNES, 1997). 41 A prefeita Lídice da Mata (1993-1996), então no PSDB, enfrentou dificuldades a partir do momento em que foi celebrado o acordo nacional entre seu partido e o PFL de ACM, com vistas as eleições presidenciais de 1994.

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Em 2000 essa lógica foi mantida para obter a reeleição do prefeito, mas, já então, a ela se somava uma avaliação positiva da sua gestão por uma opinião pública ganha para uma concepção uti litarista da sociabilidade urbana, legitimando se, em detrimento da polis, o uso econômico pragmático dos espaços da cidade e cultivando-se uma imagem de racionalidade "técnica" da gestão, que eximia o prefeito de declarações politicamente engajadas. Mas, justamente no estilo de gestão, reluzia a tradicional política carlista, de tratamento "apolítico", mercadológico e pouco aberto ao contraditório de questões como a miséria urbana, o perfil racial e religioso da cidade e o do seu patrimônio histórico, paisagístico e arquitetônico. Em 2003, na esfera da bancada federal, um suposto "racha" no carlismo foi precipitadamente comemorado por alguns dos seus adversários. Envolveu o deputado José Carlos Aleluia, que, dentre os mais destacados carlistas pós-carlistas, e o que mais deve sua

projeção ao caráter baiano-nacional do carlismo42. Através dele, o carlismo pós-carlista,

acompanhando tendência da sociedade civil brasileira e baiana, trabalha a gramática do universalismo, nela aperfeiçoa seu discurso liberal e, com ela, forca entrada nos ambientes da "grande política", inclusive colocando em segundo plano o tema da baianidade. Mas também neste caso o alarde foi e é desproporcional aos fatos, pois a política baiana recente esta repleta de indicações de que disputas internas, até contradições, não impedem que os quadros do carlismo ajam no auto-interesse de preservar um patrimônio político que, dilapidado, a nenhum deles servirá. Se não se dividiram em 2001, quando ainda havia muito poder a disputar e um governo federal ávido por cooptar carlistas, improvável que o façam agora, quando a hegemonia do carlismo baiano-nacional já é poente e a estrela que brilha em Brasília aposta na viabilização de uma frente política que, por definição, o exclui. Por outro lado, a vitória do pedetista João Henrique Carneiro nas eleições para prefeito de Salvador, em 20044 3, juntamente com a crise política nacional que atingiu, na sequência, o PT e o colocou na defensiva, deram argumentos a quem achava que a bipolaridade carlismo/PT na política baiana havia recuado e, em seu lugar, avançado o anticarlismo mais fulanizado, ao gosto das políticas do PSDB, do PMDB e de setores importantes do próprio PDT, acalentadores de uma ideia de "terceira via" que, curiosamente, poderia incluir o próprio carlismo, desde que sem ACM, formulação que não percebe que dela o carlismo pós-carlista pode se valer para, ao mesmo tempo, será primeira via e hegemonizar a terceira, pela cooptação do PSDB. Deitada a poeira dos resultados eleitorais de 2004 e otimizada a crise política nacional, dividem os campos do carlismo e do PT a disputa do poder estadual em condições de polarização, como previsto em 2002, remetendo a hipótese de uma "terceira via" a um futuro ainda não suficientemente desenhado. O drama revivido pelo PSDB baiano, 12 anos depois do acordo PSDB/PFL para a eleição de FHC, demonstra o que afirmo, com o detalhe de que, diferentemente de 1994 — quando o núcleo político do partido se enfraqueceu, mas se manteve anticarlista s inais de que agora a seção baiana daquele partido, vitima da combinação circunstancial da política de alianças de sua direção nacional com a regra da verticalização de alianças eleitorais, será capturada pelo campo carlista, reciclado pelo pragmatismo do governador

42 Ao contrario de Imbassahy e Souto (técnicos carlistas promovidos a política por ACM), Aleluia entrou no PFL através de Oliveira Brito, velho prócer do PSD baiano, sendo sempre a política nacional sua arena principal de ação. 43 Os resultados das eleições de 2004 nos dez municípios de major eleitorado na Bahia mostram que o caso de Salvador não pode ser generalizado sequer para este universo. Se dele retirarmos a capital, ha relativo equilíbrio entre carlismo (quatro prefeituras e mais de 50% dos votos) e PT (cinco prefeituras e mais de um terço dos votos validos).

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Paulo Souto e do ex-prefeito Imbassahy. Mas não ha diferença substantiva, só de esti lo pessoal , entre a pol ítica desses personagens e a do senador ACM. Por inexistir base política ou social alternativa dos carlistas pós-carlistas, mesmo após filiar-se ao PSDB, o ex-prefeito carlista não se desvincula do esquema de origem, por não dispor de base própria de sustentação numa eleição majoritária, tanto que o êxito de sua candidatura ao Senado depende, de um lado, de aliança branca com Paulo Souto, de outro, do apoio de parte da oposição, cujo tom, porém, é dado pelo PT. O malabarismo em busca da chamada terceira via encontra l imite na bipolaridade da política real. “Pós-carlismo", "policarlismo" ou "grande carlismo"? Em meio ao tiroteio varejista das conjunturas, corre-se o risco de perder a visão do conjunto. A política não é departamento separado da sociedade em que e praticada, e o carlismo nunca foi mera obra do talento político ou do apetite pessoal de poder de ACM. Sem embargo de ambos, ele sempre foi muito a expressão política de interesses, valores e atitudes de elites baianas e nacionais que apostaram na supressão autoritária do pluralismo para apressar, por cima, uma modernização que lhes preservasse dedos e anéis. Esses interesses, valores e atitudes não se revogam porque a estrela de ACM se apaga. Logo, desse apagamento não resulta o fim do carl ismo, enquanto política, mas a maturidade plena do terceiro período da trajetória do grupo. Para dar sentido ao uso do adjetivo pós-carlista, vigora, agora mais impessoal e comum a uma elite política estadual colegiada, o substantivo carlismo. De toda a análise empreendida, decorre que, além da transição ao carlismo pós-carlista ter concluído seu ciclo desce, pelo menos, o ano de 2003 e já se viver, na política baiana, a plenitude de um novo momento, bipolar, já não é mais suficiente falar em carlismo no singular para se referir com precisão ao grupo político de maior poder no Estado e sua influência nacional. Há que se pensar o carlismo no plural, para além de ACM. Mais do que isso: o olhar analítico precisa captar a manutenção de um trago constitutivo do carlismo, recorrente em toda a sua trajetória, que é o de nunca se limitar a estruturas partidárias formais, daí que incorrera em equivoco qualquer tentativa de estudar a política carlista a partir apenas do que ocorre no PFL, mesmo se analisado em conjunto com as siglas consigo aliadas mais permanentemente. O fôlego do carlismo para deixar a postura defensiva e aventurar-se em nova pol ítica expansiva de cooptação, semelhante a da estratégia adaptativa conduzida por Luís Eduardo Magalhães, nos anos 90, provem de dois fatores: da aliança nacional com o PSDB para as eleições presidenciais (que isola nacionalmente a postura anti-ACM da direção da seção regional daquele partido) e da vantagem comparativa de que passa a usufruir o carlismo, a partir de 2005 (apesar de prosseguirem a erosão do poderio do grupo e do prestígio pessoal de ACM), diante de denúncias de escândalos envolvendo, principalmente, o PT e o governo federal. A forma da recente migração do ex-prefeito carl ista Antônio Imbassahy para o PSDB e seus desdobramentos ruidosos em tempo de campanha presidencial cumprem, como visto, papel pedagógico na exposição desse argumento e também no esclarecimento de uma reiteração, em tempos de carlismo pós-carlista, da velha dialética que constituiu e animou o carlismo baiano-nacional. Hoje, como ontem, a conservação do poder estadual e o objetivo principal da ação do grupo carlista, mas, para atingi-lo, o elemento nacional conta e muitas vezes decide. E hoje, como ontem, essa influência se dá por duas vias: a das alianças político-partidárias conjunturais e a das regras institucionais. A reconstituição da aliança PSDB/PFL na política brasileira e os efeitos a curto e médio, prazos da regra da verticalização sobre o quadro partidário nacional e as políticas estaduais silo as senhas da hora para o êxito da estratégia adaptativa em curto. Comando político mais colegiado, estratégias eleitorais defensivas, "pefelização" do "metapartido" carlista, menor ênfase no carisma, ênfase a cultura negra no discurso da

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baianidade, adaptações da administração a requisitos de governança e adesão ao liberalismo econômico são inflexões combinadas, instrumentalmente, a conservação de traços basilares do carlismo histórico: comando político vertical (ainda que colegiado) sobre bancadas e bases municipais; busca de legitimação aclamativa e neutralização, via coação ou cooptação assimilativa, de atores sociais e políticos de oposição, via manipulação despótica de instâncias de participação da cidadania, uso político da religiosidade popular e aversão pragmática ao pluralismo político e ao conflito social; discurso modernizante politicamente conservador, valorização de um perfi l tecnocrático de gestão e do protagonismo da eli te dirigente; criação de bases regionais para uma sociedade de mercado e alinhamento a atores políticos relevantes e interesses econômicos dominantes, no plano nacional. Tudo isso sempre foi e continua sendo a política do carlismo. A observação dessa estratégia, na simultaneidade das arenas estaduais e nacionais, indica que, entre cenários viáveis, pode estar não só a conservação do carlismo e sua pluralização vertical e colegiadamente controlada, para além do controle pessoal de ACM, mas até mesmo a expansão do grupo para envolver outras legendas partidárias, rumo a retomada do projeto interrompido de um "grande carlismo", que não outra coisa senão o histórico desiderato da política carlista: abolir o contraditório e ser partido dominante numa Bahia una. A realização deste projeto de Antônio Carlos e Luís Eduardo Magalhães depende, naturalmente, da unidade racional dos seus sucessores (sanguíneos ou não), correligionários e aliados, de movimentos da oposição e, e claro, do aval dos eleitores, da Bahia e do país. Como tudo o que depende do lado contingente da polí tica, é um cenário possível, mas, pelo mesmo motivo, não é necessário. Referências bibliográficas

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