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JO RNAL DE NOTICIAS * l--J A N E IR 0-1964 CARDOSO PIRES: «A A,NALISE AO MARIALVISMO É UM rNSTRU- MENTO VERSO PARA TOMA1R DAS RELA , ÇÕES PULSO UNI• .Caroso Pires faz parte e um certo tipo de escritores que atingem o universalismo: a sua ficção ultrapassa os usuais ,roblemas do umbigo. 'ema actual é a libertinagem, a que, segundo parece, ele concede uma outra dimensão, Que iá não é Francisco Manuel de Melo, sem atmir contudo Vaiiland. At1rma- ção que por si não constitui . iuizo de valor. Uma obra que percorre uma d1ver- •tdade de caminhos, e que finalmente atinge o tom desejado: é «Caminheiros» 0 o «Anjo Ancorado», que se prolongam até «O Hóspede de Job». A recusa do regionalismo, lhe chama ele. Reg1ona- lismo como taú. Concretamente (e resumindo): o aproveitamento de uma certa tradição literária, que é nossa (ele assim o pretende), que ganha o tom de con- tinuidade (e de modernidade) que ca- racterizam toda a obra de Cardoso Pires. - Em nossa opinião o conto «Week- -nd» situa-se na linha de «O Anjo Ancorado»: uma outra linha surge a partir de «Caminheiros», por exemplo. Quer-nos dar uma Ideia de como con- cilia o tom cosmopolita (פrdoe-me o ter1no) do primeiro com as caracteris� ticas temáticas do segundo ? - A obserl'ação é hábil e pertinente. m a resposta dific1l de resumir em duas linhas. Em todo o caso, talvez seja esclarecedor atender a que os contos de Jogos de Azar foram escritos em duas épocas diferentes e publicados. pela primeira vez, em dois 1·olumes di- ferentes. Numa parte deles («Caminhei- ros», «Carta a Garcia», «Estrada 43». etc.), o que está em jogo é o sentido _primário da existência, o pão e a mesa, a questão elementar do homem ou do sub-homem. Nos outros («Week-End», cUma Simples 'lor», etc.) a interpre- tação da realidade desenvolve-se a uma latitude superior - a das relações sen- timentais, precisamente. Estas últimas são histórias de amor (ou de desencontro no amor, se pre- ferir) localizadas em tempo e em lugar prisos. Representam situações signi- fica.tivas. como faces de um oliedro cujas linhas de estrutura Interna con- dicionam não só as relações sentimen- tais mas também a presença colectlva do homem em todas as suas manifesta- ções essenciais. Esta Intenção é, de resto. evidenciada com ,nande felicda.de em dois livros recentes de dois poetas da minha preferência: Egito· Gonçalves e António Reis. O libertino, h e rói de crise... - Libertinagem - assunto a que tem dedicado muita atenão, desde uma «Cartilha do Marialva», passando pelo prefácio a «Drôle de Jeu», de Vailland, incluindo parte dos seus contos e ainda «O Anjo Ancorado»: o que siniflca concretamente na sua ficão a realidade libertina? - Libertino, como herói de crise. como privilegiado em determinado g,rau de uma sociedade em desagregação, é um elemento aristocrâtico (intelectual- mente, sobretudo) que podemos reco· nhecer em muitos exemplares do nosso xadrez social. É um roduto da Grande Euro,pa que tem reflexos episódicos nos nossos meios a lnteJigentzia e pouco mais... Mas é ele que dá, por con- fronto directo no dia a dia da bui,gue- sia, o pi.mitivismo do marialva e as suas reacções ao Progresso. Os dois tripulantes da barca condenada encaram o mundo com olhos diferentes ... É certo que Jo, protagonista de O Ano Ancorado, te1n alóuma configu- ração 1ibert1na mas não creio que nou- tro livro meu S lei antem resQuicios dessa mentalidade. De marialvismo, sim: Até porque é mais típico e socialmente mais vâlido do ponto de vista nacional. - Marialvismo: em que medida ere problema levantado no seu ensaio pode ter repercussão na sua obra de ficcio- nista ? - Uma análise do nosso quotidiano através dos resíduos da moral medieval, da desigualdade da mulher e das con- cepções divinizantes da hierarquia - uma análise, em resumo, daquilo que designei por marialvismo é um instru- mento, como qualquer outro, para tomar o pulso ao universo das relações hu- manas. Sinais dessa preocupação encon- travam-se iâ em «A Rapariga dos '6s- foros» e no «Ritual dos Vampiros» (con- ceito de machismo) quando ainda não sonhava sequer em dar corpo às ref:e- xões donde sairia a Cartilha do Ma- rialva. ... ou «marialva» ao con- trário - Ainda sobre o mesmo assunto, acha-se na linha iniciada Por um D. Francisco Manuel de 1Uelo ou do Cavaleiro de Oliveira ? - D. Francisco Manuel fez, como sabe, na Carta de Guia o elogio sabo- roso e satisfeito das inferioridades da mulher. - r edra de toque para avaliar todo o mariall'a de ontem e de hoje. Por seu lado, o Cavaleiro de Oiiveil'a não tem literàriamente estofo para se lhe opor. É um cripto-libertino ou pouco mais, e de proiecção reduzida. Aprende-se, neste campo, mais com o primeiro or contradição do que com o segundo por si1npatia ... Depois, é necessário estar-se preca- 1·ido contra as seduções de uma des- coberta. A ânsia de comprovar um caminho pessoal, exclusivo, le1·a a apropriações excessivas. O libertino. tal como o redescobriu Vailland, teve HUMANAS» a sua época de ·ouro. As manifestações dessa mentalidade são hoje mais de ati- tude sicológlca do que de papel social, e a única coisa que resta ago é desmlstificâ-los por desactualizados e Inoperantes. (()u descobrir-lhes o «ma• rialvismo ao contrário» que há em mui- tos deles... ). Foi isso que fez Roger Vallland, dlr-me-á. E e respondo: nem spr, Porque o .iogo privado, quase umbllical, a que ele se dedicou com os seus deuses llbertlnos (' basta ler La Fête) levou-Ó à estagnar.ão. Miul o criador da fera enamorou-se dela e acabou hipnoti- zado... «O hóspede de Job» como recusa do regionalismo - De «O hóspede de Job» pode dizer- -nos em que medida continua a linlia da sua ficção anterior ? - O hóspede de Job foi escrito dez anos e retomado em quatro versões distintas. Temàticamente afasta-se bas- tante dos meus últimos livros e daque- les em que agora estou trabalhando mas, formalmente e pela conceção de narrativa, aproxima-se talvez de O AnJo Ancorado. Se me é permitido, dir que foi minha obcessão (e prazer) .trabalhar uma realidade por natureza dotada de expressão reionalista, despojando - a disso mesmo, recusando-lhe o colorido para, em contrapartida, a transfigurar à custa de uma linguagem e de uma simplicidade «erudita». - A sua peta «O Render dos Heróis» surge a par da «Cartilha do rialvnum to1n muito diferente, embo.a com objectivos diversos da sua restante obra. Interessa-nos entreta11to saber se, com.o alguém apontou já, se poderá consi- derar uma certa influência brechtiana nesse seu livro. -A influência f inegável. Brecht é dos dramaturgos contemporâneos qµe melhor conheco e que mais vezes vi representado. Mas suponho que a ·pre- senra de Gil Vicente não é de todo alheia à peça. Além disso, como nln- uém nasce de geração espontânea, nãl' sei aonde, deois de Mestre Gil e do Judeu. se vã descobrir uma tra- dicão e teatro moderno em Portugal... JOSÊ NOGUEIRA GIL J•;sé ardoS Pires, autografando, em 25 do corrente, o seu último romance-«O hóspede de Job»-na Livraria ivulgação do Porto

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JO RNAL DE NOTICIAS * l'l--J A N E IR 0-1964

CARDOSO PIRES: «A A,NALISE AO MARIALVISMO É UM rNSTRU­

MENTO

VERSO

PARA TOMA1R

DAS RELA,ÇÕES

PULSO UNI•

.CarC!oso Pires faz parte C! e um certo tipo de escritores que atingem o universalismo: a sua ficção ultrapassa os usuais (),roblemas do umbigo. 'l'ema actual é a libertinagem, a que, segundo parece, ele concede uma outra dimensão, Q.ue iá não é Francisco Manuel de Melo, sem atm.;:ir contudo Vaiiland. At1rma­ção que por si não constitui .iuizo de valor.

Uma obra que percorre uma d1ver­•tdade de caminhos, e que finalmente atinge o tom desejado: é «Caminheiros» 0 o «Anjo Ancorado», que se prolongam até «O Hóspede de Job». A recusa do regionalismo, lhe chama ele. Reg1ona­lismo como tal:Íú.

Concretamente (e resumindo): o aproveitamento de uma certa tradição literária, que é nossa (ele assim o pretende), que ganha o tom de con­tinuidade (e de modernidade) que ca­racterizam toda a obra de Cardoso Pires.

- Em nossa opinião o conto «Week--J<Jnd» situa-se na linha de «O Anjo Ancorado»: uma outra linha surge a partir de «Caminheiros», por exemplo. Quer-nos dar uma Ideia de como con-

• cilia o tom cosmopolita (perdoe-me o ter1no) do primeiro com as caracteris� ticas temáticas do segundo ?

- A obserl'ação é hábil e pertinente. m a resposta dific1l de resumir em duas linhas. Em todo o caso, talvez seja esclarecedor atender a que os contos de Jogos de Azar foram escritos em duas épocas diferentes e publicados. pela primeira vez, em dois 1·olumes di­ferentes. Numa parte deles («Caminhei­ros», «Carta a Garcia», «Estrada 43».

etc.), o que está em jogo é o sentido _primário da existência, o pão e a. mesa, a questão elementar do homem ou do sub-homem. Nos outros («Week-End», cUma Simples .F'lor», etc.) a interpre­tação da realidade desenvolve-se a uma latitude superior - a das relações sen­timentais, precisamente.

Estas últimas são histórias de amor (ou de desencontro no amor, se pre­ferir) localizadas em tempo e em lugar precisos. Representam situações signi­fica.tivas. como faces de um ;,oliedro cujas linhas de estrutura Interna con­dicionam não só as relações sentimen­tais mas também a presença colectl va do homem em todas as suas manifesta­ções essenciais. Esta Intenção é, de resto. evidenciada com ,nande felici· da.de em dois livros recentes de dois poetas da minha preferência: Egito· Gonçalves e António Reis.

O libertino, herói de crise ...

- Libertinagem - assunto a que tem dedicado muita atenl:ão, desde uma «Cartilha do Marialva», passando pelo prefácio a «Drôle de Jeu», de Vailland, incluindo parte dos seus contos e ainda «O Anjo Ancorado»: o que sia-niflca concretamente na sua fici:ão a realidade libertina?

- Libertino, como herói de crise. como privilegiado em determinado g,rau de uma sociedade em desagregação, é um elemento aristocrâtico (intelectual­mente, sobretudo) que podemos reco· nhecer em muitos exemplares do nosso xadrez social. É um ;)roduto da Grande

Euro,pa que tem reflexos episódicos nos nossos meios C!a lnteJigentzia e pouco mais... Mas é ele que dá, por con­fronto directo no dia a dia da bui,gue­sia, o pJ'i.mitivismo do marialva. e as suas reacções ao Progresso. Os dois

tripulantes da barca condenada encaram o mundo com olhos diferentes ...

É certo que João, protagonista de O An.io Ancora.do, te1n alóuma configu­ração 1ibert1na mas não creio que nou­tro livro meu SI! lei antem resQ.uicios dessa mentalidade. De marialvismo, sim:

Até porque é mais típico e socialmente mais vâlido do ponto de vista nacional.

- Marialvismo: em que medida er.-te problema levantado no seu ensaio pode ter repercussão na sua obra de ficcio­nista ?

- Uma análise do nosso quotidiano através dos resíduos da moral medieval, da desigualdade da mulher e das con­cepções divinizantes da hierarquia -uma análise, em resumo, daquilo que designei por marialvismo é um instru­mento, como qualquer outro, para tomar o pulso ao universo das relações hu­manas. Sinais dessa preocupação encon­travam-se iâ em «A Rapariga dos 1''6s­foros» e no «Ritual dos Vampiros» (con­ceito de machismo) quando ainda não sonhava sequer em dar corpo às ref:e­xões donde sairia a Cartilha do Ma­rialva.

... ou «marialva» ao con­trário

- Ainda sobre o mesmo assunto, acha-se na linha iniciada Por um D. Francisco Manuel de 1Uelo ou do Cavaleiro de Oliveira ?

- D. Francisco Manuel fez, como sabe, na Carta de Guia o elogio sabo­roso e satisfeito das inferioridades da mulher. - r;>edra de toque para avaliar todo o mariall'a de ontem e de hoje. Por seu lado, o Cavaleiro de Oii veil'a não tem li teràriamente estofo para se lhe opor. É um cripto-libertino ou pouco mais, e de proiecção reduzida. Aprende-se, neste campo, mais com o primeiro ,:;:,or contradição do que com o segundo por si1npatia ...

Depois, é necessário estar-se pre.ca-1·ido contra as seduções de uma des­coberta. A ânsia de comprovar um caminho pessoal, exclusivo, le1·a a apropriações excessivas. O libertino. tal como o redescobriu Vailland, teve

HUMANAS»

a sua época de ·ouro. As manifestações dessa mentalidade são hoje mais de ati­tude ;,sicológlca do que de papel social, e a única coisa que resta agora é desmlstificâ-los por desactualizados e Inoperantes. (()u descobrir-lhes o «ma• rialvismo ao contrário» que há em mui­tos deles ... ).

Foi isso que fez Roger Vallland, dlr-me-á. E e\l respondo: nem sernpr.., Porque o .iogo privado, quase umbllical, a que ele se dedicou com os seus deuses llbertlnos ('basta ler La Fête) levou-Ó à estagnar.ão. Miul o criador da fera enamorou-se dela e acabou hipnoti­zado ...

«O hóspede de Job» como

recusa do regionalismo

- De «O hóspede de Job» pode dizer--nos em que medida continua a linlia da sua ficção anterior ?

- O hóspede de Job foi escrito há dez anos e retomado em quatro versões distintas. Temàticamente afasta-se bas­tante dos meus últimos livros e daque­les em que agora estou trabalhando mas, formalmente e pela conce;>ção de narrativa, aproxima-se tal vez de O AnJo Ancorado. Se me é permitido, direi que foi minha obcessão (e prazer) .trabalhar uma realidade por natureza dotada de expressão re;;-ionalista, despojando - a disso mesmo, recusando-lhe o colorido para, em contrapartida, a transfigurar à custa de uma linguagem e de uma simplicidade «erudita».

- A sua peta «O Render dos Heróis» surge a par da «Cartilha do llla,rialva» num to1n muito diferente, embo.Í-a com objectivos diversos da sua restante obra. Interessa-nos entreta11to saber se, com.o alguém apontou já., se poderá consi­derar uma certa influência brechtiana nesse seu livro.

- A influência f inegável. Brecht é dos dramaturgos contemporâneos qµe melhor conhec.o e que mais vezes vi representado. Mas suponho que a ·pre­senra de Gil Vicente não é de todo alheia à peça. Além disso, como nln­g-uém nasce de geração espontânea, nãl' sei aonde, de::>ois de Mestre Gil e do Judeu. se vã descobrir uma tra­dicão rle teatro moderno em Portugal...

JOSÊ NOGUEIRA GIL

J•;sé CJardoS.J Pires, autografando, em 25 do corrente, o seu último romance-«O hóspede de Job»-na Livraria 'l)ivulgação do Porto