Cardoso, ciro_flamarion_s.A_cidade-estado_antiga

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Cidadania, participação política, democracia: estas noções fundamentais, de grande atualidade, formaram-se no período de que trata este livro - o das cidades-Estados da Antigüidade clássica. Naquele mundo das cidades gregas independentes e da República romana, todos estariam de acordo com a idéia de Aristóteles quànto a ser o homem um animal cuja finalidade consiste em viver, como cidadão, uma vida associativa numa cidade-Estado e com a crença de que no Estado imperam as leis, não os homens. Tão belo ideal excluía, entretanto, as mulheres, os escravos e os estrangeiros domiciliados e não impediu longas e sangrentas lutas, em função das quais a natureza da cidade- -Estado antiga transformou-se mais de uma vez. Ciro Flamarion S. Cardoso, doutor em História, é professor dessa área na Universidade Federal Fluminense. Entre outros títulos, publicou O trabalhocompulsóriona Antigüidade, O Egito Antigo e, na Série Princípios,O trabalho na América latina colonial.

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Cidadania, participação política, democracia:estas noções fundamentais, de grandeatualidade, formaram-se no período de que trataeste livro - o das cidades-Estados daAntigüidade clássica.

Naquele mundo das cidades gregasindependentes e da República romana, todosestariam de acordo com a idéia de Aristótelesquànto a ser o homem um animal cuja finalidadeconsiste em viver, como cidadão, uma vidaassociativa numa cidade-Estado e com a crençade que no Estado imperam as leis, não oshomens. Tão belo ideal excluía, entretanto, asmulheres, os escravos e os estrangeirosdomiciliados e não impediu longas e sangrentaslutas, em função das quais a natureza da cidade--Estado antiga transformou-se mais de uma vez.

Ciro Flamarion S. Cardoso, doutor em História,é professor dessa área na Universidade FederalFluminense. Entre outros títulos, publicou Otrabalhocompulsóriona Antigüidade, O EgitoAntigo e, na SériePrincípios,O trabalho naAmérica latina colonial.

1A cidade-Estado naAntiguidade clássica

Rumo a uma definição

A cidade-Estado antiga é uma dessasnoções que, umavez assimiladas,são entendidas e aplicadas sem dificuldade,mas que são difíceis de definir em poucas palavras de ma-neira adequada e convincente.

No século passado, Fustel de Coulanges, em seu es-túdo "sobre o culto, o Direito, as instituições da Grécia ede Roma" a que deu o título de La cité antique, definia acidade-Estado dizendo que ela não era uma reunião de in-divíduos, e sim uma confederação de grupos preexistentes.Assim, um ateniense, por exemplo, pertencia sucessiva-mente - nelas ingressando através de certas cerimôniasreligiosas escalonadas ao longo de diversos anos - a umafamília extensa (genos), a uma fratria, a uma tribo e porfim à cidade-Estado; e um romano, analogamente, perten-cia a uma família extensa (gens), a uma cúria, a umatribo e à cidade-Estado. O que dava forma a cada umdesses grupos, bem como à confederação deles numa ci-dade-Estado, era, para esse Autor, o culto. Esta concep-ção gentilícia e religiosa acerca d~ origem da cidade-Es-

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tado já não é aceitável, por razões que serão apresentadasoportunamente. Em compensação, a diferença entre "ci-dade" (ville em francês) e "cidade-Estado" (dté emfrancês), vigorosamente traçada por Fustel de Coulanges,ainda é útil 1.

Em famoso livro editado pela primeira vez em 1893e que, como o de Fustel de Coulanges, conheceu nume-rosas reimpressões, eis aqui como W. Warde Fowler defi-niu a cidade-Estado:

.Atenas, Esparta,MI/eto,Slracusa,Roma,eram cidades,com uma quantidademaior ou menor de territóriodo qualtiravam seus meios de subsistência. Este território erasem dúvida um elemento essencial, mas não constltula ocoração e a vida do Estado. Era na cidade que o coraçãoe a vida se centravam,e o territórioera somente um apên-dice. O Estado atenlense compreendia todas as pessoaslivres que viviam em Atenas e também aquelas que viviamno territórioda Atlca; mas estas últimas tinham sua exis-tência politlca, não na qualidadede habitantes da Atlca, esim como atenlenses, como cidadãos da pólis de Atenas.Do mesmo modo, o Estado romano, mesmo quando esten-dera seu território à totalidade da Penlnsula Italiana, eraainda concebido como tendo seu coração e sua vida nacidade de Roma, com uma tenacidade que levou a multasproblemas e desastres, e por fim à destruição desta formapeculiar de Estado. 2.

Esta definição descritiva é clara e bastante adequada,salvo pelo fato de dar a entender que "todas as pessoaslivres" que viviam em Atenas e na Atica eram cidadãos

1 FUSTELDECoULANGES.La cité antique. 22. ed. Paris, Hachette,1912. p. 143-161. (Em português: A cidade antiga. Trad. de Fre-derico Ozanam Pessoa de Barros. São Paulo, Ed. Américas, 1966.2 v.)2 FOWLER,W. Warde. The city-State of the Greeks and Romans.9. reimpr. Londres, Macmillan, 1916. p. 8.

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atenienses, quando, na verdade, existiam os metecos (es-trangeiros residentes), livres mas não cidadãos.

A cidade-Estado clássica parece ter sido criada para-lelamente pelos gregos e pelos etruscos e/ou romanos. Nocaso destes últimos, a influência grega foi inegável, emboradifícil de avaliar ou medir. No entanto, apesar de traçoscomuns, o desenvolvimento da cidade-Estado grega e oda etrusco-romana, mesmo admitindo a grande heteroge-neidade de evoluções perceptível também na própria Grécia,mostram desde o início fortes especificidades que autori-zam a suposição, não de uma simples difusão, mas de umacriação paralela.

Características das cidades-Estados

Quais eram as características comuns a todas as cida-des-Estados clássicas? Talvez possamos distinguir as se-guintes como sendo as mais importantes: 1) do ponto devista formal, a tripartição do governo em uma ou maisassembléias, um ou mais conselhos, e certo número de ma-gistrados escolhidos - quase sempre anualmente - entreos homens elegíveis;2) a participação direta dos cidadãosno processo político: a noção de cidade-Estado implica aexistênciade decisõescoletivas,votadas depois de discussão(nos conselhos e/ou nas assembléias), que eram obriga-tórias para toda a comunidade, o que quer dizer que oscidadãos com plenos direitos eram soberanos; 3) a inexis-tência de uma separação absoluta entre órgãos de governoe de justiça, e o fato de que a religião e os sacerdóciosinte-gravam o aparelho de Estado.

Quanto ao primeiro ponto, uma vez admitida a tri-partição em assembléia(s), conselho(s) e magistraturas, épreciso admitir também uma enorme diversidade no rela-tivo aos nomes, ao número, à composição, aos poderes,aos métodos de escolha, ao funcionamento e às relações

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entre aquelas instâncias básicas. Isto tanto no espaço quantono tempo, isto é, ao considerarmos diferentes cidades-Es-tados na mesma época, ou uma mesma cidade-Estado emmomentos sucessivos de sua evolução constitucional. Al-gumas das opções divergentes serão analisadas nos capí-tulos seguintes.

A soberania dos cidadãos dotados de plenos direitosera imprescindível para a existência da cidade-Estado. Se-gundo os regimes políticos, a proporção desses cidadãosem relação à população total dos homens livres podiavariar muito, sendo bastante pequena nas aristocracias e '

oligarquias e maior nas democracias. Outrossim, o lugarestratégico em que tais cidadãos exerciam sua soberaniapodia variar igualmente: em Atenas era a assembléiapopu-lar (a Eclésia), em Roma um conselho (o Senado).

Mesmo nas democracias, contudo, eram excluídos dacidadania os escravos, os estrangeiros residentes e as mu-lheres. Tal fato leva a que certos autores duvidem daexistência das democracias antigas - ou seja, afirmemque não eram democracias -, ou mesmo da representati-vidade social dos regimespolíticos clássicosem geral. Istonão é aceitável: não apenas porque ao historiador cabeanalisar e explicar os processoshistóricos, e não emitir jul-gamentos morais, também porque, seja como for, aindanas condições da Antiguidade clássica, como indica M. I.Finley, " 'governo pela minoria' ou 'governo pela maioria'era uma escolha significativa" e

.a liberdade e os direitos que as facções reivindicavampara si eram dignos de luta, apesar do fato de que mesmo'a maioria' fosse uma minoria da populaçãotota/"3.

Notemos também que, embora o mundo grego e oromano conhecessema escrita e dela fizessemamplo uso,

3 FINLEY,M. I. Politics in the ancient world. Cambridge, Cam-bridge University Press, 1983. p. 9.

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o regime da cidade-Estado antiga, baseado na participaçãopessoal direta - e não principalmente na delegação depoderes -, no debate que precede a votação, implicava"uma extraordinária preeminência da palavra sobre todosos instrumentos de poder" 4. Vernant se refere à palavrafalada e a observação vale tanto para a Grécia quanto paraRoma.

Por fim, a cidade-Estado desconhecia o princípio daseparação dos poderes que informa as repúblicas modernase também as corporações fechadas (relativamente) que sãoos exércitos e muitas igrejas atuais. Embora houvesseórgãos que podemos chamar de "tribunais", certos casoseram julgados pelos conselhos ou assembléias. Os estrate-gos (strategoi) atenienses, eleitos anualmente mas reelegí-veis, eram líderes políticos e também generais, assim comoos cônsules romanos. Os sacerdotes eram o que nós cha-maríamos de magistrados ou funcionários do Estado, e osmagistrados de mais alta hierarquia de Roma, sem seremespecificamente sacerdotes, levavam a cabo sacrifícios etentavam adivinhar a vontade dos deuses (tomada dos aus-pícios).

A trajetória das cidades-Estados

Quando existiu, com tais características, a cidade-Es-tado clássica? Para que encontremostodas elas e em espe-cial a mais importante - a soberania efetiva dos cidadãos- é mister eliminar as monarquias, as tiranias e os perío-dos de domínio estrangeiro, mesmo sendo verdade que asmonarquias he1enísticase o império romano reconheceram

4 VERNANT,Jean-Pierre. Les origines de Ia pensée grecque. Paris,Presses Universitaires de France, 1962. p. 40. (Em português:Origens do pensamento grego. Trad. de Isis Lana Borges. SãoPaulo, Difel, 1972.)

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certo grau de autogoverno às cidades-Estados e municípiosexistentes em seus territórios, a nível estritamente local,diminuindo decisivamente, porém, sua liberdade de deci-são e sua real independência. O regime da cidade-Estadoem sua pureza (e em múltiplas variantes) existiu na Gréciasomente entre o VIII ou VII século a.C. e o final doséculo IV a.C., devendo descontar-se os períodos das tira-nias em cada cidade (mesmo se os tiranos costumavammanter as instituições da p6lis, sem tentar entretanto insti-tucionalizar sua própria função); e na Roma republicana.No caso dos etruscos, a cronologia é difícil de estabelecer- talvez nos séculos V e IV a.C.

Certas variáveis são essenciais quando se tenta com-parar a trajetória das cidades-Estados antigas: população(global e de cidadãos), extensão territorial, disponibili-dade de recursos (cereais, madeira, metais), grau de urba-nização, etc. Atenas era uma cidade-Estado muito grandeno contexto grego, tendo unificado toda a Ática. Em con-traste, a pequena ilha de Amorgos (uma das Cíclades)tinha sua superfície dividida entre três ínfimas p61eis. Namedida em que o podemos afirmar, tendo em vista umadocumentação muito deficiente, pareceria que, abaixo deum certn limitede extensão,populaçãoe recursos- que,porém, não é possível determinar em cifras precisas -, acidade-Estado não conseguia estabilidade político-social etinha dificuldade em manter sua independência. No pólooposto, mesmo sendo verdade que a conquista ou o domí-nio (direto ou indireto) sobre territórios estrangeirostraziagrandes vantagens às cidades-Estados maiores, capazes dese expandir pelas armas, a incorporação contínua de novas'terras e novos cidadãos acabaria tornando inviável o fun-

cionamento dessa forma política, na qual era muito im-portante a possibilidade de uma participação pessoal di-reta: foi o que aconteceu no caso da República romana,embora ninguémsaiba dizer com exatidão quando foi atin-

gido o limite superior (isto é, o ponto acima do qual Romadeixou de ser viável como cidade-Estado), nem defini-l oquantitativamente.

Houve sem dúvida cidades-Estados instáveis e efême-

raso Mas aquelas sobre as quais temos mais documentação_ Atenas, Esparta, Roma, até certo ponto Corinto -,mesmo atravessando conflitos sócio-políticos às vezes gra-ves e passando por numerosas transformações,conheceramséculosde existênciaestável, com forte sentimento de iden-tidade entre os cidadãos e com foros inequívocos de legi-timidade. Ora, este é um fato que exige explicação, jáque, mesmo nas cidades-Estados democráticas, como Ate-nas, por muito tempo os líderes políticos saíram das filasda aristocraciae, mais em geral, elas não eram de fato igua-litárias. Houve, portanto, fatores que garantiram a hege-monia dos grupos sociais dominantes, de tal modo que aprópria desigualdade social fosse considerada legítima -até certo ponto pelo menos - pelas grandes massas dapopulação, incluindo os não-cidadãos.

Neste ponto, é fácil tornar-se vítima de posições idea-listas e simplificadoras. Há autores que atribuem a estabi-lidade do regime a um "sentimento de identidade", um"modo de vida", uma "visão do mundo", quando é exata-mente isto que deve ser explicado. Christian Meier, porexemplo, afirma que

.a Identidadepolltlcadiminuiuas diferençasexistentesentre as situaçõessóclo-econômlcasdos atenlenses emproveitode sua Identidadecomo cidadãos.,

e mesmo que, ao participar ativamente da vida de suap6lis, nenhum cidadão procurava atingir através da polí-tica objetivos que não fossem políticos. Em outras pala-vras, a participação política seria, para os cidadãos pobres,um fim em si mesmo, devido à consideração, ao respeito,

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Mecanismos ideológicos

venerável que lhe era atribuída em forma histórica, ou,com maior freqüência, miticamente. :E:assim que, na peçaAs suplicantes, de Eurípedes (representada aproximada-mente em 420 a.C.), vemos o mítico herói fundador deAtenas, Teseu, declarar que em sua cidade não governavaum único homem; tratava-se de uma cidade livre, gover-nada pelo povo através de magistrados que se revezavamanualmente: em Atenas, ricos e pobres tinham os mesmosdireitos. Temos aí a proclamação da igualdade diante dasleis, ou isonomia, e da liberdade, esta última interpretadaem formas bem variadas, mas sempreafirmada. Ora, sendoo lendário Teseu um monarca, suas afirmaçõessoam estra-nhas em nossos ouvidos, mas aparentemente não nos dosespectadoresde Eurípedes quando da estréia da peça. Ana-logamente, no caso romano, Tito Lívio, escrevendo naépoca do imperador Augusto, dizia que, depois de realizaruma cerimônia religiosa, Rômulo - o mítico primeiro reie fundador de Roma - "convocou os seus súditos e deu--lhes leis, sem as quais a criação de um corpo políticounificado não teria sido possível"; logo adiante, atribuíaao mesmo rei a criação do Senado,órgão central da Repú-blica romana 7.

Estes mecanismos de legitimação,e outros que carre-gavam consigo a hegemoniados grupos dominantes, trans-mitiam-se em primeiro lugar pela educação formal e in-formal. Tal educação inculcava valores hierárquicos nosgregos e romanos de toda extração. Ainda os analfabetos,pela participação pessoal nas atividades do Estado - emnível maior nas cidades democráticas do que nas oligár-quicas -, "educavam-~e" politicamente, absorvendo aomesmo tempo muitos elementos legitimadores do regimepolítico e da divisão social.

à valorização enfim do status de cidadão pela opinião pú-blica! 5

Entre os mecanismos ideológicos que sustentavam alegitimidade do Estado, citemos em primeiro lugar a reli-gião. Cada cidade-Estado tinha suas divindades protetorase a blasfêmia contra elas era crime de morte, cuja puniçãoincumbia ao governo, exatamente como a de qualqueroutra ofensa civil ou criminal. Antes do início das delibe-rações da assembléia popular ateniense, determinados sa-cerdotes (peristiarcoi) imolavam porcos no altar, comcujo sangue traçavam um círculo sagrado à volta do povoreunido. Em Roma, antes de uma batalha ou de uma ati-vidade pública importante, eram consultados os auspíciose realizados sacrifícios. No entanto, apesar de a religiãoter um efeito legitimador sobre o regime como um todo,não servia para apoiar individualmente um dado magis-trado ou uma dada decisão coletiva. Acreditamos queFinley tem razão ao dizer que o governo da cidade-Estadoantiga, na prática, se não na aparência, havia-se seculari-zado 6.

Outro elemento ideológico básico era a crença, co-mum a gregos e romanos, independentemente dos regimespolíticos, de que na cidade-Estado governavam, não oshomens, mas as leis. A legitimidade da "lei consuetudiná-ria" - nómos (lei) ou patrios politeía (constituição an-cestral) para os gregos, mos maiorum (costumes dos ante-passados) para os romanos - decorria da antiguidade

5 MEIER,Christian. lntroduction à I'anthropologie politique de l'An-tiquité classique. Paris, Presses Universitaires de France, 1984.p. 52.6 FINLEY,M. I. op. cito p. 94.

7 Ver sobre este tema FINLEY,M. I. La constitución ancestral.In: - . Uso y abuso de Ia historia. Trad. de A. Pérez-Ramos.Barcelona, Crítica, 1977. p. 45-90.

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Por outro lado, por mais que isto desagrade aos idea-listas como C. Meier, os cidadãos mais pobres esperavam,e muitas vezes obtinham, vantagens tangíveis de sua par-ticipação na vida pública e da munificência dos líderesaristocráticos que ocupavamo proscênio mesmonas demo-cracias, ainda mais visivelmentenuma cidade como Roma.As cidades-Estados maiores, através de conquistas ou dodomínio indireto sobre outras cidades e regiões, puderamdistribuir benefícios concretos a seus cidadãos: os espar-ciatas, senhores de Esparta, não precisavam trabalhar ematividades produtivas; os atenienses da época de Péric1escontaram com colônias (clerúquias) para as quais desviaros camponeses sem terras e usaram os tributos pagos porseus "aliados" (de fato súditos), da Liga de Delos, emobras públicas na cidade, na remuneração de atividadespolíticas e navais de Atenas, na subvenção aos cidadãosmais pobres da cidade para que pudessem assistir às fun-ções teatrais (que eram também religiosas e cívicas); aexploração das províncias permitiu a Roma isentar a Itáliainteira do imposto, ainda sob a República, e mais tardeproceder a distribuições de trigo gratuitas aos cidadãosromanos (a 320000 deles no início da ditadura de César).Os aristocratas gregos e os membros da nobilitas romanada República usavam sua fortuna pessoal de modo a for-mar clientelas públicas e privadas. Na Grécia, os ricosfinanciavam - de forma ao mesmo tempo compulsória ehonorífica - a Marinha e os festivais públicos de caráterreligioso (através das liturgias), enquanto em Roma certosmagistrados (pretores, edis) deviam pagar com seu pró-prio dinheiro os festivais e espetáculos, bem como certasobras públicas. Eram estes mecanismos que serviam comfreqüência à legitimação e ao c1ientelismopolítico dasgrandes famílias que dominavamos cargos públicos. Outromecanismo- que em Atenas se quis destruir, quando daimplantação da democracia, com o sistema de circunscri-ções topográficas artificiais (demos) e com a tiragem à

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sorte de muitas funções públicas - era a solidariedadelocal baseada em empréstimos e outros favores que, sobre-tudo em zonas rurais, as famílias ricas faziam aos neces-sitados, obtendo assim muitas vezes o seu apoio político.

Para terminar este capítulo, convém recordar um

ponto que nos ocupará freqüentemente nos capítulos se-guintes. As cidades-Estados antigas só podem ser enten-didas no contexto global das respectivas sociedades. Omilitarismo especializado de tempo integral dos esparciatasera possibilitado e ao mesmo tempo explicado por seudomínio sobre numerosa população servil (os hilotas) naLacônia e na Messênia, sempre pronta à rebelião. Umavez abolida a servidão por dívidas - e por conseguinte apossibilidade de recrutar maciçamente os camponeses lo-cais como mão-de-obra dependente - em Atenas (592a.C.) e em Roma (talvez 323 a.C.),.o surgimento e aconsolidação da categoria tão típica do apogeu dessas ci-dades-Estados - os homens livres/pequenos proprietários//cidadãos/soldados - dependeu do estabelecimento e daexpansão do escravismo como principal relação de pro-dução.

2A Grécia antiga:

o mundo das "póleis"

A origem da cidade-Estado grega

A chegada à Grécia continental e às ilhas do Mar Egeude migrantes de língua indo-européia, ponto de partida dahistória helênica, parece ter ocorrido por volta de 2200--2100 a.C., havendo ainda discussõesacerca de ter havidouma única onda migratória ou várias. Os novoS povoa-dores sofreram o impacto aas culturas que encontraramna região- em especial da brilhante civilizaçãominoanaou cretense - e foi no contexto de tal contato culturalque se iniciou a civilizaçãogrega.

Durante a -segunda metade do 11 milênio a.C., naGrécia continental, na ilha de Creta e provavelmente nade Rodes, com influxos que atingiram as outras ilhas doEgeu, a costa da Síria e da Asia Menor e, para ocidente,a Sicília e o sul da Itália, desenvolveu-sea civilização doPeríodo Tardio do Bronze chamada micênica, caracteriza-da pela existênciade centros palacianos quase sempre for-tificados - Io1co na Tessália, Tebas e Gla na Beócia, aacrópole da futura Atenas na Atica, Tirinto e Micenasna Argólida, Pilos no sudoeste do Peloponeso, Cnossos em

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Creta - que, copiando talvez o sistema minoano, contro-lavam burocraticamente reinos que parecem ter sido maisextensoSdo que as futuras cidades-Estados. As pesquisasque se seguiram à decifração (começada em 1952) da es-crita silábicausada nos palácios (linear B) permitiram-nosvislumbrar uma organização administrativa que recorda ados impérios do Oriente Próximo - uma "civilização doescriba". Os palácios eram centros também de armazena-gem de produtos obtidos através de tributação e presta-ções de trabalho, os quais alimentavamum sistema de dis-tribuição de rações. Apesar de ser, no conjunto, um tipode sociedadeque pouco tinha em comum com a da Gréciaposterior das cidades-Estados, com grande dificuldade -pelas limitações da leitura dos caracteres e pelas própriascaracterísticas das fontes - podemos entrever alguns doselementos que futuramente, depois de grandes modifica-ções, tomariam parte na formação da pólis grega: entre orei (wánax) e o supremo chefe militar (lawagetas), porum lado, e por outro o "povo" (damos) - não sendo estede fato unificado, mas dividido em damoi, que poderiamser comunidades aldeãs, se for correta a interpretação decerto tipo de terras (ktonai kekemenai) como terras co-munais -, adivinhamos diversas categorias de guerreiros,sacerdotese proprietários de terras (basilewes,lawoi, teles-tai, equetai, ete.) que podem ter-se fundido numa aristo-cracia, uma vez eliminada a monarquia dos palácios micê-nicos.

Entre 1200 e 1100 a.C. todos os centros palacianosforam destruídos, numa época de intensa movimentaçãodepovos, que também viu o fim do reino hitita e as tentati-vas de invasão do Delta do Nilo pelos "povos do mar".No caso grego, uma tradição preservada por Tucídides (I,11) fala da "volta dos Heráclidas", ou seja, dos descen-dentes de Hérac1esou Hércules, episódio identificado tra-

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dicionalmentecom a chegada de grupos tribais que falavamum dialeto grego, o dório. Esta identificação tem sido con-testada, porque de fato pareceria que o quadro dialetalgrego atestado na :t;;pocaArcaica e na :t;;pocaQássica -jônio (Atica, Eubéia, maior parte das Cíclades, Jônia),dório (Argólida, Lacônia, Messênia,Creta, Rodes, algumasCíclades meridionais, Dórida) , e6lio (Tessália, Beócia,Eólida) , arcado-cipriota (Arcádia, Chipre: quase segura-mente um remanescentedo grego micênico) - formou-senum processo lento, posterior a 1200-1100 a.C.

Seja como for, inaugurara-se um período de grandestransformações difíceis de seguir, pois desaparecera a es-crita (que só reapareceria, em forma alfabética derivadada fenícia, entre 800 e 750 a.C.): dependemosunicamenteda arqueologia. Esta nos mostra alguns elementos de con-tinuidade - a cerâmica chamada proto-geométrica (1100--900 a.C.) era uma evolução da cerâmica micênica, comalguma influência do geometrismo do norte da Síria -,mas também mudanças nos assentamentos populacionais.Algumas das localidades que haviam sido sedes palacianasforam abandonadas para sempre (Pilos, Gla), outras (Ate-nas, Tebas) continuaram sendo habitadas, mas sobre novasbases de organização, enquanto regiões antes aparente-mente pouco povoadas receberam muitos imigrantes. Istomostra que houve um período, após o impacto de 1200--1100 a.C., de movimentações e reacomodações de pes-soas; período durante o qual, entre 1000 e 900 a.C., comotambém confirma a arqueologia, fundaram-se numerososassentamentos gregos na costa da Asia Menor (regiões daEólida, Jônia e Dórida). A distribuição dos centros depoder se regionalizou, preparando a pulverização políticatípica da Grécia das pó/eis. O comércio, as comunicaçõese a arte regrediram por alguns séculos. Em compensação,difundiu-se o uso do ferro.

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Tempos homérlcos

Os poemas atribuídos a Homero - a Ilíada, fixadaoralmente por volta de 750 a.C., e a Odisséia, cuja fixaçãooral talvez se tenha dado meio século depois - e ospoemas de Hesíodo (quiçá também de 700 a.C. aproxi-madamente) mostram um mundo bem diferente do que éiluminado pelos documentos escritos em linear B no mi-lênio anterior; um mundo no qual já se estava dando osurgimento da cidade-Estado grega ou pólis.

Nessa Grécia dos tempos hO,méricose do início da:t;;pocaArcaica, já existiam aglomerações aparentementeurbanas onde, num descampado (agorá) reunia-se a popu-lação .para escutar, sem direito a intervir, os debates dosaristocratas, chamados de "reis" (no meio dos quais o reipropriamente dito era simplesmente um primeiro entreiguais - primus inter pares). Em outras passagens, tem--se a impressão de que o Conselho aristocrático que acon-selhava o rei se reunia primeiro, dando a conhecer depoissuas deliberações ao resto da população. No entanto, osdebates não conduziam, ao que tudo indica, a qualquerdecisão por voto, e a noção da pólis como uma comuni-dade de cidadãos não surgira ainda. As oposições cida-dão/estrangeiro e livre/escravo, tão típicas posteriormentedas pó/eis gregas, só existiam embrionariamente, sem cla-reza.

O centro da organização social era a família aristo-crática que se julgava descender de um herói ou de umdeus - o genos -, certamente uma família patriarcal ex-tensa em que vários casais podiam conviver sob a autori-dade de um único chefe; mas não um "clã", como erausualmente definida, sob a influência de Morgan e Engels,até as primeirasdécadas deste século.Acreditava-se, então,que o genos fosse um clã possuidor de terras 'em comume que de sua diferenciação interna surgira a polarizaçãoem aristocracia e povo; mas tal interpretação carece de

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base. O genos era invariavelmente só aristocrático e nãohá sinais de propriedade coletiva nos poemas homéricos enos de Hesíodo. Telêmaco, filho de Odisseu ou Ulisses,não contou com qualquer ajuda "clânica" contra os pre-tendentes à mão de sua mãe que dilapidavam sua herançae os casos de vingança aparecem, nos poemas, ligados àiniciativa de amigos e parentes próximos por sangue oualiança - pais, filhos, sogros, genros -, não se tratandode "vingança coletiva do clã". E em Hesíodo vemos umadisputa em torno da divisão da herança paterna entre ir-mãos, não qualquer divisãode terra "comunitária". Assim,se estiver correta a interpretação das ktonai kekemenaicomo terras comunitárias, havia muito já o tinham dei-xado de ser.

Cada genos era o núcleo em tomo do qual se orga-nizava uma "casa" real ou nobre, o oikos, que reunia pes-soas - além da família, diversas categorias de agr.egadoslivres e de escravos - e bens variados (terras, rebanhos,o "palácio" - de fato bem modesto -, um "tesouro"constituído por reservas de vinho e alimentos, objetos demetal, tecidos preciosos, etc.), todos e tudo obedecendoao chefe do genos em questãq. Fora do oikos, achamos:uma categoria de "trabalhadores da coletividade" (demiur-gos), gozando de certo r-estígio social - artesãos es-pecializados, profetas, médicos, arautos, poetas cantores(aedos), etc. -, que iam de uma "casa" nobre a outrana medida em que fossem solicitados seus serviços; cam-poneses sem terras (tetes), que alugavam quando podiamsua força de trabalho e eram muito malvistos; e - sabe-mo-Io por Hesíodo - pequenos proprietários de terras.

A pólis aristocrática

A constituição da pólis aristocrática plenamente carac-terizada deu-se com o desaparecimento da monarquia, subs-

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tituída por magistrados eleitos pela nobreza de sangue entreseus próprios membros, persistindo o Conselho, antes órgãoconsultivo do rei, agora com freqüência o centro da vidapolítica. Esta evolução, que parece ter ocorrido entre asegunda metade do século VIII a.C. e o início do séculoseguinte, significou, por um lado, uma subordinação dogenos e do oikos à comunidade (seguida do enfraqueci-mento destas formas tradicionais de organização pré-urba-na), e por outro lado há indícios de que, de algum modo,os aristocratas se apoderaram das terras melhores e maisextensas. O surgimento da pólis também esteve vinculadoa um vigoroso aumento da população, que a arqueologiacomprova a partir de aproximadamente 800 a.C. f: pos-sível que a população da Atica, por exemplo, haja quadru-plicado entre 800 e 750 a.C., e quase duplicado entre 750e 700 a.C., se estiverem corretos os cálculos tentados. Esteacréscimo demográfico, juntamente com uma retomada doprogresso tecnológico, artesanal e comercial, foi fator derápida urbanização.

Os gregos de épocas posteriores conservavam a lem-brança de que, em certos casos, o aparecimento das póleisligara-se, no passado, a um movimento de concentraçãopopulacional e fusão política: chamavam simpolitia a uniãode várias coletividades para formar outra maior e sine-cismo o mesmo fenômeno quando, paralelamente, dava-seo transplante de boa parte dos habitantes à aglomeraçãomais importante ou a uma cidade especialmente fundadapara tal. Isto é confirmado por movimentos semelhantesocorridos na f:poca Clássica, por exemplo ao formarem--se as póleis de f:lis e de Mantinéia, no Peloponeso, noséculo V a.C.

Do ponto de vista topográfico, uma pólis, no seunúcleo urbano, dividia-se com freqüência em duas partes,que podiam ter surgido primeiro independentemente: aacrópole, colina fortificada e centro religioso, e a ásty oucidade baixa, cujo ponto focal era o lugar de reunião (pos-

teriormente também um mercado com lojas), a ágora. Umterceiro elemento muitas vezes presente era o porto, maseste podia também formar uma aglomeração separada, em- -bora próxima (é o caso do Pireu, principal porto de Ate-nas) . Por fim, o território rural semeado de aldeias(khóra) completava o quadro da cidade-Estado. Estavisão topográfica é mais nossa do que dos gregos, paraos quais uma cidade-Estado era formada pela comunidadede seus cidadãos: daí que mencionassem, falando de pó-leis, "os atenienses", "os lacedemônios", "os coríntios", enão Atenas, Esparta ou Corinto.

Note-se que as cidades-Estados não se formaram emtoda a Grécia antiga. Ao surgirem e se desenvolverememcertas regiões mas não em outras, acentuou-se um desen-volvimento desigual que provavelmente tinha raízes bemmais antigas. M. Austin e P. Vidal-Naquet propuseramduas interessantes tipologias dos Estados gregos, clara-mente perceptíveis talvez só do século VI a.C. ~m diante.Em primeiro lugar, distinguiram o ethnos e a pólis, istoé, o Estado sem centro urbano e o que tinha uma cidadecomo núcleo. Atenas, Corinto, Mileto, são exemplos depóleis; Tessália, Macedônia,Arcádia e'outras regiões ruraisatrasadas foram por muito tempo ethné. Em segundolugar,separaram os Estados "modernos" - releve-se a lingua-gem pouco adequada - dos Estados "arcaicos", querendosignificar por um lado aqueles Estados que passaram peloconjunto .das transformações ocorridas na Grécia arcaicae clássica e, por outro lado os que conheceram evoluçãomais limitada e preservaram longamente estruturas aristo-cráticas atrasadas. Os Estados "modernos" eram semprepóleis (Atenas, Mileto); os "arcaicos" podiam ser póleis(Esparta, as cidades-Estados cretenses) ou ethné (Tessá-lia, Lócrida)l.

1 AUSTIN,Michel & VIDAL-NAQUET,Pierre. Economies et sociétésen Grece ancienne. Paris, Armand Colin, 1972. p. 92-6. (ColeçãoU 2).

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As grandes linhas de evolução dascidades-Estados

Quando as cidades-Estados gregas começam a sermais bem iluminadas pelas fontes escritas, nós as achamos,na Bpbca Arcaica (séculos VIII-VI a.C.), em plena crisesocial e política (stásis), entregues à luta entre facções.A raiz primeira desta crise parece ser o resultado da com-binação do aumento demográfico (contínuo durante todaessa fase da história grega) com a circunstância de esta-rem, como se disse anteriormente, muitas das melhoresterras monopolizadas pela aristocracia de sangue, que dis-punha de todo o poder político e judiciário. Em contraste,os lotes dos camponeses pobres, devido a contínuas parti-lhas sucessórias,podiam chegar a tamanhos ínfimos. Maso detalhe nos escapa: o único exemplorelativamentemenosobscuro é o de Atenas, que será examinado no próximocapítulo. Em todo caso, algumas das características quepodemos entrever na Atica parecem bastante gerais. Umadelas é o empréstimo in natura (sobretudo de cereais) queos proprietários mais ricos faziam aos camponeses pobres,do qual podia resultar a perda da terra pelos últimos, con-tinuando o ex-dono a trabalhar a parcela, agora comoarrendatário; e mesmo uma forma de escravidão ou servi-dão por dívidas, já que o pagamento destas era garantidopela pessoa do devedor e de seus familiares.

Partindo da luta entre proprietários e despossuídos,credores e devedores, a evolução da pólis dependeu tam-bém de outros fatores, entre os quais os que apontam paraa urbanização, a divisão do trabalho, a importância cres-cente da economia mercantil. A arqueologia permite com-provar um artesanato cuja qualidade estava aumentando,a exportação de cerâmica grega nos séculos VII e VI a.C.,a importação de artigos de luxo orientais, o surgimento détemplos imponentes e outros monumentos, mais tardia-mente o início da economia monetária (cuja expansão

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entre as cidades-Estados gregas foi sobretudo um fato doséculo VI a.C.) e de um sistema técnico especificamentehelênico a partir do século VI a.C. Uma interpretaçãoanacrônica e exagerada de alguns desses fatores, típica defins do século XIX e inícios do século atual, baseada numaênfase excessiva nos aspectos mercantis e no papel dos ar-tesãos e comerciantes, levou a uma forte reação em sentidocontrário nestas últimas décadas. Ressaltou-se o carátermaciçamente agrário da sociedade grega e o fato de nãoterem sofrido os coríntios qualquer catástrofe perceptívelquando AteJ?as superou Corinto na exportação de cerâ-mica. Mostrou-se que a moeda, inventada no reino daLídia ainda no século VII a.C., dali passou às cidadesgregas em processo que se escalona ao longo de muitasdécadas, mas que a arqueologia prova ser mais tardio doque os textos escritos disponíveis poderiam fazer supor; eque o seu surgimento pôde dever-se a fatores extra-econô-micos, pelo menos de início: vontade de afirmar uma éticada eqüidade nas relações sociais, de proclamar a soberaniadas póleis - sendo a cunhagem de moedas um símbolode independência -, de facilitar o pagamento de impostose multas exigidos pelas cidades-Estados, mais tarde de fi-nanciar tropas mercenárias, etc.

];: possível, porém, que se tenha ido longe demais naminimização do comércio e dos fatores econômicos não--agrários. Afinal, a não ser que uma riqueza estranha aospadrões tradicionais dos nobres possuidores de terras ex-tensas tenha feito sua aparição, seria difícil explicar a in-dignação de Teógnis de Mégara por não desdenhar o aris-tocrata casar-se com a filha de. um homem rico de nasci-mento inferior e por dominarem os comerciantes (TEÓG-NIS, 185 et seqs., 349), ou a de Alceu de Mitilene dianteda riqueza que faz o homem (fragmento 49), ou ainda aafirmação de Simônides de Ceos (citado por Aristóteles)acerca de ser o "bom nascimento" mera riqueza herdada,para não mencionar a asseveração mais antiga do beócio

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lIesíodo de que a virtude e a glória seguem a riqueza (Ostrabalhos e os dias, 313).

A colonização grega

Ao mesmo tempo conseqüência da crise agrária, paraa qual constituía uma saída, e fator de um progresso eco-nômico diversificado, a colonização grega foi um dos acon-tecimentos essenciais dos séculos arcaicos, embora comímpeto menor e algumas modificações se estendessem igual-mente aos séculos clássicos (V e IV a.C.). Sem dúvida,foi a busca de terras cultiváveis que, em primeiro lugar,levou expedições fundadoras gregas ao Mediterrâneo Oci-dental, ao norte da África, ao norte do Egeu, à Propôn-tide (atual Mar de Mármara) e ao Ponto Euxino (atualMar Negro), num extraordinário movimento de multipli-cação das póleis helênicas - cujo número chegaria a apro-ximadamente 1 500. a 2000. O próprio fato de que co-munidades gregas tenham passado a existir em todo ocontorno do Mediterrâneo e de seus anexos, porém, inten-sificou muito a navegação e o comércio. Com o tempo,também surgiram fundações de indubitável finalidade co-mercial: Emporion na Espanha, Náucratis no Egito; defato, AI-Mina, sem dúvida um "empório" ou núcleo mer-cantil no norte da Síria, surgira bem antes, no séculoIX a.C.

A colônia grega típica, ou apoikía, era uma cidade--Estado independente, fundada por uma metrópole que en-viava um guia ou fundador (oikistés) e financiava a expe-dição; esta, no entanto, podia contar com contingentes devárias póleis. Na maioria das vezes, buscava-se uma pla-nície litorânea fértil, cujas terras eram divididas igualita-riamente entre os primeiros colonos, sendo que se conhe-cem redivisões provocadas pela chegada de novas ondas

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de migrantes e que a situação primeira de igualdade nãofoi durável.

A intervenção das autoridades metropolitanas eraclara: não se tratava de migrações espontâneas organiza-das em caráter privado. Platão (Leis, 735e-736a) via noshomens desprovidos de recursos um perigo, já que ambi-cionavam os bens dos ricos, e na colonização uma expul-são benigna, para que a pólis deles se desembaraçasse.Uma tradição conservada por Heródoto (IV, 153) acercada fundação de Cirene mostra que, pelo menos em certoscasos, o governo da cidade-Estado designava por sorteioas pessoas que deveriam partir; uma inscrição do séculoIV a.C. confirma a autenticidade da afirmação e adicionaoutras informações: a penalidade para quem se negasse apartir quando designado era a morte, acompanhada deconfisco dos bens; além dos escolhidos pela sorte, eramaceitos voluntários.

Tudo isto acentua os aspectos agrários da crise, e dacolonização como uma de suas soluções. Mesmo assim, ébem possível que, ainda na criação de colônias fundamen-talmente agrárias, não estivessem ausentes outras motiva-ções, como o aprovisionamento em metais (de que aGrécia é, no conjunto, bem pobre). Não se deve esquecerde que, no século V a.C. - mais documentado -, certasrazões econômicas da colonização são claramente mencio-nadas pelas fontes: busca de terras nas quais estabelecercidadãos pobres, sem dúvida; mas também controle deportos comerciais e minas de ouro na Trácia (TucfDIDES,I, 100, referindo-se à colônia de Anfípolis, fundada pelosatenienses e seus aliados através do envio de 10 000 colo-nos), cortes de madeira para construção naval na mesmaregião (TucÍDIDES,V, 108). Outrossim, uma das razõesinvocadas pelos enviados de Corcira (atual Corfu) paraconvencer os atenienses a que prestassem ajuda à suacidade _ colônia insular de Corinto em conflito com suametrópole _ foi a posição estratégica da mesma em rela-

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ção à rota de navegação da Grécia continental à MagnaGrécia (sul da Itália) e à Sicília (TUCÍDIDES,I, 36). Nãohá razões para supor que considerações como estas não sefizessem sentir já anteriormente, por mais que alguns dosfatores econômicos que pesaram muito no século V a.C._ por exemplo a busca de fontes de abastecimento decereais e do controle das respectivas rotas - somente nofinal da ];:pocaArcaica de fato começassem a ter algumaincidência.

Na longa e variada história da colonização gregaaconteceram quase todas as possibilidadesimagináveis. Osgregos às vezes se estabeleceram através de acordo amigá-vel com os indígenas, outras vezes explorando-os comoservos. Houve colônias que por sua vez fundaram colô-nias. Grupos de colonos enviados por uma cidade inicia-vam um estabelecimento e posteriormente eram expul.sospor recém-chegados: Zancle, na Sicília, depois chamadaMessina, foi fundada por colonos provenientes da ilha Eu-béia, os quais foram substituídos por migrantes da ilha deSamos e da Jônia que fugiam dos persas, expulsos por suavez pelo tirano da cidade de Rhegion, que ali instaloupessoas de variadas procedências (TUCÍDIDES, VI, 4) .Diodoro da Sicília (V, 9) fala-nos de homens de Cnido ede Rodes que, impedidos de se estabelecerem na Sicíliapelos fenícios, misturaram-se à população indígena dasilhas Lípari (por volta de 580 a.C.), cujo sistema comu-nitário de propriedade da terra adotaram por muito tempo.

Repercussões políticas

Que repercussões políticas tiveram, em seu conjunto,os fatores já mencionados: crise agrária, colonização, ur-banização, progressos tecnológicos,expansão do artesanatoe da economia mercantil?

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Aparentemente, como ocorreria alguns séculos. depoisem Roma, a diferenciação social resultante de tais fatoreslevou também a uma diferenciação das reivindicações. Aospobres interessava a abolição das dívidas - e sua conse-qüência, o fim da escravidão ou servidão por dívidas -e a partilha das terras. Às pessoas enriquecidas mas quenão pertenciam à aristocracia tradicional, importava sobre-tudo obter a fixação das leis por escrito e certos direitospolíticos. '

O monopólio das magistraturas e da justiça pelosnobres de sangue já era visto por Hesíodo como fonte deinjustiça, quando mencionava os "homens comedores depresentes" (Os trabalhos e os dias, 220-221) - ou seja,magistrados corruptos, subornáveis. Foi nas colônias oci-dentais, segundo parece, que surgiram os primeiros legis-ladores _ Zaleucos de Locres (663-662 a.C.), Carondasde Catânia; em seguida foram nomeados legisladores tam-bém na Grécia continental (Filolau de Corinto em Tebas,Drácon em Atenas) e nas cidades gregas da costa da ÁsiaMenor. Nesta última região eram chamados aisymnetai,

título que significa terem por função regular equitativa-mente os direitos: o que mostra bem que os legisladoresnão se limitaram a fixar por escrito o direito aristocráticoe consuetudinário, mas agiram também como reformadores

políticos e sociais, chamados que foram como mediadoresdas facções em conflito. Nomeados vitaliciamente ou portempo limitado, gozaram de poderes extensos de tipo le-gislativo e executivo.

Uma das razões que explicam a possibilidade de in-fluírem os não aristocratas detentores de alguns recursosna transformação parcial do regime político foi a cha-mada "revolução hoplítica". Por volta de 700 a.C. oupouco depois, o antigo modo de combate, que se limitavano essencial a duelos entre nobres que iam ao campo debatalha a cavalo mas combatiam a pé, cedeu o lugar ainfantes armados de uma couraça metálica, de um escudo

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leve no braço esquerdo e de uma lança, não mais armade arremesso, mas com a qual, segura na mão direita, seavançava diretamente ao encontro do inimigo num movi-mento coletivo e ritmado que exigia muito treinamentoconjunto. Esta infantaria pesada dos hoplitas apareceuem função da reunião de uma série de transformaçõestécnicas que foram surgindo aos poucos e finalmente con-fluíram num sistema coerente. A mudança no modo defazer a guerra implicava uma mudança social: o combatesingular era próprio de uma reduzida aristocracia militarque monopolizava, ou quase, o uso das armas; a falangehoplítica exigia um grande número de combatentes bemtreinados. Para adquirir o armamento de um hoplita erapreciso ser pelo menos um camponês médio, com algumarenda. ~sto levou, mesmo assim, a uma partilha, aindaque limitada, do poder político: a assembléia popular, quereunia o povo (demos) ou, pelo menos, o seu setor capazde armar-se, começou a sair do silêncio que no passadolhe havia sido imposto nas assembléias cantadas por Ho-mero, nas quais só aos aristocratas fora permitida a pa-lavra.

Na medida em que os problemas fundamentais dasmassas populares não eram cabalmente solucionados pelastransformações políticas já mencionadas, abria-se a possi-bilidade do surgimento de um regime político peculiar: atirania. A partir de meados do século VII a.C., e pormais de cem anos, diversos líderes populares, quase semprede origem nobre, considerados usurpadores por uma tra-dição aristocrática antiga que os autores atuais curiosa-mente repetem, tomaram o poder pela força ou ardilosa-mente. Em Corinto foram tiranos Cípselo e seu filho Pe-riandro (655-585 a.C.); em Mégara, Teágenes chegou aopoder em 640 a.C. e uns dez anos depois apoiou, em Ate-nas, o golpe abortado de seu genro Cílon; Sícion, no nortedo Peloponeso, foi governada por Ortágoras e Clístenesdurante um século, até aproximadamente 550 a.C.; na costa

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da Ásia Menor e nas ilhas vizinhas houve também nume-rosos tiranos, sendo os mais famosos Trasíbulo de Mileto(fim d,oséculoVII a.C.) e Polícrates de Samos (derrubadopelos persas por volta de 520 a.C.). De fato, das cidadesmais importantes, só Esparta e Egina não conheceram atirania.

Que um regime tão generalizado, por mais de umséculo uma das formas de governo principais da Grécia,seja considerado por historiadoresde hoje como uma "irre-gularidade constitucional" ou simplesmentecomo um "re-gime de transição", é prova de uma aceitação acrítica domau humor de escritores aristocráticos ou oligárquicosdopassado, bem como da lembrança deformada da tiraniapelo povo em épocas posteriores, causada pelos aspectosde rigor e impopularidade que ostentou em seus últimostempos na fase arcaica (pois houve depois, sobretudo emáreas periféricas do mundo grego, novas tiranias, sendo amais famosa a de Dionísio, o Antigo de Siracusa, 405-367a.C.).

Os tiranos chegaram ao poder de diferentesmaneiras:reis que almejavam livrar-se da tutela dos aristocratas;magistrados eleitos que pela força se mantiveram no cargoao expirar o seu mandato; por fim, líderes militares degrande popularidade que deram bem-sucedidos golpes deestado (ARISTÓTELES,política, V, 1310b). Três caracte-rísticas do regime aparecem com clareza: 1) o governo dotirano era de tipo pessoal e considerado ilegal pelos aris-tocratas, embora ele mantivesseo aparelho tradicional dosórgãos de sua pólis (de certo modo, a tirania se exerciaparalelamente a tais órgãos); 2) sua legitimidade e suabase social vinham do fato de proteger os populares contraa classe dominante (ou seja, governaram a maior parte dotempo apoiados pela maioria da população, o que tornaum tanto estranho considerar ilegal o governo dos tiranos,exatamente como faziam os nobres por razões óbvias: foraa sua legalidade que os tiranos romperam); 3) em quase

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todos os casos, o tirano era um nobre, ou pelo menos par-cialmente descendente de nobres (esta última possibilidade- o tirano resultante de casamento misto - sendo ilus-

trada por Cípselo de Corinto e Pítaco de Lesbos).Quis-se explicar a ascensão da tirania pela "revolução

hoplítica". A verdade, entretanto, é que, mesmo quandohaviam sido líderes militares, uma vez no poder os tira-nos faziam uso de mercenários, não da milícia de cidadãos.Ao apoiar-se politicamente nas massas populares, em favordas quais tomava diversas medidas - que normalmentenão incluíam, porém, qualquer redistribuição radical dasterras -, a tirania promoveu a configuração do demoscomo força política mais estruturada do que o fora atéentão: ela significou, assim, a destruição, não dos aristo-cratas, m"aSda sociedade e do regime aristocráticos maisou menos exclusivos. Por isso mesmo, a tirania arcaicafoi seguida pela democracia ou por regimes oligárquicosbem menos estreitos do que os do passado 2.

Evoluções divergentes

Terminada a era dos tiranos arcaicos, ao iniciar-se operíodo clássico (séculos V e IV a.C.), percebemos nomundo grego evoluções divergentes,seja em direção à de-mocracia, seja para regimes oligárquicos. Estas evoluçõesdependeram tanto do resultado das lutas sociais e políticasinternas quanto da intervenção das cidades-Estados maio-res, umas nas outras e no regime das menores. Espartaaparecia como campeã dos regimes oligárquicos e inimigadas tiranias e democracias: interveio para derrubar diver-sos tiranos, inclusive os Pisistrátidas de Atenas, e a favordo estabelecimento ou restauração de oligarquias, em es-

2 Ver MossÉ, Claude. La tyrannie dans Ia Grece antique. Paris,Presses Universitaires de France, 1969. p. 203-5.

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pecial - mas não somente - no Peloponeso (TUCÍDIDES,I, 19; VI, 59). Atenas era a defensora dos regimes demo-cráticos, que instalava nas cidades-Estados que eram suasaliadas, transformadas em súditas, e em suas colônias (cle-rúquias) . Durante as lutas pelo poder, os aristocratas eoligarcas tendiam a apelar para Esparta (TUCÍDIDES,I,107; 111, 65, etc.; XENOFONTE,Helênicas, IV, 8, 20), osdemocratas para Atenas (TucfDIDES,I, 115; 111,47; VIII,21, etc.). Quanto a Tebas, se no século V a.C. apoiavaos oligarcas (TUCÍDIDES,11, 2; VI, 95), com a mudançado seu próprio regime no século seguinte passou a intervira favor dos democratas (XENOFONTE,Helênicas, VII, 1,41 a 46). Analogamente, quando da opção por aliançasexternas, as cidades democráticas tendiam a aliar-se às demesmo regime e as oligárquicas a outras oligarquias (Tu-CÍDIDES,V, 31, 44).

Tomemos três exemplos de evoluções divergentes nofinal do século V a.C.: Corcira, Mégara e MeIo (Milo).

Em conflito aberto com Corinto, sua metrópole, desde435 a.C., Corcira apelou alguns anos depois para Atenas.Um dos chefes do partido democrático, Peithias, conseguiu,nos tribunais, condenar cinco dos mais ricos cidadãos dailha a uma forte multa, alegando terem cometido um crimereligioso. Os acusados, informados de que Peithias iriaapresentar ao Conselho de Corcira, de que era membro,um projeto de aliança defensiva e ofensiva com os atenien-ses, organizaram um ataque armado ao mencionado. Con-selho, matando o líder democrata e outras sessenta pes-soas. Conseguiram deste modo impedir a aliança. A che-gaGa de Um barco de Corinto e de enviados lacedemôniosencorajou os oligarcas a atacarem os democratas, vencen-do-os momentaneamente. À noite, porém, o povo tomoua acrópole e lá se fortificou, ocupando igualmente um dosportos; os oligarcas, por sua vez, ocuparam a ágora, onderesidiam e tinham suas lojas - tratava-se de uma oligar.

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quia sobretudo de comerciantes -, e o outro porto.Ambas as facções tentaram obter o apoio dos escravos,prometendo-Ihes a liberdade: estes, na sua maioria, opta-ram pelos democratas, enquanto os oligarcas recrutaramoitocentos mercenários ilírios no continente. No combateque se seguiu, do qual também participaram as mulheres,os populares foram vitoriosos. Os oligarcas incendiarama ágora - e portanto seus próprios bens _ para barraraos inimigoso acesso ao arsenal naval e seus armamentos.O barco coríntio e os mercenários se retiraram furtiva-mente. Chegaram reforços enviados por Atenas e mais dequatrocentos oligarcas se refugiaram num templo. A si-tuação mudou com a chegada de numerosos barcos peJo-ponésios, que combateram e derrotaram os navios de Cor-cira (que não contaram com ajuda dos atenienses). Osdemocratas decidiram entrar em acordo com os oligarcas.Mas os peloponésios se retiraram, enquanto as tropas tra-zidas pelos barcos de Atenas foram introduzidas na cidade.Seguiu-se um terrível massacre de oligarcas, mesmo nostemplos, o qual durou sete dias. Os devedores aproveita-ram para desembaraçar-se de seus credores, matando-os(427 a.C.). Os sobreviventesdentre os oligarcas, instala-dos numa montanha da ilha, dedicaram-se a uma guerrade guerrilhas. Aceitaram, posteriormente, parlamentarcom os atenienses, que lhes deram garantias e aos quaisse renderam; mas foram entregues traiçoeiramente aos de-mocratas de Corcira. Muitos foram massacrados e outrosse suicidaram, enquanto suas mulheres foram escraviza-das. A facção oligárquica foi, portanto, literalmente ani-quilada, em 425 a.C. (TuCÍDIDEs,111,70 a 81; IV, 46a 48).

Diferente foi o resultado da disputa entre democratase oligarcas em Mégara, mais ou menos na mesma época.Os democratas foram a princípio vitoriosos, e os oligarcas,em parte expulsos, pilhavam o território da cidade, que

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já sofria com os ataques de Atenas - já que Mégaraeraaliada de Esparta durante a Guerra do Peloponeso. Ospartidários da oligarquia que permaneceram na cidade de-fendiam a volta dos banidos. Os democratas entraramentão em conversações com os atenienses, pois estavamdecididos a entregar Mégara a Atenas para evitar a voltados exilados e do regime oligárquico. Os atenienses com-binaram com eles um plano de ação militar, mas, se bemque tal plano tivesse sucesso inicial, os lacedemônios ebeócios intervieram e acabaram vitoriosos. Apesar de pro-messas de clemênciae de composiçãopolítica, os oligarcas,uma vez investidosde magistraturasdo Estado em Mégara,conseguiram condenar à morte uma centena de democra-tas. Implantaram então "um regime francamente oligár-quico" (TUcÍDIDES,IV, 66 a 74).

A ilha de MeIo recusara-se a entrar para a Liga deDelos controlada por Atenas. Em 416 a.C., os ateniensesorganizaram contra ela uma expedição militar, com ajudade Quio e Lesbos. Acampadas as tropas na ilha, emissá-rios atenienses se dirigiram à cidade de MeIo, governadapor uma oligarquia. Os governantes não permitiram quefalassem à assembléia popular, forçando-os a discutir so-mente com os magistrados e o Conselho de notáveis dacidade _ coisa que foi ironizada pelos emissários: estesobservaram que os oligarcas temiam a discussão aberta, aqual poderia induzir "a massa dos cidadãos" a se deixarconvencer pelos argumentos dos atenienses. Não houveacordo. Depois de um ano de cerco, MeIo caiu em poderdos seus inimigos. Os homens adultos foram massacrados,as mulheres e crianças escravizadas e as terras da ilha re-partidas a quinhentos colonos (clerucos) atenienses.Nestecaso, portanto, a queda do regime oligárquico significoutambém a aniquilação da pólis (TUcÍDIDES,V, 84 a 116).

A opção pela democracia ia além de objetivos pura-mente políticos para as massas populares, que continuavam

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reivindicando a redivisâo das terras (ver um exemplo -o de Leontini, na Sicília - em TucíDIDES, V, 4). Seacreditarmos em Aristóteles (Constituição de Atenas, XL,3), em certas cidades os democratas, ao tomarem o poder,procederam efetivamente a tal redivisão.

Conhecemos bem mal as instituições democráticasfora de Atenas. A mais antiga das democracias gregasseria a de Quio, anterior mesmo à ateniense. f: sobretudopor inscrições que sabemos terem as cidades democráticasórgãos grosso modo análogos aos de Atenas - Eclésia ouassembléia popular, Bulé ou Conselho, magistrados eleitosou sorteados -, mas entrevemos algumas diferenças: menorpoder dos tribunais, inexistência de remuneração por ati-vidades políticas, inexistência do ostracismo (salvo em Si-racusa antes de 405 a.C. e em Argos). No século IV a.C.,anteriormente à intervenção da Macedônia, havia maispóleis democráticas do que oligárquicas na Grécia.

As cidades-Estados oligárquicas, tal como as demo-cráticas, tinham assembléias populares (Ecclesíai, Halíai),conselhos e magistrados. Mas as condições de acesso àcidadania plena eram distintas, apesar de bem variadas,como sabemos por Aristóteles principalmente. Havia umadiferença entre cidadãos que chamaríamos passivos, excluí-dos dos direitos políticos tanto quanto os estrangeiros resi-dentes (metecos) e os escravos, e cidadãos ativos (polí-teuma) , cujo número podia variar (mil em Cólofon ouCrotona, seiscentos em Massália, etc.). Em geral, eramcritérios de fortuna ou renda anual que faziam a diferençaentre as duas categorias de cidadãos. Por outro lado, nasoligarquias, com freqüência a assembléia popular tinha po-deres restritos, sendo o Conselho o órgão de governo maisimportante. Em cidades onde certas famílias aristocráticasainda dominavam (cidades da Tessália, Massália, Cnido,Heracléia), as magistraturas eram hereditárias e não ele-tivas. Havia, outrossim, limites legais mínimos de idade ede riqueza para o acesso à magistratura e ao Conselho.

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Além da cidade-Estado: ligas efederações de cidades

Não obstante o particularismo estrito da pólis grega,desde a Época Arcaica temos notícia da existência deassociações que englobavam certo número de cidades-Es-tados.

As mais antigas foram as anfictionias, organizadasem torno de um santuário pan-helênico para o cultocomum - como ocorreu, por exemplo, no famoso san-tuário de ApoIo em Delfos. Cada anfictionia tinha umConselho integrado por representantes das cidades-mem-bros, mas sem funções propriamente políticas, já que sócuidava de acordos diplomáticos.

Os gregos chamavam simaquia um acordo ou associa-ção militar, em princípio para a defesa, o qual podia en-globar diversas cidades que permaneciam independentes edispor de um Conselho. A mais famosa foi a simaquiapeloponésia, também conhecida como Liga do Peloponeso,formada no século VI a.C. por iniciativa de Esparta, quese ligou à maioria das cidades oligárquicas peloponésiaspor tratados bilaterais, às vezes complementados por ou-tros tratados das demais cidades entre si. Uma exceçãode peso foi Argos, pólis democrática e tradicional inimigade Esparta, a qual se recusou a participar. O nome oficialdesta sim aqui a - "os lacedemônios e seus aliados" -mostra bem que, embora os membros mantivessem emprincípio sua autonomia interna, o predomínio espartanoera claro. O Conselho da liga era convocado e presididopor magistrados de Esparta (éforos) e cada cidade neletinha um voto. A segunda cidade em importância da :;i-maquia peloponésia era Corinto, por sua riqueza e suafrota de guerra. No século V a.C., depois da guerra contraos persas, e mais ainda após a vitória sobre Atenas em404 a.C., Esparta conseguiu maior centralização em seubenefício da simpatia peloponésia.

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A união dos gregos para enfrentar a ameaça dospersas levou à formação, aliás difícil, da chamada Ligapan-helênica de Corinto em 481 a.C., simaquia cujo co-mando terrestre e marítimo coube a Esparta. De fato,grandes porções da Grécia permaneceram neutras (Creta)ou apoiaram os persas (Tessália, Beócia). Espécie de alar-gamento passageiro da simaquia peloponésia, a Liga deCorinto foi, no entanto, bem mais frouxa em sua orga-nização.

Ainda no decorrer da guerra contra os persas, em476 a.C., Atenas conseguiu formar à sua volta uma ligamarítima com a .finalidade de libertar as cidades gregasda Asia Menor, ainda sob o jugo do império persa _ oque foi conseguido em 449 a.C. -, e atacar e pilhar esteúltimo em represália pelas guerras médicas. A associação,cujo tesouro comum ficaria depositado na ilha de Delos,centro religioso dos jônios do Egeu, é conhecida comoLiga de Delos. Dela participavam a maior parte das ilhasCíclades, a ilha Eubéia, algumas das ilhas costeiras daAsia Menor, partes das costas da Trácia e do Mar de Már-mara. As cidades maiores contribuiriam com barcos deguerra, as menores com dinheiro. Atenas teria o comando,mas no Conselho da liga cada cidade disporia de um voto.Tratava-se, no início, de uma simaquia, cujo nome oficialera: "os atenienses e seus aliados" Com o tempo, porém,a Liga de Delos se transformou em um império marítimosubmetido a Atenas. Esta passou a castigar as cidades que.tentassem abandonar a aliança, o tesouro comum foi trans-ferido para Atenas (454 a.C.), onde passou a ser usadoem despesas da própria pólis ateniense e não da liga, oConselho desta desapareceu e colônias (cIerúquias) de ate-nienses que conservavam sua cidadania de origem foramcriadas em territórios vazios ou em terras confiscadas aosinsurretos, para vigilância do império. O regime democrá-tico foi imposto a muitas das cidades da Liga de Delosque eram antes oligárquicas, bem como a moeda e os

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pesos e medidas de Atenas tiveram de ser adotados portodas. Quando Esparta derrotou Atenas e seus aliados naGuerra do Peloponeso (404 a.C.), a Liga de Delos foidissolvida; reapareceu, porém, menor e menos estruturada_ mas sempre sob hegemonia ateniense - em 377 a.C.

Além das associaçõesde cidades até agora menciona-das, houve outras menos extensas. A mais importante foia Liga Beócia, na verdade um Estado federal disfarçado,controlado por Tebas. A liga, formada pela primeira vezem meados do século VI a.C., consolidou-se um séculomais tarde; foi dissolvida em 386 a.C. e reestruturada em374 a.C. Na Liga Beócia os direitos e deveres das cida-des participantes eram determinados pelas respectivas ci-fras de população, daí decorrendo o predomínio tebano.Dividia-se em onze distritos e, no Conselho federal de660 membros, 240 eram de Tebas. Havia onze beotarcasou magistrados, dos quais quatro eram tebanos, com fun-ções principalmente militares, um tesouro comum e umtribunal coletivo. Oligárquica no século V a.C., com atransformação de Tebas numa democracia no século se-guinte, também a Liga Beócia passou a ter um caráter de-mocrático, eliminando-se a distinção entre cidadãos ativose passivos e passando a assembléiapopular coletiva a tergrandes poderes.

o fim das cidades-Estados autônomas

o grande surto da escravidão e das relações mercantisque marcara o final da Epoca Arcaica prolongou-se peloséculo V a.C. Já no século seguinte, muitos historiadoresmodernos crêem per:eber uma crise. A longa Guerra doPeloponeso caracterizara-se pela freqüência com que oscampos dos inimigos eram devastados, as colheitas quei-madas, as árvores cortadas. A propriedade, muito par-celada, tendeu a se concentrar: especuladores compravam

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as terras arruinadas a baixo preço, seja para recuperá-Iase revendê-Ias,seja para praticar uma agricultura de expor-tação com mão-de-obra escrava. A urbanização se acen-tuava: Atenas passou a concentrar 50% da população daÁtica, e na cidade um número considerávelde pessoas em-pobrecidas viviam dos desembolsos crescentes do Estado.A dependência do cereal importado se acentuou. E ver-dade que os aspectos econômicos da crise do século IVa.C. são pouco claros e às vezes contraditórios, não ha-vendo unanimidade a respeito - pois indubitavelmenteexistiram também elementos de progresso e expansão3.

Não há muitas dúvidas, no entanto, de que a partirde 380 a.C. alguns dos parâmetros básicos da sociedadegrega tenham sofrido rápida mudança, que em meio séculoconduziria à ruína do sistema de cidades-Estados indepen-dentes. Novos centros e elementos de poder político emilitar surgiram e influenciaram fortemente a situação. Sea hegemonia espartana após 404 a.C. significara até certoponto a continuidade de padrões relativament~ tradicio-nais de guerra e de política, após a segunda década doséculo IV a.C. o uso crescente da cavàlaria, as mudançasno sistema hoplítico e o número cada vez maior de mer-cenários, minando a equação tradicional do exército como "povo em armas", a ascensão da hegemonia de Tebase em seguida o grande peso de uma monarquia macedô-nica muito fortalecida nos negócios gregos, revelaram serfatores radicalmente novos.

As sucessivastentativas de hegemonia desde o séculoanterior apontavam, no fundo, ao fato básico de que apólis, quadro demasiadamente estreito, estava em desa-cordo com o avanço constante da integração econômica ecultural da Grécia, bem como dos perigos externos. Noentanto, os políticos e os pensadores na sua maioria não

3 Ver MUSTI, Domenico. L'economia in Grecia. Roma. Laterza,1981. p. 125-34.

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encontravam soluções alternativas: os Estados ideais vis-lumbrados por Platão e Aristóteles eram pó/eis. Algunsjá viam a solução numa união dos gregos, federando ascidades-Estados em associações mais vastas: era o caso deIsócrates, para quem tal união deveria passar pela vitóriasobre os persas e que acreditava ver. em Filipe da Mace-dônia o líder capaz de realizar tão ambicioso plano.

O grande adversário das manobras macedônicas naGrécia, Demóstenes, percebera com maior lucidez que avitória de Filipe deixaria subsistir somente uma caricaturada democracia ateniense e da independência das pó/eisgregas. Foi o que ocorreu após 338 a.C., quando osgregos foram derrotádos em Queronéia pelos macedônios.A civilização da pólis morreu então, por mais que, for-malmente e numa visão superficial, tudo parecesse indicara sua persistência.

3Atenas e Esparta

Aristóteles e seus discípulos elaboraram, num traba-lho de equipe, 158 monografias acerca das constituiçõesde outras tantas cidades-Estados, das quais uma só (Car-tago) não era grega. Ora, todas se perderam, com exceçãoda que se refere a Atenas, recuperada em 1891 ao serpublicada uma cópia quase completa proveniente doEgito. Se bem que elementos contidos nas monografiasperdidas foram incorporados por Aristóteles em sua Polí-tica, a verdade é que só a respeito de Atenas e Espartao conjunto das fontes antigas disponíveis fornece dadossuficientes para uma visão relativamente satisfatória, em-bora persistam muitas lacunas, muitas perguntas sem res-postas seguras, mesmo quanto a estas duas pó/eis.

As circuntâncias inescapáveisda documentação trans-formam, assim, dois casos no fundo extremos, e portantoatípicos quando comparados a outras cidades-Estados he-lênicas, em paradigmas respectivamente dos regimes de-mocráticos e oligárquicos da Grécia clássica. Atenas eEsparta controlavam territórios bem mais extensos do queos da imensa maioria das pó/eis e através da liderançaexercida sobre numerosas cidades reunidas em ligas atin-

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giram, no seu apogeu, níveis de poder também muito supe-riores aos que estavam ao alcance das outras cidades. Sejacomo for, é verdade, igualmente, que as organizações polí-ticas que ostentavam na Época Clássica apresentam nume-rosos pontos comuns com as de outras cidades democrá-ticas e oligárquicas, motivo pelo qual - como tambémpela própria liderança que exerceram - sua análise apre-senta um interesse que excede o dos simples estudos mo-nográficos.

Atenas

A mais antiga organização política que podemos co-nhecer com alguma segurança remonta a uma época -segundo parece os séculos VIII e VII a.C. - em que amonarquia havia desaparecido, sendo o "rei" agora ummagistrado entre outros - que chegaram a nove -, todosconhecidos posteriormente como arcontes. O arconte reitinha sobretudo funções religiosas; o polemarco, militares;o arconte propriamente dito, ou arconte epônimo, davaseu nome ao ano (ao tornar-se anual o arcontado, emépoca não determinada com precisão) e tinha funções reli-giosas e judiciárias; os seis tesmótetas, surgidos mais recen-temente, eram encarregados de redigir e tornar públicas asdecisões consideradas obrigatórias e gozavam de poderesjudiciários. Os arcontes eram eleitos somente entre os aris-tocratas, primeiro em caráter vitalício, depois por dez anos,por fim anualmente. O Conselho - chamado Areópago- tinha funções políticas extensas mas mal precisadaspelas fontes; atuava como tribunal supremo e guardião doregime. Formavam-no membros vitalícios (ex-arcontes).

Em 621-620 a.C., um legislador, Drácon, introduziureformas políticas cuja lembrança, nos tempos clássicos,havia-se tornado imprecisa. É possível (cf. ARISTÓTELES,Constituiçãode Atenas, IV, 2) que o essencial dessas mo-

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dificaçõestenha consistido na admissão de todos os hopli-tas - incluindo os de origem não nobre - à cidadania,com direito a eleger os arcontes (embora não pudessemtalvez ser magistrados e portanto ingressar no Areópago).Seria estranho que a "revolução hoplítica" não tivesseefeitos em Atenas por essa época.

Se esta interpretação das reformas de Drácon for cor-reta, elas deram satisfação aos atenienses mais ricos quenão fossem aristocratas, mas não aos camponeses pobres.Estes, através do mecanismodo endividamento,tornavam--se "clientes" (pelátai) e arrendatários (hectémoroi) dosricos, pagando - as interpretações divergem - um sextoou cinco sextos da colheita como aluguel da terra quehaviam perdido ao não poder ressarcir o que deviam; emesmo, persistindo sua insolvênciaao ponto de não paga-rem o aluguel, e já que as dívidas eram garantidas porsuas pessoas e as de seus familiares, podiam, com suasmulheres e filhos, ser vendidos como escravos fora daÁtica, ou nesta trabalhar como servos de seus credores.A terra estava concentrada em poucas mãos. Uma tal si-tuação levou a "que os nobres e a multidão entrassemem conflito durante longo tempo" (ARISTÓTELES,Consti-tuição de Atenas, 11, 1 e V, 1).

Os detalhes do conflito não são conhecidos, mas em592-591 a.C. Sólon foi eleito arconte com amplos poderes,encarregado de proceder a reformas sociais e políticas. Elenão efetuou a redivisão das terras reclamada pelos popula-res, mas realizou uma radical abolição das dívidas e proi-biu, no futuro, tomar as próprias pessoas como garantiade dívidas. Ao que parece, os pequenos proprietários quehaviam perdido suas terras voltaram à plena propriedadedestas; os que haviam sido vendidos como escravos noexterior foram, na medida do possível, comprados aos seusdonos pelo Estado ateniensee alforriados. Atribuía-se pos-teriormente a Sólon também uma reforma dos pesos e me-didas e do sistema monetário, mas a arqueologia demons-

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tra que a moeda não havia ainda aparecido na Ática emsua época. ,

Do ponto de vista político, Sólon introduziu um sis-tema censitário, dividindo os cidadãos em quatro classessegundo o rendimento agrícola anual de que dispunham:pentacosiomédimnoi (isto é, aqueles cujas terras rendessemquinhentas medidas de cereais e/ou de azeite), cavaleiros,zeugitas e tetes, com rendimentos decrescentes. Somentea primeira classe tinha acesso ao arcontado, as três pri-meiras a magistraturas menores, os tetes unicamente àEclésia (assembléia popular) e aos tribunais. Atribuía-sea Sólon também a criação de um segundo Conselho, aBulé de quatrocentos membros, ao lado do Areópago, quecontinuava sendo o guardião das leis.

Ao que tudo indica, as reformas de Sólon só apazi-guaram por pouco tempo a luta social ou stásis. Depoisde algumas décadas de conflitos e tentativas de acordoentre as facções - que tinham uma expressão topográ-fica: a "planície" oligárquica, a "montanha" democráticae o "litoral" moderado -, o chefe aristocrático da facçãopopular, Pisístrato, tomou o poder como tirano. Ele e pos-teriormente dois de seus filhos permaneceram no poder -intermitentemente no caso de Pisístrato - de 561 a 510

a.C. O povo foi desarmado, alguns dos aristocratas foramexilados ou executados e suas terras talvez divididas entre

camponeses pobres. Pisístrato instituiu juízes itinerantespara o território rural da Ática e um sistema de emprés-timos aos pequenos cultivadores. Criou ou encorajou acolonização ateniense na Trácia, realizou obras públicasque acentuaram o caráter urbano de Atenas e deram em-prego a cidadãos pobres, transformou a cidade num grandecentro cultural e fortaleceu os seus laços religiosos com oEgeu (participação ateniense nas cerimônias em Delos).Ao morrer, foi sucedido por seus filhos. O regime tornou--se duro após o assassinato de um deles. O outro, Hípias,

foi por fim derrubado pelo genos banido dos alcmeônidas,com apoio do oráculo de Delfos e dos hoplitas espartanos.

Esparta favoreceu a formação, e,m Atenas, de umregime oligárquico, mas dois anos depois da queda datirania, um Alcmeônida, Clístenes, conseguiu, com forteapoio popular, impor reformas que inauguraram o regimedemocrático em 508 a.C. O corpo de cidadãos foi aumen-tado pela admissão de certo número de metecos (estran-geiros residentes) e libertos à cidadania ateniense. Vi-sando a eliminar as facções de base regional e o jogo deinfluências nas zonas rurais, Clístenes dividiu os cidadãosem dez tribos (em lugar das quatro tribos "étnicas" tradi-cionais dos jônios) e 160 divisões administrativas, osdemos, repartidos em trinta circunscrições eleitorais -sendo que cada tribo reunia três destas circunscrições:uma da cidade, uma do litoral e uma do interior. Algunsautores chamam a atenção para esta íntima relação entre"espaço cívico", "espaço geométrico" e "espaço geográ-fico" na obra de Clístenes 1.

As reformas propriamente políticas de Clístenes sãomal conhecidas: na verdade, tendia-se no século V a.C. aatribuir-lhe grande número de mudanças de fato posterio-res. Assim, por exemplo, a criação da nova magistraturaeletiva constituída pelos dez estrategos ou generais data defato só de 501-500' a.C.: eleitos por um ano, eram ree1e-gíveis indefinidamente. O Conselho ou Bulé teve o númerode conselheiros elevado para quinhentos (cinqüenta portribo, tirados à sorte), sendo suas funções o controle dasmagistraturas e talvez já então a preparação dos projetosde resoluções que seriam submetidos à assembléia popular.Clístenes conservou as classes censitárias estabelecidas porSólon. Alguns autores antigos atribuíam-lhe a instituiçãoI

1 Ver por exemplo VERNANT, Jean-Pierre. Espace et organisationpolitique en Grece ancienne. In: - . Mythe et pensée chez lesGrecs,I. Paris, Maspero, 1974. p. 207-29.

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do ostracismo, que no entanto foi posterior, tendo sidoaplicado pela primeira vez em 488-487 a.C.: em assem-bléia cujo quorum não podia ser inferior a seis mil cida-dãos, e tendo ocorrido em assembléia anterior a decisãode proceder a tal votação, votava-se (sendo o voto nestecaso escrito e secreto, enquanto ordinariamente era esta-belecido pela contagem das mãos levantadas) por maioriasimples a expulsão com cassação de direitos políticos (ati-mía) por dez anos de um cidadão denunciado como poli-ticamente perigoso ou subversivo. O condenado poderiareceber no estrangeiro a renda proveniente de seus bens e,ao voltar a Atenas - passados dez anos ou sendo cha-mado antes por decisão popular -, recuperava automa-ticamente os plenos direitos de cidadão. A medida eraencarada como recurso contra a ameaça de uma volta àtirania.

Durante os séculos V e IV a.C. a democracia ate-niense se completou com diversas medidas tomadas aolongo de várias décadas. Em 487-486 a.C. instituiu-se atiragem à sorte dos arcontes segundo listas elaboradaspelos demos. Contando-se nove arcontes mais um secre-tário, havia um por tribo. Isto enfraqueceu a mais antigadas magistraturas em proveito dos estrategos, que erameleitos. Pouco a pouco, as exigências censitárias foramsendo legalmente derrubadas ou caindo em esquecimentopara as diferentes funções, mesmo as mais altas. Como oAreópago havia concentrado outra vez grandes poderesquando da guerra contra os persas, o líder popular Efial-tes fez com que a Eclésiavotasseuma reforma que o privoude tais atribuições em favor da Bulé e do tribunal populardos heliastas (cujos membros eram sorteados), por voltade 462-461 a.C. No período de Péricles -líder do genosdos Alcmeônidas que, simplesmentecomo um dos estrate-gos, de fato dirigiu a vida política ateniense entre 460 e429 a.C. - restringiu-se o acesso à cidadania, agora sópossível aos filhos de pai e mãe atenienses, em 451 a.c. .

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(anteriormente era suficiente que o pai fosse ateniense),e a criação da mistoforia ou retribuição monetária ao exer-cício de certos cargos públicos e aos marinheiros da pode-rosa frota que a cidade construíra por influência de Temís-tocles, sendo que essa remuneração se estendeu muito noséculo IV a.C.; tal medida permitiu que os cidadãos maispobres pudessem participar da política sem perda dos meiosde subsistência. Como na época de Péricles era o tesouroda Liga de Delos, transformada em império (arkhé) ate-niense, que financiava estas e outras despesas estatais, asupressão da liga depois da derrota frente aos espartanosem 404 a.C. criou sérios problemas para as finanças pú-blicas. Atribui-se ao final do século V a.C. a criação dagrafé paránomon, disposição que consistia na possibilidadede se intentar processo a qualquer cidadão, acusando-o desubmeter à Eclésia uma proposição contrária às leis vi-gentes, mesmo se tal proposição tivesse sido aprovada.

Considerando agora o funcionamento das instituiçõesdemocráticas de Atenas no seu apogeu, os direitos políticospertenciam aos cidadãos do sexo masculino de mais de de-zoito anos (embora dos dezoito aos vinte anos, na prática,o serviço militar ou efebia restringisse a participação dosjovens), sendo que para certas funções exigia-se a idademínima de trinta ou mais anos. O centro da vida políticaera a assembléia popular ou Eclésia, formada em princípiopor todos os cidadãos no gozo de seus direitos, com amplasfunções legislativas, executivas (votação da guerra ou dapaz, decisão acerca das negociações diplomáticas e dostratados), judiciárias (embora na maioria das vezes oscasos fossem enviados pela assembléia aos tribunais) e elei-torais (eleição, confirmação e eventual suspensão das ma-gistraturas eletivas; cassação eventual também dos cargosque dependiam de sorteio). Uma limitação ao seu vastopoder era, no século V a.C., o fato de só poder votar pro-jetos de leis ou de decretos preparados pela Bulé (probu-lêumata), mas tal restrição desapareceu no século seguinte.

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o Conselho ou Bulé de 500 membros - cidadãos de maisde trinta anos tirados à sorte por um ano (só se podia serbuleuta duas vezes na vida), de início entre as três pri-meiras classes censitárias, e submetidos a um exame decidadania legítima e de moral, pelo Conselho em fim demandato, antes de tomar posse, bem como à prestação decontas ao sair do cargo - preparava projetos de legisla-ção, controlava os tesoureiros e recebia as prestações decontas dos magistrados quando deixavam o cargo, recebiaembaixadas, encaminhava processos de alta traição. OConselho raramente se reunia em sessão plenária: suasfunções principais eram exercidas durante um décimo doano por cada pritania (seção de cinqüenta membros), en-carregada também de convocar e presidir a Eclésia. OConselho mais antigo ou Areópago, composto de membrosvitalícios (ex-arcontes), teve seus poderes restringidos aojulgamento dos assassinatos voluntários de cidadãos e decertos crimes religiosos. Mas os tribunais populares tira-dos à sorte - os 51 éfetas, os juízes dos demos (30 até403 a.C., depois 40), os 6 000 heliastas (de fato divididosem tribunais menores ou dicastérios), etc. - viram-se atri-buir a maioria da justiça civil e criminal. A partir de finsdo século V a.c., um corpo de legisladores (nomotetas)sorteados dentre os heliastas foi encarregado de estabelecerum repertório de toda a legislação em vigor.

Quanto aos magistrados, os mais antigos, os arcontes- de fato dez, um por tribo, contando-se o secretário -,tirados à sorte desde 487-486 a.C., ficavam um ano nocargo; suas funções foram remanejadas e, no conjunto, di-minuídas no período democrático: por exemplo, o arcontepolemarco perdeu a chefia do exército e passou a ser res-ponsável pelas cerimônias fúnebres em honra dos cidadãosmortos em combate, além de tornar-se uma espécie dejuiz dos metecos ou estrangeiros residentes, cuidando dainstrução dos processos que os envolviam. Os magistradosmais importantes eram sem dúvida os dez estrategos, de

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início eleitos pela Eclésia à razão de um por tribo, depoissem tal limitação, por um ano, mas reelegíveis indefinida-mente. Deveriam ser casados legitimamente e proprietá-rios rurais na Ática (a função de estratego não era remu-nerada) . Além de suas atribuições militares, repartiam oimposto de guerra sobre o rendimento agrário e sobre ariqueza monetária, estabeleciam o imposto devido pelosmetecos e o tributo pago pelos "aliados" da Liga de Delos.Podiam convocar a assembléia popular em caráter extra-ordinário e nela tinham prioridade na apresentação de suasmoções; assistiam se quisessem às sessões da Bulé (mesmoas secretas). Havia magistrados menos importantes doque os já mencionados; eram escolhidos por sorteio. Entreeles estavam os dez tesoureiros (um por tribo), para osquais se manteve por mais tempo a exigência de pertencerà primeira classe censitária.

Já no século V a.C., por duas vezes, em função degraves derrotas militares - depois da catástrofe sofridapela expedição enviada pelos atenienses à Sicília, em 411a.C. e após perder Atenas a Guerra do Peloponeso paraEsparta, em 404-403 a.C. - ocorreram duas breves ten-tativas de estabelecimento de governos oligárquicos. Aguerra contra Esparta causara sérios problemas à agricul-tura, interrompera setores artesanais fundamentais e emespecial afetara a extração de prata no monte Láurio, aoocorrer em 413 a.C. a fuga maciça dos escravos da Ática(TUCÍDIDES,VII, 27). As dificuldades resultantes se pro-longaram no século IV a.C., afetando a vida das institui-ções democráticas da cidade: só a remuneração garantia aafluência à Eclésia e a dificuldade de obter recursos con-duziu a processos às vezes escusos contra cidadãos ricos,para confiscar-Ihes os bens. Tornou-se mais rara, outros-sim, a possibilidade de fundar clerúquias no exterior, assimaliviando na Ática a tensão agrária. Ainda mais grave, tal-vez, fosse a mudança do caráter da magistratura dos estra-tegos, devido à falência do exército hoplítico tradicional e

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à extensão do uso de soldados mercenários, fiéis somenteaos seus chefes e portanto utilizáveis em apojo de políticasde promoção individual. Os adversários da democraciapretendiam, também, que desde a morte de Péricles o re-gime passara a ser orientado por "demagogos" irresponsá-veis: acusação que deveria ser analisada com cuidado eem detalhe, pois em parte pelo menos decorria do despeitode pensadores reacionários, com freqüência de origem aris-tocrática. Mesmo assim, há razões suficientes para pensarque o apogeu do regime democrático ateniense já passarahá muito quando sua autonomia foi decisivamente restrin-gida pela vitória de Filipe 11 da Macedônia em Queronéia(338 a.C.). Pouco depois, em 322 a.c., a democracia foisubstituída em Atenas por uma oligarquia censitária.

Esparta

em contraste com os 2 500 km2 da Ática, que era já con-siderada grande em comparação com a maioria dos terri-tórios das cidades-Estados helênicas: Esparta era auto-su-ficiente em cereais e, coisa ainda mais rara na Grécia, dis-punha de minas de ferro na Lacônia. Por fim, e princi-palmente, os esparciatas constituíam um caso extremo deespecialização militar: as atividades econômicas eram dei-

xadas aos periecos e aos hilotas, escravos do Estado espar-tano postos a serviço dos esparciatas, vivendo estes últi-mos "como exército acampado e não como pessoas fixadasem cidades" (PLATÃO,Leis, 11, 666e), a tal ponto que oshomens adultos tomavam em comum as refeições (syssí-tias), repartidos em grupos que na guerra combatiamjuntos, em lugar d~ fazê-Io em suas casas.

Embora alguns dos traços da organização espartana- o hilotismo e as refeições coletivas, por exemplo _fossem encontrados também em outras cidades do mundogrego (as de Creta em especial), no conjunto tratava-sede um caso muito peculiar. Como explicá-Io? Os pró-prios espartanos e seus contemporâneos da f:poca Clássicaatribuíam a constituição espartana - resumida num do-cumento conhecido como "Grande Retra" - a um pe-ríodo muito antigo e a um legislador mítico inspiradopelo deus ApoIo: Licurgo. A arqueologia, no entanto,bem como fragmentos que se conservaram da obra decertos poetas arcaicos (Álcman, Tirteu), mostram que pormuito tempo Esparta teve uma evolução similar à de outrascidades da Grécia, por exemplo em matéria de lutas so-ciais e de história intelectual, e que somente entre 600 e500 a.C. se completou o processo que a transformou numcaso à parte.

Acredita-se que o episódio fundamental no sentidode dar forma a Esparta tal como a conhecemos foi a con-quista da Messênia, região do Peloponeso vizinha à La-cônia, e a transformação de seus habitantes em hilotas,como já ocorrera com parte da população da Lacônia,

Nos fins da f:poca Arcaica e nos tempos clássicos,Esparta nos aparece como uma pólis extremamente atípica.Em primeiro lugar, a urbanização da cidade nunca se com-pletou: permanecia constituída por um conjunto de al-deias e seus templos e construções não mostravam esplen-dor nem arte refinada (TUCÍDIDES,I, 10). Em segundolugar, o termo que designava oficialmente a pólis esp'ar-tana - "os lacedemônios" - não era sinônimo do con-junto dos cidadãos, como nas outras cidades-Estados: com-preendia, sem dúvida, os cidadãos ou esparciatas, mastambém os periecos, súditos de Esparta sem que fossemmetecos, os quais gozavam de autonomia interna em suascidades e povoados (a impressão é a de uma evoluçãono sentido do surgimento de várias póleis na Lacônia, quetivesse sido interrompida em algum ponto, para dar lugara uma associação ou subordinação sui generis). Em ter-ceiro lugar, o território controlado por Esparta, depois daconquista da Messênia, era de pouco mais de 5 000 km2,

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segundo muitos autores devido à conquista de etnias ante-riormente estabelecidas pelos invasores dórios (embora nãohaja provas de que periecos e hitotas não fossem dórios).A primeira guerra da Messênia parece ter ocorrido nosé~ulo VIII a.C., na época do rei Teopompo (fragmento4 de Tirteu). No século seguinte, a revolta dos messênioslevou à segunda guerra da Messênia, que segundo se crêcoincidiu com o auge da luta social em Esparta pela redi-visão das terras e com a adoção do sistema hoplítico decombate. Esta coincidência foi decisiva. Como as divi-sões entre os esparciatas estavam dificultando a vitória,num momento em que uma forma de lutar que exigiacoesão havia-se tomado essencial, decidiu-se a redivisãodas terras da Lacônia e da Messênia outra vez derrotada(na Lacônia havia também terras que pertenciam aos pe-riecos, as quais não foram tocadas) em lotes, de inícioiguais, com os hitotas que os habitavam. Este fato explicaque Esparta não tenha conhecido a tirania, enquanto odomínio sobre numerosos hilotas sempre prontos à rebe-lião - fato confirmado por múltiplos exemplos de revol-tas em diversas épocas - permite entender a especializa-ção militar. O poeta Tirteu, contemporâneo da segundaguerra da Messênia - provavelmente em meados do sé-culo VII a.C. - define (fragmento 3) o governo de Es-

parta como consistindo em dois reis - outra peculiaridadeda pólis espartana -, Conselho de anciãos, e os homensdo povo, cujo dever é a obediência aos superiores. Estaobediência era conseguida mediante uma educação espe-cialíssima, que entre outras coisas proibia terminante-mente aos jovens a discussão da legislação espartana noque pudesse ter de bom ou ruim, obrigando-os "a procla-mar com uma só voz e com uma só boca que tudo é nelaexcelente, posto que seus autores foram os deuses" (PLA-TÃO,Leis, I, 634d). No entanto, foi só no século VI a.C.que o sistema espartano adquiriu todas as característicasprincipais que lhe conhecemos.

Passando agora à descrição da organização político--social de Esparta nos termos clássicos, devemos nos refe-rir em primeiro lugar à divisão social básica em esparcia-tas, periecos e hilotas.

Os esparciatas, chamados "os iguais" (homoioi), eramos cidadãos gozando de plenos direitos. Os adultos entreeles, ou seja, os chefes de família capazes de portar armase dotados de lotes de terra, nunca foram muito numerosos;além disso seu número diminuiu sem cessar: talvez noveou dez mil quando da redivisão da terra cívica em porçõesiguais, eram oito mil no início do século V a.C. e nãomais de dois mil no século IV a.C. Isto aponta a umatremenda concentração da propriedade sobre a terra cívicaa se processar nos tempos clássicos, caindo com o tempoa maioria dos esparciatas na situação dos "inferiores", aonão poder mais contribuir com alimentos e vinho para asrefeições coletivas. De fato, no começo tanto a terra cívicaquanto os hilotas eram propriedades do Estado, atribuindo--se somente o seu usufruto aos cidadãos; mas com o tempoos esparciatas passaram a tratar estes b.ens como proprie-dade privada, o que possibilitou a sua concentração, numprocesso cujos detalhes aliás nos escapam.

A partir dos sete anos de idade, as crianças espar-ciatas do sexo masculino eram separadas de suas famíliase recebiam uma educação pré-militar. Aos dezoito anoscomeçava o serviço militar propriamente dito - o qualcompreendia um rito de iniciação conhecido como criptia,que incluía operações de terrorismo ou "guerrilha" contraos hilotas, talvez com a finalidade de reprimir preventi-vamente Os líderes de possíveis revoltas 2 -, e só aos

2 Ver a explicação "estruturalista" da criptia por VIDAL-NAQUET,Pierre. Les jeunes: le cru, l'enfant grec et le cuit. In: LE GOFF,J. & NORA,P., eds. Faire de l'histoire, lU - Nouveaux objets.Paris, Gallimard, 1974. p. 137-68. (Em português: Os jovens gre-gos: o cru, a criança grega e o cozido. In: LE GoFF, J. & NORA,P., eds. História: novos objetos. Trad. de Terezinha Marinho. Riode Janeiro, Francisco Alves, 1976. p. 116-40.)

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trinta anos o esparciata se casava e adquiria direitos polí-ticos, continuando até os sessenta anos a ser um soldadosempre disponível para o combate. Muitos indícios mos-tram que a pretendida "igualdade" entre os esparciatasnunca foi conseguida, apesar de medidas drásticas comoa severa limitação da circulação monetária, a proibição dapermanência de estrangeiros em território espartano e deviagens dos cidadãos ao exterior. Boa prova disso é ofato de terem nove esparciatas obtido doze vitórias nascorridas de carros - esporte extremamente caro - nosJogos Olímpicos, entre 550 e 400 a.C.

Entre os súditos dos esparciatas, os periecos tinhamsituação relativamente favorável. Se por um lado nãopodiam participar da vida cívica de Esparta - o quenão os eximia do combate como hoplitas, sob mando es-parciata -, monopolizavam o comércio e o artesanato(pela proibição de viverem metecos na Lacônia e na Mes-sênia e pela proibição das operações de comércio com oexterior, salvo aquelas em que os periecos agissem comointermediários), podiam ter bens e terras (distintas dasterras cívicas) e comprar escravos. Governavam as suascomunidades com autonomia quanto aos negóciosinternos,mas sob a vigilânciade um governador esparciata nomea-do para cada uma delas; naturalmente não podiam ter umapolítica externa própria. Não são conhecidas revoltas deperiecos a não sçr tardiamente.

Os hilotas, camponeses que durante muito tempoforam vistos como escravos públicos, trabalhavam noslotes atribuídos aos esparciatas, entregando-Ihes de inícioa metade da colheita e, mais tarde, segundo parece, umaquantidade fixa de produtos. Podiam possuir bens e cons-tituir família, mas eram tratados com grande dureza. Iamà guerra em princípio como auxiliares e serviçais; mas aintensificaçãodas guerras externas fez com que fosse neces-sário armar como hoplitas a muitos hilotas. Estes só po-diam ser alforriados pelo Estado. Suas revoltas -cruel-

mente reprimidas mas sempre recomeçadas - e o fato deque eles e os periecos com o tempo passassem a constituira grande maioria do exército espartano foram fatores deenfraquecimento do regime tradicional.

Do ponto de vista político, os espartanos reconhe-ciam em primeiro lugar dois reis, hereditários (não neces-sariamente em linha direta, nem segundo o princípio deprimogenitura) em duas famílias, os Agidas e os Euripôn-tidas. Os reis tinham altas funções religiosas e comanda-vam o exército; não tinham poderes políticos efetivos, anão ser como membros ex ollido do Conselho de anciãos,eram obrigados a jurar lealdade à constituição e vigiadosde perto pelos magistrados ou éforos. A Gerúsia ou Con-selho de anciãos era composta pelos dois reis, mais 28 ci-dadãos com mais de sessenta anos (isto é, liberados dasobrigações militares). Eram vitalícios e eleitos de formacuriosa: os candidatos ao cargo - ao abrir-se vaga pelamorte de algum dos gerontes -, desfilavam diante daassembléia popular e eram aplaudidos; juízes encerradosnuma casa próxima, de onde não podiam ver o desfile eque desconheciam a ordem (estabelecida por sorteio) emque passariam, avaliavam qual dos candidatos fora o maisaplaudido - se o primeiro,o segundo,o terceiro,etc. _,sendo este o vencedor. A Gerúsia aparentemente tinhafunções semelhantes às da Bulé ateniense quanto à prepa-ração dos projetos de lei a serem votados pela assembléiae funcionavacomo tribunal para a justiça criminal. Quantoà assembléiapopular ou Apela, formada pelos cidadãos demais de trinta anos e em pleno gozo dos direitos, reunia--se ao ar livre, elegia os gerontes e os éforos e votava semdiscutir - por aclamação ou, em caso de dúvida, divi-dindo-se em dois grupos (TucíDIDES, I, 87) - as pro-postas que lhe fossem submetidas pelos éforos ou pelaGerúsia. Se tentasse ir contra o costume e discutir as pro-postas, ou tomar qualquer decisão contrária à constituição,os reis e a Gerúsia tinham o poder de dissolvê-Ia. Os

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únicos magistrados espartanos eram os cinco éforos, eleitospor um ano pela Apela entre todos os esparciatas, semqualquer distinção de riqueza ou nascimento. No séculoVI a.C. parece ter ocorrido um reforço de 'suas atribuições(reforma atribuída ao éforo Quílon). O presidente docolégio dos éforos era epônimo, ou seja, dava o seu nomeao ano em que exercia suas funções. Presidia a Apela,em especial quando eram recebidos embaixadores estran-geiros ou se votava a paz ou a guerra. Em caso de guerra,os éforos ordenavam a mobilizaçãoe estabeleciama estra-tégia a ser seguida; dois deles acompanhavam o rei que,para a campanha em questão, recebesse o comando su-premo. A função principal dos éforos era, na verdade, ade controlar a educação dos jovens e vigiar a vida sociale política de ~sparta, com a finalidade de evitar qualquerdesvio em relação ao regime tradicional. Tinham grandesatribuições judiciárias, podendo julgar mesmo os reis. Seuenorme poder era limitado pelo caráter anual e colegiadodo cargo. No conjunto, então, apesar da presença dosreis, o regime espartano era oligárquicoe não monárquico,mas de um tipo muito especial.

A necessidade de participar de grandes guerras noexterior do Peloponeso a partir do século V a.C. foi oprincipal fator que contribuiu para o enfraquecimento eposterior dissolução do sistema espartano, ao favorecer opoder individual dos reis e generais, as diferenças de for-tuna, a mobilização militar crescente dos periecos e hilo-tas, bem como o recurso a tropas mercenárias. O dese-quilíbrio já era claro no regime de Esparta no início doséculoIV a.C.: revolta dos cidadãos decaídos ("inferiores")tentada por Cinadon; independência da Messênia conse-guida com o apoio de Tebas em 370 a.C., formando osmessênios uma nova pólis. Tal desequilíbrio só fez au-mentar com o tempo, preparando a violenta crise políticae social atravessada pela debilitada Esparta no séculolU a.C.

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4Roma como

cidade- Estado

o povoamento da Itália,os etruscos e os inicios de Roma

No complicado processo de povoamento da penínsulaitaliana e da Sicília, tendo como guia os dados lingüísticose a arqueologia, é possível distinguir um substrato ante-rior ao indo-europeu, representado em tempos históricospelos lígures do noroeste, pelos messápios e iapígios dosul e pelos sicanos da Sicília. A partir provavelmente de2200-2100 a.C., grupos de língua indo-européia ganharama Itália, onde povoariam sobretudo o centro e o sul dapenínsula (povos chamados "itálicos" ou "italiotas") e aSicília (os sículos). Hoje se distingue um primeiro subs-trato indo-europeu,chamado proto-latino (origem do latim,do falisco, do vêneto e do sículo) e, a partir de fins dosegundo milênio, um segundo substrato (do qual deriva-ram o úmbrio e o osco, bem como os dialetos aparentadosao segundo, por exemplo o sabino).

Do VIII ao VI século a.C., os gregosfundaram nume-rosas cidades na região costeira do sul da Itália e na Sicí-lia; esta expansão colidiu com a dos fenícios - e poste-

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riormente de Cartago, cidade-Estado de origem fenícia donorte da África - em terras sicilianas, e com seus aliados,os etruscos, no Mar Tirreno.

A origem dos etruscos - cujo núcleo inicial foi oterritório situado entre o Mar Tirreno a oeste e os montes

Apeninos a leste, entre o rio Amo ao norte e o Tibre aosul -, de fato um problema ainda não resolvido, é umadas questões em que a arqueologia e o testemunho dostextos antigos em parte se chocam. Arqueologicamente,não há solução de continuidade entre a cultura da IdadeInicial do Ferro conhecida como cultura de Vilanova(aproximadamente 900-720 a.C.) e a civilização etrusca-cujo apogeu independente pode ser datado de aproxima-damente 720-300 a.C., já que depois foi absorvida pelaexpansão romana -, com suas fases arqueológicas orien-talizante (Arcaico 111,720-600 a.C.) e helenizante (desdefins do século VII a.C., acentuando-se no século seguinte).1Ora, se a arqueologia mostra uma continuidade sem cortesdrásticos apesar de inegáveis e fortes influências externas,Heródoto (I, 94) pretendia que os etruscos fossem oriun-dos da Lídia, na Ásia Menor; é verdade, porém, que Dio-nísio de Halicarnasso (I, 30, 2) considerava-os autóctones.Estas teses opostas foram retomadas por autores moder-nos. Em todo caso, se existiu, a imigração procedente daÁsia Menor deve ser recuada até o segundo milênio a.C.e integrada à formação da própria cultura de Vilanova. Alíngua etrusca não é indo-européia: a sua única afinidadecomprovada é com a língua falada na ilha egéia de Lemnosaté a conquista desta pelos atenienses - o que aliás nãodeixa de reforçar a possibilidade de algum vínculo de ori-gem com a Ásia Menor.

O povoamento da Itália antiga se completou, emtempos históricos, com a irrupção dos gauleses (grupo

1 BROWN,A. C. Ancient ltaly before the Romans. Oxford, Ashmo-lean Museum, 1980. capo VI e VII.

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celta, de língua indo-européia) no início do século IVa.C., os quais de início estenderam bem para o sul da pe-nínsula suas expedições de saque e pilhagem (tomada deRoma em 390 a.C.) e se estabeleceram no vale do rioPÓ (Gália Cisalpina).

Foi com os etruscos que surgiu, na Itália, a cidade--Estado. O aparecimento da civilização etrusca no finaldo século VIII a.C. foi marcado, justamente, pela urba-nização de sítios da cultura de Vilanova, dando origem,entre outras, às cidades de Veios, Caere, Tarquínias, Vulci,Vetulônia, Populônia (grande centro metalúrgico graças àvizinhança das minas de ferro da ilha de Elba), Volterra,Volsini, Orvieto, Clusium, Arezzo. Os etruscos, aliados aCartago, mantiveram até o início do século V a.C. seu pre-domínio naval no Mar Tirreno. No seu apogeu, a naçãoetrusca formava uma confederação de doze povos (cujasmetrópoles não são facilmente identificáveis, numa lista decidades bem mais numerosa), sistema que desenvolveriamos etruscos também ao colonizar o vale do PÓ (fundando,anteriormente à chegada dos gauleses, cidades como as fu-turas Bolonha, Mântuae Milão) e, para o sul, o Lácio e aCampânia, onde Volturno (Cápua) parece ter sido fundadabem cedo, como um posto avançado do comércio etruscocom os gregos da Magna Grécia. A "dodecápole" etruscacentral na Toscana, tinha um santuário comum no templodo deus Voltumna, perto de Volsini. A organização federaldas cidades dá a impressão, entretanto, de datar só dofinal do século VI a.C. e o "Conselho da Etrúria" nãoaparece mencionado antes de 434 a.C. (TITO LÍVIO, IV,33, 5). Seja como for, a federação era enfraquecida pelaindependência das cidades-Estados, por sua rivalidade edesunião em momentos decisivos.

Os romanos foram herdeiros do urbanismo etrusco,baseado em ritos de fundação que delimitavam o território"sagrado" da cidade e - nas cidades etruscas mais recen-tes - num plano regular em que duas ruas principais (o

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cardo e o decumanus dos romanos) se cortavam em ân-gulo reto no centro da aglomeração. Governadas por reis(lucumões) até o século VI a.C., no século seguinte passa-ram as cidades-Estados dos etruscos a um regime rigida-mente aristocrático, com magistrados eleitos anualmente,aliás mal conhecidos (os zilath ou pretores, os maru equi-valentes talvez aos edis da Roma republicana primitiva),e um Senado ou Conselho de nobres; mas não uma assem-bléia popular. No século IV a.C. uma revolta do povoparece ter aberto caminho a uma participação mais amplana vida política. Instituições romanas como a clientela,formada pelos dependentes das famílias aristocráticas, esímbolos do poder como o banco de marfim, os oficiais oulitores que acompanhavam os magistrados, etc. são declara derivação etrusca.

No início da Idade do Ferro, o Lácio, região deRoma, povoado pelos latinos e posteriormente tambémpor sabinos, era o ponto de encontro das culturas italia-nas do norte (Vilanova), do oriente e do sul (cultura d~stumbas de fossas), e de uma velha tradição formada aindana Idade do Bronze (cultura apenínica, típica de um povode pastores transumantes); a esta mescla de influência sedá o nome de "cultura lacial".

A arqueologia mostra que o sítio de Roma, no mo-mento em que surgiam as primeiras cidades etruscas, carac-terizava-se por numerosas aldeias independentes - latinase talvez também sabinas, embora alguns autores recuematé a República a imigração dos sabinos no Lácio - deagricultores e sobretudo pastores, construídas no alto dascolinas, enquanto os cemitérios ocupavam as depressões.Algumas dessas aldeias - aparentemente só as latinas -reuniram-se numa liga ou federação de caráter religiosoe quiçá defensivo (o Septimontium). As escavações emRoma da escola sueca de E. Gjerstad conseguiram resul-tados interessantes. Elas constataram que, por volta de575 a.C., as aldeias se uniram numa comunidade urbana

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úbica, processo marcado por um remanejamento do espaço(abandono de certos cemitérios, destruição de cabanas noque veio a ser o Fórum), pela pavimentação rudimentardo Fórum (centro cívico e mercado), pela abertura deruas regulares, pela instalação de um segundo Fórum (Fo-rum Boarium) junto ao rio Tibre, enfim pela ereção detemplos e edifícios públicos. As cabanas deram lugar aospoucos a verdadeiras casas. O estudo da cerâmica, emespecial, mostra três fases na urbanização primitiva deRoma: a primeira, relativamente lenta, entre 575 e 530a.C.; a segunda - de rápida e máxima expansão ~ entre530 e 500 a.C.; e a terceira, de estagnação e talvez ligeirodeclínio, entre 500 e 450 a.C. A interpretação de Gjerstadé de que entre 575 e 530 a.C. teríamos uma urbanizaçãopré-etrusca, correspondendo ao lendário período dos reislatinos e sabinos, e que por volta de 530 a.C. os etruscosteriam tomado Roma, transformando-a numa típica cidadeetrusca, nela permanecendo até meados do século V a.C.- contrariamente à cronologia tradicional, que data de509 a.C. a expulsão do terceiro e último rei etrusco e oinício da República romana. Outros autores preferem atri-buir já aos etruscos a primeira urbanização em 575 a.C.

Com os dados disponíveis atualmente, é impossívelentrever a evolução das instituições romanas até meadosdo século V a.C.: antes da Lei das Doze Tábuas (450a.C. segundo a tradição), as informações de Tito Lívio eoutros autores tardios estão irremediavelmentecontamina-das por anacronismos republicanos projetados no períodomonárquico anterior.

Parece bem estabelecido,porém, que podemos aceitar- não em seus detalhes, mas de modo geral - certospontos dessa tradição. O primeiro se refere à organizaçãobásica da civitas romana no período monárquico: rei, Con-selho de anciãos (Senado) e assembléia das cúrias (comi-tia curiata), sendo estas últimas, de início, subdivisões das

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três tribos que serviam de base à cobrança de impostose ao recrutamento militar. O segundo ponto que não pa-rece ser contestável refere-se à adoção das técnicas hoplí-ticas de combate no século VI a.C. e à conseqüente dis-tinção censitária, atribuída ao segundo rei etrusco deRoma, Sérvio Túlio, entre os que podiam e os que nãopodiam financiar o seu equipamento militar (a criação,já nessa época, de um sistema censitário complexo comvárias divisões e de uma assembléiade centúrias militares.com atribuições políticas - comitia centuriata - é algopelo contrário bastante improvável). O terceiro ponto,logicamente ligado ao anterior, é a substituição das tribos"étnicas" por quatro tribos urbanas de tipo topográfico,numa reforma (também atribuída a Sérvio Túlio) similar,até certo ponto, à de Clístenes em Atenas, embora dealcance bem mais limitado politicamente.

Se os tópicos acima merecemampla aceitação (se bemque não universal), o mesmo não acontece com a crençade que já no período monárquico existisse a tradicionaldivisão estamental da sociedaderomana em patrícios (comsua organização gentilícia) e plebeus, atribuída por TitoLívio (I, 8, 7; I, 13, 6; I, 17, 7) ao primeiro rei mítico,Rômulo. Em 1945, H. M. Last defendeu a idéia de tersido somente sob a República que se formou uma oligar-quia patrícia, fechando-se esta em estamento, barrando aospoucos o acesso dos demais - os plebeus - ao Senadoe às magistraturas e mesmo proibindo (por pouco tempo)o casamento entre patrícios e plebeus. Quatro dos reis tra-dicionais de Roma tinham nomes de ressonância plebéiae as listas de magistrados contêm nomes plebeus e etruscosentre 509 e 486 a.C., e de novo nomes plebeus entre 461e 452 a.C. Assim, a constituição do patriciado - e, porexclusão, da plebe - teria sido o resultado de uma evo-lução que se processou durante a primeira metade do sé-culo V a.C., completando-se somente por volta de 450

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a.C. 2 Last e outros autores, como P. de Francisci, acre-ditam que a sociedade romana do período monárquico,sem ser de forma alguma igualitária, formava no entantoum só corpo de pessoas com os mesmos direitos privadose partilhando os parcos direitos políticos concedidos pelamonarquia (excluindo-se, é claro, os escravos, aliás pouconumerosos então). De forma mitigada - ou seja, admi-tindo-se que o processo de formação do patriciado já haviacomeçado sob os últimos reis -, a tese de Last continuasendo bem mais convincente do que a tese tradicional.

A República romana

Se iniciarmos a análise em meados do século V a.C.,a situação política e social em Roma - refletida na Leidas Doze Tábuas de 450 a.c. - recordar-nos-á a de Ate-nas anteriormente ao arcontado de Sólon. Uma aristocra-cia de proprietários de terras - os patrícios -, organi-zada em famílias extensas (gentes) estruturadas à volta deum culto familiar, monopolizava a vida política e, prati-cando empréstimos pré-monetários que levavam ao endi-vidamento, podia matar os devedores insolventes, vendê--Ios como escravos fora do território romano, ou - o queparece ter sido mais freqüente - usá-Ios como mão-de--obra servil para cultivar as terras e pastorear os rebanhosdos nobres, ao lado dos clientes, nesta época, ao que pa-rece, sobretudo trabalhadores rurais e soldados a serviçode uma gens nobre, em troca de ajuda e proteção (a gensdos Fabii podia mobilizar 306 de seus membros e 4 000a 5000 clientes: TITO LíVIO, 11, 49, 4; 11, 50, 1). Osendividados e clientes eram recrutados no seio da plebe,multidão sem organização gentilícia cuja origem parece ter

2 LAST,H. M. The Servian reforms. Journal 01 Roman Studies,35:30-48, 1945.

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sido variada: migrantes atraídos pela prosperidade daRoma etrusca, talvez grupos cuja situação foi resultantede uma diferenciação econômico-social interna, etc.

A evolução a partir desta situação inicial tambémrecorda em alguns aspectos a de Atenas. No quadro daluta entre patrícios e plebeus, travada no contexto de umaretomada da prosperidade econômica e da urbanização emseguida à depressão e ruralização que marcaram a pri-meira metade do século V a.C., notam-se os efeitos deuma estratificação interna entre os plebeus: as reivindica-ções dos plebeus pobres (abolição das dívidas e da servi-dão por dívidas, repartição das terras) e ricos (acesso àsinstâncias do poder) eram distintas, embora só a união daplebe como um todo pudesse fazer avançar o processo datransformação social e política. Também em Roma che-gou-se a uma divisão censitária do corpo dos cidadã~ emvárias categorias (talvez ao serem criados os magistradoschamados censores, em 443 ou 435 a.C.) como base dorecrutamento político e militar. E ocorreu a abolição dasdívidas e da servidão por dívidas (lei Poetelia Papiria, 323a.C.), abrindo caminho à expansão do escravismo, jásolidamente instalado no início do século lU a.C., ao dei-xarem de estar disponíveis como mão-de-obra dependenteos camponeses endividados. Outra semelhança: não ocor-reu a redivisão do solo romano original e sim o recursoà colonização, se bem que no caso romano ela se dessepor muito tempo na própria península italiana. Do começoda República até 218 a.C., pelo menos 9 000 km2 haviamsido distribuídos a colonos romanos elatinos (o que equi-valia a dez vezes o território total de Roma no final doséculo V a.C.).

As diferenças, porém, são no conjunto mais notáveisdo que as semelhanças. O acesso à cidadania romana -por certo, origem em si mesma de menos direitos e pode-res do que nas cidades gregas democráticas - estendeu-se

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com grande rapidez a boa porção dos italianos e mesmoaos libertos (que, na Grécia, tornavam-se metecos).

O caráter mais diretamente sagrado do poder emRoma, baseado na comunicação por sacerdotes especiaisde um poder sobrenatural aos magistrados (augúrio) ena possibilidadede tais magistrados consultarem a vontadedos deuses através da observação de signos como o vôodas aves (auspícios), permitiu aos patrícios, no curso daluta política que se estendeu até o século lU a.C., criarnovas magistraturas reservadas a si próprios quando eramobrigados a partilhar as magistraturasmais antigas com osplebeus ricos ou a conceder qualquer outra vantagem àplebe; também puderam invocar razões religiosas paramanter por muito tempo o monopólio patrício do sacer-dócio, mais integrado à vida política e à carreira dos ho-mens públicos do que na Grécia.

Inédito foi também que, em função da luta, uma dasiniciativasdos plebeus consistisseem criar instituiçõespro-priamente plebéias - o tribunato da plebe, os edis daplebe, o concilium plebis ou assembléia dos plebeus -,o que quase cindiu a civitas ou cidade-Estado romana emduas civitates, uma patrícia e outra plebéia.

Isto, no entanto, não chegou a acontecer, e mal oubem as instituiçõescriadas pelos plebeus foram integradasao regime: os tribunos da plebe, dotados de inviolabilidadepessoal e residencial (sendo suas casas lugares de asilo),adquiriram o direito de vetar as decisões dos magistradose outros órgãos republicanos e de impedir uma dada açãocontra um plebeu simplesmente opondo-se a ela (inter-cessio), tornando-se portanto protetores eficazes da plebe;o concilium plebis, com o tempo, deu origem à assembléiadas tribos (comitia tributa), um dos órgãos legislativoseeleitorais fundamentais da Roma republicana.

Os métodos de controle social e político utilizados nocaso romano pelas classes dominantes foram também suigeneris. Um deles era um complicado sistema de votação

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na assembléia do exército ou comitia centuriata, principalassembléia dos primeiros tempos da República, de modoa evitar qualquer participação efetiva dos cidadãos maispobres nela presentes. Outro método foi a instituciona-lização da clientela, que foi perdendo seu sentido marca-damente econômico e adquiriu o de um apoio eleitoral -e mesmo armado, quando necessário - dos clientes aosmembros das grandes famílias em sua atuação na política.

O patriciado, com sua família extensa ou gens (aqual no entanto não era um "clã": há mesmo autores queacreditam que a família restrita precedeu a gens, que seteria formado através de uma reunião de famílias aristo-cráticas; e não, como antes se afirmava, que a gens setivesse dividido com o tempo em famílias restritas), e maistardiamente a própria plebe, chegaram a constituir esta-mentos sociais com estruturação jurídica claramente insti-tucionalizada, coisa sem precedentes na Grécia.

A instituição da terra pública - ager publicus -,propriedade do Estado obtida pelo confisco de terras nasregiões conquistadas, é uma particularidade que vem recor-dar ter sido o papel das guerras no caso romano bemmaior do que no mundo grego, quanto à conformação doquadro sócio-político e institucional. O ager publicus podiaser arrendado pelos cidadãos, mas tendeu na prática aser concentrado e mesmo apropriado privadamente (deforma ilegal) pelos ricos (TITO LíVIO,11, 41, 3; 11, 48, 2).Até 218 a.C., 10000 km2 de terras tomadas em guerrahaviam sido vendidos ou arrendados pelo Estado romano- uma extensão um pouco superior, portanto, à que nomesmo período foi destinada ao estabelecimentode colô-nias.

O casamento entre patrícios e plebeus foi autorizadoem 445 a.C. e foi-se constituindo, pela união das famíliasplebéias ricas com as patrícias, uma nova aristocracia, anobilitas, não institucionalizada juridicamente em esta-mento, mas que constava de um grupo reduzido e exclu-

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sivo de famílias: aquelas cujos membros, depois de teremexercido as magistraturas mais elevadas, tinham ingressadono órgão máximo da República, o Senado. De 233 a 133a.c., os mais altos magistrados, os cônsules, foram duzen-tos, mas saíram de somentecinqüenta e oito famílias, sendoque cinco destas forneceram cinqüenta e dois cônsules. Anobilitas só renovava os seus quadros, com o ingresso de"homens novos", em forma lenta e limitada: houve quinzedeles entre 284 e 224 a.C. e apenas quatro entre 200 e146 a.C. Tais "homens novos" eram oriundos da maiselevada classe censitária, os eqüestres ou cavaleiros, deque alguns historiadores modernos quiseram fazer, absur-damente, uma "burguesia" oposta à "nobreza senatorial".De fato, tanto a nobilitas quanto os cavaleiros tinham for-tunas sobretudo agrárias; os senadores e seus parentes,como os eqüestres, não desdenhavam dedicar-se à explora-ção das minas, ao comércio marítimo e ao empréstimo ajuros, ao arrendamento de impostosprovinciaisou de obraspúblicas e a outras atividades rendosas, pessoalmente oupor meio de testas-de-ferroque podiam ser, eventualmente,os seus libertos (o que tornava inócua a proibição feitaem 218 a.C. aos senadores da participação no grandecomércio) .

No século 111a.C. e 'na maior parte do século se-guinte - fase que inaugura a expansão romana fora dapenínsula italiana - a República senatorial chegou aoseu apogeu e a uma espécie de equilíbrio constitucional,por certo bem mais complexo do que o de qualquer pólisgrega, em função das características específicas da evolu-ção romana, algumas das quais já foram mencionadas.Esta a fase por nós escolhida para uma descrição sumária.da organização institucional republicana.

Como os gregos, os romanos acreditavam que a liber-dade política consistia no governo por magistrados eleitospor período limitado e na sujeição à lei e não ao arbítriode indivíduos (TITOLíVIO,11, 1, 1). O historiador grego

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Esta era, porém, uma visão idealizada, sob influênciada teoria grega acerca da excelência das "constituiçõesmistas". Na realidade, o nome oficial da cidade-Estadoromana, "O Senado e o povo de Roma", marcava bem ahierarquia efetiva das instâncias, num governo basicamenteoligárquico. Por outro lado, poderes tão extensos quantoo dos mais altos magistrados romanos eram, na Grécia,atribuições de Conselhos ou assembléias, não das magis-traturas (com a possível exceção parcial dos éforos de Es-parta). Isto porque entre os gregos eles pertenciam aodemos (no sentido restrito de conjunto dos cidadãos); masnão assim ao populus romano: em Roma o poder sobe-rano residia mais no Senado e nos magistrados do quenas assembléias populares.

Entre as magistraturas, é preciso distinguir as queeram investidas do imperium e da potestas, e aquelas quesó recebiam a potestas. Esta consistia numa forma de au-toridade legal que dava aos seus beneficiários poderes ad-ministrativos,a possibilidadede ditar o Direito (jus edi-cendi) e de impor suas prescrições,se necessárioexercendocoação (coercitio). O imperium era um amplo direito decomando civil e militar de natureza sagrada, garantida pelo

direito à consulta dos auspícios, dando aos seus detentorespoderes de vida e morte, além da possibilidade de coman-dar as legiões, de exercer funções judiciárias (sem apela-çãono campo militar) e de convocar e consultar o Senadoe as assembléias.

Os magistrados superiores, reunindo imperium e po-testas, eram os dois cônsules, que dirigiam o conjunto dosnegócios públicos além de serem generais supremos, e osdois pretores, que também podiam receber comandos mili-tares: o pretor urbano tinha a função principal de orga-nizar a justiça e o pretor peregrino (criado a meados doséculo 111a.C.) a de cuidar dos litígios civis ou criminaisque envolvessemestrangeiros. Em caso de grave perigo detipo militar, os cônsules ou o Senado podiam nomear, porseis meses, um magistrado supremo, o ditador, que porsua vez nomeava um chefe da cavalaria (magister equi-tum) como seu assessor.

Os magistradosdotados UnIcamenteda potestas eram:os dois edis curuis, encarregados do policiamento dos mer-cados, do calçamento das ruas, dos edifícios públicos eda organização de certos jogos; os oito questores, auxi-liares militares dos cônsules e encarregados da gestão dotesouro público e das finanças; os dez tribunos da plebe,que constituíam uma magistratura especial, dispondo dapossibilidade de vetar medidas e leis, de atribuições de de-fesa dos plebeus (dentro da cidade e num perímetro deaté uma milha à volta dos limites urbanos de Roma), eda possibilidade de propor leis à comitia tributa; os doisedis da plebe, que com o tempo se tomaram indistinguí-veis dos edis curuis. De cinco em cinco anos eram eleitosos dois censores - sem imperium mas com direito à con-sulta aos auspícios-, os quais permaneciamno cargo de-zoito meses, estabeleciam a lista dos cidadãos e dos sena-dores e vigiavam os costumes.

As magistraturas romanas caracterizavam-se- comexceção da ditadura - por sua colegialidade e por poder

Políbio, escrevendo no século 11 a.C., assim definiu a cons-tituição romana (VI, 11, 11-12):

.. . .havia três partes efetivas na constituição; todasestas tinham sido tão bem e propriamentereunidas de di.versos modos e administradaspelos romanos. que nenhumdos que viveram sob ela poderia dizer com segurança seo sistema como um todo era aristocrático.democrático oumonárqulco. E era esta uma Impressão multo natural dese ter: pois quando fixamos nossa atenção nos poderesdos cônsules, ele parece ter sido Inteiramente monárqulcoe real; quando o fazemos nos do Senado, aristocrático;equando consideramos os poderes da multidão. certamentedemocrático..

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qualquer magistrado opor-se à iniciativa de outro magis-trado do mesmo tipo (intercessio); e, com exceção dacensura e da ditadura, pela duração anual. No século 11a.C. tomou forma a idéia de que, na carreira política, eranecessário começar pelas magistraturas menores para atin-gir depois as magistraturas superiores e por fim o Senado(cursus honorum).

O Senado, Conselho constituído por trezentos mem-bros vitalícios recrutados em princípio entre os ex-magis-trados, votava o que teoricamente era apenas uma re-comendação (senatusconsultum) e perdera o direito derecusar ou impedir as leis votadas nas assembléias. Noentanto, nele se encarnavam a continuidade da Repú-blica e os "costumes dos antepassados" (mos maiorum),bem como uma forte autoridade moral (auctoritas patrum).Outrossim, gozava de amplos poderes administrativos, fi-nanceiros, relativos à política externa e à disposição dasprovíncias, e quanto à religião cívica. No fundo, era ocentro da República e se ocupava de todos os assuntosimportantes.

Quanto às assembléias, a mais antiga comitia curiataou assembléia por cúrias, teve seus poderes limitados àconcessão do imperium às magistraturas superiores e acertas questões religiosas. A comitia centuriata ou assem-bléia das 194 centúrias do exército reunia-se fora do perí-metro sagrado de Roma (pomerium) - já que era proi-bido às tropas penetrar na cidade - e votava segundo umcomplicado sistema que privilegiava as três classes censitá-rias mais elevadas, deixando impotentes os membros dasclasses mais baixas. As atribuições principais desta assem-bléia, no período que consideramos, eram eleitorais - ele-gia os magistrados com imperium e os censores -, dedecisão acerca de iniciar ou terminar as guerras e de recep-ção ao apelo dos condenados à morte. Já as funções legis-lativas tinham passado a pertencer sobretudo à assembléiados cidadãos repartidos nas 35 tribos topográficas (quatfo

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urbanas, as demais rurais) de Roma, ou comitia tributa,que elegia os magistrados inferiores, ratificava os tratadosde paz e votava muitas das leis (plebiscita); reunindo-sena sua forma original de concilium plebis ou assembléiada plebe (com exclusão dos patrícios), elegia também ostribunos e edis da plebe. Tanto a assembléia das centú-rias quanto a das tribos só podiam se reunir quando con-vocadas por um magistrado e só podiam aceitar ou rejeitaros projetos de resolução que lhes fossem submetidos, sema possibilidade de emendá-Ios.

A crise da cidade-Estado romana

A conquista propiciou uma válvula de escape às ten-sões agrárias pela possibilidade da colonização, mas tam-bém introduziu um elemento de descontentamento,devidoao monopólio do ager publicus pelos cidadãos mais ricos.Ao mesmo tempo, a mobilização quase permanente deenormes contingentes de cidadãos ao longo de muitas dé-cadas, os efeitos econômico-sociaisda expansão romana eda exploração das províncias, o avanço das grandes pro-priedades cultivadas por escravos, fizeram-sesentir atravésde uma violenta crise agrária. Aqueles dos italianos quenão haviam recebido a cidadania romana, e que no en-tanto estavam intimamente associados a Roma pelas exi-gências de tropas e impostos que esta lhes fazia, mani-festavam crescente descontentamento. Por fim, uma in-compatibilidade cada vez maior se fazia sentir entre asinstituições da civitas romana - umacidade-Estado_e o fato de que, no final da República, Roma governavaquase todas as regiões banhadas pelo Mediterrâneo.

Todas estas dificuldades explodiram, em proporçõese combinações variadas, na crise final da República ro-mana, entre a tentativa extemporânea dos irmãos Gracosno sentido de restabelecer a pequena e média propriedade

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rural - base do recrutamento e da vida cívica - e a

instalação de uma forma disfarçada de monarquia (133--27 a.C.).

O assassinato do tribuno da plebe Tibério Graco pornobres senatoriais e seus asseclas, ilegal mas de certaforma legalizadoa posteriori pelo Senado através da cria-ção de uma monstruosidade jurídica - o senatusconsul-tum ultimum, resolução senatorial declarando o Estado emperigo e convocando os magistrados a drásticas ações de-fensivas de emergência,aplicado sobretudo entre 121 e 43a.C. -, marcou o início de um conturbado período demais ou menos um século, caracterizado em fases poste-riores pela transformação do exército de cidadãos emtropas mercenárias a serviço de ambições pessoais, pelaguerra civil, pelas proscrições e pelos massacres de adver-sários derrotados, pelo desvirtuamento crescente das ins-tituições republicanas, pelos golpes e tentativas armadas defacções, pela exploração de múltiplos conflitos sociais emfavor de objetivos e poderes de indivíduos ricos e ambi-ciosos. Em tal processo, que não podemos descrever aqui,desapareceu finalmente a República e com ela a cidade--Estado romana: pois no Principado inaugurado por Au-gosto em 27 a.C., apesar da cuidadosa manutenção de umafachada institucional republicana, não seria exato afirmarque existissemdecisões tomadas soberanamente, sem inter-ferência imperial, pelos órgãos republicanos tradicionais.Como diz Finley, ao prevalecer como princípio que "oque o imperador decide tem força de lei", já não podehaver política no sentido forte da palavra, isto é, comoatividade própria de um Estado no qual "decisões Qbri-gat6rias são atingidas por discussão, por argumentação efinalmente pelo voto" 3.

3 FINLEY,M. I. Po/itics in the ancient world, op. cito p. 52.

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5l Conclusão

iPara os gregos de todas as tendências políticas, a "boa

vida" - por mais que os filósofos a definissem de dife-rentes maneiras - só poderia ser vivida numa p6lis; ohomem bom era mais ou menos equivalente a um bomcidadão; e os escravos, os "bárbaros" e as mulheres er.amseres inferiores e portanto excluídos naturalmente de qual-quer debate. Daí a definição dada por Aristóteles dohomem - entenda-seo homemgrego- comosendoumanimal cuja finalidade natural seria a vida associativanumap6lis (Política, 1252b9).

Analogamente, embora vivendo e escrevendo no sé-culo I a.C., em plena crise da sua cidade-Estado, o oradore pensador Cícero não conseguiutranscender em sua teori-zação política o quadro da civitas de Roma e aplicou todoo seu esforço à sistematização dos pontos de vista acercado Estado romano contidos na jurisprudência, segundoum quadro de pensamentos filosóficos herdados daGrécia.

Alguns autores modernos, numa ordem de idéiasquase do mesmo tipo, tentam demonstrar que era na es-trutura política da p6lis ou da civitas que se fundamenta-

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vam, no mundo clássico, a economia e a totalidade dosociall.

Paradoxalmente, não sabemos responder convincente-mente à pergunta: por que surgiu a cidade-Estado e nãooutra forma de organização? A explicação à base do de-terminismo geográfico- a Grécia compartimentada pelasmontanhas e pelo mar - se esboroasob o golpede exce-ções numerosas demais e no caso de Roma carece mesmode qualquer sentido. A explicação "existencial", baseadanuma visão do mundo, levaria à necessidade de explicaresta visão do mundo. A razão última deste estado decoisas é que não dispomos de documentação abundante efidedigna sobre o processo de formação das cidades-Esta-dos antigas: quando surgem em forma plena à luz da his-tória, seu período formativo já terminou.

Saibamos ou não explicá-Ia, porém, ela constitui aespinha dorsal, o elemento organizador sem o qual a civi-lização clássica permaneceria ininteligível. Outrossim, foiuma novidade sem precedentes e de enorme alcance o fatode que, num determinado período da história da Anti-guidade, camponeses, artesãos, pequenos comerciantes eeventualmente mesmo cidadãos totalmente desprovidos derecursos tenham podido participar do governo de suas co-munidades, mesmo de forma limitada. Cidadania, partici-pação política, democracia: eis aí noções básicas e atuaisque foram ventiladas pela primeira vez no mundo dascidades-Estados antigas.

Trataremos agora de sintetizar os debates contempo-râneos acerca da cidade-Estado antiga e suas estruturaseconômico-sociais, políticas e ideológicas, desenvolvidosprincipalmente desde fins dos anos sessenta. Influíram emtais debates fatores diversos, que vão da valorização deum texto inédito de Marx (Grundrisse), dado a conhecer

1 Ver a Introdução do editor a VEGEITI, M., ed. Marxismo esocietà antica. Milão, Feltrinelli, 1977. p. 41, em especial.

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há poucas décadas, a uma utilização de conceitos de M.Weber e do antropólogo K. Polanyi, passando por influên-cias do estruturalismo.

Como resultado dessas discussões, formou-se aos pou-cos uma espécie de nova interpretação geral, de ampla -mas não universal - aceitação entre os especialistas. Osautores mais influentes na constituição do novo paradigmainterpretativo talvez tenham sido M. Austin, P. Vidal-Na-quet, J.-P. Vernant e M. I. Finley.

Historiadores como Austin, Vidal-Naquet e Vemantacreditam na função central da política para a manuten-ção, no antigo mundo clássico, do equilíbrio de uma so-ciedade que não era baseada em classes sociais - insis-tiu-se muito, em especial, em negar o caráter de classedos escravos - e sim em estamentos. Para Austin e Vi-dal-Naquet, por exemplo,no mundo grego a estrutura polí-tica da coletividade - a pólis - servia de fundamento àeconomia e também às próprias estruturas sociais. A ci-dade-Estado agiria como uma organização reguladora doconsumo e da distribuição de riquezas entre os cidadãos eoutros membros livres da comunidade. Os antagonismossociais existiriam - em especial os que se vinculassem àquestão da terra (luta entre proprietários e não-proprietá-rios, que eventualmente desembocavanuma luta entre cre-dores e devedores); mas sem o caráter de lutas entre clas-ses sociais: os antagonismos revelariam, pelo contrário, oembate entre os estamentos que se apresentavamem íntimavinculação às estruturas políticas do Estado. Outras opo-sições - complementares e não antagônicas - seriam asexistentes entre velhos e jovens, homens e mulheres, ouentre os próprios estamentos.

Quanto a Finley, tratou de negar qualquer autonomiaao nível econômico no mundo greco-romano. A cidade--Estado era um centro de consumo, vivendo numa relaçãoaté certo ponto parasitária com o meio ambiente (o campo,os povos estrangeiros com que tinha contato), ao qual

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oferecia - ou impunha - os serviços político-militares tí-picos do funcionamento daquela modalidade de organiza-ção política. O Estado só intervinha na atividade econô-mica para garantir o seu próprio financiamento atravésda apropriação de excedentes. Do ponto de vista social,Finley leva ao máximo o exagero do fator estamental: aescravidão e numerosas formas intermediárias entre liber-dade e não-liberdade são apresentadas como formandouma vasta gama de status, aspectos, subdivisões e situa-ções - o que explica que o Autor ao mesmo tempo reco-nheça a base escravista da sociedade antiga e retire dessaconstatação qualquer possibilidade de fundamentar umaanálise de conjunto da sociedade das cidades-Estados clás-sicas.

Pela influência dos autores já mencionados e de ou-tros, criou-se gradativamente o paradigma interpretativo aa que aludíramos. Resumidamente, afirmava-se que, nomundo antigo, dominava o valor de uso sobre o valor detroca, o consumo - dos homens livres - sobre a pro-dução - servil, isto é, realizada através de numerosas mo-dalidades de trabalho compulsório, entre as quais a escra-vidão propriamente dita. Do ponto de vista social, o nívelpolítico, a própria cidade-Estado e os estamentos prevale-ceriam como entidades organizadoras principais. As lutassociais - aquelas causadas por questões ligadas à pro-priedade da terra, por exemplo- não passavam, no fundo,de lutas jurídico-políticas travadas entre os homens livres.Quanto às eventuais revoltas de escravos - mais nume-

rosas no mundo romano do que no grego-, jamais incluí-ram qualquer projeto de uma nova sociedade: os cativosbuscavam exclusivamentea libertação individual de cadaum deles - o que viria provar a impossibilidade de sefalar numa classe social a propósito dos escravos. Tudoisso equivalia, de fato, a descrever as sociedades em quese desenvolveram as cidades-Estados clásscias como nãoestando atravessadas por antagonismos ou contradições

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realmente portadoras de transformações radicais: os anta-gonismos reais podiam ser e eram constantemente absor-vidos pelas formas de funcionamento do regime vigente.Sendo assim, com freqüência atribuía-se a fatores ideoló-gicos, psicológicos, mentais enfim, a explicação da esta-bilidade dos organismos sociais clássicos.

Se essa linha de interpretação estava já bem assen-tada nos ambientes universitários europeus a meados dosanos setenta, ela não deixou de suscitar críticas e oposições,em especial entre os marxistas que - diferentemente deVemant ou Vidal-Naquet, por exemplo - não aceitavama influência de Althusser e do estruturalismo (e aindamenos a de Weber e de Polanyi). Tratava-se, para taismarxistas, de marcar sua ruptura não somente com seusantagonistas da interpretação dominante, mas também suanão-aceitação dos esquemas simplificadores da época deStalin, quando por exemplo as explicações evolucionistasderivadas de Morgan e de Engels eram aceitas sem qual-quer crítica, apesar de algumas debilidades evidentes.

Antes, porém, de mencionar algumasdas críticas maisradicais, examinemos uma posição que pode ser conside-rada intermediária: a que foi desenvolvida em livro re-cente por M. Godelier2. O ceme de sua argumentaçãoacerca das sociedades antigas é a de apoiar a tese de seucaráter estamental, mas não no tipo de argumentação de-rivado de Weber. Os estamentos aparecem-lhe como umacodificação de relações novas de dominação, correspon-dendo à dissolução apenas parcial das formas comunitá-rias de propriedade do solo e dos meios de produção, res-pondendo ã vontade de manter e por vezes mesmo de re-construir as relações comunitárias, de subordinar o novodesenvolvimentoeconômico e social à reprodução de rela-ções comunitárias. Assim, as formas da cidade-Estado an-tiga, repousando sobre modalidades de propriedade e de

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l-:I GoDELlER, Maurice. L'idéel et le matériel. Paris, Fayard, 1984.

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produção que se diferenciavam das formas mais arcaicas ea elas se opunham, não as aboliram de todo no entanto.Isso porque, do ponto de vista material, a vida da maiorianão podia se realizar sem dispor de recursos comuns (pas-tos, águas etc.); do ponto de vista social e jurídico, por-que persistia a necessidade de solidariedades religiosas, mi-litares e culturais que contribuíam para modos de vida nosquais ainda se afirmava o princípio arcaico da dominaçãoda comunidade local sobre seus membros. Em tais con-dições, a submissão de uns grupos a outros podia ser ideo-logicamente apresentada como uma cooperação necessáriapara reproduzir uma realidade que permitia a vida. A aná-lise bastante abstrata de Godelier tem parentesco evidentecom algumas passagens dos Grundrisse de Marx; no casoda Antiguidade greco-romana, não parece convincente.

Mario Vegetti e outros autores italianos criticaram,na posição intelectualmente hegemônica vinculada a Fin-ley, Vernant e outros, a incapacidade de perceber as con-tradições presentes nas estruturas sociais das cidades-Esta-dos antigas, para além das mediações políticas, razão pelaqual os autores criticados ficariam de certo modo prisio-neiros da descrição, e sobretudo da ideologia dos antigos(que não sabem criticar). G. Sainte Croix pensa que ateoria weberiana dos estamentos não passa de um pretextoideológico para mascarar a realidade das classes sociais esuas lutas na sociedade clássica das cidades-Estados. Asolução do próprio Sainte Croix consiste em opor, à descri-ção (que um conceito como o de estamento permite fazer,de maneira estática), uma explicação do processo, do mo-vimento social, que só as classes podem proporcionar.Afirma, portanto, que a lógica real do sistema social típicodas cidades-Estados ultrapassa a superficial aparência es-tamental: é preciso buscá-Ia na modalidade de exploraçãoeconômica e social - baseada em mecanismos extra-eco-nômicos como ocorre em todas as sociedades pré-capita-listas - típicas do modo de produção escravista antigo.

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Uma outra opção - especialmente no caso da his-tória romana - tem consistido em seguir de perto a aná-lise de Marx nos Grundrisse. A cidade apareceria comoa sede dos habitantes do campo, não existindo uma opo-sição campo-cidade como a da Idade Média. A condiçãoprévia da apropriação do solo pelo indivíduo seria, paraeste, o fato de pertencer à comunidade de cidadãos. EmRoma, o solo se dividiria em uma parte privada e outracoletiva, gerida pelo Estado (ager publicus). A contra-dição entre os dois tipos de propriedade levou ao fimda propriedade de Estado. Ao mesmo tempo, a igualdaderelativa entre os cidadãos/pequenos produtores, nunca per-feitamente realizada, foi crescentemente solapada pelo de-senvolvimento do capital comercial (ao qual se ligava ausura), pelas conseqüências das guerras de conquistas, pelaintrodução de escravos estrangeiros. Assim, a situação ini-cial - o "modo de produção antigo" de Marx - cedeulugar ao escravismo antigo plenamente constituído, pri-meiro na Grécia, mais tarde em Roma. No entanto, per-sistiu uma importante limitação espacial à expansão do es-cravismo; o mundo antigo, visto no seu conjunto, mesmosob o Império romano, estaria constituído por "ilhas" deescravismo e de relações mercantis mais avançadas, cer-cadas por formas mais atrasadas: pequenos camponeses,comunidades rurais, estruturas tribais. À relativa unidadepolítica e cultural alcançada no fim da Antiguidade pelacivilização que nascera nas póleis gregas e na civitas ro-mana, opor-se-ia então uma grande diversidadeeconômico--social 3.

Obviamente, não nos foi possível esgotar o campode controvérsias ativas e cambiantes, ainda em pleno de-senvolvimento. Os exemplos apresentados devem ter sidosuficientes, no entanto, para mostrar que a temática da

3 CAPOGROSSI,L.; GIARDINA,A.; ScHIAVONE,A., eds. Analisi mar-xista e società antiche. Roma, Editori Riuniti, 1978.

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cidade-Estado e sua racionalidade intrínseca constitui oponto focal do conjunto dos estudos e pesquisas que sevoltam para a elucidação da história da Antiguidade clás-sica.

Entre nós, no Brasil, a atual conjuntura política temprovocado um novo interesse por tal história, por ter sidoa civilização da cidade-Estado a primeira a se colocar asquestões relativas à legitimidade do poder, à participaçãoe à democracia. As respostas que lhes deu diferem dasque hoje são propostas, mas o fato de tê-Ias formuladoclaramente pela primeira vez garantem-lhe uma atualidadereconhecida de século em século.

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6Vocabulário crítico

"Ager publicus": Terras possuídas pelo Estado romanopor direito de conquista, mediante confisco imposte aospovos derrotados. Podiam ser arrendadas a cidadãosromanos, contra pagamento de uma taxa módica (vec-tigal).

Aristocracia: Conjunto de famílias que se reconheciam.como nobres e eram assim reconhecidas pelas demaispessoas, por exemplo os eupátridas de Atenas e os pa-trícios de Roma. Como regime político, Xenofonte de-finia a aristocracia como o tipo de governo em que oscargos públicos são monopolizadospor uma minoria emnome da lei e da tradição, isto é, em que uma nobrezahereditária domina o Estado.

"Atimía": Termo grego que de início significavaa coloca-ção de alguém fora da lei e depois se aplicava especifi-camente à privação dos direitos políticos imposta a umcidadão pelas instâncias legítimas da cidade-Estado.

Augúrio: Comunicação pelo sacerdote chamado áugure deuma força sobrenatural a pessoas e objetos através daimposição da mão direita, em especial ao ser empossadoum rei e mais tarde um magistrado. Durante a Repú-

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blica, O augúrio terminou se confundindo com os aus-pícios.

Auspícios: Observação do vôo das aves e de outros signoscom a finalidade de tentar adivinhar a vontade dosdeuses, em especial para saber se eram favoráveis oucontrários a uma dada operação política ou militar.

Censitário, sistema: Sistema que consiste na divisão doscidadãos em classes ou categorias segundo a sua riqueza,em geral medida de acordo com o rendimento anual, ena distribuição desigual de direitos políticos e deveresaos cidadãos conforme sua posição na hierarquia dosgrupos censitários.

Cidadão: Pessoa que goza de direitos políticos. Os antigosteóricos da política vinculavam o conceito de cidadaniaa uma espécie de ética da participação nos negócios pú-blicos, o que explica que, em certos regimes oligárqui-cos, multava-se o membro de um Conselho ou assem-bléia que faltasse às sessões. Nos regimes desse tipo,em geral se fazia uma distinção entre os cidadãos deacordo com a riqueza, de tal modo que havia cidadãoscom plenos direitos políticos e cidadãos com direitoslimitados; nas democracias, pelo menos em teoria setendeu à igualdade de direitos entre os cidadãos.

"Civitas": Em latim, a cidade-Estado - referindo-se aRoma ou a outra cidade-Estado -, sendo que a cidadeno sentido topográfico chamava-se urbs. Como a pólisgrega, a civitas romana era considerada acima de tudocomo a coletividade formada pelo conjunto dos cida-dãos, e não como um território ou um sítio geográfico.

Clã: No sentido comum ente aplicado à história clássicapelos que acreditavam no sentido clânico do genosgrego e da gens romana, o termo clã era usado paradesignar uma família extensa que reunia em torno deum chefe comum os que se julgavam descender de ummesmo antepassado, possuindo a terra coletivamente,

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ligando-se uns aos outros por uma moral e um cultofamiliares (implicando laços estreitos de solidariedadee mesmo a vingança coletiva), submetidos a uma jus-tiça familiar de base religiosa. O sentido usual da An-tropologia é bem mais prosaico: o clã é definido comoum grupo unilateral (patrilinear ou matrilinear) de pa-rentesco, podendo englobar uma linhagem única ou vá-rias linhagens e sendo sempre exogâmico.

Classe social: Segundo a definição clássica de Lenin, asclasses sociais são "grandes grupos de homens que se di-ferenciam por seu lugar no sistema historicamente de-terminado da produção social, por sua relação (...)para com os meios de produção, por seu papel na or-ganização social do trabalho", formando um sistema declasses no qual "uns homens podem apropriar-se do tra-balho de outros". O que quer dizer que o conceito declasses é inseparável do de exploração do homem pelohomem. O marxismo considera também que uma classesó se define plenamente como tal ao desenvolver o seuantagonismo em relação a outra classe: é a luta de clas-ses, então, que dá sentido à noção de classes sociais.As divergências básicas em torno do conceito se ligamà distinção feita por Marx entre a classe economica-mente determinada (classe em si) e a classe com cons-ciência específica (classe para si). Um desdobramentode tal discussão é a aplicabilidade ou não do conceito aperíodos como a Antiguidade clássica, objeto de gran-des controvérsias.

Clientela: Laço jurídico que unia a uma família patríciaromana - mais tarde também a famílias importantesque não eram patrícias - pessoas que, vinculadas maisespecificamente a um membro de tal família (patrono),eram associadas ao culto familiar: os clientes. Os clien-tes deviam ao patrono respeito e ajuda e dele recebiamproteção, inclusive na justiça, e às vezes meios de sub-sistência. Sob a República, a clientela constituiu uma

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das formas de estender o poder das grandes famílias,graças ao apoio político que os patronos podiam esperarde seus clientes.

Constituição: No sentido usado neste livro, designa o con-junto das instituições políticas de uma cidade-Estado.Como é evidente, na Antiguidade as "constituições" nãoeram documentos escritos, sistematicamente redigidospor uma comissão de juristas ou magistrados, e sim con-juntos formados por leis de diversas épocas e por prá-ticas consuetudinárias. Na Grécia, no entanto, a consti-tuição de uma cidade podia eventualmente ser atribuídaa um ato fundador de algum legislador ou reformador,coisa que não acontecia no caso de Roma.

Cúria: Nome dado a trinta subdivisões das três tribos pri-mitivas ou "étnicas" de Roma. O termo também eraaplicado ao edifício onde se reunia o Senado.

Democracia: Segundo Xenofonte, regime no qual os cargosdo Estado estão abertos a todos os cidadãos. A demo-cracia antiga era de participação direta: embora hou-vesse eleições e portanto delegação de poderes, o centroda constituição democrática era a assembléia popular,constituída diretamente pelos cidadãos, e não por repre-sentantes deles.

"Demos": ou damos, termo que significa povo. Comoocorre na atualidade, também na Antiguidade era umtermo ambíguo ou polissêmico, já que em certos con-textos de uso se referia ao conjunto dos cidadãos, e emoutros às pessoas comuns, à parte mais pobre da popu-lação.

Eqüestre, classe: A mais alta categoria censitária na Romarepublicana, por extensão passou a designar os cidadãosmais ricos, mas que não eram membros da nobilitas. C.Nicolet insiste no fato de que o que os distinguia nãoera única ou principalmente a riqueza, mas o prestígio:como a nobilitas; tratava-se de uma categoria "cívica".

Sob o Principado ou Alto Império, foi transformadanum estamento de clara definição jurídica (ordo eques-ter).

Estamento: "Uma ordem ou estamento é um grupo defi-nido em termos jurídicos no interior de uma dada popu-lação, gozando de privilégios e sendo afetado por inca-pacidades bem regulamentadas em um ou vários do-mínios de atividades - governamental, militar, legal,econômico, religioso, matrimonial -, além de estar si-tuado numa relação hierárquica com os demais esta-mentos" (M. I. Finley).

Fratria: Termo derivado de palavra indo-européia que sig-nifica "irmão"; é possível que a fratria designasse irman-dades ou bandos de guerreiros. As fratrias eram subdi-visões das tribos "étnicas" gregas - as quais tinhamtambém, de início, um caráter marcadamente militar.

Genoi, fratrias e tribos eram, em sua origem, gruposexclusivamente aristocráticos; na Atenas da época dePéricles, porém, pertencer a uma fratria era a marca dalegitimidade do cidadão.

"Genos": Plural genoi. Família extensa aristocrática grega,cujos membros se julgavam descender de um antepas-sado comum, com freqüência um semideus ou um heróimítico.

"Gens": Plural gentes. O equivalente latino do genos grego.Antigamente se acreditava que a gens, ao se dissociar,deu origem às famílias restritas; hoje há autores que,com bons argumentos, pretendem que, pelo contrário,a gens resultou da união de famílias aristocráticas, noprocesso de constituição do patriciado como aristocra-cia fechada.

Meteco: Estrangeiros domiciliados numa pólis grega eramconsiderados metecos, isto é, homens livres mas sem di-reitos políticos. Prestavam serviço militar, pagavam osmesmos impostos que os cidadãos, mais um imposto es-

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pecial. Podiam possuir bens móveis e escravos, mas nãocasas e terras. Os escravos libertos e seus descendentespassavam a ser metecos. Em Atenas, os metecos eramna sua maioria gregos de outras cidades, mas entre eleshavia também fenícios, frígios, egípcios, etc. Espartaproibia o estabelecimento de metecos em seu território,efetuando periodicamente a expulsão dos estrangeiros(xenelasia) .

"Nobilitas": Nobreza patrício-plebéia formada progressiva-mente a partir da concessão dos casamentos mistos (445a.C.). Embora tendesse à hereditariedade, não era pro-priamente uma aristocracia de sangue, e sim uma no-breza cívica, formada pelas famílias que contassem commembros que, após exercer as mais altas magistraturasda República romana, entrassem para o Senado. Sobo Alto Império ou Principado, transformou-se num es-tamento com existência legal.

Oligarquia: Neste livro usamos o termo para caracterizarum regime político onde os cargos públicos são reser-vados a cidadãos que satisfaçam certos requisitos depropriedade ou renda anual: tal regime era chamado"plutocracia" por Xenofonte e "timocracia" por Aris-tóteles.

Ostracismo: Instituição que permitia à Eclésia ou assem-bléia popular de Atenas privar de direitos políticos eexpulsar por dez anos um cidadão considerado perigosoou prejudicial à ordem pública. Não se tratava de cas-tigo infamante: o ostracisado não perdia seus bens, e aovoltar recuperava automaticamente todos os direitos decidadão. E: possível que o ostracismo também tenhaexistido em Argos e Siracusa.

Patriciado: Nome dado aos patrícios, nobreza romana desangue que formava uma aristocracia fechada, baseadanuma sólida organização em gentes, cúrias e tribos.

Plebe: O oposto do patriciado: pessoas que não perten-ciam à nobreza e não tinham organização gentilícia (gen-tem non habere). Em função de seu conflito com ospatrícios, os plebeus também chegaram a formar umaverdadeira ordem, ou um estamento juridicamente defi-nido, no seio da organização político-social da Romarepublicana.

"Pólis": Cidade-Estado grega. Para os gregos, definia-se,não pelo território, mas pelo conjunto dos cidadãos.Plural: póleis.

"Populus": Termo latino que equivale ao termo gregodemos e tem a mesma ambigüidade, já que tanto serefere ao conjunto dos cidadãos romanos quanto às pes-soas comuns, aos pobres.

Simaquia: Liga de cidades-Estados gregas com finalidadesde defesa militar, contando com um Conselho federal eum tesouro comum em certos casos; em princípio, pelomenos, as póleis que formavam uma simaquia manti-nham sua independência.

Sinecismo: Movimento de concentração da população quedava origem a uma pólis. Alguns dos sinecismos de quefalam as fontes são lendários, ou pelo menos não com-provados historicamente: é o caso daquele atribuído aTeseu e que deu origem a Atenas; outros são, porém,comprovadamente históricos (vários deles ocorreram noPeloponeso durante a E:poca Clássica).

Tirania: Para Xenofonte, governo de uma só pessoa ba-seado não na lei, e sim apenas na vontade do tirano.A tirania era um governo pessoal baseado em tropasmercenárias e no apoio das massas populares, instaladoà revelia da ordem aristocrática ou oligárquica anterior,razão pela qual era considerado "ilegal".

Tribo: Ao estudar a Antiguidade clássica, é preciso dis-tiguir as tribos "étnicas" - ou seja, cuja origem não

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era conhecida, sendo por tal razão consideradas comoagrupamentos "naturais", como as quatro tribos dos jô-nios, as três dos dórios, as três da Roma primitiva, etc.- das tribos "topográficas", claramente artificiais. Asprimeiras se ligavam à organização gentilícia, o que nãoacontecia no caso das últimas. Em ambos os casos,porém, as tribos eram circunscrições cívicas e militaresque tinham muito pouco ou nada em comum com astribos de que falam os antropólogos ao descrever povospré-estatais.

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. 7,. Bibliografia comentada

Coletâneas de fontes primárias traduzidas

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1. CRAWFORD,Michel & WHITEHEAD,David. Archaicand classicaZGreece. Cambridge, Cambridge Univer-sity Press, 1983.Contém 350 textos antigos, distribuídos em quatropartes e 34 temas, cobrindo o período completo datrajetória histórica das póZeisgregas, tal como o con-sideramos neste livro.

2. FORNARA,Charles W. Archaic times to the end of thePeloponnesian War. 2. ed. Cambridge, CambridgeUniversity Press, 1983.Consta de 170 seleçõesde textos e, como na coletâneaanterior, a história política e constitucional ocupa umlugar importante.

3. HARDING,Phillip. From the end of the PeZoiJOnnesianWar to the BattZe of Ipsus. Cambridge, CambridgeUn.iversityPress, 1985.Trata-se da continuação do tomo anterior e seus 140textos cobrem o período de 404 a 300 a.C.

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4. LEWIS, Naphtali & REINHOLD,Meyer. Roman civi/i-zation, Sourcebook I - The Republic. Nova York,Harper & Row, 1966.As 193 passagens de fontes antigas se distribuem emoito partes e cobrem bem os diversos aspectos da Re-pública romana, incluindo os político-constitucionais.

Obras' gerais

1. FINLEY, M. I. Politics in the ancient world. Cam-bridge, Cambridge University Press, 1983.Trata-se da melhor síntese disponível acerca da his-tória política da cidade-Estado clássica. Opondo-se- com razão - aos cientistas políticos que, tal comocertos sociólogos, "pulverizam a noção de poder", oAutor se propõe estudar a política antiga nas mani-festações do poder do Estado, não vendo distinçãosignificativa entre Estado e governo, apesar dos meta-físicos da política. O livro aborda sucessivamente, àsvezes comparando e às vezes opondo Grécia a Roma,sempre com muita inteligência, as temáticas seguintes:política; autoridade e patrocínio; Estado, classe epoder; participação popular; questões e conflitos polí-ticos; ideologia.

2. FOWLER,W. Warde. The city-State 01 the Greeh andRomans. 9. reimpr. Londres, Macmillam, 1916.Sem o brilho de Fustel de Coulanges, esta síntese noentanto envelheceu melhor, podendo ainda ser lidacom muito proveito, tendo-se, como é natural, o cui-dado de confrontá-Ia com a bibliografia mais recente,para saber distinguir o que já está ,superado no texto.

3. MEIER, Christian. lntroduction à l'anthropologie poli-tique de l'Antiquité classique. Paris, Presses Univer-sitaires de France, 1984.

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r Quatro conferências pronunciadas no College deFrance por este especialista alemão. Descambando àsvezes para posições francamente idealistas, elas con-têm, no entanto, úteis considerações acerca das espe-cificidades da política na Antiguidade clássica. O úl-timo texto, relativo a Roma, é o melhor.

4. STARR,Chester G. A history 01 the ancient world.2. ed. Nova York, Oxford University Press, 1974.Livro didático que, no relativo às póleis gregas e àcidade-Estado entre etruscos e romanos, apresenta umasíntese simples e quase sempre confiáveI.

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Grécia

11 1. DAVIES,J. K. Democracy and elassical Greece. 3.impr. Glasgow, FontanajCollins, 1984. (FontanaHistory.of the Ancient World).História dos séculos V e IV a.C., com ênfase na de-mocracia ateniense. Síntese atualizada, com freqüentecitação de passagens de fontes primárias no texto.

2. FINLEY,Moses, I. Los griegos. In: CASSIN,E. et aI.Los imperios dei antiguo Oriente, lU - La primeramitad deI primer milenio. Madri, Siglo XXI, 1971.p. 255'-305. (Historia Universal Siglo XXI, 4).Este capítulo é um bom resumo da história grega nostempos homéricos e na E:poca Arcaica. Contém umaexposição das origens da pólis e sua evolução até oséculo VI a.c., com atenção especial aos casos deAtenas e Esparta.

3. - . Vieja y nueva democracia. Trad. de A. Pérez--Ramos. Barcelona, Ariel, 1980.Coletânea de artigos, destacando-se o penetrante para-lelo entre a democracia ateniense e as democracias domundo moderno.

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4. - . Esparta. In: - . Uso y abuso de Ia historia.Trad. de A. Pérez-Ramos. Barcelona, Crítica, 1977.p. 248-72.Excelente síntese das estruturas espartanas e sua evo-lução, com os fatores políticos e militares bem situa-dos no contexto social.

5. FLACELIERE,Robert. A vida quotidiana dos gregosno século de Péricles. Trad. de V. Motta. Lisboa,Livros do Brasil, s.d.Ao tema deste livro interessam os capítulos 11, IX eX da obra de Flaceliêre, que tratam da vida política,da justiça e dos aspectos militares da Atenas do séculoV a.C.

6. FORREST,W. G. A history of Sparta 950-192 R.C.Nova York, W. W. Norton & Company, 1969.Exposição sistemática da história espartana, sendo deespecial interesse as p. 40-60, que tratam das refor-mas atribuídas ao lendário Licurgo.

7. GLOTZ, Gustave. La cité grecque. "L'évolution deI'humanité". Paris, Albin Michel, 1968. (L'évolutionde I'humanité). (Em português: A cidade grega, SãoPaulo, DIFEL, 1980).Nesta obra clássica, publicada pela primeira vez em1928, achar-se-á uma exposição sistemática e com-pleta da origem e da trajetória histórica da pólis atéa conquista macedônica. Embora continue muito útil,naturalmente é preciso levar em conta as correções emudanças de perspectiva introduzidas pela bibliogra-fia mais recente.

8. LÉVÊQUE,Pierre. A aventura grega. Trad. de R. M.Rosado Fernandes. Lisboa, Edições Cosmos, 1967.Trata-se de um dos melhores livros disponíveis comovisão de conjunto sobre a Grécia antiga, envelhecidoem alguns aspectos. As questões políticas e constitu-cionais recebem bastante atenção.

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f 9. MossÉ, Claude. Les institutions grecques. Paris, Ar-mand Colin, 1967. (ColIection U 2).A melhor exposição didática que conhecemos das insti-tuições políticas gregas na época clássica, sendo o textoda autora enriquecido pela ilustração proporcionadapor bem escolhida coletânea de sessenta passagens defontes primárias.

10. MURRAY,Oswyn. Early Greece. 2. impr. Glasgow,Fontana/CoIlins, 1983. (Fontana History of the An-cient WorId) .Síntese atualizada da história grega dos tempos homé-ricos às guerras médicas, com excelentes capítulossobre a organização e a vida política das cidades-Es-tados.

11. SEAGER,Robin. Elitism and democracy in cIassicalAthens. In: JAHER,F. C., ed. The fich, the wellborn,and the powerful. Secaucus (New Jersey), The Cita-dei Press, 1973. p. 7-26.Este artigo, muito documentado, mostra de que ma-neira foi racionalizada ideologicamente a liderança defato exercida por homens de origem aristocrática sobrea Atenas democrática.

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Os etruscos e Roma

1. BLOCH,Raymond & COUSIN,Jean. Roma e o seudestino. Trad. de M. A. MagalhãesGodinho. Lisboa,Edições Cosmos, 1964.Síntese que, sem a qualidade da já citada de P. Lévê-que, dá uma visão de conjunto acerca dos etruscos(Livro I, capítulo 11) e da história romana; os capí-tulos 11e IV do Livro 11 são os que interessam maisespecificamenteao tema deste livro.

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2. BRUNT,P. A. Conflits sociaux en République ro-ma;ne. Trad. de M. Legras-Wechsler. Paris, Fran-çois Maspero, 1979.Livro útil para pôr os desenvolvimentospolíticos econstitucionais da República romana num contextoeconômico-social.

3. CRAWFORD,Michael. The Roman Republic. Glasgow,Fontana/Collins, 1978. (Fontana History of the An-cient World).Boa visão geral da República romana em todos osseus aspectos. Não se deve esquecer de consultar osapêndices sobre as assembléias, o exército, os eqües-tres e os comandos especiais.

4. HEURGON,Jacques. Rome et Ia Méditerranée occi-dentale. Paris, Presses Universitairesde France, 1969.(Nouvelle Clio, 7).Manual universitário de bom nível, contendo bons ca-pítulos sobre os etruscos e as instituições romanas noperíodo da 'Realeza e nos dois primeiros séculos daRepública.

5. HOMO,Léon. Les ;nst;tut;ons polit;ques roma;nes.Paris, Albin Michel, 1970. (L'évolution de l'huma-nité) .Livro antigo, publicado pela primeira vez em 1927,mas que, como o de Glotz na mesma coleção - aoqual, no entanto, é inferior -, ainda pode ser útildesde que corrigido pela bibliografia mais recente.

6. NICOLET,Claude. Rome et Ia conquête du mondeméditerranéen, 1 - Les structures de I'Italie romaine.2. ed. Paris, Presses Universitaires de France, 1979.(Nouvelle Clio, 8).Um dos melhores manuais da coleção, contém nume-rosos capítulos (VI a XII) acerca das instituições eda vida política na Roma republicana.

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7. - . Le mét;er de citoyen dans Ia Rome républica;ne.Paris, Gallimard, 1976.Este livro nasceu, diz o Autor, de um sentimento desurpresa e remorso: a história da República romanaé quase sempre uma história que gira ao redor da oli-garquia que a dominava. Nicolet quis explorar omundo do cidadão comum, nas suas relações com avida política e militar.

8. OGILVIE,R. M. Early Rome and the Etruscans. Glas-gow, Fontana/Collins, 1976. (Fontana History of theAncient World).Como os outros volumesjá citados da mesma coleção,trata-se de uma boa síntese. Cobre o período da Rea-leza romana e dos inícios da República. Os etruscossão tratados unicamente em função de Roma.

9. PALLOTTlNO,Massimo. Etruscología. Trad. de J. Fer-nández Chitti. Buenos Aires, EUDEBA, 1965.Livro introdutório sobre os etruscos, escrito pelomaior especialista no tema. O capítulo VI é o quese refere à organização político-social.

10. PALMER,Robert E. A. The archaic communityofthe Romans. Cambridge, CambridgeUniversity Press,1970.Tentativa de interpretação das mais antigas institui-ções romanas, centrada na questão das cúrias. Con-tém um importante apêndice sobre os patrícios e suaparticipação nas magistraturas no início da República.

11. STOCKTON,David. The Gracchi. Oxford, ClarendonPress, 1979.Excelente análise político-social da atuação dos Gra-cos e da República na segunda metade do século11 a.C.

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