CARDOSO, A. (2008) Escravidão e sociabilidade capitalista um ensaio sobre inércia social

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  • Um ensaio sobre inrcia social

    Adalberto Cardoso

    71NOVOS ESTUDOS 80 MARO 2008

    RESUMO

    Apoiando-se em estudos historiogrficos que a partir dos

    anos 1980 empreenderam uma ampla reviso da histria social do trabalho no Brasil, o artigo apresenta algumas hip-

    teses sociolgicas sobre a permanncia de traos estruturais do passado escravista no processo de construo da socia-

    bilidade capitalista no pas. Esse legado compreenderia uma percepo rebaixada do trabalho manual, uma imagem

    depreciativa do negro e mesmo do elemento nacional como trabalhadores, uma indiferena das elites quanto s maio-

    rias pobres e uma hierarquia social extremamente rgida. Segundo o autor, esse quadro de inrcia estrutural ditou os

    parmetros gerais da reproduo do trabalho livre nos primrdios da ordem capitalista no Brasil.

    PALAVRAS-CHAVE: Brasil; histria social do trabalho; escravido;

    trabalho livre; capitalismo.

    SUMMARY

    Based on historiographical studies that since 1980s have

    undertaken a broad review of the social history of labor in Brazil, the article presents some sociological hypotheses

    about the permanence of structural features of slavery past in the process of building of the capitalist sociality in the

    country. This legacy includes a depreciated perception of manual work, a derogatory image of black and even national

    people as workers, an indifference of the elites toward poor majorities, and an extremely rigid social hierarchy. Accor-

    ding to the author, this framework of structural inertia provided the general parameters of free labors reproduction in

    the beginning of capitalist order in Brazil.

    KEYWORDS: Brazil; social history of labor; slavery; free labor; capitalism.

    Nas duas ltimas dcadas a histria social do traba-lho passou por profunda reviso no Brasil, resultado da rotinizao dainvestigao emprica rigorosa em grupos de pesquisa estveis emdiversas instituies acadmicas, que levou descoberta de novas fon-tes, explorao inovadora de antigos documentos, proliferao denovas hipteses e ao surgimento de categorias explicativas renovadas.Este ensaio sobre a inrcia social brasileira se vale dessa nova historio-grafia para formular algumas hipteses sociolgicas sobre o padro deincorporao dos trabalhadores nos primrdios da ordem capitalistano Brasil.Sugiro aqui que a escravido deixou marcas muito profundasno imaginrio e nas prticas sociais posteriores, operando como umaespcie de lastro do qual as geraes sucessivas tiveram grande dificul-

    ESCRAVIDO E SOCIABILIDADE CAPITALISTA

  • [1] Nesse sentido, o texto deve serlido como uma introduo ao argu-mento geral, cujos desdobramentossero dados a pblico oportuna-mente. Gostaria de registrar que asidias aqui apresentadas foram gesta-das ao longo de dois cursos ministra-dos no Iuperj em 2006 e 2007, sobretransio para o trabalho livre e for-mao de classe no Brasil. Aos mes-trandos e doutorandos que me hon-raram com sua dedicao e debates,meus sinceros agradecimentos. Exi-mo-os, obviamente, dos equvocosque porventura permaneceram.

    [2] Cf. Negro, Antonio Luigi e Go-mes,Flavio.Alm de senzalas e fbri-cas: uma histria social do trabalho.Tempo Social, vol. 18, n- 1, 2006, pp.217-40. Para uma sntese abrangentedessa nova historiografia, ver Fra-goso, Joo. O imprio escravista e arepblica dos plantadores. In: Li-nhares, Maria Y. (org.). Histria geraldo Brasil. 9- ed. Rio de Janeiro: Cam-pus, 2000, pp. 144-87 (cujas tesescentrais so radicalizadas em Idem eFlorentino, Manolo. O arcasmo comoprojeto. Rio de Janeiro: CivilizaoBrasileira, 2001).

    [3] Costa, Emilia V. da. Da senzala Colnia. 2- ed. So Paulo: CinciasHumanas, 1982 [1966]; Da Monar-quia Repblica: momentos decisivos.7-ed. So Paulo: Ed. Unesp, 1999; Con-rad, Robert. Children of Gods fire: adocumentary history of Brazilian sla-very. Pensilvnia: Pennsylvania StateUniversity Press, 1994; Eisenberg,Peter L. The sugar industry of Pernam-buco: modernization without change,1840-1919. Berkeley: University ofCalifornia Press, 1974; Homens esque-cidos: escravos e trabalhadores livres noBrasil.Campinas:Ed.Unicamp,1989;Klein,Herbert S.The trade in Africanslaves to Rio de Janeiro, 1795-1811.The Journal of African History, vol. 10,n- 4, 1969, pp. 533-49; Russel-Wood,A. J. R. Autoridades ambivalentes: oEstado do Brasil e a contribuio afri-cana para a boa ordem na Repblica.In: Silva, Maria Beatriz N. da (org.).Brasil: colonizao e escravido. Rio deJaneiro: Nova Fronteira, 1999, pp.105-23;Escravos e libertos no Brasil colo-nial. Rio de Janeiro: Civilizao Brasi-leira,2005;Schwartz,Stuart B.Slaves,peasants and rebels: reconsidering Brazi-lian slavery.Chicago:University of Illi-nois Press, 1992; Segredos internos:engenhos e escravos na sociedade colo-nial.So Paulo:Cia.das Letras,1995.

    dade de se livrar. Em torno dela construram-se uma tica do trabalhodegradado, uma imagem depreciativa do povo ou do elemento nacio-nal, uma indiferena moral das elites quanto s carncias da maioria euma hierarquia social de grande rigidez,vazada por enormes desigual-dades.Esse conjunto de heranas conformou o ambiente que acolheu otrabalho livre no final do sculo XIX e no incio do sculo XX, ditando-lhe os parmetros mais gerais de reproduo. o carter multidimen-sional da herana escravista na sociabilidade capitalista que pretendoreconstituir aqui, como primeiro passo de um argumento mais geralsobre as condies de reproduo da desigualdade social no Brasil1.

    A LENTA TRANSIO PARA O TRABALHO LIVRE

    Aspecto saliente da reviso historiogrfica em curso o reconheci-mento da escravido como momento da histria do trabalho no pas2.Por razes no inteiramente evidentes, mas que tero mais a ver comdinmicas disciplinares do que com a ordem do mundo, os estudossobre escravido fazem parte da genealogia de um ramo da investiga-o social que se poderia denominar relaes raciais, enquanto ainvestigao sobre a constituio da sociedade do trabalho no pasencontrou seu momento inaugural na imigrao europia. No erapara ser necessariamente assim,haja vista que um pensador eminentecomo Florestan Fernandes se interessou primeiramente pelo destinodo ex-escravo,porque via em sua figura marginal (ou desajustada)a expresso das mazelas da construo da ordem social competitiva,ou de nossa revoluo burguesa.Fernando Henrique Cardoso e Oct-vio Ianni, seguidores do mestre, tambm se dedicaram ao tema namesma chave.Na historiografia, bom lembrar o trabalho fundador deEmilia Viotti da Costa e os estudos de historiadores brasilianistascomo A. J. R. Russell-Wood, Stuart Schwartz, Robert Conrad, PeterEisenberg e Herbert Klein,para citar apenas alguns dos que se dedica-ram ao destino social dos ex-escravos ainda na ordem escravista3.

    A razo para essa diviso disciplinar talvez resida em certo enca-deamento de idias defendido a partir dos anos 1950,segundo o qualo capitalismo moderno brasileiro teria surgido em So Paulo, com oque seria suficiente buscar ali suas razes socioeconmicas. Issomesmo depois de Celso Furtado ter demonstrado, nos mesmos anos1950, que, se os capitais liberados pelo caf estavam na origem daacumulao industrial paulista (e brasileira, por extenso), o capita-lismo no Brasil era desigual mas integrado,de modo que o destino doNordeste ou da Amaznia no estava desconectado da dinmica pau-lista.Como resultado,a vasta literatura sobre a consolidao do capi-talismo e do mercado de trabalho no Brasil teve um inegvel carterso-paulocntrico.

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    [4] A reviso historiogrfica sobre atransio para o trabalho livre no seaplica apenas ao caso brasileiro. Verpor exemplo, para o caso argentino epara uma viso geral sobre as Amri-cas, respectivamente, Johnson, Ly-man L.The competition of slave andfree labor in artisanal production:Buenos Aires, 1770-1815. In: Brass,Tom e Linden,Marcel van der (orgs.).Free and unfree labour. Berna: PeterLang, 1997, pp. 265-80; Turner, Mary(org.). From chattel slaves to wage sla-ves: the dynamics of labour bargainingin the Americas. Kingston: Ian Ran-dle, 1995. De modo algo radical,Marcel van der Linden (Rumo auma nova conceituao histricada classe trabalhadora mundial.Histria [Unesp], vol. 24, n- 2, 2005,pp.11-40) prope uma reviso da his-tria da classe trabalhadora mundial.

    [5] Essa questo, analisada no livroseminal de Celso Furtado, Formaoeconmica do Brasil (Rio de Janeiro:Fundo de Cultura,1959),era candentena percepo das elites cafeicultoras deSo Paulo, como mostrou WarrenDean em Rio Claro: um sistema brasi-leiro de grande lavoura (Rio de Janeiro:Paz e Terra,1977).O tema foi retomadocom grande propriedade por Clia M.M. Azevedo em Onda negra, medobranco: o negro no imaginrio das elites Brasil, sculo XIX(Rio de Janeiro:Paze Terra,1987,esp.caps.II e III).Em rela-o ao Nordeste,ver Andrade,ManuelC. de. A terra e o homem do Nordeste. 4-ed. So Paulo: Cincias Humanas,1980 [1963],pp.88-93.

    [6] Palcios, Guillermo. Imagin-rio social e formao do mercado detrabalho: o caso do Nordeste auca-reiro do Brasil no sculo XX. RevistaBrasileira de Cincias Sociais, n- 31,1996 (pp. 123-39), pp. 127-28.

    [7] No Nordeste, a abolio ocor-reu sem grandes reajustamentos e osex-escravos foram incorporados svrias fraes do campesinato nor-destino. Seu destino foi, subseqen-temente, condicionado pela imobili-dade econmica e social da regio(Hasenbalg, Carlos. Discriminao edesigualdades raciais no Brasil. BeloHorizonte: Ed. UFMG, 2005 [1979],p. 164). Esse mesmo autor chamou aateno para a excepcionalidade pau-lista, extensiva ao modo de incorpo-rao do negro no mercado de traba-lho capitalista em expanso (cf.Idem.O negro na indstria:proletarizao

    A concentrao das verbas de pesquisa naquele estado foi condionecessria desse desdobramento,mas no suficiente.To importantequanto esse fator foi a noo de modernidade que presidiu a elabora-o dos programas de pesquisa econmica e social no apenas na USP,mas tambm no Iseb,na UFRJ e na FGV.Segundo essa noo,um pasem busca de um lugar na senda da modernidade deveria ser capitalista,industrial e urbano, demarcando sua posio no concerto das naes,ademais,a partir de uma posio autodeterminada,o que s seria pos-svel se conseguisse criar condies endgenas de desenvolvimentoeconmico.Residir a ao menos parte da explicao para o fato de queat muito recentemente a transio para o trabalho livre tenha sidointerpretada na chave da imigrao estrangeira,estabelecendo-se umaruptura cabal entre o passado escravista e o novo ambiente competi-tivo. Tudo se passou como se a ordem escravocrata tivesse sido enter-rada com a Abolio, no transferindo ao momento posterior nada desua dinmica (e inrcia) mais geral. Qualificando e tornando maiscomplexa essa interpretao, literatura mais recente permite a formu-lao de fortes hipteses que enfatizam, ao lado das evidentes ruptu-ras, profundas continuidades do passado escravista no processo deconstruo da ordem capitalista no Brasil4.

    A primeira hiptese de que o modelo paulista de transio parao trabalho livre no foi de modo algum tpico ou representativo dosdesdobramentos verificados no restante do pas. Em muitos senti-dos,So Paulo foi exceo,j que apenas ali a imigrao se apresentou(e foi implementada) como a nica soluo possvel para aquilo queos contemporneos perceberam como o problema da mo-de-obra5. Em estados como Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Bahia,Pernambuco, Cear ou Maranho as funes de produo (agrcolaou nas minas, nos pampas ou na cidade) foram sendo paulatina-mente assumidas por ex-escravos ou seus descendentes,alm de bra-sileiros livres, os quais, antes vistos como agentes apenas intersti-ciais na ordem escravista, tiveram seu status social inteiramenterevisto por novas pesquisas.Em Pernambuco,por exemplo, j no in-cio dos anos 1870, quando a imigrao ganhara as mentes da elitepaulista, a maior parte do trabalho rural era realizada por homenslivres que haviam sido expropriados de suas pequenas propriedadesa partir de fins do sculo XVIII, como mostrou Palcios6. Segundo oautor, isso fez parecer aos analistas da transio para o trabalho livreque em Pernambuco o processo teria sido suave,indolor,quandona verdade a (violenta) expropriao do campesinato j ocorreradcadas antes, liberando a mo-de-obra que a lavoura da canademandaria a partir de 1850, poca em que se intensificou a perda deescravos para o caf paulista. Isso se passou em todo o Nordeste7,bem como em Minas Gerais e no Sul: quando teve incio a imigrao

  • tardia e desigual. In: Idem e Silva,Nelson do V. Relaes raciais no Brasilcontemporneo. Rio de Janeiro: RioFundo, 1992, pp. 101-18).

    [8] Fragoso, O imprio escravista ea repblica dos plantadores, op. cit.

    [9] Cf. Eisenberg, The sugar industryof Pernambuco, op. cit., e Homens es-quecidos, op. cit.

    [10] Cf. Andrade, op. cit., pp. 90-91.

    [11] Cf.Schwartz,Slaves, peasants andrebels,op.cit.,e Segredos internos,op.cit.

    [12] Cf. Karasch, Mary C. A vida dosescravos no Rio de Janeiro 1808-1850. So Paulo: Cia. das Letras,2000 [1987]; Chalhoub, Sidney.Vises da liberdade: uma histria dasltimas dcadas da escravido na Corte.So Paulo: Cia. das Letras, 1990; Flo-rentino, Manolo (org.). Trfico, cati-veiro e liberdade: Rio de Janeiro, sculosXVIII-XIX.Rio de Janeiro:CivilizaoBrasileira, 2005.

    [13] Estimativas de Debret para o Riode Janeiro apontam que em quinzeanos um escravo de ganho teria acu-mulado recursos suficientes paracomprar sua liberdade (cf. Fragoso,O imprio escravista e a repblicados plantadores,op.cit.;Karash,op.cit.).Sobre o caso dos escravos de alu-guel na cidade de So Paulo, em mui-tos sentidos semelhante situao naCorte, ver Dias, Maria Odila L. da S.Quotidiano e poder em So Paulo nosculo XIX. 2- ed. So Paulo: Brasi-liense, 1995.

    estrangeira para So Paulo, o trabalho cativo representava apenasuma pequena minoria. Esses desdobramentos nos levam a conside-rar que no houve uma s transio para o trabalho livre (ou, comoprefere Fragoso, no-escravo, j que nos sculos XVIII e XIX boaparte dos homens livres estava submetida a diversos tipos de traba-lho forado8), mas vrias transies ocorridas em distintos momen-tos histricos nas diferentes regies do pas.

    As diferenas regionais quanto ao ritmo da transio so reflexo deoutro aspecto relevante da ordem escravista: a existncia de diversosregimes de escravido.Sabe-se hoje com muito mais propriedade queeram diferentes os padres de sujeio dos cativos nos canaviais dePernambuco ou da Bahia, nos pampas gachos, nas minas de ouro ediamantes das Gerais, nos cafezais do Vale do Paraba, em cidadespequenas do interior de So Paulo,numa cidade grande como o Rio deJaneiro ou no interior dos engenhos de acar. Neste ltimo caso, porexemplo, hierarquias ocupacionais distinguiam os escravos segundoa qualificao para o uso adequado do maquinrio, a capacidade deproduo do acar com determinado padro de qualidade etc.,gerando expectativas de ascenso social e de alforria que no existiamnos campos de cana ou de algodo9.

    No Nordeste, pequenos proprietrios de escravos tendiam a terrelao menos predatria com sua fora de trabalho, comprada a pre-os altos para os padres econmicos da maioria.Permitiam a consti-tuio de famlias e no raro alforriavam cativos em seus testamentos.A baixa capitalizao de boa parte dos proprietrios nordestinos,ade-mais, fez que a escravido convivesse com o trabalho livre (ou no-escravo) nos momentos de maior demanda por trabalho, como o dacolheita da cana10.Roceiros mais ou menos independentes dos poten-tados locais eram acionados sazonalmente para o trabalho nas terrasdos donos de escravos11. Isso foi menos freqente nas regies maisricas ou nos grandes engenhos,capazes de adquirir a escravaria de quenecessitavam para o trabalho.

    Na cidade do Rio de Janeiro,os escravos tinham muita liberdade demovimento, j que boa parte de seus senhores vivia justamente de seutrabalho como vendedores ambulantes, condutores de palanquins,carregadores de gua ou dejetos para as famlias e toda sorte de serviocompatvel com sua condio de escravos de ganho ou de aluguel12,muitos dos quais conseguiram comprar sua alforria com o peclioacumulado13. Isso contrastava profundamente com o cativeiro do cafno Vale do Paraba, caracterizado por extensas jornadas e diminutaspossibilidades de manumisso. Alm disso, a escravido do sculoXIX foi diversa, sobretudo de 1850 em diante, quando o preo doescravo sofreu acrscimos sucessivos e tornou irracional o uso preda-trio que dele se fazia nos sculos anteriores.

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  • [14] O clssico Casa-grande & senzala,de Gilberto Freyre, foi escrito nessaperspectiva simplificadora da estru-tura social da Colnia. Anlise siste-mtica que influenciou geraes depesquisadores foi Formao do Brasilcontemporneo, de Caio Prado Jnior.

    [15] Cf. Schwartz, Segredos internos,op. cit., pp. 357-59.

    [16] Cf. Luna, Francisco V. e Klein,Herbert S. The slave economy andsociety of So Paulo, 1750-1850. Stan-ford: Stanford University Press,2003, p. 122.

    [17] Cf., respectivamente, ibidem, p.166; Eisenberg, The sugar industry ofPernambuco, op. cit.; Moura, DeniseA. S. de. Saindo das sombras: homenslivres no declnio do escravismo.Campi-nas: CMU, 1998.

    [18] Cf. Machado, Cacilda. O pa-triarcalismo possvel. Revista Brasi-leira de Estudos Populacionais, vol. 23,n- 1, jan./jun., 2006, pp. 167-86 (oartigo retoma a contundente crticado modelo freyriano de patriarca-lismo formulada em Corra, Mariza.Repensando a famlia patriarcal bra-sileira. In: Arantes Neto, Antonio A.A. e outros. Colcha de retalhos: estudossobre a famlia no Brasil. 3a ed. Campi-nas: Ed. Unicamp, 1994). A autorarevela que em So Jos dos Pinhais,estado do Paran, 58% dos donos deescravos possuam somente de um aquatro cativos.

    [19] Cf., por exemplo, Kowarick, Lu-cio. Trabalho e vadiagem: a origem dotrabalho livre no Brasil.So Paulo:Bra-siliense, 1987; Souza, Laura de M. e.Desclassificados do ouro: a pobreza mi-neira no sculo XVIII. 4- ed. Rio de Ja-neiro: Graal, 2004 [1982].

    A identificao de diferentes regimes de escravido mostrou que oBrasil-colnia no era um territrio dominado exclusivamente porplantations monocultoras,nem a sua estrutura social to simples comose sups at pelo menos incios dos anos 197014. Escravos e donos deterras eram sem dvida as classes centrais, mas havia uma infinidadede outros grupos tambm importantes para a sustentabilidade daordem escravista, que incluam artesos e artfices nos ofcios urba-nos, comerciantes, tropeiros, criadores de animais, pequenos produ-tores de vveres para o mercado interno, mercadores de escravos,financistas,milicianos,construtores,feitores,pequenos proprietriosrurais produzindo para si mesmos etc. Mais ainda, a grande extensode terra ocupada por monocultura e empregando centenas de escravosfoi exceo no perodo colonial e depois.

    De fato,censo realizado na Bahia em 1788 registrou nmero mdiode escravos por propriedade variando de quatro a 11,7 nas diversasregies do Recncavo Baiano.Em 1816-17,quando a populao escravarepresentava perto de 31% da populao brasileira,a mdia para todo oRecncavo era de 7,2 escravos por proprietrio. verdade que os 10%mais ricos detinham pelo menos metade da escravaria,mas ainda assima mdia de escravos nessas grandes propriedades era de 34 pessoas15.Propores semelhantes foram encontradas nas herdades paulistas nastrs primeiras dcadas do sculo XIX:em 1804 apenas 1% das proprie-dades agrcolas tinha quarenta escravos ou mais,e ocupava 13% do totalde escravos;em 1829 esses nmeros haviam crescido,mas ainda assimas grandes propriedades correspondiam a apenas 3% do total, ocu-pando 24% dos escravos16.A mdia geral no ultrapassava sete escravospor proprietrio. A situao no era muito distinta no mesmo perodoem algumas cidades de Minas Gerais,na Zona da Mata em Pernambucoou no interior paulista17.Em certas regies do Paran a escravido j noera importante na segunda metade do sculo XVIII, e as propriedadesvoltadas para a produo de bens de subsistncia eram geridas porfamlias que em nada se assemelhavam, por exemplo, s famliaspatriarcais pernambucanas estudadas por Gilberto Freyre18.

    Uma importante conseqncia da identificao de diferentes regi-mes de escravido foi a constatao de que j a partir do sculo XVIII otrabalho escravo conviveu com diversos regimes de trabalho no-escravistas. Isso quer dizer que a transio para o trabalho livre (ouno-escravo) foi muito lenta, tendo um marco apenas convencionalem 1850,ano da proibio do trfico negreiro.Homens livres ou liber-tos se avolumaram ao longo dos sculos, obtendo meios de vida cujasformas perderam cada vez mais o cariz intersticial que lhes atribuiu aliteratura at meados dos anos 198019.

    verdade que as taxas de mortalidade dos escravos no Brasil erammuito altas em comparao,por exemplo,com as dos Estados Unidos,

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  • [20] Por exemplo, a que se encontraem Furtado, op. cit., cap. 21.

    [21] Schwartz, Segredos internos, op.cit., p. 303.

    [22] Sobre os escravos de ganho noRio de Janeiro, ver Karash, op. cit.;Sampaio,Antnio Carlos J.A produ-o da liberdade: padres gerais dasmanumisses no Rio de Janeiro colo-nial 1650-1750. In: Florentino(org.), op. cit., pp. 287-329. Para ocaso de Minas Gerais, ver Russell-Wood,Escravos e libertos no Brasil colo-nial, op. cit., cap. 7.

    [23] Cf. Fragoso, O imprio escra-vista e a repblica dos plantadores,op. cit., p. 155.

    [24] Os estudos mais importantesnessa direo, principalmente sobreo sculo XVIII, so de Russell-Wood(Escravos e libertos no Brasil colonial,op. cit.). Uma tima reviso da vastabibliografia produzida at a dcadade 1980 encontra-se em: Schwartz.Slaves, peasants and rebels, op. cit.

    [25] Cf. Oliveira Vianna, Francisco J.Resumo histrico dos inquritoscensitrios realizados no Brasil,1920 (, aces-sado em setembro de 2007).

    [26] A sociedade medieval europiaproduziu seus desclassificados, oudesadaptados, como aponta Geor-ges Duby (Economia rural e vida nocampo no Ocidente medieval. Lisboa:Edies 70, 1987), mas como peque-nas minorias,no como o destino maisprovvel dos no-escravos. Ver tam-bm Castel, Robert. As metamorfosesda questo social: uma crnica do sal-rio.Petrpolis:Vozes,1998,pp.119ss.

    e nisso a historiografia recente corrobora a interpretao corrente20.Compilando dados de inmeras fontes, Schwartz mostrou que noBrasil do ltimo quarto do sculo XIX a expectativa de vida dos escra-vos ao nascer variava em torno de 19 anos21. O horror que essa cifracausa ao leitor contemporneo s no maior quando se sabe que aesperana de vida de um brasileiro no-escravo era de apenas 27 anosem 1879. Nos Estados Unidos, a expectativa de vida dos escravos erade 35,5 anos por volta de 1850, apenas 12% menor do que a da popu-lao total e muito superior de um brasileiro mdio.As condies devida na Colnia e at muito longe no sculo XIX eram ruins para todose muito piores para os escravos. Isso levou Schwartz a concluir que osistema no se sustentaria sem o trfico atlntico e a contnua reposi-o da escravaria, morta aos milhares a cada ano.

    Se isso verdade isto ,se o sistema escravista brasileiro foi alta-mente predatrio em relao fora de trabalho escrava , tambm certo que a manumisso foi elemento constitutivo dos diversos regi-mes de escravido no pas.Nos engenhos de acar da Bahia ou de Per-nambuco, nas minas de ouro das Gerais, nos campos de gado do Sul,na cidade do Rio de Janeiro, nos cafezais paulistas, nas plantaes dealgodo do Nordeste,em toda parte se alforriavam mulheres emprega-das nas casas-grandes, filhos ilegtimos dos brancos ou escravosvelhos,doentes e incapazes para o trabalho.Muitos cativos,diligentes,compraram sua alforria com o fruto de seu trabalho escravos deganho no Rio de Janeiro e em Minas Gerais so exemplos clssicos,mas no nicos22. Na cidade de Campinas, em 1829, 8,6% dos pro-prietrios de um a nove escravos eram negros ou pardos23,o que indicapossibilidades reais no apenas de liberdade como tambm de ascen-so social de ex-cativos e seus descendentes. Ademais, sabe-se que osescravos fugiam em grande nmero, o que gerou grande tenso socialdurante todo o sculo XIX.

    Portanto, a transio para o trabalho livre no Brasil no foi neces-sariamente uma transio para o trabalho capitalista ou assalariado24.Ao longo dos sculos,os cativos e/ou seus descendentes se libertaramda escravido e passaram a compor a populao no diretamenteenvolvida com a economia escravista, que com o tempo se avolumouem virtude da miscigenao. Em 1850, quando cessou o trficonegreiro,havia cerca de dois milhes de escravos numa populao esti-mada em oito milhes de almas25, das quais mais de 90% viviam nocampo. A fora de trabalho j no era majoritariamente escrava. Ocenso demogrfico de 1872 contou perto de dez milhes de brasilei-ros, dos quais 1,5 milho de cativos. Como considerar intersticiais, ousem lugar, os 75% de brasileiros que j no eram escravos em 185026?Esse grupo heterogneo, mestio, majoritariamente miservel, dis-perso pelo territrio nacional e afeito migrao constante em busca

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  • [27] A populao [brasileira] cresceuvertiginosamente ao longo dos scu-los XVIII e XIX, as terras foram apro-priadas pelo capital e a pauperizaocrescente obrigou-a a contnuos des-locamentos (Moura, op. cit., p. 27).No mesmo perodo, o Brasil meridio-nal, por exemplo, serviu de plo deatrao para vasta populao no-branca livre ou liberta vinda de outrasregies, que se instalou nos campospara produzir bens de subsistncialonge da dinmica econmica maisgeral da Colnia (cf. Lima, Carlos A.M. Sertanejos e pessoas republica-nas: livres de cor em Castro e Guara-tuba 1801-35. Estudos Afro-Asiti-cos, vol. 24, n- 2, 2002, pp. 317-44).Maria Sylvia de Carvalho Franco (Ho-mens livres na ordem escravocrata. SoPaulo: tica, 1976) mostra como onomadismo caracterizava as popula-es pobres na ordem escravista,aspecto decisivo da frouxido de seuslaos sociais. Ver tambm Huggins,Martha K. From slavery to vagrancy inBrazil. New Brunswick: Rutgers Uni-versity Press, 1985.

    [28] Ver Costa,Da Monarquia Rep-blica, op. cit., pp. 310-11; Fragoso, Oimprio escravista e a repblica dosplantadores, op. cit.

    [29] Como ocorrera em Pernambucono sculo XVIII, conforme mostrouPalcios, op. cit.

    [30] Na feliz expresso de Jos deSouza Martins (O cativeiro da terra.SoPaulo: Cincias Humanas, 1979), acondio para o fim do cativeiro de se-res humanos era tornar a terra cativa.

    [31] Como pretender que homensque plantavam o suficiente parasobreviver, que viviam ao deus-dar,se submetessem, em troca de parcossalrios, ao penoso trabalho exigidonas fazendas? Trabalhar como assala-riados na grande lavoura significava,para eles, equiparar-se condio deescravos (Costa, Da Monarquia Repblica, op. cit., p. 311).

    [32] Cf., entre outros, Huggins, op.cit.; Holloway, Thomas H. Polcia noRio de Janeiro: represso e resistncianuma cidade do sculo XIX. Rio deJaneiro: Ed. FGV, 1997; Vellasco, Ivande A. As sedues da ordem: violncia,criminalidade e administrao da jus-tia Minas Gerais, sculo 19. Bauru:Edusc, 2004; Russel-Wood, Autori-dades ambivalentes, op. cit.

    de meios de vida27 no participava diretamente do setor dinmico daeconomia (que ento se deslocava para as lavouras de caf de SoPaulo),mas era parte da dinmica social mais geral. certo que os meios desobrevivncia ao alcance desse grupo eram restritos e altamente prec-rios, muitas vezes gravitando em torno das grandes propriedades, demodo que poderiam ser considerados cativos de outros mecanismosde sujeio,como o colonato e a parceria,mas ainda assim seu status erainequvoco,mesmo que definido na negativa:era um grupo compostopor no-escravos28.

    CONSEQNCIAS DA LENTA TRANSIO

    Esse processo de lenta construo de uma populao livre que,embora no diretamente envolvida no universo das relaes socioeco-nmicas definidoras da estrutura hegemnica da Colnia e do Imp-rio, no pode ser considerada intersticial ou suprflua foi decisivopara o que se seguiu ao final da escravido. Atenho-me a cinco desdo-bramentos relevantes para aquilo que me interessa aqui, isto , a con-figurao social que deu sentido s relaes de classe tecidas nos in-cios da constituio da ordem social competitiva no Brasil.

    Em primeiro lugar, a opo paulista pela imigrao como soluopara o problema da mo-de-obra, em detrimento do elementonacional, expresso patente da grande inrcia da estrutura social emcrise.Os capitalistas de So Paulo chegaram a considerar acumulaoprimitiva29 como uma espcie de desdobramento da Lei de Terras de1850,que vedou o acesso s terras devolutas aos que no as pudessemcomprar, com isso impedindo ao ex-escravo e ao futuro imigranteacesso legal a uma gleba30. Contudo, a grande questo que movia ospaulistas era se o elemento nacional era exproprivel.H muito ele vivia,em grande nmero, integrado sociedade escravista em condies desobrevivncia precrias (mas estveis), no diretamente associadas produo mercantil31. Talvez fosse possvel obrigar os vadios a ven-der sua fora de trabalho por lei,sob pena de priso ou castigos fsicos.Mas quanto seria preciso estender a noo de vadiagem para abrangertodos os que a lavoura de caf em expanso demandava,incluindo,porexemplo, os pequenos posseiros ou os proprietrios de terras ou ani-mais espalhados pelo vasto territrio provincial? Essa alternativarequeria um efetivo policial ramificado no territrio, o que no exis-tia32, ou ento milcias privadas de grande envergadura, impensveisnum momento em que os capitais disponveis estavam todos compro-metidos com a lavoura cafeeira.

    Mas a inrcia se manifestava em outra dimenso, mais profunda,porque fruto direto do impacto dos sculos de escravido no imagin-rio da elite paulista.Os debates na Assemblia Legislativa da provncia

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  • [33] Cf. os debates transcritos emAzevedo, op. cit., esp. pp. 125ss. Vertambm Dean, op. cit., pp. 95-124.

    [34] Fernandes, Florestan. A integra-o do negro na sociedade de classes. 3aed. So Paulo: tica, 1978, pp. 31-33.

    [35] Nas palavras de um observadorestrangeiro j em pleno sculo XX:Onegro indolente; o trabalho lhe ins-pira um profundo horror; ele s sepermitir ser levado a ele por fome ousede (Denis, Pierre. Brazil. Londres,1911,apud Andrews,George R.Blackand white workers: So Paulo, Brazil,1888-1928. The Hispanic AmericanHistorical Review, vol. 68, n- 3, 1988[pp. 491-524], p. 515).

    [36] [P]ara o branco, o trabalho,principalmente o trabalho manual,era visto como obrigao de negro,deescravo [...].A idia de trabalho traziaconsigo uma sugesto de degrada-o (Costa, Da senzala Colnia, op.cit., p. xi).

    [37] Sobre o processo de conversodo outro opaco em aliengenamonstruoso e por isso inacessvel emsua identidade, ver Kearney, Richard.Strangers, gods and monsters. Lon-dres/Nova York: Routledge, 2003.Lilia M.Schwarcz (Retrato em branco enegro: jornais, escravos e cidados emSo Paulo no final do sculo XIX. SoPaulo: Cia. das Letras, 1987) articulaengenhoso argumento sobre o pro-cesso de construo do negro brasi-leiro pela imprensa da segunda me-tade do sculo XIX como violento edegenerado e, depois, como estra-nho e estrangeiro.

    durante os anos 1870 e seguintes, confrontando posies imigrantis-tas e contrrias, revelam a forte resistncia de parte majoritria da elitegovernante a incorporar o elemento nacional lavoura de caf por meioda combinao de incentivos monetrios e represso vadiagem33.A resistncia combinava preconceito racial e desprezo pelo trabalhadorlivre nacional,visto como preguioso,inconfivel e privado de mentali-dade moderna (burguesa,acumulativa), j que se satisfazia com muitopouco, de modo que no podia ser submetido ou disciplinado porincentivos pecunirios.Ademais,boa parte do elemento nacional tinhacor, e homem de cor, assim imaginava a elite paulista, s se submetiapela fora e pelo ltego.Parecia impensvel tentar sua adeso voluntriaao trabalho. Nesse aspecto, reveladora a carta do conselheiro PaulaSouza transcrita por Florestan Fernandes em seu clssico sobre a inte-grao do negro na sociedade de classes34,na qual ele argumenta ao des-tinatrio que os negros libertos trabalhavam do mesmo modo comofaziam quando escravos simplesmente porque precisam de viver e dealimentar-se,e,portanto,de trabalhar,coisa que eles compreendem embreve prazo [depois da libertao]. Pressuposta nessa argumentaoest a concepo obviamente compartilhada pelo destinatrio deque a nica maneira de arrancar trabalho desse bruto era a fora,j queele parecia geneticamente propenso preguia e vagabundagem. OConselheiro, que aprendera rapidamente como funcionava o mercadode trabalho livre,sabia que a fome era o melhor corretivo para presumi-das propenses atvicas preguia35.

    A percepo preconceituosa do destinatrio da missiva decorriado segundo desdobramento da inrcia da ordem anterior: a degrada-o do trabalho manual pela escravido36.Por muitos sculos,a justi-ficativa racional,legal e teolgica para o cativeiro do negro africano foisua indelvel impureza, seus costumes brbaros, pagos, portantoherticos, sua inferioridade, sua opaca e assustadora alteridade37.Nesse aspecto, e somente nele, o escravo no Novo Mundo tinha omesmo estatuto do escravo grego ou romano na clebre formulaode Hegel:ele reconhecia seu senhor como tal em sua liberdade e indi-vidualidade (enquanto um ser-para-si),mas este no o reconhecia damesma maneira;como o escravo fosse coisa,natureza,ser-em-si,por-tanto incapaz de liberdade (ou de conscincia de si), sua identidade(como alteridade) era inacessvel ao senhor. No mundo antigo,porm,a escravizao derivou de uma luta em que um dos oponentes(o vencedor) colocava sua liberdade acima de tudo,enquanto o outro(o perdedor) desejava sobretudo a vida, estando por isso disposto aabrir mo de sua prpria liberdade. Para Hegel, a sujeio do escravo,ainda que resultasse do desequilbrio de foras entre os oponentes,tinha um inegvel aspecto de consentimento, na medida em que odesejo do mais fraco pela vida (ou pela autopreservao) o levava

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  • [38] Cf. Hegel, G. W. F. Fenomenologiado esprito. Trad. Paulo Menezes.Vozes: Petrpolis, 1992, pp. 126-34.

    submisso quele que desejava a liberdade, a qual podia assegurarpor ser mais forte38.

    Na escravido moderna, a dialtica da dominao escravista nopode ser lida seno como metfora. claro que o escravo define seusenhor,no sentido de que este no seria livre sem a existncia daquele.Nem sua identidade de senhor seria apreensvel (no sentido de verda-deira) sem a posse do corpo do outro como capacidade de manipula-o e transformao da natureza,da qual o senhor,por isso mesmo,sedistancia, interpondo entre si e a coisa (natureza) o desejo subjugadodo outro,coisificado por sua vez. claro tambm que por isso mesmoa liberdade do senhor se torna imediatamente subordinao coisi-dade do escravo,sem o qual seu acesso natureza (ou sua sobrevivn-cia material) no seria possvel. O senhor est condenado a ou escravo de seu escravo. Mas cessa aqui a imanncia do processo,pelo menos por trs motivos.

    Primeiro, porque no caso do Novo Mundo a guerra que ops osdesejos dos dois agentes no os confrontou diretamente.O escravo foicapturado em terra longnqua por agente intermedirio com quem ofuturo senhor se relacionava pela mediao do mercado.Para o escravo,o senhor um ente abstrato,que muda de rosto medida que foraele deixa sua tribo, fora embarca num navio negreiro onde sua vidaestar constantemente em risco, fora vendido numa praa pblicae encaminhado a seu proprietrio talvez final. Preferir a vida, nessecaso,materializa-se na constante confrontao do escravo com aqueleque precisa afirmar sua superioridade fsica, seus recursos desiguais,seu desejo de sujeio do outro no para se apropriar dos frutos de suamanipulao da natureza,mas para se apropriar do escravo como mer-cadoria. O mercador de escravos no o senhor de Hegel seno numsentido muito metafrico,e a metfora,nesse caso,no ajuda em nadaa compreenso da relao de sujeio. O mercador (ou seu prepostofeitor) no outra coisa seno violncia crua,imediatamente desuma-nizadora de ambos, feitor e escravo.

    Em segundo lugar, a guerra de sujeio do escravo no se d deuma vez por todas, e o escravo no consente de uma vez por todas.A relao de subjugao deve ser reposta todo dia por todo novosenhor, especialmente pelo destinatrio final da mercadoria, quetem de lidar com a manuteno de coletividades inteiras de escravos.Aqui tambm a dialtica hegeliana da subordinao consentida nopode ser lida seno como metfora. O escravo moderno no escolhe avida, j que a escravido simplesmente uma sentena de morte,ainda que cumprida num prazo mais longo do que aquelas que termi-nam no patbulo ou no cadafalso. Como demonstrou Schwartz, umescravo baiano que sobrevivesse dez anos numa fazenda com qua-renta escravos veria todo o plantel ser renovado por morte, no raro

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  • [39] Schwartz, Segredos internos,op. cit.

    [40] Viso compartilhada pelo juris-ta inaciano Alonso de Sandoval, pelopadre Antnio Vieira, pelo huma-nista Maurcio de Nassau e por tan-tos outros no sculo XVII (cf. Alen-castro, Luiz Felipe de. O trato dosviventes: formao do Brasil no AtlnticoSul. So Paulo: Cia. das Letras, 2000,esp. cap. 5). Mesmo abolicionistasradicais como Joaquim Nabuco (Oabolicionismo. Rio de Janeiro: NovaFronteira, 1999, pp. 142-45) viam oafricano como um ser de sangueviciado, uma ndoa pregada na faceda nacionalidade pelos portugueses.

    [41] [A populao do interior brasi-leiro] foi por mais de trs sculosacostumada a considerar o trabalhodo campo como prprio de escravos.Sada quase toda das senzalas, elajulga aumentar a distncia que asepara daqueles no fazendo livre-mente o que eles fazem forados (Na-buco, op. cit., pp. 164-65).

    [42] Sobre a viso do trabalhadornacional por proprietrios de terra devrias regies como incapaz, pregui-oso, indolente,portanto inepto parao trabalho, ver Eisenberg. Homensesquecidos, op. cit.; The sugar industryof Pernambuco, op. cit., pp. 194-98.Sobre a percepo da elite paulista,ver Dean, op. cit.; Azevedo, op. cit.

    por suicdio39. O senhor precisava do escravo coletivo, mas prescindiada pessoa de cada escravo em particular.

    Aqui se revela o carter tirnico da dominao escravista no NovoMundo e em especial no Brasil, onde a escravido foi particularmentecruenta e predatria: o senhor podia tomar qualquer deciso quanto vida de seu escravo, conforme seu arbtrio. Se considerasse que umescravo o ameaava, podia mandar cortar seus ps, ceg-lo, suplici-locom chibatadas ou mat-lo.A relao senhor/escravo no era um pacto:o senhor no estava obrigado a preservar a vida de seu escravo indivi-dual;muito ao contrrio,sua liberdade de tirar a vida daquele que coisi-ficara definia sua posio de senhor,tanto mais quanto o fluxo de escra-vos no mercado lhe permitia repor o plantel sem maiores restries.Entre ns,a escravido no foi apenas negao do escravo como pessoa(sua coisificao), mas sua negao como ser vivo. Est-se falando desculos de horror ao longo dos quais a escravido, dilapidando os cor-pos negros dos cativos e corrompendo as mentes de seus senhores,pre-cisava ser reposta dia aps dia e com violncia sempre renovada, des-truindo constantemente um dos plos da dialtica hegeliana, que porisso precisava ser constantemente reposto. A escravido longeva aca-bou por abstrair o rosto do escravo, despersonalizando-o e coisifi-cando-o de maneira reiterada e permanente. Ao final restava apenas asua cor,definitivamente associada ao trabalho pesado e degradante.

    Por fim, a metfora hegeliana no leva em conta o fato de que abusca do negro africano como mo-de-obra escrava tinha sua desu-manidade como pressuposto. Nesse sentido, o negro no foi coisifi-cado pela escravido.Portugueses,espanhis,holandeses,ingleses oufranceses viam os africanos de antemo como seres brbaros, comoescravos da necessidade, logo como coisa, opaca em sua individuali-dade. Da a transform-los em mercadoria era um passo menor, queto-somente os desterritorializava sem interferir em sua essncia decoisa mas que poderia salvar sua alma ao arranc-los do universopago em que habitavam40.

    Desse modo, a degradao ex ante do negro africano deteriorou otrabalho que ele, como coisa, executava. A longevidade da escravido,que em seu aspecto predatrio despersonificou o cativo, proporcio-nou a construo da imagem do trabalho manual como algo indignode outro que no o negro,o qual,ainda que atavicamente propenso aono-trabalho por brbaro e de sangue viciado, podia ser dobradopela fora41. A imagem do trabalho e do trabalhador consolidada aolongo da escravido fez-se portanto da sobreposio de hierarquiassociais de cor, de status social associado propriedade e de dominaomaterial e simblica, numa mescla de sentidos que convergiram paraa percepo do trabalho manual como algo degradado42.Dizendo-o demodo mais enftico,a tica do trabalho oriunda da escravido foi uma

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  • [43] Algo semelhante ocorreu naFrana da primeira metade do sculoXIX, onde o trabalho industrial foiencarado, por exemplo, como cor-ruptor das faculdades mentais, con-forme se diz no Dictionnaire dco-nomie politique [1891-92] de Lon Saye Joseph Chailley, citado por Castel(op. cit., p. 288) em meio a outrasapreciaes sobre o operariado (br-baros, vil multido...) que, segun-do ele, teriam configurado um ra-cismo antioperrio amplamentedifundido [na] burguesia do sculoXIX. Em conseqncia, o movi-mento operrio afirmou, desde a suaorigem,a dignidade do trabalho bra-al e sua preeminncia social en-quanto verdadeiro criador das rique-zas como aspectos decisivos daconstruo da identidade de classe(ibidem, p. 443; ver tambm Thomp-son, Edward P. A formao da classeoperria inglesa, vol. 2. Rio de Janeiro:Paz e Terra, 1987). Deu-se o mesmono Brasil nos incios do sculo XX,como sugerem,entre outros,Evaristode Moraes Filho (O problema do sindi-cato nico no Brasil. So Paulo: Alfa-mega, 1952), Everardo Dias (Hist-ria das lutas sociais no Brasil. SoPaulo: Edaglit, 1962), Boris Fausto(Trabalho urbano e conflito social. SoPaulo: Difel, 1977), e Michael M. Halle Paulo Srgio Pinheiro (Classe oper-ria no Brasil. So Paulo: Brasiliense,1981, vol. II).

    [44] Como bem demonstrou Franco,op. cit.

    [45] Cf., respectivamente,Eisenberg,The sugar industry of Pernambuco, op.cit.; Dean, op. cit., e Azevedo, op. cit.;Carvalho, Jos Murilo de. A constru-o da ordem: a elite poltica imperial.Braslia: Ed. UnB, 1980.

    [46] Cf.Costa,Ana Paula P.Estrat-gias sociais e construo da autori-dade. Mneme (UFRN), vol. 7, n- 18,out./nov. 2005, pp. 469-514.

    tica de desvalorizao do trabalho,e seu resgate do ressaibo da impurezae da degradao levaria ainda muitas dcadas43.

    O terceiro desdobramento importante da lenta transio para otrabalho livre, estreitamente ligado aos anteriores, que o aparato definanciamento, reproduo, superviso e represso do trabalhoescravo, altamente descentralizado e com frouxos controles por partedo Imprio portugus e depois brasileiro, consolidou um padro deviolncia estatal e privada que sobreviveu ao fim da escravido, trans-ferindo-se para diversas esferas da relao entre o Estado e o mundodo trabalho. Com efeito, o processo de consolidao das foras derepresso e administrao da justia no Brasil Colnia e at muitolonge no sculo XIX conferiu grande poder aos potentados locais narepresso e no julgamento dos atos considerados desviantes.OliveiraVianna e Gilberto Freyre chamaram a ateno para o problema. Naordem patriarcal brasileira,o senhor de engenho ou grande propriet-rio de terras tinha poder de vida e morte sobre sua famlia e seus escra-vos. A disperso das fazendas no vasto territrio nacional que difi-cultava a ao de possvel fora policial centralizada e sua relativaautonomia em termos de auto-sustento que reduzia as trocas eco-nmicas entre elas e no estimulava a interdependncia dos agenteseconmicos nem os tornava dependentes dos humores da poltica, oque os distanciava dos negcios do Estado teriam conduzido hipertrofia da vida privada,de modo que qualquer interferncia de for-as policiais nas relaes senhor/escravo era vista como ingernciaindevida do poder pblico44.

    Parte dessa interpretao foi matizada por pesquisa historiogr-fica mais rigorosa, que mostrou, por exemplo, que os senhores deengenho em Pernambuco eram tambm os deputados federais,gover-nadores, prefeitos e altos gerentes da mquina estatal, inclusive poli-cial; que os legisladores paulistas que decidiram pela imigraoestrangeira eram em boa parte senhores de terra; e que mesmo osbacharis gestores do Imprio no Rio de Janeiro provinham da eliteagrria de suas provncias de origem45. Portanto, os negcios doEstado no eram indiferentes aos grandes proprietrios,mas o princi-pal se mantm: a marca das relaes sociais at finais do sculo XIX(com heranas evidentes no sculo XX) foi a privatizao dos mecanis-mos de controle social, em meio qual o Estado funcionou comoaliado subsidirio do proprietrio de escravos no disciplinamento desua mercadoria. Isso decorreu em parte da tradio portuguesa decontrole social, baseada em milcias civis mobilizveis a qualquermomento pelos homens de bem em nome da Coroa, maneira poresta encontrada de fazer-se presente em todo o territrio imperial,masna forma de poder delegado, o que conferia grande autonomia e arb-trio aos poderosos locais46.

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  • [47] Cf. Holloway, op. cit.; Karasch,op. cit.

    [48] Holloway, op. cit., p. 215.

    [49] Para o caso paulista, ver Fausto,Boris. A criminalidade em So Paulo,1880-1924. So Paulo: Brasiliense,1984. Ao citar a descrio por umdelegado de poltica de uma jovem de20 anos acusada de furto em 1892 Trata-se de uma preta, de estaturaregular, cabelos encarapinhados,olhos grandes, bons dentes, lbiosgrossos , portanto com termostpicos do mercado de escravos, oautor se pergunta: Simples vestgiode um velho hbito ainda existentenos anos imediatamente posteriores Abolio, em vias de desaparecer?Nada indica isso (p.54).Ver tambmPinto, Maria Inez M. B. Cotidiano esobrevivncia: a vida do trabalhadorpobre na cidade de So Paulo 1890-1914. So Paulo:Edusp,1994.Sobre ocaso baiano, ver Fraga Filho, Walter.Encruzilhadas da liberdade: estrias deescravos e libertos na Bahia 1870-1910.Campinas:Ed.Unicamp,2006.

    [50] Cf. Chevalier, Louis. Classeslaboriouses et classes dangereuses Parispendant la premire moiti du XIXmesicle. 2a ed. Paris: Hachette, 1984[1958].

    [51] Cf. Thompson, Edward P. A for-mao da classe operria inglesa, vol.III. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989,pp. 256ss.

    [52] Cf. Tocqueville, Alexis de. Lem-branas de 1848: as jornadas revolucio-nrias em Paris. So Paulo: Cia. dasLetras, 1991.

    [53] Cf. Reis, Joo Jos. Rebelioescrava no Brasil: a histria do Levantedos Mals em 1835. So Paulo: Cia. dasLetras, 2003.

    A renovao da organizao do controle social no sculo XIX man-teve essas prerrogativas, como o demonstra, no mbito do Rio deJaneiro, a existncia do Calabouo, onde agentes penitencirios apli-cavam chibatadas em escravos levados at ali expressamente paraesse fim. At pelo menos os anos 1830 o proprietrio no precisavaprovar que seu cativo havia cometido um delito: simplesmente enca-minhava o delinqente com a indicao de quantas chibatadasdeveria levar (em geral duzentas),com isso eximindo a si e sua fam-lia do espetculo da tortura, que muitas vezes levava o condenado morte47. O Calabouo perdurou at a dcada de 1870, cumprindoessa mesma funo entre outras. Segundo Holloway, no Rio deJaneiro do incio do sculo XIX,

    a polcia funcionava como extenso, sancionada pelo Estado, do domnioda classe proprietria sobre as pessoas que lhe pertenciam. A polcia cres-ceu acostumada a tratar os escravos e as classes inferiores livres demaneira semelhante, e com a diminuio do nmero de escravos na popu-lao aps meados do sculo as atitudes e prticas do sistema de repressoforam aos poucos sendo transferidas para as classes inferiores no-escra-vas e perduraram48.

    No h razo para supor que o padro prevalecente na capital doImprio no teria se reproduzido em outras paragens urbanas49, quedir rurais. Por outro lado e este aspecto decisivo , a virtual ine-xistncia de conflitos externos que requeressem a profissionalizaode fora nacional voltada proteo de nossas fronteiras fez que oembrio de exrcito constitudo no sculo XIX e as milcias locais sededicassem construo e represso de inimigos internos. Evidente-mente, as classes laboriosas foram encaradas como classes perigosasem toda parte do mundo e em vrios momentos da histria ociden-tal50. O massacre de Peterloo, em Manchester, em 181951, a cruentarepresso do operariado durante as jornadas revolucionrias de1848 em Paris52 e o Domingo Sangrento em So Petersburgo, em1905, so exemplos da exorbitncia das foras da ordem na repressoa movimentos por vezes pacficos em suas intenes (como os dePeterloo e So Petersburgo), o que denota o imenso temor das classesdominantes diante das maiorias despossudas.

    No Brasil, a viso do escravo como potencial inimigo coletivorecrudesceu no imaginrio das elites em seguida revoluo haitianade 1804, que libertou o pas do colonizador francs massacrando-ocruelmente.O medo de catastrfica rebelio escrava que pusesse fim civilizao de corte europeizante acentuou-se a partir de 1835 com aRevolta dos Mals na Bahia53, ponto culminante de uma srie de atri-tos e levantes que contriburam para criar no pas a idia da agressivi-

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  • [54] Nas Minas Gerais, no sculoXVIII,era comum que escravos empu-nhassem armas na defesa dos inte-resses da Coroa, como mostra AnaPaula Costa (Estratgias sociais econstruo da autoridade, op. cit.) aexemplo desta passagem: Em 1719,temendo atos sediciosos por parte dapopulao negra da capitania, [oconde de Assumar] informava ao reique se agravava o clima de tenso por-que os negros tinham a seu favor asua multido e a nscia confiana deseus senhores,que no s lhes fiavamtodo gnero de armas,mas encobriamsuas insolncias e delitos (pp. 495-96). A idia da multido negraameaadora sinnima da ondanegra da segunda metade do sculoXIX, estudada por Azevedo (op. cit.).

    [55] Enquanto no sul dos EstadosUnidos o nmero de chibatadas pormalfeito no ultrapassava 25, noBrasil era comum supliciar os cativoscom duzentos ou mais golpes, muitasvezes ministrados por outros escravos.

    [56] Exemplos podem ser encontra-dos em Dean, op. cit.; Azevedo, op.cit.; Schwartz, Segredos internos, op.cit.; Carvalho, Jos Murilo de. Os bes-tializados: o Rio de Janeiro e a repblicaque no foi. So Paulo: Cia. das Letras,1987; Machado, Maria Helena. Oplano e o pnico: os movimentos sociaisna dcada da Abolio. Rio de Janei-ro/So Paulo:Ed.UFRJ/Edusp,1994.

    [57] Fernandes, op. cit., pp. 56-57.

    [58] Carvalho, Os bestializados, op.cit., p. 113.

    [59] Cf. ibidem, p. 115. Ver tambmSevcenko, Nicolau. A Revolta daVacina: mentes insanas em corpos rebel-des. So Paulo: Brasiliense, 1984;Pinheiro, Paulo Srgio. Estratgia dailuso: a revoluo mundial e o Brasil,1922-35. So Paulo: Cia. das Letras,1991; Bretas, Marcos Luiz. A guerradas ruas: povo e polcia na cidade do Riode Janeiro. Rio de Janeiro: ArquivoNacional, 1997; Misse, Michel.Malandros, marginais e vagabundos:acumulao social da violncia no Rio deJaneiro. Rio de Janeiro: tese de douto-rado em sociologia, Iuperj, 1999.

    [60] Apud Santos,Marco Antonio C.dos.Polcia e trabalhadores urbanosem So Paulo (1890-1920). Lcus(UFJF), vol. 11, n-s 1/2, 2005 (pp. 33-50), p. 35.

    dade dos escravos, que mantinha seus senhores em tenso perma-nente54.Parte da ferocidade dos castigos infligidos aos cativos por aquiter decorrido desse medo superlativo55, com motivaes mais imagi-nrias do que reais. No caso de So Paulo, com o fim do trfico atln-tico em 1850 e a importao de escravos de outras provncias brasilei-ras,em especial do Nordeste,a percepo do inimigo interno foi aindamais decisiva para a construo do padro de represso aos negrosrevoltosos, combinando foras privadas e estatais em reaes de vio-lncia extremada menor manifestao de resistncia escrava56.Como bem marcou Florestan Fernandes,

    prevaleceu [na sociedade escravocrata] a orientao de impedir todo flores-cimento da vida social organizada entre os escravos e os libertos,por causa dotemor constante da rebelio negra. Como escrevia Perdigo Malheiros[em 1866], o escravo aparecia como um inimigo domstico e um inimigopblico: o vulco que ameaa constantemente a sociedade, a minapronta a fazer exploso menor centelha57.

    Durante a Revolta da Vacina,ocorrida no Rio de Janeiro em 1904,arepresso estatal reproduziu em grande medida o padro dos automa-tismos exacerbados que o medo da rebelio dos cativos gerava nascamadas dominantes dcadas antes. Jos Murilo de Carvalho apontaque no Brasil de ento,

    em caso de revoltas populares,nunca havia processo contra o grosso dos pre-sos. Processavam-se apenas os lderes, muitas vezes elementos da elite. Osrestantes eram simplesmente colocados em navios e desterrados para algumponto remoto. Nem mesmo passavam pela Casa de Deteno, onde teriamficado registrados seus dados pessoais58.

    Est-se falando,no caso dessa revolta,de algumas centenas de pes-soas degredadas sem julgamento ou formao de prova,enquanto aosoutros milhares de revoltosos no se reconhecia participao volunt-ria na crise, preferindo-se trat-los como incautos manipulados pordesordeiros e desclassificados perspectiva compartilhada porluminares como Rui Barbosa, Olavo Bilac e muitos outros59.

    No final do sculo XIX, o medo das hordas de desconhecidosainda estava presente no imaginrio das elites paulistas. Em 1893,Siqueira Campos,secretrio de Justia de So Paulo,apontava ao pre-sidente do Estado, Bernardino de Campos, que a possvel causa dasensao de insegurana experimentada pelos paulistanos era oaumento crescente da populao e principalmente [...] de uma popu-lao flutuante, que no se pode conhecer e que se renova demomento a momento60. O medo, aqui como ento, era o medo do

    83NOVOS ESTUDOS 80 MARO 2008

  • [61] Nesse aspecto, note-se que, du-rante quase toda a Primeira Rep-blica, anarquistas, socialistas, grevis-tas, feministas, sindicalistas etc.,quando presos, eram indistinta-mente fichados como contravento-res, portanto, como inimigos daordem pblica (cf. Fausto. A crimina-lidade em So Paulo, op. cit., p. 34).

    [62] Apud Santos, op. cit., p. 35.

    [63] Freyre, Gilberto. Casa-grande &senzala. 29a ed. Rio de Janeiro: Re-cord, 1994 [1933].

    [64] Ver Versiani, Flvio R. Os es-cravos que Saint-Hilaire viu.HistriaEconmica & Histria de Empresas,vol.3, n- 1, 2000, pp. 7-42.

    [65] Frank Tannenbaum,em seu cls-sico Slave and citizen (Boston: BeaconPress, 1946), foi decisivamente in-fluenciado pelas formulaes deFreyre, vendo na miscigenao e napossibilidade de ascenso social domulato (explicao freyriana para osucesso de nossa democracia ra-cial) uma possvel sada para o di-lema racial norte-americano.

    [66] Sobre o estudo de Freyre, verArajo, Ricardo B. de. Guerra e paz:Casa-grande & senzala e a obra de Gil-berto Freyre nos anos 30. Rio deJaneiro: Ed. 34, 2005.

    [67] Freyre, op. cit., p. 52.

    [68] Versiani, op. cit., p. 7. O autorcita o texto de Conrad (op. cit.), queargumenta que a tese da benignidadeteria se originado numa campanhapublicitria do governo brasileiro.

    desconhecido, daquilo que no podia ser controlado ou dominadoporque no estava submetido aos mecanismos da dominao tradi-cional. Era o medo do outro opaco, annimo, que s podia ser contidopela represso brutal e indiferenciada61.

    Siqueira Campos afirmava ainda que esse sentimento de medo einsegurana destoava da fisionomia geral do nosso povo62,que seriapacfico. Esse ponto de vista anuncia a quarta conseqncia da lentatransio para o trabalho livre: no mbito das relaes sociais entrecapitalistas e operrios, com o incio da industrializao, persiste apercepo do trabalhador brasileiro pelas elites econmicas comopacfico, ordeiro ou cordial, por oposio aos imigrantes, porta-dores de ideologias aliengenas como o anarquismo ou o comunismo.A noo do brasileiro pacfico freqenta o mesmo campo semnticoda idia de que nossa escravido teria sido benigna (na clssica for-mulao de Gilberto Freyre em Casa-grande & senzala63). Ambassupem classes subalternas que conhecem seu lugar,o que por con-seguinte legitima a represso e a violncia (privada e estatal) quandoessas mesmas classes se rebelam ou afirmam sua autonomia.

    A idia da escravido benigna foi cultivada ainda no sculo XIX,e deveu muito lavra de viajantes como Auguste de Saint-Hilaire,Henry Koster e John Luccock,em cujos livros comum encontrar apre-ciaes favorveis sobre o tratamento dispensado aos escravos nopas64. Essas apreciaes influenciaram profundamente o trabalho deGilberto Freyre,que por sua vez deixou sua marca em muito do que seescreveu sobre a escravido no Brasil nos anos 1940 e 50, sobretudopor investigadores norte-americanos interessados em nossa demo-cracia racial65. Freyre atribuiu ao caritativo catolicismo portugus e influncia moura (ou rabe) no modo de organizao da famlia colo-nial a estrutural benevolncia do senhor de escravos no Brasil, emcomparao aos escravocratas norte-americanos, por exemplo66. verdade que Freyre no desconsiderava aquilo que chamava de atitudesadista de certos senhores de engenho,fruto de um arranjo em que aviolncia sempre estava no horizonte do controle e da submisso doscativos. O sadismo do mando sustentaria a tradio conservadorano Brasil67,de modo que estaria no centro do equilbrio de nossa vidapoltica, mas a crueldade contra os escravos seria exceo, no regra, eno teria vigncia na casa-grande (esse tipo ideal da ordem social bra-sileira,segundo o mesmo Freyre),sendo por vezes necessria no tratodo cativo da lide da terra.

    Essa imagem foi contestada desde o bero por abolicionistas devria estirpe como uma propaganda antiabolicionista do Imprio vol-tada a difundir um quadro rseo da situao dos escravos68 e comisso justificar o cativeiro. Ademais, a ideologia da benignidade tevede se haver com o temor de uma rebelio escrava nos moldes da ocor-

    84 ESCRAVIDO E SOCIABILIDADE CAPITALISTA Adalberto Cardoso

  • [69] Cf. Azevedo, op. cit.; Moura,Clvis. Rebelies das senzalas. 3a ed.So Paulo: Cincias Humanas, 1981.

    [70] Cf. Holloway, op. cit.

    [71] Em 1831,aps debelar um motimde soldados republicanos, o RegenteFeij afirmou que o brasileiro no foifeito para a desordem,que o seu natu-ral [a] tranqilidade e que ele noaspira outra coisa alm da Constitui-o jurada, do gozo de seus direitos ede suas liberdades (apud Patto,Maria Helena S. Estado, cincia epoltica na Primeira Repblica: a des-qualificao dos pobres. EstudosAvanados, vol. 13, n- 35, 1999 [pp.167-198], p. 171).

    rida no Haiti e com a crescente rebeldia dos escravos na segundametade do sculo69. Ou seja, nem a escravido era benigna, nem osescravos eram pacficos ou submissos, mas na ideologia dominante apassividade era o qualificativo mais comum.Na verdade,a elite domi-nante do Imprio, sobretudo nas grandes cidades, via na violnciacotidiana um desvio de conduta por parte de indivduos degenerados,brbaros, perdidos para a civilizao70.

    O carter ordeiro da populao brasileira foi louvado em diversosmomentos da nossa histria, remota ou recente71, e est na base doargumento,defendido por muitos pensadores da hora,segundo o quala transio para o trabalho livre se deu de forma pouco traumtica, aocontrrio do que ocorreu nos Estados Unidos ou no Haiti, por exem-plo. Nas primeiras dcadas do sculo XX, a nascente sociologia brasi-leira veria no carter pacfico do povo um elemento definidor da nacio-nalidade com razes profundas na ordem anterior, marcada pelofamilismo, o individualismo e o patrimonialismo, isto , nossaherana ibrica, avessa a conflitos abertos e sobretudo ao coletiva.Essas idias esto igualmente presentes em Srgio Buarque deHolanda,Oliveira Vianna ou Gilberto Freyre,ainda que encadeadas deforma diversa em cada qual e tratadas com maior ou menor distancia-mento crtico.Nessa concepo,a ao coletiva aparece como corrupoda ordem natural das coisas, marcada pela sujeio individual dos subal-ternos a um potentado local que seria o senhor do destino de todos.

    O elemento aliengena trazido ao pas pela imigrao europia estrangeiro mas branco, e por isso civilizado foi enquadrado namesma ordem de percepes, aparecendo como portador de idiassem lugar na realidade social brasileira, porque gestadas em umambiente conturbado e afeito luta de classes,oposto ao clima de con-crdia pretensamente imperante no pas. O estrangeiro com idiassocialistas ou anarquistas emergiu como um outro ainda mais peri-goso do que o escravo,pois seria capaz de contaminar coraes e men-tes com idias que desestabilizariam a estrutura de dominao tradi-cional. O escravo fora temido por sua diferena e sobretudo por suaopacidade, que suscitaram o temor de uma sublevao negra quepusesse fim civilizao. O temor em relao ao socialista ou anar-quista europeu ia alm. Ele no queria o fim da civilizao, mas umarranjo civilizatrio que o inclusse de forma no-subordinada ouigualitria. Seu proselitismo poderia revelar ao brasileiro pacfico eordeiro que sua posio na hierarquia social era injusta e que a ordem,portanto,era ilegtima.Poderia transformar o povo no inimigo internoque o escravo representara no iderio das elites.

    Opera-se ento a transposio do imaginrio sobre a escravidopara a ordem capitalista:o povo s interessa na qualidade de conjuntode indivduos resignados sua posio na hierarquia de posies,que

    85NOVOS ESTUDOS 80 MARO 2008

  • [72] Cf., entre vrios outros, Fausto,Trabalho urbano e conflito social,op.cit.;Pinheiro, Estratgia da iluso, op. cit.;Negro,Antonio Luigi.Linhas de monta-gem. So Paulo:Boitempo,2004.

    [73] Motta, Rodrigo P. S. Em guardacontra o perigo vermelho: o anticomu-nismo no Brasil 1917-64. So Paulo:Perspectiva, 2002.

    [74] Candido, Antonio. Os parceirosdo Rio Bonito. Rio de Janeiro: JosOlympio, 1964.

    [75] Franco, op. cit., p. 31.

    [76] Ibidem, pp. 32-33.

    recompensa cada qual desde que cada qual reconhea naquele queprov a recompensa algum com autoridade sobre si.O temor da aocoletiva do povo atiada pelo elemento aliengena o equivalente fun-cional do medo da rebelio escrava.A lenta modernizao da sociedadebrasileira nos incios do sculo XX, que muito aos poucos corroeu asestruturas tradicionais de dominao, no diluiu esse medo, que foiadquirindo novas feies e novos contedos72,entre os quais o antico-munismo foi talvez o mais importante, como sugere Motta73.

    Merece breve meno aqui um ltimo desdobramento da longevi-dade da escravido, relativo s expectativas dos trabalhadores acercade seu padro de vida.Antonio Candido foi o primeiro a chamar a aten-o para a indiferenciao social nas comunidades caipiras paulistasnos incios do sculo XX, fruto de uma diviso social do trabalho inci-piente e de uma escassez de recursos generalizada, de modo que osintegrantes dessas comunidades se mantinham apenas com mni-mos vitais74. Tal situao levaria Maria Sylvia de Carvalho Franco aconstruir argumento engenhoso para explicar o carter violento dasociabilidade dos homens livres na ordem escravocrata. Segundo ela,a necessidade de relaes de suplementao entre pessoas iguais napobreza em localidades rurais com alta fluidez nmade, onde no seconsolidavam antigas e inquebrantveis obrigaes recprocas75

    nem se construam princpios de autoridade fundados na hierarquiade funes,conduzia simplificao dos mecanismos de ajustamentointer-humanos com base na valentia e na banalizao da violncia.Prossegue a autora, em longa mas crucial passagem:

    Sem vnculos, despojados, [os grupos caipiras] a nenhum lugar pertencerame a toda parte se acomodaram. Foi tambm a mesma marginalizao quepreservou simples o sistema social,ordenando funes bsicas para alm dosconfins do grupo.Basta lembrar que o soldado,o padre,a autoridade pblicaestiveram sempre referidos a instituies alheias ao mundo caipira.A espan-tosa pobreza da cultura provm da mesma fonte. suficiente indicar como aproduo colonial favoreceu o enorme desperdcio de fora de trabalho,caracterstico desses grupos. Foi nesse contexto que nasceu o preguiosocaipira, que esteve colocado na feliz contingncia de uma quase desnecessi-dade de trabalhar,com a organizao social e a cultura se moldando no sen-tido de garantir-lhe uma larga margem de lazer,mas que sofreu,simultanea-mente, a miservel situao de poder produzir apenas o estritamentenecessrio para garantir uma sobrevivncia pautada em mnimos vitais76.

    Interessam-me dois aspectos nesse argumento. Em primeirolugar,a idia de que a sociabilidade na ordem escravista era espantosa-mente fluida, no sentido de que a populao rural livre era em grandemedida desgarrada de laos locais de dominao e vivia constante-

    86 ESCRAVIDO E SOCIABILIDADE CAPITALISTA Adalberto Cardoso

  • [77] Para o caso da regio de Campi-nas, ver Moura, Saindo das sombras,op. cit.; para o caso do RecncavoBaiano, ver Schwartz, Segredos inter-nos, op. cit.; Fraga Filho, op. cit.

    [78] Como mostrou Costa (Da sen-zala Colnia, op. cit.), bem antes deFranco.

    [79] Para uma anlise densa da cons-truo do gosto e das aspiraes dostrabalhadores, marcada pela proxi-midade com a necessidade, ver Bour-dieu, Pierre. La distinction. Paris: Mi-nuit, 1979.

    mente em busca de meios de vida precrios no vasto territrio nacio-nal. Desse modo, a escravido produziu um paradoxo: a estruturasocial era profundamente hierrquica e rgida nas posies superioresmas bastante malevel na base, onde a pobreza igualava todos77. Emsegundo lugar, e mais importante, a sociedade escravista tornava ohomem livre um pria em sentido amplo, incluindo nisso suas expec-tativas quanto ao padro de vida.O horizonte da vida de cada um era ohorizonte da vida de todos, que por sua vez era delimitado pelo traba-lho escravo. O homem livre (branco ou no) se distinguia do escravoapenas pelo fato de no ser propriedade de algum,sendo muito seme-lhante a ele em termos de alimentao, vestimenta, moradia, espe-rana de vida ao nascer etc.78.Nesse ambiente,as aspiraes eram deli-mitadas no horizonte dos mnimos vitais tal como estabelecido pelopadro de medida de todo o sistema:a explorao da fora de trabalhoescrava. Isso explica em grande parte por que o trabalhador livre nopodia ser facilmente exproprivel nem submetido s penas do traba-lho extenuante, j que ele tinha alternativa submisso ao trabalhodegradado pela escravido. Ainda que essa alternativa estivesse nonvel da subsistncia mais crua, era aceita como natural em face dapobreza geral da sociedade.

    No caso de So Paulo,essa situao foi ferida de morte com o incioda imigrao, quando a populao local se viu na constrangedora rea-lidade de ser tratada como um contingente de cidados de segundacategoria em relao aos imigrantes italianos, que chegavam comregalias como o acesso a uma gleba de terra para cultivo prprio.Masisso no ocorreu nas outras provncias do Imprio, cuja realidademanteve muito de seus traos mais marcantes por longo perodo,transferindo para as geraes seguintes os baixos patamares de aspi-raes,confrontados a cada passo com a escassez e a pobreza,que res-tringiam sobremaneira os horizontes de possibilidade de todo o orde-namento social. Homens e mulheres j no eram escravos no sentidode no mais serem propriedade de outrem, mas continuavam a serescravos da necessidade, o que tambm constitua o horizonte cul-tural no qual se forjavam as aspiraes e os projetos de vida79.O fim daescravido no mudou esse quadro: em meio generalizada pobrezano campo e inacessibilidade das posies superiores, interditadaspela rgida hierarquia social, as expectativas de melhoria de vida per-maneceram achatadas por vrias dcadas,somente ampliando-se coma intensificao da industrializao na segunda metade do sculo XX.

    * * *

    Pode-se ento afirmar, guisa de concluso, que esse quadro deinrcia estrutural configurou o ambiente em que se teceu a sociabili-

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  • [80] Como sugeriu Roberto Schwarz(Ao vencedor as batatas. 2a ed. SoPaulo:Duas Cidades,1981,pp.16-18),o liberalismo era uma idia fora dolugar, j que o favor e a dependnciapessoal, e no o mercado, mediavamas relaes sociais.

    [81] Getlio Vargas construir o mitodo pai dos pobres contra esse panode fundo. Os propagandistas do Es-tado Novo atribuiro a Vargas (e ddiva dos direitos trabalhistas) ofim de fato da escravido, quarentaanos depois de sua abolio legal. VerGomes, ngela de C. e Mattos, HebeM. Sobre apropriaes e circulari-dades:memria do cativeiro e polticacultural na era Vargas, 2006 ,acessado em novembro de 2007.

    dade capitalista no pas.Isso significa que o carter revolucionrio docapitalismo teve de se haver com um ordenamento social bastantergido em suas prticas e em seu imaginrio muito mais rgido doque a literatura tradicional sobre o tema estava disposta a reconhecer.Tal rigidez se evidenciou na desqualificao do negro e do elementonacional como trabalhadores aptos lide capitalista;na percepo doprprio trabalho manual como atividade degradada,cabvel somentea seres degradados; no encastelamento da elite econmica em suasposies de poder, temerosa das maiorias despossudas (e desarma-das), vistas como inimigos potenciais e tratadas com violncia des-medida quando se afirmavam na cena pblica; na permanncia deuma estrutura de dominao que rebaixava a mnimos vitais asexpectativas de recompensa dos mais pobres, num ambiente em quea pobreza generalizada era o parmetro de toda recompensa. A socia-bilidade capitalista, em suma, teve de se haver com uma ordem pro-fundamente antiliberal em suas prticas e vises de mundo80 e comuma tica da desvalorizao do trabalho que por longo tempo impe-diu o reconhecimento dos trabalhadores como sujeitos de direitos,isto , como cidados81.

    Adalberto Cardoso socilogo, professor e pesquisador do Iuperj e pesquisador associado

    do Cebrap.

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    Recebido para publicao em 13 de dezembro de 2007.

    NOVOS ESTUDOSCEBRAP

    80, maro 2008pp. 71-88