CARACTERÍSTICAS DA PERSONALIDADE CRIATIVA CONTRIBUTOS PARA A SUA DEMARCAÇÃO EM “A MÁQUINA DO...
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NASCIMENTO, F. & Candeias, A. (2007) Características da personalidade criativa – contributos para a sua demarcação em “a máquina do arcanjo” de Frederico Lourenço. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.
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“The Value of Difference” in “Identity, Community, Culture, Difference.”
“An autobiography is a text that seeks to draw us into itself without reservations and one which we are invented to read as being sanctioned by a ‘metaphysics of presence’, its formal nature being belied by the intimacy and truthfulness with it seems to address us. In autobiography, if anywhere in literature, we are expected to sense that these are texts inhabited by a living person, that an author who was peculiarly present to himself while he was writing is now present to us as we read. Autobiography is the certificate of a unique human passage through time and the theorist who comes to it full of sceptical questions about its rhetorical nature knows that he is playing an unkind game: he is not as other, more charitable readers of autobiography.”
John Sturrock “The Language of Autobiography”
INTRODUÇÃO
“A Máquina do Arcanjo” de Frederico Lourenço é um pequeno reconto autobiográfico, de noventa e seis páginas, acerca da passagem da adolescência para a vida adulta, para as emoções e a dor de amar e para um novo caminho criativo. A obsessão do primeiro amor. Amar no masculino, o masculino. É a descoberta da vivência duma emoção e da sexualidade ansiada, do caminho a seguir: enquanto pessoa que se completa sexual e criativamente na procura da sua voz, da sua expressão. Neste reconto autobiográfico, Frederico Lourenço traça o seu retrato de jovem que busca o seu curso: da vida, enquanto pessoa e enquanto escritor. O adulto, apresentando‐se na primeira pessoa, compõe a sua memória de momentos cruciais da passagem da adolescência, marcantes e definidores de quem é, no desejo de partilha das suas vivências
O objectivo deste trabalho é analisar, de forma sumária, de que forma a criatividade se exprime na personalidade do jovem Frederico, que faz um percurso de músico para escritor. Ainda que nesta fase da sua vida seja de músico para estudante de clássicas, a escrita esteve sempre latente:
“Escritor, professor universitário: como é que se costuma apresentar?
Hoje em dia penso mais em mim como escritor do que como outra coisa qualquer.
Acho que a faceta de escritor se sobrepôs às outras coisas todas.
NASCIMENTO, F. & Candeias, A. (2007) Características da personalidade criativa – contributos para a sua demarcação em “a máquina do arcanjo” de Frederico Lourenço. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.
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Tornou-se a sua primeira natureza ou já o era?
Penso que já era, mas estava bloqueada. Acho que essa natureza de escritor teve uma grande rolha em mim durante muito tempo e, a partir do momento em que a rolha saltou, realizome e vejome, de facto, muito mais como escritor do que como professor.
A vocação da escrita é anterior à vocação pedagógica?
Sim, muito anterior. Penso que mesmo antes de saber escrever já escrevia.
(…)
Estávamos em Oxford e eu não sabia ainda escrever, mas queria escrever cartas às minhas avós. Portanto, imitava a caligrafia dos meus pais, mas sem saber escrever. Muito menos em português. Mas sempre tive essa vontade de estar agarrado a um papel, a escrever.” (Marques: 2005, 32)
Tendo um percurso de treino musical, desde a infância, para passar às letras, devido à “incompatibilidade” entre a música e a assumpção e a prática da sua sexualidade, o trabalho tentará reflectir de que forma personalidade e criatividade se apresentam nestas memórias.
Criatividade é a capacidade de trazer algo de novo e com valor à luz do dia (Helson: 1996, 295), é ter soluções “novas” e adequadas para os problemas/situações que nos são apresentados/das (Feist: 1998). Indivíduos criativos, ainda segundo Helson, serão aqueles que passarem o seu tempo nessa actividade e lhe trouxerem contributos.
Personalidade, embora seja um termo sem definição universal adoptado, é considerada, por muitos psicólogos, relacionar‐se com aspectos importantes, e relativamente estáveis no tempo, do comportamento duma pessoa e lida com uma grande variedade de comportamento humano. Embora alguns teóricos considerem que a personalidade seja só objecto de estudo externo e em contexto social, a maior parte argumenta que esta é intrínseca a cada indivíduo, possível existir mesmo na ausência do contacto com outras pessoas e com aspectos não observáveis tais como sonhos, pensamentos e memórias. Os factores sociais, mentais, físicos e emocionais duma pessoa são importantes assim como todos aqueles de que se tem ou não consciência. (Ewen: 1998, 3) Ou seja: tudo aquilo que nos rodeia e nos distingue é um aspecto importante da nossa personalidade, estejamos mais ou menos inseridos num espaço ou comunidade.
Mas nem todos somos criativos: embora com menor ou maior grau, a criatividade não se manifesta nem da mesma forma em todas as pessoas, nem em todas se manifesta. A personalidade de qualquer um revela‐se criativa se reunir
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certas características que são essenciais ao processo. Destacamos como principais traços de personalidade que favorecem o processo criativo (Russ: 1993, 12):
• tolerância à ambiguidade;
• abertura à experiência;
• ter valores não convencionais;
• não fazer juízo de valores;
• ser curioso;
• manifestar gosto pelo desafio e pela complexidade;
• ter auto‐confiança;
• ter capacidade de correr riscos;
• ser motivado2
Frederico Lourenço, nesta obra, como na generalidade das suas criações de forte pendor autobiográfico, apresenta‐se como um ser criativo e como homossexual, não por razões de “militância”, mas simplesmente por assim se ter sentido toda a vida, naturalmente:
“A homossexualidade – tenho que afirmálo nunca se me afigurou profana. Nunca vi outra coisa em namorados (ou em parceiros ocasionais) que não irmãos em Cristo; sermeia estruturalmente impossível não respeitar, em cada gesto sexual, o divino da pessoa humana. Nunca concebi a homossexualidade como outra coisa que não um nome diferente para hombridade.” (sublinhado meu) (Lourenço: 2006, 13)
O seu processo de crescimento foi um percurso, não de fuga mas de encontro a si próprio. Um processo que, pela sua sexualidade e pela actividade a desempenhar na vida, lhe trouxe não só a pertença a algo, como também o estabeleceu como um ser único, lhe deu uma identidade. “Identity is about belonging, about what you have in common with some people and what differentiates you from others. At its most basic it gives you a sense of personal location, the stable score to your individuality.” (Weeks:1998, 88)
Ao escrever os seus textos Frederico traz‐nos à sua vida, partilha connosco os seus momentos, emoções, dores, prazeres artísticos e criativos, fala‐nos da vida, 2 Nas várias obras consultadas, há, por diversas vezes a alusão à jovem idade que os estudos da personalidade e da criatividade têm, cerca de quarenta e cinco anos. Manifesta‐se, também o desejo e a vontade que nos próximos anos esta área seja um campo mais produtivo uma vez que muito precisa ser estudado, e os resultados dos estudos apresentados sejam confirmados de forma muito mais cabal. O problema não terá a ver com algum carácter especulativo que os estudos possam por vezes apresentar, mas sim confirmar, com maior segurança e rigor, aquilo que se tem estudado e que muitas das vezes vinha já confirmar ideias pré‐concebidas, ou, porque não dizê‐lo, preconceitos e estereótipos.
NASCIMENTO, F. & Candeias, A. (2007) Características da personalidade criativa – contributos para a sua demarcação em “a máquina do arcanjo” de Frederico Lourenço. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.
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com a qual sentiremos, ou não, empatia, mas, certamente teremos uma perspectiva diferente da vivência humana, da sua vivência. Confere‐nos o poder de estarmos consigo relatando‐nos a sua história, não de forma ficcionada, como fez com três dos seus romances, embora se possa considerar a personagem principal dos mesmos como um alter‐ego do autor, mas sim optando o registo autobiográfico de modo a ter, por parte do leitor, uma afinidade e uma filiação, senão total, pelo menos de compreensão e acolhimento. Aquilo que lemos é de alguém que o viveu, não é criação, imaginado, é a memória duma pessoa que toma corpo perante nós:
“An autobiography is a text that seeks to draw us into itself without reservations and one which we are invented to read as being sanctioned by a ‘metaphysics of presence’, its formal nature being belied by the intimacy and truthfulness with it seems to address us.” (Sturrock: 1994, 3)
É para essa viagem dentro de si que somos convidados.
SER OU NÃO SER MÚSICO…
“Quando, no final da adolescência, a necessidade de passar da teoria à prática em questões sexuais começou a tornarse premente, deime conta de que ser activo ao mesmo tempo nas esferas da música e do sexo causava um entrechoque com efeitos de anulação recíproca para ambas as coisas. Em termos de vivência prática, sexo e música eram, no meu caso, incompatíveis. Apercebime disto quando, aos dezanove anos, tive a primeira experiência de um envolvimento simultaneamente romântico e carnal. Os efeitos, para meu espanto, fizeramse logo sentir. No dia seguinte à primeira noite de amor, pressenti, quando me sentei ao piano para estudar, que algo de estranho se passara dentro de mim; que eu deixara de ser quem fora eu, que estava habituado, desde os seis anos, a verme (e a ser visto) como pianista. O que se passava dentro de mim era demasiado complexo para que, na altura, eu tivesse compreendido o que poderia estar em causa. Hoje, a situação pareceme clara. O que aconteceu foi isto: após uma adolescência de renúncia sexual, passada ao teclado a estudar de manhã à noite, de repente vi a minha identidade de músico ferida de obsolescência. Afinal, o que eu sempre procurara no piano era, simplesmente, um namorado. ” (Lourenço: 2006, 9/10)
O que é um músico? Poderá uma prática recorrente e diária de tantos anos ser abandonada uma vez resolvida a questão da prática sexual?
Ser músico de carreira é, em qualquer das suas vertentes compositorias, performativas, e múltiplas outras, uma tarefa complexa. Implica uma entrega grande e laboriosa por toda a vida. Escolher essa carreira não implica, à partida, características especiais, faz parte dum processo normal como escolher outra qualquer profissão: é um processo que implica toda uma série de razões,
NASCIMENTO, F. & Candeias, A. (2007) Características da personalidade criativa – contributos para a sua demarcação em “a máquina do arcanjo” de Frederico Lourenço. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.
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necessidades pessoais, constructos pessoais e oportunidades sócio‐culturais que estão para além da vontade e da decisão de cada um. No entanto, para se ser músico, há que ter uma mescla de talento genético e biológico, conjuntamente com reforços emocionais e sociais. (Henley Woody II: 1999, 241) Assim se justifica que uma criança tenha talento inato e não o desenvolva devido a constrangimentos familiares e sociais (ambiente familiar desfavorável, pouco propício à música ou a questões culturais, e sem condições financeiras), como podendo não ter esse talento tenha todas as condições para desenvolver as técnicas performativas e o gosto, não chegando a ser criativo, mas somente um executante. Ou simplesmente ter todas as condições necessárias para se tornar músico:
“An individual's interest in music is cultivated through early experiences within the home (e.g., parents interest in music, opportunity to take music lessons, etc.), and is later subject to the powerful reinforcers of identification with peers and idiosyncratic selfconcept. (…) Anecdotal accounts suggest that many musicians had one or both parents who were also musicians, and this experience likely allowed for an identification process or purposeful directions that reinforced the child’s musical interests and abilities.” (Henley Woody II: 1999, 242)
Henley Woody II refere também estudos que indicam que a personalidade de um jovem músico, comparada com a de outros jovens não artistas, apresenta extroversão, sensibilidade, inteligência e boa adaptação a circunstâncias diferentes. Outro aspecto importante é que se verificou que os jovens estudantes de música são bastante mais criativos que os jovens não artistas. O talento e o interesse musical fazem parte dum processo evolucional: desenvolve‐se durante a infância, depois passa para puro prazer e a manifestação intuitiva, tornando‐se em devoção adolescente no que respeita aos aspectos analíticos e formais da música. Há, assim toda uma série de factores que contribuem para um domínio não só da técnica como do aspecto performativo, ou se quisermos do aspecto criativo na execução e realização musical.
Vindo duma família, que não sendo aristocrata, mas da classe média alta, com pais professores do ensino Secundário e Universitário, pessoas com formação científica e gosto pela cultura, Frederico usufrui na sua infância de todas as condições para ser um bom músico: um bom ambiente familiar, condições financeiras que lhe disponibilizam as aulas na melhor escola, o Conservatório, gosto e motivação cultural, e algum prazer pessoal. O que na realidade acontece é que o gosto que sente em si é mais o de amante da música, que o de praticante de alto nível, como uma carreira de música clássica exige. “Afinal, o que eu sempre procurara no piano era, simplesmente, um namorado.”(Lourenço: 2006, 10) Ao pôr em prática a sua sexualidade, a entrega e o gosto ao piano desaparece. Parte da sua vida está resolvida, preenchida, e o tempo, horas e horas, dedicado ao estudo e prática do piano deixa de ter significado por se tornar vazio de sentido. Já tem algo que o realize e apercebe‐se que a música e o piano ocupavam um espaço que esperava ser completo. A música era a sublimação de um desejo imenso de
NASCIMENTO, F. & Candeias, A. (2007) Características da personalidade criativa – contributos para a sua demarcação em “a máquina do arcanjo” de Frederico Lourenço. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.
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realização sexual e pessoal. Embora possa parecer uma observação um tanto rebuscada por parte de Frederico Lourenço, o facto é que, mais uma vez, Henley Woody II, refere estudos que dizem que:
“…the findings supported an interpretation that "individuals who choose to study with music may be underaroused and seek arousal from music in order to be at an optimal performance level" (Henley Woody II: 1999, 243)
Ao estudar música, e não exactamente ao estudar com música, como a citação refere, há uma procura de excitação, não só emocional como sexual. Estando a sua vida destituída duma componente tão central a si próprio, a música no seu papel de despertadora dos sentidos e das emoções, preenche, até à assumpção efectiva da sexualidade e das emoções, esse vazio. “A Máquina do Arcanjo” é o retrato dum jovem que descobre as emoções associadas do sexo, da paixão e da dor. É o relato dum aprendizado doloroso, mas profícuo. Para a vida.
“Depois formulou‐se no meu íntimo a seguinte pergunta: e se fossem os meus amigos, muito mais soltos e descomplicados do que eu, que tinham razão? Seria "pura" e desinteressada a minha negação do sexo? Sem conseguir formular o raciocínio com contornos precisos, eu intuía vagamente que, com a opção pela castidade, eu pretendia comprar ou pagar qualquer coisa: em troca, eu esperava de Deus o talento musical que me faltava.
Talento. Era a palavra mágica no círculo dos meus amigos. Tudo, mas tudo, eu seria capaz de ofertar em prol dessa quimera, a ponto de, até aos dezanove anos (durante todo o período da minha vida em que estudava, sempre que possível, seis a oito horas de piano por dia), eu ter abdicado por completo quer de romances, quer de engates – limitando, inclusive, ao mínimo possível, a própria actividade auto‐erótica. "Abdicado ". Bom...eu pensava, de facto, na coisa como Abdicação; mas restaria saber se é possível abdicar‐se de algo que nunca se experimentou.” (Lourenço: 2006, 11/12)
Esta vivência de Frederico, torna‐se mais importante ao leitor que se propõe analisar as questões da personalidade e da criatividade, e também com mais sentido, uma vez que Henley Woody II menciona estudos que relacionam a criatividade e o talento musical com a androginia. Esta, que pode ser reforçada pelas experiências da vida, reflecte formas únicas de processar informação e assume características de flexibilidade e versatilidade para se poder tocar vários tipos de obras. Verificou‐se também que há uma relação muito maior entre a androginia e o talento musical no rapazes que nas raparigas. Refere‐se, ainda, que:
“Persons attracted to music may have a higher level of androgyny than those who lack interest in music. Because there is a link between androgyny and creativity, research is needed on the significance, if any, of
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androgyny for the musician's personality; that is, perhaps androgyny is subsumed by creativity.” (Henley Woody II: 1999, 243)
Csikszentmihalyi (1996), num artigo sobre a personalidade criativa refere que a pessoa que é psicologicamente andrógina duplica a sua capacidade de resposta. Assim os indivíduos criativos tendem a ter não só as potencialidades do seu sexo mas também a do sexo oposto. Pessoas de sexos diferentes poderão ser simultaneamente agressivas e protectoras, sensíveis e rígidas, submissas ou dominantes.
Outra característica associada à personalidade dos músicos é que são frágeis, vulneráveis e, de forma estereotipada, femininos, não sendo necessariamente uma característica negativa, uma vez que a conotação com a “emotividade” pode ser vantajosa na performance musical. Estas ideias feitas, que os estudos por um lado confirmam, assumem uma maior relevância, já que essa era a questão que Frederico e os seus amigos pianistas se punham em relação à sua sexualidade e à escolha do instrumento musical que tinham feito. Seria alguma marca particular?
“Assunto afim que nos ocupava, quando não estávamos explicitamente a falar "daquilo", era o facto, a todos os títulos enigmático, de a profissão de pianista não atrair, entre a juventude lisboeta nossa coetânea, rapazes que se interessassem por raparigas. Discutíamos se haveria alguma coisa de intrinsecamente homossexual no piano enquanto instrumento; se a profissão de pianista seria análoga à de bailarino, que, naquela altura (hoje é diferente), estava como que oficialmente vedada a rapazes heterossexuais.” (Lourenço: 2006: 15/16)
Para além duma questão de possível sensibilidade especial para a música, que no caso de alguns pianistas se verificou, mas, como refere no texto, não aconteceu com a maior parte dos mais famosos, a situação terá sido meramente circunstancial, e de conjuntura social. É de recordar que durante muito tempo, certas actividades relacionadas com as artes ou o mundo do espectáculo eram mal vistas, devido à vida que os artistas levavam. Considerada dissoluta durante muito tempo, muitas famílias impediam que os seus descendentes a ela acedessem devido às conotações que acarretava. Por outro lado, Csikszentmihalyi, refere no mesmo artigo referido, que as pessoas criativas escapam ao estereótipo de género. Verificou‐se que se por um lado as raparigas criativas são mais dominantes e duras que as não criativas, os rapazes criativos são mais sensíveis e menos agressivos que os não criativos. A questão que se põe aos “pianeiros” do Conservatório é a soma de variáveis sociais, biológicas e psicológicas. Csikszentmihalyi, mais uma vez refere que a tendência andrógina é por vezes vista em termos puramente sexuais, sendo confundida com homossexualidade. O facto de nessa altura todos serem homossexuais terá sido coincidência, ou não.
Se Frederico procurava no piano o namorado, ou melhor a relação inexistente, tanto do ponto de vista afectivo como sexual (uma prática diária de oito horas
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desde a mais tenra idade, tornará o instrumento musical, não só parte de nós, como, também, o confessor, aquele com quem nos envolvemos, partilhamos emoções e pelo qual nos exprimimos), ao se encontrar sexualmente a sua personalidade musical transforma‐se. Assim se um músico tem que, seja em que área da expressão musical for, deixar fluir a sua personalidade de forma bem clara, mostrar a sua sensibilidade, força e fragilidade, se tem que se expor tanto performativa como tecnicamente e ser objecto de avaliação do ouvinte, tendo que estar preparado para ser apupado ou ovacionado (Henley Woody II: 1999, 245), essas características mantiveram‐se em Frederico ao mudar a sua capacidade criativa da música para os estudos Helenistas e para a escrita.
O ESCRITOR SURGE
“Futuro esse que nunca chegou a materializarse, porque, um dia, "aquilo" aconteceu. Houve um jantar (que relatei, em traços gerais, no texto inicial de A Formosa Pintura do Mundo). Nesse dia, tudo mudou para mim e o pianista que eu era morreu. Isto é: eu ainda toquei piano mais uns meses, mas os dedos já só mexiam como patas de uma galinha decapitada. Acho mesmo que, desde esse dia, nunca mais tive uma certeza absoluta na vida. A transição gradual de músico para helenista, que começou nesse fatídico jantar, levarmeia, como o futuro comprovou, da derrocada ao êxito, mas o preço exigido foi o sabor a fracasso que tudo, daí para a frente, me deixaria na boca. Não obstante os sucessos universitários e o reconhecimento pelas traduções de poetas gregos, nunca deixei de me sentir um falhado. Como se, de algum modo, os vinte e tal anos que passaram em nada tivessem contribuído para me tirar do estado de choque do caso Gonçalo. Como se o arcanjo nunca me tivesse perdoado.“ (Lourenço: 19/20)
A personalidade de Frederico continua a ser a personalidade de um ser artístico e como tal nela exprimem‐se qualidades cognitivas essenciais ao processo criativo: pensamento divergente, que enquadra os conceitos de associação de ideias, boa capacidade de observação e fluidez de pensamento; capacidade de transformação, que engloba flexibilidade de pensamento, capacidade de mudança em situações diferentes, reorganização de informação e utilização de diferentes formas de resolução de problemas. (Russ:1993; 9/10) Por outro lado ter capacidade de autoavaliação é um factor determinante no acto criativo:
“The individual must stand back and evaluate the ideas, association, or composition and refine it. Without critical thinking ability, the other cognitive abilities are like unavailable resources. They may be present, but they cannot work for the individual or for the creative process. (Russ: 1993; 11)
NASCIMENTO, F. & Candeias, A. (2007) Características da personalidade criativa – contributos para a sua demarcação em “a máquina do arcanjo” de Frederico Lourenço. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.
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Assim se confirma a estabilidade da personalidade durante a vida duma pessoa. Apesar da mudança de “objecto” criativo, as características da personalidade de Frederico mantêm‐se de forma a resolver as situações que se vão deparar.
“Poderei, no entanto, deixar aqui muito brevemente a confirmação de que Gonçalo foi o competentíssimo responsável pela minha educação sexual, para me desviar já para outro foro de aprendizagem, que teria profundas consequências na pessoa que vim a ser: a literatura.
(…)
Lacunas, porém, era o que não faltava à minha própria cultura. Contei em Amar não acaba como fiz o liceu em regime de autodidacta, estudando as matérias um pouco "a despachar" para fazer os exames e logo me esquecer de toda aquela espiga, pois o que me interessava, até à exclusão absoluta de tudo o resto, era a Música; e saber as rotas do açúcar no século XVIII ou a diferença entre palavras como "cartesianismo " e "dialéctica " eram coisas que me faziam bocejar. Os meus pais ficavam eles próprios um pouco exasperados com esta minha atitude, mais ainda pelo facto de serem ambos professores de Filosofia. A brilhante nota de 10 no exame final a esta disciplina deixou a família perplexa, primeiro indecisa quanto à etiqueta que com maior propriedade se me aplicaria ‐ "burro" ou "calão" ‐, mas depois convencida de que eu merecia ambas por igual.
Gonçalo, por seu lado, parecia achar‐me um rapaz esperto e aplicado; e tirava constantemente livros da estante na sua sala para me pôr nas mãos, com a frase:
‐ Lê isto.
Foi assim que (de novo em situação pós‐coital, lembro‐me perfeitamente) recebi nas mãos um livro chamado La couronne et la lyre de Marguerite Yourcenar, uma antologia de poetas gregos, que Gonçalo me pôs a ler na página onde surgem as Purificações de Empédocles. Francês era a "minha" disciplina (tirara 19 no exame final do liceu sem estudar uma linha), mas mesmo assim li duas vezes o poema sem perceber rigorosamente nada. Na altura, pensei que isso seria devido à minha tão apregoada burrice, mas hoje, com anos de estudo de poesia grega em cima, confesso que ainda não percebo o poema de Empédocles, embora as belas frases francesas da Yourcenar me ecoem na cabeça desde esses tempos da saga Gonçalo. Aliás, outros poemas por ela traduzidos no mesmo livro haveriam de provocar em mim sérias decepções quando os conheci na língua original: tantas são as palavras acrescentadas na tradução francesa que o texto verdadeiro fica obscurecido. Basta dizer que o maravilhoso verso Aphrodite au char blanc tiré par des colombes, atribuído a Safo, tem exactamente de Safo uma única palavra: a primeira. E o encantador verso de Teógnis L'aigre cri de l’héron qui revient en avril tem o problema de três das suas mais expressivas palavras (aigre, héron e avril) terem sido inventadas pela "tradutora ", que melhorou, neste caso, é preciso dizer, o poeta grego.
NASCIMENTO, F. & Candeias, A. (2007) Características da personalidade criativa – contributos para a sua demarcação em “a máquina do arcanjo” de Frederico Lourenço. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.
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Na altura eu aceitava com naturalidade que um menino bem como o Gonçalo tivesse este tipo de literatura em casa, mas hoje não deixo de me pasmar, pensando também nos trinta anos que ele fez no dia em que " começámos ", trintena de anos essa que se, face aos meus dezanove anos, parecia uma idade vetusta e respeitável, hoje parece‐me a idade de alguém que, no meu idiolecto actual, ainda merece sem ironia o estatuto de "rapaz". (Lourenço: 67/68/69/70)
O seu percurso de desenvolvimento pessoal e escolar evidencia, à partida, uma capacidade de adaptação às circunstâncias. Aprende consoante a sua motivação e não consoante aquilo que é esperado dele e das suas capacidades em termos formais/escolares. Há na sua aprendizagem escolar um lado prático que tem somente a ver com os seus focos de interesse: é bom estudante nas áreas que lhe são naturalmente próximas, fraco estudante em áreas onde podendo ser bom aluno não tem motivação pessoal para alcançar os resultados ambicionados pelos pais. No entanto basta sentir um ponto de maior afinidade pessoal em relação a essas matérias rapidamente alcança excelentes resultados. Frederico tem que ter uma motivação intrinsecamente pessoal, não é um executor mecânico de saberes. No respeitante às suas inter‐relações pessoais a sua vontade de conhecimento é completamente assimiladora: como um bom discípulo devora e apropria‐se dos conhecimentos que outros lhe transmitem. O seu lado cognitivo anda passo a passo com o lado emocional, afectivo. Nessas circunstâncias os processos afectivos relacionados com a criatividade são também importantes na sua personalidade. Há dois desses processos que poderemos encontrar em Frederico ao longo do seu reconto:
“Access to affectladen thoughts is the ability to call up cognitive material with affectladen content. Primary process thinking and affective fantasy in daydreams and in play are examples of this kind of ability. Thoughts involving affect themes such as aggressive and sexual ideation illustrate this kind of blending of affect and cognition.
Openness to affect states is the ability to experience the affect itself. Comfort with intense affect, the ability to experience and tolerate anxiety, and passionate involvement in a task or issue are examples of openness to affect states.” (Russ: 1993, 12)
Na sua história da descoberta da sexualidade e do sentimento amoroso, luta desigual por não ser correspondido, Frederico necessita ter uma estrutura afectiva que lhe permita comportar a dor e o desgaste sentido, e deles tirar partido, não só para os superar, mas para abrir novos caminhos na vida. A relação vivida com Gonçalo, por mais dolorosa e conturbada, foi um processo de passagem de adolescente para adulto: a libertação de alguém que tinha uma imagem de si próprio como músico, e com uma sexualidade sublimada, dá lugar a uma sexualidade vivida e assumida e encontra uma nova forma de expressão criativa mais próxima de si. A satisfação afectiva perante o desafio, mesmo doloroso, como
NASCIMENTO, F. & Candeias, A. (2007) Características da personalidade criativa – contributos para a sua demarcação em “a máquina do arcanjo” de Frederico Lourenço. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.
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foi o seu caso, e o bem‐estar afectivo em resolver problemas com que se depara, são outros processos afectivos importantes para a criatividade:
“Affective pleasure in challenge involves the excitement and tension involved in identifying the problem and working on the task.
Affective pleasure in problem solving is the deep pleasure and passion involved in solving the problem, achieving insight, or completing a musical composition that sounds exactly right.
Finally, the overall cognitive control of the affective process is important.
Cognitive integration and modulation of affective material is a cognitiveaffective process crucial in adaptive creative functioning. Although this category is probably more cognitive than affective, it warrants inclusion because it reflects both cognition and affect, and it is so important in the creative process.” (Russ: 1993, 13)
Este processo permite‐lhe uma passagem mais adaptada, não só à vida adulta, como, acima de tudo, à sua nova actividade criativa: as letras, na componente do estudo helénico, na escrita e na tradução. Para além de professor universitário e escritor, Frederico é um celebrado tradutor de epopeias gregas.
“Fechar, de uma vez por todas, o tampo do piano era solução menos fácil de pôr em prática do que à primeira vista parecia. Abdicar da identidade que me caracterizara desde a infância parecia exequível num dia, para logo, no seguinte, se afigurar impossível: eu continuava a sentir os chamamentos do arcanjo a obrigarme a tanger a sua máquina. E, na verdade, nunca me libertei inteiramente do teclado: muitos anos depois do piano desta fase, viria nova fase pianística e depois uma fase cravística. O facto de eu hoje não conseguir escrever à mão, com caneta e papel, leva a que, afinal de contas, no teclado do computador eu tenha finalmente encontrado a máquina certa do arcanjo certo que poderá não ser Rafael, protector de Tobias. Ou então, como me diz muitas vezes o terceiro "Gonçalo", novamente em terras de Entre Douro e Minho, a máquina do meu arcanjo é simplesmente a língua portuguesa.” (Lourenço: 92)
O processo pelo qual Frederico passou assume ao mesmo tempo proporções desestruturadoras, que implicam o distanciamento em relação àquilo que sempre foi; uma imagem identificatória, o seu constructo pessoal, que o definia; e proporções estruturantes, que lhe dão uma representação mais real de si, mais consentânea com a sua forma de ser. Naturalmente, e como já foi referido, sendo a personalidade, na maior parte dos casos uma constante no tempo, marcas dessa identidade ficam, como a comparação entre o teclado do computador ao escrever, e a performance musical que continuou, com maior ou menor intensidade, a praticar.
NASCIMENTO, F. & Candeias, A. (2007) Características da personalidade criativa – contributos para a sua demarcação em “a máquina do arcanjo” de Frederico Lourenço. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.
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A identidade de alguém, tendo como componente a sua personalidade e, no caso, sendo uma personalidade criativa, estará permanentemente em contenda consigo própria, em busca duma paz que dificilmente conseguirá. O processo criativo é em si mesmo, conturbado, e umas vezes mais que outras, relaciona o criador com diferentes universos, ou com inúmeras formas de ser dum universo. O que fica sempre a marcar presença é a personalidade, a marca distintiva que nos permite dizer isto é uma obra de Frederico Lourenço, é um filme de Fellini, é mesmo a voz e o cantar de Schuwarskopff, mesmo quando na sua versatilidade mudam de registo.
“Each of us live with a variety of potentially contradictory identities, which battle within us for allegiance: (…) The list is potentially infinite, and so therefore are our possible belongings. Which of them we focus on, bring to the fore, ‘identify’ with, depends on a host of factors. At the centre, however, are the values we share or wish to share with others.” (Sturrock: 1994, 3)
Ao resolver esta relação, mais consigo próprio do que a dois, uma vez que à partida parecia condenada, Frederico faz em si uma purga, liberta‐se ainda mais de constrangimentos que tinha em si, tendo vivido aquilo que era necessário ao seu crescimento. Do sismo emergiu uma nova ordem que fez despertar em si e na sua personalidade criativa o que sempre tinha estado adormecido. A emoção escolheu o seu caminho e a sua expressão. Fiquemos com as suas palavras da descoberta dum novo mundo, que sempre andou presente à espera que dele tomasse posse:
“Que a escrita e a tradução se revelariam a tábua de salvação de que eu andava à procura veio a perceberse depois da derrocada final com o Gonçalo, que, pelo tipo de coincidência impossível (porque demasiado "forçada") num romance, aconteceu no aniversário seguinte dele, que era também o nosso aniversário e foi, a todos os títulos, um descalabro.
No rescaldo desse acontecimento sísmico, foime parecendo gradualmente que esgotara a capacidade de sofrer e que, não havendo martirização possível que alterasse a irrevogabilidade daquele desfecho e não tendo eu mais lágrimas para chorar , o melhor que eu tinha a fazer era ficar parado, à espera que o pó assentasse. Sentavame ao piano, mas se não me apetecesse estudar, não forçava. Passava dias, semanas, sem tocar. Punhame a ler livros variados (muito me ajudaram, nesta fase difícil, os deliciosos romances da Nancy Mitford), olhava para as gramáticas de Grego compradas pelo meu pai no tempo em que fora aluno do Prof. Rosado Fernandes e ficava ali, qual basbaque, fitando aquelas palavras indecifráveis, ainda na dúvida de algum dia ser capaz de dominar um "piano" tão temível como aquele.
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NASCIMENTO, F. & Candeias, A. (2007) Características da personalidade criativa – contributos para a sua demarcação em “a máquina do arcanjo” de Frederico Lourenço. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.
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Entre as leituras que me caíram nas mãos nesta altura, houve uma que foi absolutamente decisiva.
Conhecia desde criança o nome Sophia de Mello Breyner Andresen, não só porque a minha irmã e eu tínhamos A Menina do Mar e O Rapaz de Bronze (tema sobre o qual o Gonçalo pintou uma delicada aguarela que mais tarde inspirou o díptico "Porto, Campo Alegre" na Formosa Pintura), mas sobretudo porque os meus pais a conheciam através do João Bénard da Costa e a minha mãe contava sempre a história maravilhosa de um passeio de barco no Algarve em que a Sophia se coroava com algas enquanto declamava os seus próprios versos. Tínhamos, desde os anos 60, na nossa sala, um exemplar do livro Geografia, livro esse que é das minhas mais antigas memórias, porque o abria, de vez em quando, ao longo da infância e da adolescência, para logo o repor na estante, perplexo, em virtude de não ter percebido nada do que lera.
Um pouco maquinalmente, como era meu hábito já arreigado e antigo, tirei um dia a Geografia da estante e abri o livro numa página em que se lia:
Aqui despi meu vestido de exílio
E sacudi de meus passos a poeira do desencontro
Como é que esta poesia me fora incompreensível durante tantos anos? Estes versos eram exactamente a resposta de que eu andava à procura. Chegara o momento de despir o vestido de exílio, em mais de um sentido; chegara o momento de sacudir dos meus passos a poeira do desencontro. Chegara o momento de me reconstruir.
Perguntei à minha mãe o que significava "Acaia", o título do poema.
O mesmo que Grécia foi a resposta.
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Começou em mim uma autêntica febre grega (que ainda hoje continua a arder, como se sabe). Li e reli os poemas gregos dos vários livros da Sophia; supliquei à minha mãe que perguntasse na escola onde dava aulas se não haveria alguém que me pudesse dar explicações de Grego e Latim. Estava decidido. Ia estudar Clássicas. O tampo do piano ficaria fechado durante dez anos.” (Lourenço: 93/94/95)
CONCLUSÃO
Criatividade é conceber algo de novo e com valor. Ser criativo é ter soluções “novas” e adequadas para os problemas/situações que nos são apresentados/das. Personalidade compõe‐se de características comportamentais que cada pessoa
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apresenta em determinadas situações e que se mantêm constantes ao longo do tempo. A criatividade tem dois enfoques: o pessoal, enquanto trabalho interior não é observável directamente mas pode‐se observar o modo exterior de criar – comportamento criativo; e o produto dessa laboração interior, o livro, o filme, o quadro, a sinfonia… Criatividade é algo que se pode encontrar em qualquer pessoa que se situe em qualquer área de conhecimento ou actividade. No entanto, esta é geralmente mais reconhecida em pessoas ligadas ao mundo das artes ou das ciências, embora se dê o caso de muitas pessoas deste mundo pouco ou nada serem criativas. Gregory Feist refere estudos que foram feitos e estabelecem relação entre personalidade e criatividade. Estes estudos referem que há características não sociais e sociais entre artistas e não artistas. Assim verificou‐se que no respeitante às características não sociais os artistas têm mais abertura à experiência, mais fantasia e imaginação, são mais norteados esteticamente, mais intuitivos, mais impulsivos, mais inseguros, ansiosos, tem mais insegurança afectiva e com mais susceptibilidade emocional. São também muito motivados e ambiciosos. Destas características, Frederico Lourenço, se nos ativermos ao seu reconto, que não se limita a descrever a sua história passada, mas nos dá indicações do seu posicionamento enquanto adulto, partilha todas: é aberto à experiência; é imaginativo e fantasioso, embora, por enquanto a sua ficção seja de carácter marcadamente autobiográfico; é bastante norteado esteticamente, dentro do classicismo; é bastante intuitivo e impulsivo; é inseguro, como se pode ver na referência que faz no texto à sua obra, e é susceptível emocionalmente. Das características sociais Frederico partilha, quase necessariamente pela sua orientação sexual que manifesta abertamente, sem qualquer forma de arrogância, a independência, o ser não conformista e questionador de normas. Por fim é uma pessoa introvertida.
“A Máquina do Arcanjo” dá‐nos o retrato dum jovem pueril, com vontade de viver e aprender, à sua custa, sem medo, assumindo as consequências dos seus actos, numa entrega completa, sofrida: o retrato de alguém que tem que se cumprir. Um jovem de personalidade marcada, que observa o mundo à sua volta e a ele está atento. Enquanto obra autobiográfica é o depoimento duma vivência, que tal como Frederico Lourenço pretende, é partilha para que outros se possam descobrir como ele próprio o fez. Partilha para mostrar que amar no masculino, o masculino, ser‐se homossexual, não será tão diferente do amor heterossexual: sofre‐se da mesma forma, recusa‐se o amor dos outros da mesma forma, é‐se cúmplice da mesma forma, realiza‐se o afecto da mesma forma. A diferença estará na forma como se vê o amor.
Embora seja uma autobiografia, “A Máquina do Arcanjo” tem marcas do género “Bildungsroman”3. Este género de livro, do qual um dos expoentes do romance moderno é “Portrait of the artist as a Young Man” de James Joyce (não se pretendendo aqui comparar Joyce com Lourenço) estava muito em voga no séc. XIX
3 Como diz Suzanne Hader, em “The Bildungsroman Genre”. [Consulta em 16/01/2006] Disponível na WWW: URL: http://www.victorianweb.org/genre/hader1.hml.
NASCIMENTO, F. & Candeias, A. (2007) Características da personalidade criativa – contributos para a sua demarcação em “a máquina do arcanjo” de Frederico Lourenço. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.
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em Inglaterra e na Alemanha. “Bildungsroman” é o romance que se ocupa do auto‐desenvolvimento da personagem principal (no caso de Joyce e Frederico, dá‐nos o retrato do crescimento também enquanto artistas, ou seja do processo criativo): mostra‐nos o crescimento pessoal dum jovem num determinado contexto social. Esse crescimento pessoal é a aprendizagem para vida e a busca duma existência com significado na sociedade. No entanto, esse processo de maturação é longo, gradual, mostrando os conflitos entre os desejos e as necessidades do protagonista para se integrar numa sociedade pouco afeita a mudanças. Finalmente, estas narrativas, dão‐nos a avaliação que o protagonista faz da sua posição na sociedade.
A busca de si, fez‐se através da anulação do que era. Transformou‐se para melhor ser quem é.
“Para poder encontrarme a mim mesmo, tive primeiro de me perder. Tive de chegar ao pleno vazio de mim. Não foi um vazio imóvel, um compasso de espera na dança do ser: o meu vazio foi um rodopiar imparável de dinâmica negativa, de tal forma que desistir surgiu, por fim, como premente solução lógica para acabar de vez com o tormento daquele excesso giratório. Tinha dezanove anos.” (Lourenço: 2006, 95)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Feist, Gregory, The Influence of Personality on Artistic and Scientific Creativity, in The Handbook of Creativity, Cambridge Press University, Cambridge, 1998, edited by Robert J. Sternberg
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Henley Woody II, Robert, The Musician's Personality, Creativity Research Journal. Volume: 12. Issue: 4, 1999*
Lourenço, Frederico, A Máquina do Arcanjo, Edições Cotovia, Lisboa, 2006
Marques, Carlos Vaz, Frederico Lourenço, Ler, Livros & Leitores, Lisboa, Círculo de Leitores, Inverno 2004/2005, 28‐44
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Sturrock, John, The Language of Autobiography, Cambridge University Press, Cambridge, 1994
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RECURSOS NA INTERNET
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*Questia Media America, Inc.
www.questia.com
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