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Carabinas e Outros Medos

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Carabinase OutrosMedos

Rio de Janeiro2016

Márcio Marastoni

Carabinase OutrosMedos

M000 Marastoni, Márcio Carabinas e outros medos / Márcio Marastoni. 1a. ed. – Rio de Janeiro. PoD: 2016. 150p. ; il; 21cm inclui bibliografia e índice

ISBN 978-85-8225-120-1

1. Conto brasileiro. 2. Título. I. Márcio Marastoni

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31/05/2016 01/06/2016

CIP-Brasil. Catalogação-na-FonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

O AUTOR responsabiliza-se inteiramente pela originali-dade e integridade do con-teúdo da sua OBRA, bem como isentam a EDITORA de qualquer obrigação judi-cial decorrente da violação de direitos autorais ou di-reitos de imagem contidos na OBRA, que declara, sob as penas da Lei, ser de sua única e exclusiva autoria.

Carabinas e Outros MedosCopyright © 2016, Márcio Marastoni

Todos os direitos são reservados no Brasil.

© PoD EditoraRua Imperatriz Leopoldina, 8 - sala 1110Centro – Rio de Janeiro – 20060-030Tel. 21 2236-0844 • [email protected]

Capa & Diagramação:Pod EditoraImpressão e Acabamento:PoD Editora

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Prefácio

Não, eu não compartilho de qualquer violência, nada po-dendo justificá-la. E, mesmo sem qualquer ato físico de de-sagravo, se assim é possível expressar-se, a mera vingança, ainda que em pensamento, nunca valerá a pena.

Contudo, apesar da aludida temática desta obra (a ainda desdobrar-se em outras, como são os medos e os preconcei-tos — notadamente os preconceitos linguísticos exortados pelo personagem central deste livro), trata-se, por óbvio, de um trabalho de cunho ficcional e que, em última análise, ex-põe escapes sensoriais que só a literatura e a arte em geral devem oferecer.

Cuidam-se das catarses humanas que o autor dá-se o direito de exercer, merecendo o expulsar de atitudes e de opiniões que na vida real, por certo, não são reveladas — algo que, por sua vez, não se liga imperiosamente ao mundo personalíssimo do autor, mas de algum modo por ele per-passa, carreando consigo, quem sabe, outras elucubrações fantasiosas de outros (poucos ou muitos) leitores.

(...)Este livro foi escrito entre os dias primeiro e dezenove

de julho de 2015, em São Pedro...

Marcio Marastoni

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1.O primeiro tiro certamente partiu do Uruguai. Espan-

tosamente, o alvo encontrava-se no Brasil. Foi um disparo rápido, de muito longa distância, algo em torno de trezentos e cinquenta a quatrocentos metros. Acertei o joelho direito da vítima; o corpo projetou-se para a frente e para o lado, envergando a perna atingida de modo a fazê-la deslocar-se em falso movimento, fracassando a tentativa de continuar a corrida.

A perna, à evidência, não se firmou, e o homem caiu. A folhagem existente à beira do final da ponte, bastante alta, impediu que eu o avistasse e, mesmo que o enxergasse com clareza após a queda, um segundo tiro seria prejudicado pela angulação.

Mas não apressei em demasia meu passo, sequer ame-acei correr. As balas que eu utilizava eram de bom calibre e o joelho de Gérson ou Jéferson, não me recordo o nome, deve ter praticamente estourado. Não fosse a distância per-corrida pelo projétil a arrefecer a força do impacto, poderia afirmar seguramente de sua total implosão.

Olhei para o entorno, ninguém. Continuei caminhando. Eram por volta de seis e pouco da manhã e, apesar da la-titude do lugar, o Sol já despontava para um pretenso dia quente, ápice do verão.

Quase no meio do caminho, vislumbrei algo como sendo parte de uma camisa azul ou um tom de verde diferente do mato a revestir o homem. Tratava-se, na realidade, do resto de um cartaz feito de papelão grosso em que se podia ler, ao se aproximar, somente a sílaba “ão”. Por certo em portu-guês — mas não tive muitas ideias acerca do que versava. “Caminhão”, “passagem de...”. Não sei.

A ponte era antiga e estava abandonada a ponto de não existir vigilância alguma, permitindo que eu continuasse a andar de modo decisivo, conquanto a relativa calma. Ao

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alcançar o homem, percebi que ele decidira, um segundo antes de minha final aproximação, fingir-se de morto: abo-minável clichê.

Com o pé desvirei o corpo que, estando inicialmente de bruços, viu-se obrigado a encarar-me. Perguntei:

— Quantos imóveis você tem?— Hã?— Quantas fazendas, apartamentos e casas você tem?

Estou com pressa...— Não sei! Não me mate! Quem é você?— Recebeste milhões de dinheiro sujo e não sabes con-

tar o número de imóveis que tens? Nem vou gastar meu ra-zoável português contigo, aliás, com mais ninguém.

— Quê?— Pois eu sei: são quinze apartamentos em Porto Ale-

gre, duas fazendas no interior do Amapá, uma mansão em Macapá, outras duas em... Brasília e Goiânia. Há mais um pe-queno apartamento no Rio de Janeiro, afora a enorme casa de praia aqui no Uruguai e outra aqui perto, na divisa... Lá — quero dizer —, apontando para o outro lado da ponte.

— Não me mate! Puxei a pistola da cintura, das costas. Dei dois tiros na

cabeça do senador e comecei a correr de volta para meu carro situado a uns mil metros de onde estava, no Uruguai.

Joguei tudo no gigante porta-malas, posicionando-me em seguida no banco do motorista. Tirei o gorro e os óculos de grau emoldurados por espessa armação preta, substituin-do-os por uns óculos de sol mais discretos, de aros finos e dourados, também com graduação ótica. Mexi nos cabelos achatados pela touca e finalmente parti; fim de férias.

2.Sempre gostei muito de dirigir... Puxei ao meu avô e ao

meu pai. Avô por parte de minha mãe e, meu pai... Bem... Meu pai por ele mesmo, em pessoa. O primeiro, polaco, o

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segundo, italiano. Eu próprio detinha a nacionalidade ita-liana, embora houvesse nascido no Brasil. Pouco importa, daqui não saio.

Meu destino era a pequena cidade de Panamá, interior de Goiás, dois mil e cem quilômetros distantes de onde esta-va. Meu carro era uma minivan dessas chiques, placas adulte-radas, digo, placas falsas... Novo de tudo o carro, comprado havia uns vinte dias. Minha primeira longa viagem com ele, agora completada com o retorno para a simplória Panamá.

Havia chegado ao Uruguai dirigindo o mesmo carro, carregando duas grandes malas, muitas roupas, armas e munição. Hotéis discretos em pequenas cidades litorâneas mantiveram-me escondido enquanto preparava meu alvo e gozava as férias.

Preferi, ao retornar para casa, não correr. As multas por velocidade já tinham dado-me muito trabalho. Mesmo assim, só repus as placas de identificação do veículo uns duzentos quilômetros depois, ainda no Rio Grande do Sul.

A Polícia Rodoviária não faz muita vigilância, pouco ave-riguando quem passa por seus postos. Acho que havia dois anos que ninguém me ordenava parar à rodovia... Se ocor-resse, eu provavelmente teria que matar.

3.Certa vez dirigi seis mil quilômetros em cinco dias, pro-

vando cafés de todos os tipos, dormindo em camas altas e usando cobertores diversos. É curioso e terrível hospedar-se em hotéis tão distintos, com cansaço por vezes encontrando camas limpas, moças bonitas, gente grossa, pessoas dóceis, janelas interrompidas.

Tinha problema com portas e janelas, sempre as crendo obstruídas, travadas. Interrompidas era espécie de adjetiva-ção, mais do que um particípio que elegi para decretar a in-disposição que alguns detinham em manter portas e janelas destrancadas, operantes.

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Meu medo de ficar preso era, como todos os medos, horrível, desprezível.

Tinha medo de o carro quebrar; sempre o tive desde que consegui a autorização para dirigir. Vinte e cinco anos pilotando vários automóveis e nunca fiquei a pé. Nem quan-do arrebentei parte traseira de um modelo Fiat 147 parado em uma grande avenida na capital paulista; dei ré ouvindo grande volume de barulho da lataria depois do impacto, mas engatei a primeira e fui embora.

Na divisa do Rio Grande do Sul com Santa Catarina, dei conta que não havia retirado as luvas, baita calor. Olhei duas vezes para o banco detrás, verificando se as havia “arquiva-do” devidamente — não gostava de nada largado no carro.

Finalmente atendo-se ao trânsito de novo, divisei, há uns três ou quatro quilômetros, no posto rodoviário, dois policiais acenando para que alguns veículos parassem, pro-vavelmente para preencher estatísticas, fingindo averiguar a regularidade das coisas, ou vice-versa. Talvez até estivessem em busca de um suspeito, não sei.

Freei rapidamente, dando seta a indicar o acostamen-to; não cheguei a parar, fiz a conversão e tomei a direção contrária. Acho que um dos policiais percebeu, fitou-me por uns cinco segundos e desistiu de qualquer ação. Hora do almoço. A perseguição iria atrasar a degustação de seu bife e hoje deveria ser o aniversário do Matheus (com “th”), do Enzo, ou Lorenzo. Argh!

O máximo de criatividade que a mulher do policial po-deria, no auge de seu ímpeto intelectivo-emocional, ter al-cançado, quiçá, foi o de batizar o aniversariante do dia, seu terceiro ou quarto filho, de Lucas. Argh de novo!

4.Oitocentos quilômetros depois, decidi dormir; estava

em Santa Catarina, uma tal Capinzal. Dois hotéis e duas pousadas. Tanto o hotel simplório quanto as duas pousadas

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tinham por diária o valor de cinquenta reais — disse-me o funcionário do posto de gasolina. O “hotel de verdade”, por-tanto, era o outro, aquele que cobrava cento e oitenta reais pela hospedagem de um dia; lá fui.

Aos quarenta anos de idade, eu, depois de elevado de-sassossego financeiro, poderia gozar férias, hospedar-me decentemente, ter boas armas, carro novo, e comer x-salada e pizza quatro queijos toda vez que desejasse, embora, em Panamá, poucos dias da semana poderiam ser encontrados abertos o restaurante do Pacheco ou as lanchonetes da Dona Leda ou o do Larica. Larica é o nome do quiosque do sujeito que, por empréstimo metafórico ou outra figura de linguagem qualquer, passou a atender por tal apelido.

O hotel em Capinzal era velho, roupa de cama velha, colchão razoável, destes que um dia fora bom. O chuveiro funcionava muito bem e a copa em que era servido o café da manhã era excelente, toda nova. A reforma deve ter custa-do tanto dinheiro que o dono do lugar não teve mais como comprar frutas para o desjejum. Era café, leite frio, duas fa-tias de queijo prato (leia-se muçarela curtida), uma de pre-sunto, bolo de fubá, bolo de cenoura, suco de laranja ácido que fazia arder os olhos e... Só.

Mas dormi bem, pagando com dor na alma os cento e oitenta reais. Caso o gerente ou o proprietário (o cara da recepção era tudo isso certamente, afora ser o responsável pela limpeza do hall de entrada) cometesse mais uma gafe, eu a ele diria:

— Senhor, só um instante. Vou pegar meu fuzil Reming-ton no carro e já volto para matar-te, só um minuto.

O “pior” é que o sujeito puxou conversa animada comi-go logo depois do pagamento. Ele ficara tão contente com os cento e oitenta reais em dinheiro que abriu um sorriso e começou a tagarelar.

— Sabe, “seu”Olímpio, ser empreendedor no Brasil não

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é fácil.Pois é, ele cometera mais uma gafe, falara a palavra “em-

preendedor”. Ridículo.Medo de pessoas que mudam o significado das coisas,

que medo... Chego a passar mal.Empreendor? O cara era comerciante, proprietário de

um hotel, e pronto. Coitado.Mas eu dormi bem, e o café, puro, café preto (como di-

zia minha vizinha em Panamá, Carmela), estava muito bom; voltei para a copa e tomei mais um.

5. O jornal acabara de ter sido posto na mesa central da

copa. A manchete dizia algo como: “Senador Gérson Iranil-do assassinado na fronteira Brasil-Uruguai”. Fitei a coluna lateral do jornal: uma nota dizia que o governo havia vetado reajuste do funcionalismo público na esfera federal, mesmo após três anos sem o mais remoto reajuste...

6.Quando decidi matar Gérson, logo encontrei dificuldade

em conciliar minhas férias com a grandeza das viagens que o senador levava a cabo. Com residências em vários lugares do país, algumas amantes provavelmente, e um jato à dispo-sição, ele não parava mais do que quatro ou cinco dias em um mesmo lugar.

Eu tirava férias duas vezes ao ano. Como todo professor, julho, dezembro e janeiro eram os meses em que era possí-vel, a depender das reservas em pecúnia e da administração da herança recebida, distrair-se um bocado.

Depois da boa herança que recebera de meu avô pater-no, fruto de uns anos de disputa, pude, desde 1998, ter uma vida pouco mais perdulária, pouco. Não se tratava de es-banjar, era até econômico, com vida relativamente modesta; mas para quem passou tantos apuros, incluindo a fome e o terror de sua repetição, optara pelo mínimo conforto.

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Optara, outrossim, pelo clichê de se fazer justiça com as próprias mãos, eliminando gente muito rica e muito ladra: políticos.

Gérson foi o quinto a integrar a lista dos que, mesmo contrariamente aos meus princípios cristãos, deveriam ser eliminados. Ele tinha uma bela mulher, três filhos. Era for-mado em Direito como eu, filho de lavradores. Nascera em Macapá porque na cidade vizinha onde morava, em meio à roça, não havia hospital algum.

Malversara por demais milhões do erário, recebera ou-tros tantos milhões oriundos de obras públicas das quais cada parafuso de dez centavos era orçado em três reais.

Não se compra um clipe no Brasil, por parte de qualquer governo, sem desvio de dinheiro...

7. Não sei se nas próximas férias de julho eu conseguiria

planejar outra viagem para tão longe, ou até quem eu deve-ria da próxima vez eliminar.

Em outras mortes, nas duas primeiras, incluíra ora um feriado prolongado para que eu pudesse fazer dar certo mais um plano, ora até faltando à escola. Mas, nos últimos anos, as férias incluíam longo passeio, esmerado planejamento (será?) — apesar de eu não ser exemplo de ordenação —, e a aludida justiça, ainda que demasiado clichê fosse tudo isso...

8.A primeira vítima foi o prefeito de uma cidadezinha do

sul do Pará, uma jovem senhora, finalzinho da década de noventa, creio. Neste momento lembrei-me de Drummond. Ele não merece, por tudo que foi, pelo que é, ser sob tal circunstância recordado, mas repassei “Cidadezinha Qual-quer”: “Casas entre bananeiras, mulheres entre laranjeiras [...]”. Devagar eu a matei com um tiro somente. Mas, para mim, fora tudo lento.

Primeiro foi a insistência de se autoproclamar prefeita.

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O meu dicionário é o Houaiss, lá não existe a palavra prefei-ta, e, mais gravemente, ela tinha sido eleita três vezes, três vezes enxotando a Língua Portuguesa. Claro que outros di-cionários registravam prefeita... O uso já consagrado da pa-lavra também a recomendava, mas, para mim, não. E pronto.

Muitíssimo pior, realmente muitíssimo pior, era que o pronto-socorro da cidade estava fechado há quase um ano por falta de verbas.

(...)O jornal televisivo contava sua retórica, reproduzida por

ela mesma ao dizer que:— Eu fui empregada doméstica até os vinte e cinco.

Quando conheci o Arnaldo e casei-me, consegui dedicar-me aos reclamos do meu povo, lá do bairro do Arapari. Depois comecei a pensar na nossa cidade e fui crescendo com a po-pulação gostando de mim, acreditando “na gente”.

E arrematou:— Sou exemplo, sabe? Tenho três locadoras, duas lojas

de eletrodomésticos, esta camionete importada linda de-mais... Et cetera, et cetera.

É claro que não compreendi em qual contexto um políti-co passaria a enumerar seus bens; não fazia sentido.

Senti medo da vontade extrema de chacoalhar aquela mulher e perguntar como ela havia adquirido tal patrimônio. Investiguei.

Pela internet, com dados emprestados de algum faleci-do, ex-morador de Buriti Alegre, paguei e solicitei certidões a serem expedidas pelo cartório de imóveis da tal cidadela e do entorno referentes, evidentemente, relativas à chefa do Poder Executivo do local e de seu marido vice-prefeito.

Passados seis anos consecutivos no poder, somando-se o primeiro e o início do segundo mandato, a prefeita pos-suía oito casas em seu nome. Mais três terrenos estavam registrados na pessoa do marido. As lojas eram alugadas, a

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camionete fora paga à vista, em dinheiro.“Mereceu tudo, tudo”.

9.Ai que saudade dos tempos em que, em São Paulo, eu

tocava teclados em uma banda de rock gótico. Sinto-me de-samparado ao perceber aquele momento como sendo outra vida, de tão longe que se fixara.

Teria sido eu? E onde estará aquele rapaz esquálido e detentor de peculiar e “triunfal” timidez?

Rock gótico... Cada coisa.

10.Tamara foi morta da mesma maneira que Ataúlfo Ador-

no Cândido Menezes, ou Mendonça. Lembro-me bem deste prenome pelo equivocado acento no “u” constante de seus registros (mesmo tônico, não estaria, considerando a época, inserido na “regra do hiato em u”). Mas não sei se ele era Menezes ou Mendonça.

Tamara e Ataúlfo, os dois primeiros que matei, foram alvejados por um tiro dado acerca de setenta metros, efe-tuado cada um do outro lado da rua em que estavam. Po-sicionei-me, em ambos os casos, em cima da laje de prédio diametralmente oposto. Clichês...

11.Ataúlfo, com acento, era deputado em Minas Gerais.

Foi uma morte muito emblemática, despertando na Polícia Federal a ideia de direcionamento, de ligação entre alguns crimes contra políticos, exsurgindo a possibilidade de um grupo de extermínio, de algum justiceiro etc.

Na verdade, em cinco ou seis meses, quatro políticos haviam sido mortos; eu matara dois, Tamara e o aludido de-putado, grande fazendeiro, grande.

Coincidentemente, dois vereadores da Região Centro--Oeste foram naquele mesmo lapso temporal assassinados.

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Um foi morto à faca — que falta de estilo (!) — pelo amante de sua mulher, remansoso lugar-comum. Mas o homicídio não teve por motivação o caso extraconjugal de Andressa ou Alessandra, não me recordo, apesar de terem-na entrevista-do umas vinte vezes diante da televisão. O vereador estava traindo a consorte com a mãe do amante da própria mulher que... (...). Nota-se que o amante da mulher do tal vereador (ufa), era, por sua vez, outro vereador.

Retomando, o assassino do “nobre” edil que no mínimo tinha suas regalias na câmara local, descobrira que a própria mãe tinha um affaire com o tal sujeito; matá-lo também lhe traria outro alívio, não dividindo mais o seu “caso”.

Santa confusão!Outro edil morto no mesmo período levou um tiro de

um revólver qualquer, justamente uma semana depois de ter sido denunciado por corrupção passiva; muito dinheiro en-volvido.

Sobre os demais casos à época divulgados, não os regis-trara mentalmente.

12.Apesar de ser professor de Língua Portuguesa, defici-

tário em preposições e no emprego de vírgulas, gosto de numerar quase tudo. Faço isto há pouco tempo, acho que para não me perder... Não sei.

13.Na volta para Goiás, estando agora no Paraná, dirigia

ainda mais calmamente. Coloquei os óculos escuros, de grau. De graus (...), eram doze em cada olho, se somados o astigmatismo e a miopia.

Lembrei-me de uma aluna muito falante, lá da Escola Municipal Godofredo Alcântara, que, no meio da explicação sobre pronomes pessoais do caso reto, sétimo ano, creio, perguntou (seu nome, Darcicléia, assim fora corretamente registrado a respeitar as regras ortográficas do momento, não obstante sua feiura):

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— Professor, não é verdade que o senhor estava no sho-pping lá em Goiânia?

— Sim, é verdade.Eu falsamente respondia de modo seco a todos, man-

tendo o semblante sério. Nestas situações, após a resposta curta, em meio segundo eu retomava a aula como se o ques-tionamento fora de contexto realmente pouco importasse. Não era verdade. Imediatamente depois de fingir estar con-centrado na explanação de fundo didático eu relaxava, de-sarmava o cenho carregado e sorria largamente.

A criançada ria muito, gargalhada gostosa...— É sim, Darcicléia. Você foi quem me viu? — Foi sim, professor. Por que você (?), quero dizer... Por

que o senhor estava de óculos escuros o tempo todo?Todos riram pela extroversão da coleguinha (para mim

são todos bebês) e pela temática tratada.— Sabe o que ocorreu, caríssima “Dárci”, eu marquei

consulta com um oftalmologista no sábado, cedinho. É um médico cliente meu que fez a gentileza de atender-me no sábado passado. Como minhas pupilas foram dilatadas — é passado um remedinho nos olhos para que eles, digamos, aumentem de tamanho para que possam ser melhor exami-nados —, tive que permanecer de óculos escuros. A luz que chegava aos olhos era muito forte por causa do colírio, do remedinho do qual falei. Daí os óculos escuros a ajudar-me...

— Professor — dizia agora o Zequeu ou o Carlinhos, não sei quem é um e quem é o outro —, põe “o óculos” pra gente ver?

— É uma palavra no plural, Zequeu.— Sou o Carlinhos.— Carlinhos, óculos é um substantivo cuja forma é um

plural morfológico, ou seja, falamos “os óculos”, coloquei os óculos, compreende?

—Tá bom, mas o senhor vai pôr?

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— Não. E virando-me bruscamente para a lousa, retomei: — “os

pronomes fazem referência a um termo, a alguém, anterior-mente, de modo geral, citado. Ou seja, Catarina andou pelo shopping. Ela queria tomar sorvete. Ela é pronome, o prono-me “ela” vem a ocupar o lugar de Catarina; assim [...]”.

14. Darcicléia e Zaqueu que não era Zaqueu; sem comentá-

rios adicionais. Lembrei-me também de um aluno que há uns três anos por mim passara: Warcy.

15.Comecei a sentir medo, medo de que o carro apresentas-

se algum defeito ao longo da estrada; estava encaminhando--me para deixar o Paraná.

Se o carro quebrasse eu ficaria preso sem poder loco-mover-me; variedade excêntrica de claustrofobia? Poderia passar fome, sede, espécie de morte. Era claustrofóbico um elevador, certamente; mas ficar longe de casa sem um carro, sem saber como sair de determinado lugar, claustrofóbico também.

Isto me obrigou a respirar mais fundo, pois começava a faltar ar quando ataques de ansiedade trespassavam...

Acelerei sobremaneira o motor; a ansiedade contami-nando a tudo, impondo pressa, velocidade, os pensamentos todos fugidos, desgarradas impressões...

Se o carro quebrasse eu não conseguiria chegar a pé em Panamá, era longe dali. Não aguentaria caminhar. Ninguém me daria carona. As armas, as malas, tudo perdido... Não saberia o que fazer.

Liguei o som do carro e ia aumentando o volume quan-do o celular tocou:

—“Boa tarde, o senhor foi selecionado como sendo um dos formadores de opinião do nosso jornal, e, por esta ra-zão, o senhor ganhou trinta dias de recebimento, sem ne-nhum custo, de nossos exemplares diários”.

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Que raiva.—“Posso confirmar seu endereço? Avenida Itumbiara,

número (...)”. — Só um instante, por favor — eu disse em tom educado.Finalmente aumentei o volume do som no tanto que

queria, deixando a operadora de telemarketing conhecer um pouco do que ouvia.

16.Comecei a cantar de modo estridente dentro do carro e

engasguei. Tossi um pouco, assustando-me mais com a tosse do que com a própria ansiedade.

Tirei o pé do acelerador e deixei o automóvel em ponto morto, permitindo que a desaceleração ocorresse natural-mente. Estava a cento e sessenta e cinco quilômetros por hora, diminuindo lentamente a velocidade...

O embalo foi suficientemente forte para que eu rodasse por mais uns quatro quilômetros, adentrando em um peque-no posto de combustível. Ventava muito apesar de ser janei-ro; verão intenso, do modo que gostava.

Desliguei o motor, peguei a carteira e o celular, desci levemente, um tanto cambaleante.

O medo ou a fantasia do medo promovia essas crises terríveis de ansiedade; estas, ao final, originavam profícuo desgaste físico, incluindo naturalmente certa efervescência mental marcada pela euforia e posterior atordoamento.

Fiquei duas horas sentado à mesa situada na varanda do estabelecimento que ficava no posto. Toalha vermelha, manchada com anos de gordura. Clichê.

Pedi um café.

17. Calmo, retornei à estrada, quase feliz.

18.Faltavam ainda setecentos quilômetros até Panamá.

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Mesmo assim resolvi terminar a viagem sem pousar em lugar algum. Pararia para comer e tomar mais alguns cafés. Nas rádios, muitas notícias sobre o senador...

19.(...)A primeira execução foi muito trabalhosa. Morando no

sul de Goiás, dirigir-me até o Pará demandava tempo e al-gum dinheiro.

Como dissera, Tamara chamou-me a atenção pela televi-são, exaltando sua evolução patrimonial, predicados, ascen-são social.

(...)O Houaiss, como dissera, não registra prefeita, mas as-

sinala presidenta como vocábulo integrante da língua. Argh. Fiquei deprimido quando descobri isto.

(...)As certidões solicitadas pelo correio foram enviadas

para o endereço de um aposentado em Buriti, como me re-feri. Aposentado e morto, casa fechada há tempos. A corres-pondência acumulava-se por dias na soleira da porta e pelo seu caminho. Alguém a recolhia mensalmente.

Foi fácil. Decidi, após sondar brevemente a residência, que bastava pagar por um serviço de envio rápido, destes com hora de entrega previamente agendada. Faltei à aula em uma segunda-feira, rondando a casa escolhida no dia com-binado.

Quando o carteiro chegou, apresentei-me, chacoalhan-do molho de chaves à sua frente ainda ao atravessar a rua, sinalizando, claro, o falso retorno.

— Pois não?— Senhor... Carlos?— Sim.— Assine o recebimento da correspondência e anote o

RG. O senhor é novo aqui, não é?