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Capítulo 1 LEI, FORMA E GESTÃO URBANA UMA TRÍADE DO PLANEJAMENTO QUALIFICADO DO ESPAÇO URBANO A cidade, como obra resultante, no tempo e no espaço, do acúmulo capitalista sobre as forças sociais produtivas, apresenta resultado físico complexo na sua totalidade, tendo em vista ser ela resultado do acúmulo de diferentes interesses e aglutinações de forças econômicas, sociais, políticas e culturais que a produziram em cada época. Estas forças, por outro lado, também sofrem mutações ao longo do tempo, ou se renovam periodicamente e também acabam por influenciar no resultado físico dos antigos e dos novos projetos urbanísticos que vão sendo acrescentados ou modificados no espaço da cidade. Assim, por ela ser um espaço de vida humana no tempo e portanto, construído para solucionar as formas de vida do homem, acaba por se sujeitar à sua capacidade de adaptação, criação e transformação. Está claro, portanto, que dentro destas relações e capacidades dos seres humanos, os valores dominantes de cada época são aqueles que conseguiram se articular política, econômica, cultural e socialmente, sendo capazes, assim, de se imporem. Numa sociedade de classes sociais tão distintas como a sociedade capitalista no geral, e particularmente a brasileira 1 , quem domina esse conjunto de valores é uma minoria que possui os seus 49

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Capítulo 1

LEI, FORMA E GESTÃO URBANAUMA TRÍADE DO PLANEJAMENTO QUALIFICADO DO ESPAÇO URBANO

A cidade, como obra resultante, no tempo e no espaço, do acúmulo capitalista sobre as forças sociais produtivas, apresenta resultado físico complexo na sua totalidade, tendo em vista ser ela resultado do acúmulo de diferentes interesses e aglutinações de forças econômicas, sociais, políticas e culturais que a produziram em cada época. Estas forças, por outro lado, também sofrem mutações ao longo do tempo, ou se renovam periodicamente e também acabam por influenciar no resultado físico dos antigos e dos novos projetos urbanísticos que vão sendo acrescentados ou modificados no espaço da cidade. Assim, por ela ser um espaço de vida humana no tempo e portanto, construído para solucionar as formas de vida do homem, acaba por se sujeitar à sua capacidade de adaptação, criação e transformação. Está claro, portanto, que dentro destas relações e capacidades dos seres humanos, os valores dominantes de cada época são aqueles que conseguiram se articular política, econômica, cultural e socialmente, sendo capazes, assim, de se imporem.

Numa sociedade de classes sociais tão distintas como a sociedade capitalista no geral, e particularmente a brasileira1, quem domina esse conjunto de valores é uma minoria que possui os seus próprios meios de produção, controla os meios de comunicação de massa ou consegue se fazer chegar até o coletivo maior por meio dos seus produtos, dos seus desejos e sonhos, e que consegue, dentro dos valores de competição sucessiva, com criações destruidoras ou destruições criadoras2, impor novas necessidades e alterar os valores sociais e culturais, sempre em nome da competição pela mais-valia, quando o que interessa é a conquista do mercado.

Temos clareza hoje que não existe interesse dessas forças detentoras dos meios de produção na sociedade capitalista de resolver as necessidades de todos ou da maior parte da humanidade. Basta vermos os índices percentuais crescentes da fome no mundo em relação à capacidade crescente de produção de alimentos3, ou a enorme demanda habitacional das grandes cidades brasileiras4, isto porque não está em jogo sequer a diminuição do tempo social para

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produção de um determinado bem com sua conseqüente diminuição de valor e do seu preço final para o consumidor5, ampliando cada vez mais mercado. Não se dá mais tempo para isso; o que existe de fato é que, além da monopolização dita globalizada dos meios de produção6, há a busca por meio da dita destruição criativa, de descartar o mais rapidamente possível um determinado produto, colocando outro em seu lugar, numa competição extrema entre empresas e pessoas, onde ganha o mais forte. Este é o exemplo cabal dos produtos ligados à informática hoje em dia. Dessa forma o dito mercado7 está sempre restrito e ávido pelas novidades neurotizadas desse capitalismo consumista, que já não se baseia apenas nas necessidades mas na novidade, na competição entre os indivíduos, na diminuição dos milésimos de tempo para as respostas de uma máquina qualquer. Não que esta máquina por si não tenha o seu lugar numa sociedade mais justa e socializada, onde os valores humanos, sociais e culturais prezem mais o coletivo em vez do individual. Certamente ela terá seu espaço; para isso será necessária a “Substituição do paradigma hoje dominante: a economia de mercado e a propriedade privada”, pelo “Princípio de equivalência como base da economia global”8. “Com a substituição do mercado, do preço e do lucro por uma economia baseada no valor do trabalho humano e tecnicamente na computação, a sociedade descansará sobre uma economia que opera sobre a base da justiça social que é pré-condição para a convivência pacífica e fraterna”9. Esta proposta não é uma teoria acabada de Arno Peters (1998), “mas uma proposta de debate para todos os que estão interessados na constituição de um novo projeto histórico”10.

A dominação, portanto, do sistema de produção das cidades capitalistas, reflete o conjunto maior dos valores do sistema de produção desta sociedade. Afinal, a cidade como artefato humano de produção coletiva é construída fisicamente por trabalho sobre um sistema muito amplo de bens materiais naturais ou transformados tecnologicamente pelo homem. Deriva da areia retirada do rio, da argila colhida dos brejos, da madeira de lei roubada da natureza ou daquela já plantada industrialmente, da areia transformada em vidro, do cimento monopolizado produzido transformado do minério, do aço que chega à mais humilde das casas ( substituindo um conhecimento popular da produção da arquitetura da amarração), do asfalto transformado da exploração do petróleo, da argila transformada em porcelana, do cobre, latão e aço inox das torneiras, fechaduras e cubas, dos plásticos das tubulações, do amianto ( cancerígino ) das

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caixas d`água e coberturas, do cloro e flúor para tratamento da água das cidades e tantos outros elementos materiais, que, seja em sua produção, no seu armazenamento, transporte e distribuição reproduzem o sistema capitalista dentro da sua ótica de mercado e de seus valores. Ressalte-se que em média, hoje, um metro quadrado de construção encerra em si mais de cinqüenta profissionais de trabalhos distintos, na cadeia de divisão social do trabalho da indústria da construção civil11.

Assim, a cidade, hoje foco do viver humano mundial e do Brasil12, é também o centro decisório e nervoso desse sistema e reflete em si mesma os seus maiores interesses e contradições. Nela está expressa fisicamente a complexidade das relações entre classes sociais, a segregação dos mais pobres e humildes, a exclusão de parcelas cada vez maiores daqueles que sequer encontram hoje oportunidades no seu mercado de trabalho, são os desempregados estruturais do sistema capitalista na sua era da globalização13.

Por um lado o sistema capitalista conseguiu unificar um sonho coletivo na maioria das pessoas, o que se manifesta na busca pelo consumo e pelos modismos de cada época, especialmente hoje, com a abrangência dos meios de comunicação de massa e seu domínio por uma elite econômica, levando a uma pasteurização dos produtos e dos objetos de desejo da maioria. Esse processo de uniformização trouxe reflexos diretos na forma de viver das pessoas, na organização dos seus espaços privados, na sua relação com os espaços públicos, nas formas arquitetônicas de suas casas, nos materiais de construção, nos acabamentos e detalhes técnicos e construtivos das obras. Por outro lado, está claro para nós que a privatização dos meios produtivos é, em cada época, a maior responsável pela diferenciação dos padrões urbanísticos e arquitetônicos dentro da cidade. Em outros termos o que realmente difere, nas relações entre classes sociais, entre pessoas humildes e abastadas, entre proletários e donos de empresas, entre as pessoas de altos salários de novas funções tecnológicas atuais e aqueles excluídos pela obsolescência de suas funções, é o fato de poucos terem acesso a esses bens produzidos e aos meios de produção, alguns terem acesso a pequenas parcelas da mais-valia coletiva, muitos serem explorados, muitos mais fazerem parte do exército de reserva14, e também uma grande parte ser hoje excluída do sistema como desqualificada15.

A cidade, no entanto, Bauru, aqui tratada, apesar de mutável e adaptável no tempo, tem ainda sido capaz de guardar na estrutura

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física um conjunto de informações sintetizadas em seu desenho que é capaz de possibilitar ao pesquisador, com o recurso a essa mediação, um trabalho interpretativo buscando compreender a sociedade sob seus valores em transformação e suas permanências históricas. Dessa forma, possibilita visualizar em que medida esse conjunto de valores influenciaram os resultados da organização urbanística e arquitetônica da cidade, ou mesmo, como reflexo, em que medida a introdução de formas diferentes da organização física dos espaços, foram ou não capazes de influenciar no conjunto de valores da sociedade. Assim, estaremos tratando do urbanismo e da arquitetura como causa, reflexo e conseqüência dos valores sociais, buscando uma visão de totalidade da compreensão das questões selecionadas para a pesquisa.

No enfoque principal desta tese, a terra urbana, o chão do viver e edificar não só o abrigo, mas a busca de um “habitat” integral, para suprir as necessidades funcionais, psicológicas e espirituais do homem, adquiriu valor e se transformou também em mercadoria. Transcorreram apenas pouco mais de cem anos entre o passado, quando o espaço urbano era terra de servir, dominado pelo patrimônio religioso16, espaço sagrado, da terra coletiva da câmara representada pelo rocio, até o domínio atual quase integral da terra privada, laica e profana17 do espaço urbano no Brasil.

Temos cerca de um século apenas de transformação da propriedade da terra urbana e um século e meio de transformação da propriedade da terra rural no Brasil. Se antes a totalidade da terra era de propriedade do Estado, com os seus valores de caráter patrimonialista e estamental18, privilegiador das elites econômicas, hoje já foi feita a transferência para a propriedade privada da grande parte dessa terra. Nesse tempo de transformação a terra foi cada vez mais adquirindo um caráter de mercadoria privilegiada dentro de um sistema de mercado, regido pela “lei da oferta e da procura” que se tornou cada vez mais expressiva na medida que as cidades cresciam a galope pelo aumento das demandas sucessivas de espaço urbano.

Assim, desenvolveu-se dentro da cidade, em torno da sua terra, um enorme mercado especulativo, um espaço de poupança, de acúmulo de capital não produtivo, que se tornou mola do seu desenvolvimento19. Capital especulativo sobre a terra urbana que, segundo alguns estudos, de tão grande que é, se fosse aplicado no mercado produtivo industrial e comercial, resolveria o problema de geração de empregos e de renda brasileira20.

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Em Bauru, é visível esse traço especulativo sobre a terra urbana, desde o seu início de ocupação e formação urbana em torno da esplanada da estação ferroviária21. Este fenômeno se acelera entre os anos quarenta e oitenta, gerando a “Cidade Sem Limites” , num momento em que a discussão sobre as formas de leis de melhor controle do solo urbano parece ter acelerado o interesse especulativo que gerou a verdadeira orgia de se fazer loteamentos22. Esse interesse especulativo vai perdurar, não na quantidade, pois a Lei 6766/79 cria vários elementos inibidores, mas continuará aparecendo na forma de organização dos espaços, como veremos adiante, buscando, sempre sob controle privado, quando possível burlar ou “amaciar a lei” com a colaboração do poder público municipal. Esta última fase é que será nosso foco de estudo.

Será bom, ainda, entendermos que, em Bauru, como de resto na maioria das cidades brasileiras, pequenas, médias e grandes, retirando apenas desse contexto os desenvolvimentos iniciais das cidades que nasceram até finais do século XIX, por meio do patrimônio religioso, o processo histórico do crescimento das cidades no período de estudo, se deu nas seguintes formas gerais básicas:

1 - Grandes parcelamentos privados sobre parte ou total de antigas áreas rurais contíguas ou não à cidade já implantada, executados individualmente pelos proprietários rurais ou associados com outros grupos da elite econômica da cidade, como donos de construtoras e agentes imobiliários. Normalmente, quando a área de terra do proprietário era maior que a gleba desejada para o parcelamento, usou-se o recurso de aumentar o benefício especulativo no tempo, que é deixar glebas intermediárias entre a cidade construída e o parcelamento executado. Dessa forma, os vazios urbanos, intersticiais, ganhavam valor com a sua transposição de infra-estruturas urbanas, sistema viário, equipamentos públicos, transporte coletivo, etc. Exemplos sínteses desse modelo são os bairros da Pousada da Esperança I e II, Bauru 1, Bauru 2000, Loteamento Fechado Paineiras, Samambaia, Shangrilá e Lago Sul.

2 – Da mesma forma que no caso anterior, temos grandes parcelamentos do solo, promovidos pela compra acordada ou por desapropriação amigável ou judicial( rara nesse caso), executada pela COHAB ou INOCOOP de antigos proprietários rurais, quase sempre de glebas que eram apenas parte do total das áreas dos antigos proprietários. Neste caso, quase sempre se percebe a intenção clara da formação dos vazios urbanos especulativos de terra, seja

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beneficiando o mesmo proprietário, seja beneficiando outros. Esses são os casos do Conjunto Residencial Presidente Geisel e Mary Dota.

3 – Parcelamentos promovidos pela iniciativa privada, ocupando parte de glebas intersticiais que ficaram como vazios urbanos dentro da cidade. Essas áreas e esses investimentos ocorrem ou pelos próprios proprietários de terras, quando os mesmos possuíam condições de investimentos em infra- estruturas, ou em acordo com construtoras e outros investidores. É importante notar nesse caso o recurso especulativo de sempre ir deixando para o futuro uma parte de terra vazia para obtenção de maiores lucros com os investimentos de cada momento. É comum os empreendedores buscarem esse parcelamento na forma de desmembramento e não loteamento, para escapar da necessidade de execução de sistema viário principal. Nesses casos incluímos os Condomínios Jardim Colonial, Condomínios Jardim dos Duques, Vila Verde, Vila Grená, Campo Belo e Campo Limpo.

4 - Parcelamentos promovidos por empresa de economia mista como COHAB e INOCOOP (que são dominadas e dirigidas sob influência política municipal, estadual ou federal) com aquisição por desapropriação amigável ou judicial de parte de terra de glebas especulativas de vazios urbanos. Neste caso, também vai havendo especulações e valorizações sucessivas no tempo dos remanescentes das áreas desses vazios urbanos, porém esses “órgãos governamentais” tomam um papel decisivo no processo especulativo da terra. Como exemplo temos os condomínios Parques das Camélias e Flamboyant`s................................................................(Figura 7 – parcelamento tipo1)

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.............................................................(Figura 8 – parcelamento tipo 2 )

..............................................................(Figura 9 – parcelamento tipo 3)

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............................................................(Figura 10 - parcelamento tipo 4 )

Outras formas de desenvolvimento ou crescimento urbano especulativo da cidade que merecerão nossas considerações e aprofundamento serão:

5 - Aqueles remembramentos correspondentes, com a possibilidade criada por lei, para a construção verticalizada sobre uma área já parcelada sem qualquer previsão dessa verticalização no momento da aprovação dos projetos. Dessa forma, seguindo alguns critérios de coeficientes de aproveitamentos e taxas de ocupações, gabaritos, recuos etc., o adensamento contínuo do solo provoca ampliação de demandas coletivas em todos os sentidos, que podem ser denominadas de Impactos de Vizinhança, que no geral são ignoradas pelo poder municipal. Como exemplos temos a região do Jardim Panoroma com o Shopping Garden Plaza, a região do Jardim América e Vila Universitária, com seus vários condomínios residenciais verticalizados.

6 - A necessidade de intervenções do poder municipal, em áreas de vazios urbanos, sejam eles em fundos de vales, em parte de glebas existentes, ou na totalidade destas, na busca de adequar o espaço urbano para as condições de atender demandas coletivas para a implantação de sistema viário principal, equipamentos urbanos, áreas

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de lazer e esportes, parques ecológicos, áreas non aedificandi ou de preservação permanente. São exemplos dessas intervenções o projeto para o fundo de vale do Córrego da Água Comprida, com Avenida, Parque e Sambódromo; o projeto para a Avenida D`Oeste (Jânio Quadros) e Avenida Nações Unidas Norte e Parque do Castelo. A análise aprofundada dessa questão, que corresponderá a um capítulo de nossa tese, é crucial para o entendimento das formas de gestão e do papel assumido pelo poder público no tempo.

....................(Figura 11 – remembramentos para verticalização tipo 5)

...............(Figura 12 – intervenções em áreas de vazios urbanos tipo 6)

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Se as formas de parcelamento do solo consideradas até aqui beneficiaram principalmente os maiores proprietários de terra urbana, grandes construtoras e investidores imobiliários, tem sido comum pelos mesmos, pelos médios e também pelos pequenos investidores, mesmo como forma de poupança, a manutenção ou aquisição de lotes e quadras dentro das áreas parceladas, para se fazer especulação com a espera de chegada de construções privadas, mas principalmente de equipamentos e infra-estruturas públicas. De forma geral, é assim que o quadro fundiário de Bauru vem se constituindo, de tal forma que hoje cerca de 50% da área total da cidade ainda está sem qualquer ocupação e pode ser considerada área especulativa.

O quadro anteriormente tratado dá uma visão macro do parcelamento do solo, porém será fundamental ainda aprofundarmos em nossa tese quais foram as motivações econômicas dos investidores e loteadores, bem como o papel do poder público, para que a organização interior e contígua desses parcelamentos de terras ocorresse na forma como se deu no geral, ou seja: desprezo pela organização do espaço público e dos espaços privados de uso coletivo e a valorização do espaço privado individual do lote; as formas especulativas sobre as infras-estruturas; a organização dos parcelamentos em relação às questões ambientais que resultaram em voçorocas urbanas; a falta de uma estrutura viária bem dimensionada, integradora da cidade e dos bairros e que também fosse criadora de identidade coletiva; a falta de uma política pública de conquista de áreas coletivas quando do aumento da densidade urbana por verticalização; a falta de uma gestão democrática e participativa, que enxergasse uma visão de coesão dinâmica das normas urbanísticas23

para buscar um equilíbrio entre ônus e benefícios nas operações urbanas24, como nos casos das intervenções em áreas de vazios urbanos. A ausência dessa gestão tem permitido grande prejuízo aos cofres municipais, como nos casos das desapropriações unilaterais executadas pelo poder municipal, que acabam por “involuntariamente” beneficiar economicamente mais os proprietários de terras e deixando todo o ônus para o coletivo da população da cidade. O resumo do parágrafo anterior será aprofundado nos capítulos posteriores.

Até aqui tivemos o objetivo de mostrar no geral a síntese das formas de organização e parcelamento do solo urbano, como ele se deu em Bauru, com as raras exceções importantes e determinantes. Agora, de forma dialética e utilizando dessa forma geral de organização do espaço urbano, bem como das exceções, que servirão

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como mediação da nossa análise, iremos objetivamente definir o que estamos considerando a “Tríade do Planejamento Qualificado do Espaço Urbano”.

É evidente e inegável historicamente que em Bauru, como de resto na maioria das cidades capitalistas brasileiras, o agente motor ou ativo do parcelamento do solo urbano é o interesse especulativo privado pelo lucro advindo desse processo. A terra urbana, portanto, adquiriu na sociedade capitalista o caráter de mercadoria como qualquer outro elemento resultante da produção industrial ou comercial no quadro da espoliação sobre o trabalho coletivo por meio da mais valia25. Esse caráter mercantilista e espoliador, longe de ser abstrato, se expressa fisicamente dentro da cidade, quando se faz uma análise básica, por exemplo entre a qualidade dos espaços públicos e o espaço privado deixado dentro dos parcelamentos feitos. Ou, ainda, do baixo nível de investimentos privados para solucionar questões de infra-estruturas. Poderíamos questionar, no entanto, aqueles parcelamentos executados pelos agentes mistos como a COHAB, no sentido de que possuem a função social de solucionar os problemas da produção de moradias para as populações das classes mais humildes. Porém, esses “órgãos”, no caso de Bauru, além de terem produzido de forma questionável, sob o ponto de vista qualitativo e econômico, unidades habitacionais individuais26 num processo de ocupação extensiva27 e de enorme impacto de assentamentos horizontais prejudiciais a diversas questões ambientais e à economia municipal28, deixaram evidente, a nosso ver, o que será aprofundado mais adiante, o seu caráter de prezar mais a sua sobrevivência como empresa de caráter privado especulativo, que mantém um quadro estamental e burocrático29 grande, que mantém um sistema de produção das habitações que preza primeiro os interesses das construtoras executoras das etapas de obras, que está inserida, através da compra, transporte e distribuição das mercadorias, materiais, produtos e serviços, apesar do enorme volume de unidades produzidas, dentro do quadro sucessivo e cumulativo de mais-valia do sistema capitalista.

De certa forma, podemos afirmar que no máximo, da maneira como se organizam esses órgãos, eles poderiam promover intensa competição do mercado de produção e fiscalizar a honestidade, transparência e a qualidade do que se produz pelo sistema capitalista, mas até nisso são muito questionáveis, pois os monopólios da produção desses espaços começam no próprio projeto de urbanismo,

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que em Bauru foi inclusive motivo para denúncia e investigação contra antigos diretores da COHAB, uma vez que a empresa responsável por ele era quase sempre a mesma, contratada por notória especialização, apesar de sequer ser da cidade30 e ter executado “ Projetos Carimbados”31, com enormes problemas, seja do ponto de vista ambiental, seja do ponto de vista urbanístico. Porém, longe de serem problemas técnicos de capacitação tecnológica desses escritórios, possuem uma base ideológica muito logicamente organizada, para auferir lucros maiores por unidade habitacional ou pela quantidade produzida às empresas construtoras e mesmo aos órgãos gestores do processo.

É importante, ainda, fazermos uma pequena consideração geral, no que diz respeito, historicamente, aos elementos fundamentais que agregam valores à terra e que implicam diretamente dentro do sistema de mercado capitalista do solo urbano no seu preço final na dita “lei de oferta e da procura”. Esses elementos, na medida que vão sendo disponibilizados, seja por investimentos privados, mas principalmente por investimentos públicos, potencializam e multiplicam de imediato a valorização do solo, propiciando aos proprietários de terras uma lucratividade grande, mesmo maior do que quando comparada com investimentos econômicos como poupança ou outras aplicações especulativas bancárias. Este é o caso daqueles que, tendo informações privilegiadas sobre os investimentos públicos em infra-estruturas em determinadas áreas, carentes mas bem localizadas na cidade, as adquirem por valores baixos, recebem os investimentos e com ou sem pagamento dessa contribuição de melhorias, auferem imediatamente lucros que podem chegar a mais de 100% no ato da venda32.

Vale aqui ressaltar um aspecto sobre a contribuição de melhorias, que, apesar de ser prevista na legislação urbanística, não tem sido aplicada em Bauru, e mesmo no Brasil, por uma questão histórica de liminares de ações judiciais feitas e aceitas pelos juristas. Na falta de uma metodologia clara da distribuição dessa contribuição no espaço, eles defendem o interesse privado. Aliás, a interpretação judicial hoje sobre a legislação urbanística tem privilegiado os interesses e a propriedade privada do solo. Basta ver os valores altíssimos de vários precatórios judiciais que em Bauru estão sendo pagos, quando da desapropriação de terras. Esse fenômeno está chegando a pôr em risco a própria administrabilidade da cidade em certos momentos33, bem como vale constatar que mesmo em nível

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estadual hoje existe uma CPI ( Comissão Parlamentar de Inquérito) tratando das desapropriações de terras de preservação permanente, especialmente já tendo constatado os altos valores das desapropriações e precatórios que vinham sendo pagos, e que tiveram “vistas grossas do Judiciário e cumplicidade das peritagens judiciais.

A falta de hábito ou prática de gestão de cobrança das valorizações urbanas possui razões que entendemos serem especulativas, politiqueiras e demagógicas, pois não é comum, na prática dos nossos administradores, repassar imediatamente esses valores a aqueles que foram beneficiados com os investimentos públicos, por mais contraditório que possa nos parecer, pois justamente é nesses momentos que o poder público possui as melhores condições políticas de justificar os repasses e os proprietários de melhores condições de entenderem e aceitarem o acréscimo dessas contribuições. Desta forma, as correções dos valores até mesmo do imposto predial e territorial urbano só têm acontecido em cerca de cinco a dez anos, quando das novas elaborações dos mapas de valores venais do município34, um prazo muito alto, que prejudica e onera o poder público; que prejudica o coletivo da população, especialmente a mais humilde, que assim não vê no poder público a sua capacidade de investimentos nessa áreas, até porque as áreas que mais recebem infra-estruturas e melhorias sucessivas no tempo são aquelas de certa forma mais privilegiadas, de quem tem poder político, ou que está representada neste poder, normalmente as elites econômicas35.

O exemplo anterior permite-nos aprofundar agora a relação que faremos de um conjunto de elementos básicos que agregam valores à terra urbana, que por sinal são instrumentos utilizados objetivamente para o convencimento do mercado sobre os preços dos terrenos na cidade. São até mesmo elementos de análise da população no geral. Quanto mais baixa for a sua renda, esses elementos se tornam mais importantes. Ao contrário, quanto mais alta for a renda de uma família, no geral esses elementos tornar-se-iam em tese menos importantes, dadas as condições objetivas de que a proximidade de oferta de equipamentos coletivos públicos ou privados poderia ser desconsiderada, uma vez que essas famílias possuem melhores condições de acesso e transporte individual aos mesmos. No entanto, isso quase sempre não é verdadeiro. Em Bauru, a maior quantidade de equipamentos e infra-estruturas coletivas está disponibilizada na região sul, justamente aquela que pertence à elite econômica da

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cidade. Assim, essa elite acaba direta e indiretamente sendo beneficiada cumulativamente no jogo de valores da acumulação capitalista da cidade. Na ética de um poder representante da elite econômica está comprovado historicamente36 que não dá para acreditar em uma política que privilegie os mais carentes, mesmo que houvesse uma política compensatória ou de equilíbrio urbano.

Os elementos fundamentais que dão valor ao solo urbano são: Existência de infra - estruturas urbanas como pavimentação, galerias de águas pluviais, esgotos sanitários, água encanada tratada, iluminação pública e energia; proximidade de equipamentos institucionais públicos ou privados como escolas, creches, postos de saúde e templos religiosos; proximidade de equipamentos de lazer e espaços livres como clubes, áreas esportivas, parques e praças; proximidade de equipamentos comerciais básicos como padaria, supermercado e farmácias; disponibilidade e proximidade de transporte coletivo. Outros aspectos que podem ser considerados como negativos nessa formação de valores são: a proximidade de cursos d`água com riscos de enchentes, as situações a jusante de loteamentos com ruas perpendiculares às curvas de níveis, que favorecem o acúmulo e grandes velocidades de águas pluviais em dias de chuva, as situações de terrenos muito inclinados, especialmente com cotas mais baixas ao fundo, as situações de proximidade de moradias tipo favelas, as situações de proximidade de erosões urbanas já formadas.

É fácil notarmos que grande parte dos elementos que agregam valor ao solo urbano, ou que retiram valor do mesmo, estão diretamente ligados com os investimentos públicos diretos ou com as exigências e fiscalizações que o poder público faz por meio das leis e formas de gestões sobre a organização do espaço da cidade como um todo ou em cada parcelamento sucessivo do solo que vai ocorrendo.

Portanto, temos que admitir que existe uma base ideológica especulativa por trás de cada parcelamento de terra e que o que pode mudar nos diferentes projetos é o nível dessa especulação ou de apropriação da mais-valia coletiva pelos proprietários de terras ou outros investidores parceiros, seja no caso que inclui a produção habitacional ou apenas na oferta de terra, na forma de terrenos ou de glebas.

Fundamental será enxergarmos, dentro do propósito da nossa tese, que a organização e adensamento de pessoas no espaço provoca demandas diversas de duas categorias básicas de espaços. A

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primeira é a demanda pelo espaço de propriedade privada do lote e da construção, que inclui três subcategorias; as casas de morar ou o edifício vertical de uso restrito familiar; os espaços industriais de produção de um uso coletivo restrito de trabalhadores; os espaços comerciais, de serviços e os templos de uso aberto ao coletivo maior da cidade. A segunda é a demanda pelos espaços de propriedade pública que se dividem também em três subcategorias; os espaços públicos de uso restrito, como as áreas públicas de preservação permanente e non aedificandi, alguns edifícios e áreas públicas de manutenção e armazenamento diversos; os espaços públicos e coletivos de uso de um coletivo restrito como a escola e a creche; e os espaços públicos de uso aberto ou quase totalmente aberto ao coletivo total da cidade, como a rua, a praça, o jardim, as áreas de lazer e esporte, os postos de saúde e os hospitais.

É importante afirmarmos que o espaço coletivo e público, se afirmam, tornam-se vitais ou mais ou menos importantes, seja funcional, estética e psicologicamente, justamente pela aglutinação de pessoas no espaço, a liberdade de uso pelo conjunto da população e a possibilidade real de uma forma de vivenciar intensamente uma experiência coletiva e socializante de integração das pessoas, sem o que ele não teria sentido objetivo e concreto.

Parece-nos, pela análise feita, que numa sociedade capitalista como a nossa, quanto mais o espaço privado se torna de uso coletivo, maiores são os ganhos e os lucros em termos da mais-valia sobre o trabalho coletivo que acontece nesses espaços; da mesma forma eles também provocam ou agregam valores especulativos no solo urbano na sua proximidade. Portanto, o uso coletivo, a possibilidade de agregar pessoas no espaço é uma fonte concreta de especulação do uso do solo, daí também surgem o preço e a disputa pela terra. As situações, enfim, com maiores e melhores potenciais de uso coletivo passam a ser, nesse contexto, “menina dos olhos” dos especuladores e investidores privados, que assim repudiam, tentam excluir e desqualificar a necessidade de uso das terras públicas nessa situações, quando do seu parcelamento, pois a necessidade e existência destas lhes parece, como de fato na maioria dos casos o é, um elemento que diminui os seus lucros, num horizonte de tempo imediato, quanto mais houver qualificação e exigências desses espaços públicos por parte do poder público. No entanto, após os equipamentos públicos serem construídos estes agregam valor num raio grande de influência.

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Vale ressaltar que o espaço de habitações verticalizadas, apesar de ser de propriedade privada, corresponde e agrega valor ao solo circundante e responde em nível de mercado capitalista do solo às situações em que o solo já possui valores agregados por uma soma de outras valorizações provocadas por investimentos públicos ou privados na região em que se situa.

É aqui que, entre um extremo e outro de uma concepção de vida e vivência coletiva ou individual, que prime pelos valores individuais ou coletivos, privados ou públicos, que distribua benefícios ou concentre-os, que exclua uma maioria em detrimento de poucos privilegiados ou busque um equilíbrio de qualificação do espaço urbano e portanto do viver urbano entendido como para todos, ou mais especificamente para a maioria mais carente, é que nos interessa aprofundar a relação de importância da qualificação entre os espaços públicos versus os espaços privados.

Essa relação é tensa, agrega valores, privilegia ou distribui benefícios e acontece no real e concreto, na articulação entre os interesses especulativos ativos dos poucos que detêm a propriedade do solo e os meios produtivos, o poder público com seus instrumentos legais e sua forma de gestão servindo de “mediadores” entre os primeiros e as necessidades humanizadoras da maioria que precisa do solo para um viver integral.

É nesse universo de interesses especulativos concretos sobre o solo urbano que a lei, ou o conjunto de normas urbanísticas mais ou menos coesas37 de cada época, como a lei 6766 / 79, vai interferir e buscar dar resposta ao fenômeno de crescimento das grandes cidades.

A lei 6766/79, como norma-síntese do conjunto de questões vividas e as conseqüências da desqualificação do espaço urbano pelo interesse especulativo sobre o solo urbano, vai propiciar no nosso entender que o poder municipal, os prefeitos das cidades pequenas, os órgãos gestores como as secretarias de planejamento das cidades médias, como a de Bauru, também os órgãos ambientais e os cartórios de registros, tenham em tese a possibilidade de objetivamente orientarem, via diretrizes de planejamento e fiscalização, o parcelamento do solo urbano. Ela se estabelece como uma lei síntese das principais questões tratadas, aponta um mínimo de cuidados obrigatórios em todas as situações de Brasil e no seu parágrafo único do Art. 1.º dá condições de que os municípios possam “ estabelecer normas complementares relativas ao parcelamento do

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solo municipal para adequar o previsto nesta lei às peculiaridades regionais e locais”38.

De início, portanto, essa lei, naquilo que ela aponta conceitualmente sem especificar valores ou critérios específicos, transfere a responsabilidade aos órgãos gestores dos municípios. Contudo lhes dá autonomia amparada pela lei maior.

A consideração anterior permite-nos avaliar a lógica da produção dos espaços urbanos no Brasil no geral, à luz da Lei e das ações e gestões, ou falta destas. Assim, pretendemos dar continuidade a esse capítulo, não detalhando todos os aspectos dessa relação entre a lei, a gestão e a forma urbana resultante. Isso será possível ao longo também dos demais capítulos, mas aqui estamos selecionando apenas alguns aspectos fundamentais da mesma que no nosso entender acabaram por marcar definitivamente a falta de qualidade da maior parte do parcelamento do solo da cidade de Bauru, bem como o imenso problema vivido pela cidade, hoje relacionado com as questões ambientais, a organização dos espaços públicos e coletivos, o sistema viário, a gestão de terras, etc.

No art.6.º do CAPÍTULO III – Do Projeto de Loteamento, está disposto: Antes da elaboração do projeto de loteamento, o interessado deverá solicitar à Prefeitura Municipal (...), que defina as diretrizes para o uso do solo, traçado dos lotes, do sistema viário, dos espaços livres e das áreas reservadas para equipamento urbano e comunitário, apresentando, para esse fim, requerimento e planta do imóvel contendo, pelo menos:

I – as divisas da gleba a ser loteada;II – as curvas de nível à distância adequada...III - a localização dos cursos d´água, bosques e construções existentes;IV –a indicação dos arruamentos contíguos a todo o perímetro, a localização das vias de comunicação, das áreas livres, dos equipamentos urbanos e comunitários existentes no local, ou em suas adjacências, com as respectivas distâncias da área a ser loteada;V – o tipo de uso predominante a que o loteamento se destina;VI- as características, dimensões e localização das zonas de uso contíguas.

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Art. 11.º - Aplicam-se ao desmembramento, no que couber, as disposições urbanísticas exigidas para o loteamento...

No item “ I ” do “art. 4.º ( Os loteamentos deverão atender pelo menos, aos seguintes requisitos), do “CAPÍTULO II – dos Requisitos Urbanísticos para Loteamento”39, está disposto:

I – as áreas destinadas a sistema de circulação, à implantação de equipamento urbano e comunitário, bem como a espaços livres de uso público, serão proporcionais à densidade de ocupação prevista para a gleba, ressalvado o disposto no 1.º deste artigo:

Nos correspondentes encontram-se:

1.º - A percentagem de áreas públicas prevista no inciso I deste artigo não poderá ser inferior a 35% ( trinta e cinco por cento) da gleba, salvo nos loteamentos destinados ao uso industrial.40.

2.º - Consideram-se comunitários os equipamentos públicos de educação, cultura, saúde, lazer e similares.

No inciso III do mesmo artigo temos:

III – ao longo das águas correntes e dormentes e das faixas de domínio público das rodovias, ferrovias e dutos, será obrigatório a reserva de uma faixa non aedificandi de 15 ( quinze) metros de cada lado, salvo maiores exigências da legislação específica:

No art. 5.º está disposto:

Art. 5.º - O Poder Público competente poderá complementarmente exigir, em cada loteamento, a reserva de faixa non aedificandi destinada a equipamentos urbanos.

No inciso IV do art. 4.º temos:

IV – as vias de loteamento deverão articular-se com as vias adjacentes oficiais, existentes ou projetadas, e harmonizar-se com a topografia local.

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A análise dos artigos, incisos e parágrafos destacados anteriormente nos permitirá revelar um conjunto de preocupações urbanísticas, contidas em seus pressupostos e que deveriam ser implantados no crescimento das cidades a partir de dezembro de 197941. Ela revela, ao nosso ver, preocupações sobre algumas questões técnicas fundamentais, conhecidas e discutidas anteriormente, mas que quase sempre foram negligenciadas pelos agentes gestores do poder municipal, especialmente daquelas cidades médias, como Bauru, que cresciam sem controle à maneira de São Paulo e de outras metrópoles, mas que possuíam condições objetivas de corrigir e melhorar a sua qualidade de crescimento, não repetindo os erros das metrópoles até então. Por outro lado, parece-nos hoje também, a partir dos resultados físicos da cidade construída a partir dessa lei que aprofundaremos em capítulos posteriores, que ela deixou vaga, intencionalmente, uma questão fundamental urbanística, que diz respeito à falta de critérios econômicos e espaciais para a organização dos parcelamentos, sobretudo no que diz respeito à relação do espaço público necessário para a maioria da população versus o espaço privado individual. Essa omissão fez com que a qualificação dos espaços públicos ficasse a cargo das formas de gestões diferentemente tratadas pelo País afora. Vale lembrar que eram pouquíssimas prefeituras que possuíam um órgão técnico competente para a interpretação qualitativa da lei, e mesmo cidades médias como Bauru, que a partir dela montaram escritório técnicos para aprovação de projetos e secretarias de planejamento, aplicaram-na parcialmente, meio que ao desejo e pressão da iniciativa privada, mas principalmente de forma subalterna aos interesses políticos específicos de cada prefeito ou de “órgãos” como a COHAB, onde qualquer “besteira”, como muitas que foram feitas, quase sempre não encontraram nos órgãos gestores e fiscalizadores nenhuma resistência formal e publicamente denunciada antes do fato ocorrido. Portanto, houve muita conivência, omissão e por que não dizer, comprometimento com a falta de defesa dos reais interesses públicos por parte dos responsáveis por esses “órgãos”, que acabaram por beneficiar o interesse privado e onerar o interesse da comunidade42, especialmente daquela maior e mais humilde que foi habitar também a maior parte da cidade produzida desde então, como veremos.

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Da análise da lei 6766/79, queremos destacar o que segue:

No seu Art. 6.º - Ela dá condições e responsabilidade ao poder municipal para a sua intervenção no processo desordenado, volumoso e desqualificado de parcelamento do solo como vinha ocorrendo até então, que sobrepunha os interesses especulativos privados aos interesses coletivos e públicos em toda sua dimensão. A partir dela passa a ser do poder municipal, objetiva e claramente, a responsabilidade de traçar diretrizes de parcelamento do solo para as cidades acima de 50.000 habitantes43. Submete-se assim, em tese, aos interesses coletivos da maioria, mais dignos e qualificadores, o direito e os desejos privados dos investidores e proprietários de terras urbanas, com suas volúpias especulativas e ávidos por mais-valias cada vez maiores sobre a produção do espaço urbano,.

O poder municipal, por meio de seus órgãos gestores e de suas formas de gestão, centralizadas e tecnocráticas na maior parte do tempo no caso de Bauru, passa a ser o intermediário nesse conflito de interesses, a quem ficam determinadas as diretrizes e o controle da qualidade da produção do espaço urbano.

A lei deu condições , mas não garantiu a submissão do interesse privado ao público. Ficou submetido à iniciativa privada até mesmo fornecer elementos técnicos sobre o terreno, informações sobre usos e ocupação da realidade urbana vizinha às áreas de interesse de parcelamento, ou seja, elimina do poder público as despesas possíveis para obtenção de uma base técnica para que de fato seu papel seja o de gerir o controle dos interesses públicos sobre os privados.

A gestão sobre a qualidade urbanística dos parcelamentos do solo urbano passou a ser possível com a lei 6766 e o poder municipal adquiriu prerrogativas sobre o controle e fiscalização dessa qualidade44 naquilo que se denominou diretrizes para uso do solo. A nosso ver estava claramente delineado nesse conceito de diretrizes um conjunto de conhecimentos e questões urbanísticas, que correspondia não só às próprias demandas sociais urgentes que já eram reclamadas pela sociedade sobre infra-estruturas urbanas, equipamentos sociais, etc., mas também todo um conhecimento funcional, estético, conceitual e filosófico sobre o conhecimento historicamente adquirido pela sociedade sobre essas questões urbanísticas e arquitetônicas. De certa forma, podemos utilizar uma definição objetiva de arquitetura, extrapolada também para a

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compreensão urbanística, ambas sendo espaços criados para abrigar as necessidades humanas coletivas45. São espaços construídos com determinada intencionalidade plástica ou estética, em função de uma determinada época, de uma determinada sociedade, de uma determinada exigência ambiental (climática, topográfica, tipo de solo, recursos naturais, hidrografia, poluições existentes, etc.), de determinados recursos humanos e tecnologia disponível, de um conjunto de meios técnicos e de materiais construtivos, das condições econômicas existentes e também dos interesses políticos e formas de 1 - FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Vol. 1 e 2. 5.ª ed. Porto Alegre, Globo, 1979. 750 p.

2 - SINGER, Paul. Economia Socialista. Revista Socialismo em Debate. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2000, p.11 a 50.

Ver ainda:

DIETERICH, Heinz. Teoria e Práxis do Novo Projeto Histórico. In: PETERS, Arno...( et al.). Fim do Capitalismo Global. tradução Eliete Ávila Wolff. São Paulo: Xamã Editora,1998, p. 129 a 166.

3 - PETERS, Arno. O princípio de equivalência como base da economia global. In: PETERS, Arno...(et al.). Fim do Capitalismo Global. Tradução Eliete Ávila Wolff. São Paulo: Xamã Editora,1998, p.17 a 59.

4 - MARICATO, Ermínia . Metrópole na Periferia do Capitalismo; São Paulo, HUCITEC , 1996,141 p.

5 - Marx, Karl. O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2.ª ed., 1971.

6 - PETERS, Arno...(et al.). Fim do Capitalismo Global. Tradução de Eliete Ávila Wolff. São Paulo:Xamã Editora,1998, 166 p.

7 - Ibid.

8 - Ibid.

9 - Ibid.

10 - Ibid.

11 - BAURU. SINCOESP ( Sindicato das Construtoras do Estado de São Paulo), núcleo de Bauru.Dados divulgados durante os anos de 93 a 95 na região de Bauru junto à Seplan.

12 - MIRANDA, Rosana Helena. A “ era das cidades ” no contexto neoliberal. São Paulo: Ativo

Nacional do Movimento Comunitário do PC do B, realizado em SP em 17/05/97.

13 - IANNI, Octávio. A era do globalismo. 3.ª ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. 304p.

14 - Marx, Karl. O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2.ªed., 1971.

15 - IANNI, Octávio. A era do globalismo. 3.ª ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. 304p.

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gestões aplicadas46. Assim, estes espaços devem ser construídos mediante a definição de um “ Partido Urbanístico ou Arquitetônico – O Desenho ou a “Forma Urbana”. Que seria a conseqüência formal, o resultado final, advindo da adoção crítica e dialética do conjunto de elementos conceituais ( filosóficos, funcionais e estéticos) estruturadores do espaço e da aplicação lógica das demais determinantes do tal partido47, voltadas para as exigências humanas correspondentes, dentro de uma determinada sociedade, no nosso

16 - MARX, Murillo. Cidade no Brasil terra de quem? São Paulo, Nobel – Edusp, 1991.

17 - Ibid.

18 - FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Vol. 1 e 2. 5.ª ed. Porto Alegre, Globo, 1979. 750 p.

19 - CAMPOS FILHO, Cândido Malta. Cidades Brasileiras: seu controle ou o caos: O que oscidadãos brasileiros devem fazer para a humanização das cidades. São Paulo:Nobel,1989, 143 p.

20 - Ibid.

21 - GHIRARDELO, Nilson. À beira da linha. São Paulo, 1999.Tese de Doutorado; Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo.

22 - MEIRELLES, Ely Lopes. Direito Municipal Brasileiro, 7.ª ed., São Paulo, Malheiros Editores, 1994.

23 - SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 2.ª ed. São Paulo: Malheiros, 1995, 421p.

24 - Ibid.

25 - LEFEBVRE, Henri. A cidade do capital. Tradução de Maria Helena Rauta Ramos e MarileneJamur. Rio de Janeiro: DP&A,1999.180p.

26 - XAIDES, José. Trabalho programado 1 – Levantamento dos loteamentos privados e públicosde Bauru, 2000.

27 - Ibid.

28 - JORNAL DA CIDADE. Coleção. JC nos Bairros de Janeiro de 2000 a junho de 2001. ( Nesse período encontram-se diversas reportagens com o arquiteto José Xaides de Sampaio Alves analisando as principais questões sobre o crescimento desordenado da cidade de Bauru.)

29 - FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Vol. 1 e 2.5.ª ed. Porto Alegre, Globo, 1979. 750 p.

30 - XAIDES, José. A este respeito, dos anos de 1999 para frente está correndo investigação sobre este “ favorecimento”.junto ao ministério público, que envolve os antigos presidentes da COHAB

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caso, a sociedade estratificada, de classes sociais distintas e conflitantes, formada pela economia capitalista48. Ficou a cargo do poder municipal a definição dessas diretrizes sobre a escolha e as definições dos critérios conceituais e técnicos urbanísticos que pudessem orientar “ o traçado dos lotes”, as necessidades, projeções, planos e desenho sobre o “sistema viário”, a organização conceitual, funcional, estética e técnica dos “espaços

31 - XAIDES, José. Projetos carimbados. Conceito desenvolvido por nós nesta tese, que reforça aidéia de uma forma especulativa e sem compromisso técnico de se fazer projetos de conjuntos habitacionais, que parece ser apenas uma reprodução de um modelo simplista de justaposição de quadras e ruas pré definidas sem compromisso com a topografia, com um bom desenho de localização dos espaços públicos e coletivos e sem respeito pelas diversas questões ambientais. O desenho urbano resultante parece uma colagem fragmentada de partes desconexas.

32 .-. XAIDES, José. Os conceitos aqui tratados e desenvolvidos partiram do conjunto de pesquisas e trabalhos programados desenvolvidos para a tese, a nossa experiência como secretário de planejamento nos anos de 1993 a 1995, quando tivemos vários embates com especuladores de terras urbanas na cidade de Bauru. Exemplo disso foi o caso da Pousada da Esperança II, ver DIÁRIO DE BAURU. Tidei vai desapropriar Pousada da Esperança II. Bauru: 23/02/1995, p.11.

33 - JORNAL DIA D. Advogado vai reiterar pedido de intervenção no município. Bauru, 13/06/99,p.8.

34 - XAIDES, José. Sobre a realização dos mapas de valores do município de Bauru, no períodode 93 a 95, quando exercemos o cargo de secretário de planejamento da PMB, fizemos em conjunto com outras secretarias uma correção que estava atrasada há mais de oito anos. De 1995 a junho de 2001, nenhuma outra correção foi ainda aprovada na cidade.

35 - FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Vol. 1 e 2.5.ª ed. Porto Alegre, Globo, 1979. 750 p.

XAIDES, José. Em Bauru, na atualidade, é voz corrente dentro das estruturas políticas dominantes da cidade, que cinco forças políticas majoritárias competem entre si pelo poder político da cidade apoiadas no poder econômico de: empresários industriais da área de alimentação, prestadores de serviços de transporte aéreo e de ônibus, empresários da área de comunicação escrita, empresários da área de educação privada e outros empresários da área imobiliária.

36 - Ibid.

37 - SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 2.ª ed. São Paulo: Malheiros, 1995, 421p.

38 - BRASIL. Lei N.º 6766/79 Lei do parcelamento do solo urbano.

39 - Ibid.

40 - Ibid.

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livres e das áreas reservadas para equipamentos urbanos e comunitários”49. Portanto da “Forma Urbana” resultante.

Se o poder municipal negligenciou esse seu papel, se omitiu desse controle qualitativo do espaço urbano e transferiu, no todo ou em parte, essa definição ao interesse especulativo privado, como estaremos provando nesta tese, ele deixou de cumprir com as necessidades públicas da maioria da população e passou a ser agente representante ativo da minoria capitalista proprietária de terra e dos meios de produção do espaço urbano. Eis que esse papel será uma das “voçorocas do poder público” tratadas aqui.

Do ponto de vista operacional, a lei 6766/79 buscava articular um conjunto de conhecimentos técnicos urbanísticos, um conjunto de leis e normas já conhecidas e com potencial de aplicação, e deu condições de que as realidades distintas, sejam de lugares mas também de exigências diferentes, para classes sociais diferentes, fossem respondidas pelo poder municipal. Portanto, tudo dependeria do seu interesse e de suas formas de gestão do espaço.

Em seu Art. 4.º, inciso I, articulado com o 1.º, ela afirma que as diretrizes dadas pelo poder público sobre “áreas destinadas a sistema

41 - Ibid.

42 - SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 2.ª Ed. São Paulo: Malheiros, 1995, 421p.

43 - BRASIL. Lei N.º 6766/79 Lei do parcelamento do solo urbano.

44 - Ibid.

45 - COSTA, Lúcio. Arquitetura. Rio de Janeiro: Bloch-Fename,1980.

Documentação necessária. In: Arquitetura Civil II, São Paulo: FAU-USP e MEC/IPHAN, 1975.

46 - XAIDES, José. Trabalho programado 3: A gestão das terras urbanas – comprovações da falta de uma política democrática, transparente, participativa e principalmente econômica” para sua conquista.

47 - COSTA, Lúcio. Arquitetura. Rio de Janeiro: Bloch-Fename,1980.

Documentação necessária. In: Arquitetura Civil II, São Paulo: FAU-USP e MEC/IPHAN, 1975.

48 - FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Vol. 1 e 2.5.ª ed. Porto Alegre, Globo, 1979. 750 p.

49 - BRASIL. Lei N.º 6766/79 Lei do parcelamento do solo urbano. Cap. III , Art. 6.º

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de circulação, a implantação de equipamentos urbanos e comunitários, bem como a espaços livres de uso público, serão proporcionais à densidade de ocupação prevista para a gleba e que nunca poderá ser inferior a 35% ( trinta e cinco por cento) da gleba, salvo em determinados tipos de loteamentos industriais” lá especificados50.

Está clara uma intensa discussão urbanística no interior da lei, que diz respeito à relação direta entre a densidade populacional prevista ou projetada, que tem sido alterada ao longo do tempo por aprovações de leis e normas parciais especulativas sem maiores questionamentos, como as mudanças de leis de zoneamento nas cidades, os coeficientes de aproveitamentos e taxas de ocupações do uso do solo, com relação às necessidades de áreas públicas, cuja exigência de ampliação é diretamente proporcional ao aumento da densidade populacional.

O fato é que, seja a demanda ou o impacto de circulação sobre o sistema viário, seja sobre os equipamentos públicos, de escolas, creches, postos de saúde, etc, seja sobre as áreas livres de lazer ou esporte, seja sobre as infra-estruturas urbanas como eletricidade, esgotos, água tratada e encanada, telefonia, qualidade da pavimentação, etc, estas demandas e impactos aumentam quando a densidade populacional aumenta. Este conhecimento é histórico em urbanismo, mas a Lei 6766/79 determina a busca local, nos municípios, da correlação entre os interesses pelo espaço privado e suas ampliações de demandas especulativas no tempo com as demandas coletivas pelo espaço público. Se ela não determina uma regra única para esse cálculo é porque as realidades distintas no País e as concepções possíveis de conceitos e quantidades de espaço privado e público podem ser diferentes em cada realidade. Porém, a não fixação de qualquer critério para estabelecer as normas dessas exigências acima do mínimo previsto de 35% para realidades tão distintas de densidades ( de 50 a 1440 habitantes por hectare)51 entre um loteamento ou conjunto habitacional popular horizontal com lotes de 200 m a 300 m ( como os Conjuntos da COHAB Mary Dota, Gasparini e Geisel, ou os loteamentos como Pousada da esperança I

50 - BRASIL. Lei N.º 6766/79 Lei do parcelamento do solo urbano.

51 - XAIDES, José. Pesquisa realizada na disciplina Legislação, Gestão urbanística e FormaUrbana em 2000, quando da realização do Plano Diretor de Bairro da região do Camélias e Flamboyants.

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e II), um loteamento ou condomínio fechado de classe média alta com lotes entre 300 m até 3000 m ( Paineiras, Samambaia, Shangrilá e Jardim Colonial) , um condomínio de edifícios verticais em zona de uso com coeficiente de aproveitamento entre 1 e 2 ( como Camélias e Flamboyants), ou outro com coeficiente de aproveitamento até 4 ou mais ( região do Jardim América, Panorama, Jd. Dos Duques, Vila Verde, Vila Grená, Campo Belo, Campo Limpo, Região do Bauru Shopping, etc.), como ocorreu em Bauru, configura uma omissão do poder municipal, ou um olhar enviesado e suspeito que beneficiou apenas o interesse especulativo da terra e onerou o conjunto da população. A falta desses espaços públicos nessas realidades mais adensadas, tem obrigado hoje a população a ter que se deslocar para mais longe para ter acesso aos equipamentos públicos, em condições de sistema de circulação já saturados, ou tem feito com que o poder municipal, para sanar essas novas demandas, tenha que desembolsar dinheiro público para desapropriar terras para equipar a cidade. Se ele tivesse gerido e interpretado a lei de forma conveniente, não seria hoje necessário qualquer ônus extra com desapropriações.

Essas desapropriações chegaram a colocar a economia municipal em xeque, sob o risco de confisco judicial, face ao volume em dinheiro que a Prefeitura devia em precatórios52.

As preocupações com a relação entre demanda e densidade, entre espaço privado e espaço público, já estavam em pauta antes mesmo da aprovação da lei 6766/79, que contém esse espírito conceitual e jurídico, o que pode ser comprovado por meio dos grandes debates técnicos desenvolvidos em torno do instrumento jurídico do “Solo Criado”, cujo ápice de sua discussão pode ser demarcado pela declaração da “Carta de Embu”53.

Maiores aprofundamentos sobre esta relação podemos retirar da excelente obra do jurista José Afonso da Silva, “Direito Urbanístico Brasileiro”54, aqui selecionada porque, diferentemente da maioria dos autores consagrados do direito administrativo, como o próprio Elly Lopes Meirelles, sua obra possui uma maior proximidade com o trato urbanístico (concepção e desenho) do espaço urbano. O teor geral da

52 - JORNAL DIA D. Advogado vai reiterar pedido de intervenção no município. Bauru, 13/06/99,p.8.

53 - SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 2.ª ed. São Paulo: Malheiros, 1995, p.238.

54 - Ibid. 421 p.

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obra aponta inclusive para uma modalidade específica do direito urbanístico ainda em formação e portanto que ainda não se decantou devidamente 55.

Na obra citada o autor aprofunda essa questão da relação entre a densidade de ocupação de espaço de interesse privado e sua correspondente em espaço público. Vejamos:

“ O outro mecanismo que assinalamos é o da proporcionalidade entre solos públicos( equipamentos públicos: ruas, praças, áreas verdes etc.) e solos privados, pelo qual aqueles que desejam construir em nível superior ao do coeficiente único deverão ser obrigados a reequilibrar a proporção entre áreas públicas e áreas privadas, rompidas pela criação de solos artificiais...”56

Em outro trecho da mesma obra de José Afonso da Silva encontramos:

63. O documento mais importante sobre o solo criado é a Carta de Embu, elaborada com a participação de juristas, arquitetos, urbanistas e economistas. Em seu texto para o que nos interessa encontramos:

“ Admite-se que, assim como o loteador é obrigado a entregar ao poder público áreas destinadas ao sistema viário, equipamentos públicos e lazer, igualmente, o criador de solo deverá oferecer à coletividade as compensações necessárias ao reequilíbrio urbano reclamado pela criação do solo adicional, e

Conclui-se que:“2. É constitucional exigir, na forma da lei municipal, como

condição de criação de solo, que o interessado entregue ao poder público áreas proporcionais ao solo criado, quando impossível a oferta destas áreas, por inexistentes ou por não atenderem às condições legais para tanto requeridas, é admissível sua substituição pelo equivalente econômico. 57

Portanto fica claro que no tocante às densidades urbanas, seja na forma da densa ocupação de populações carentes em lotes minúsculos ou mínimos previstos na Lei 6766, até as condições de edifícios verticais cada vez mais altos e densos, ela previa e concedeu ao poder municipal as condições de legislar, operar e solucionar os

55 - Ibid. p. 38.

56 - Ibid. p. 235.

57 - Ibid. p. 241.

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aspectos quantitativos e qualitativos de necessidades proporcionais entre a demanda por espaço privado e por espaço público. É simples verificarmos que são muito diferentes as densidades de ocupação e portanto, da necessidade por áreas e equipamentos públicos, para uma realidade de parcelamento de lotes com o mínimo legal de 125 m ( previsto no artigo 4.º da Lei 6766), maiores ainda nas ocupações das favelas e sobrados geminados cujas áreas de terrenos são menores ainda. Essas densidades e necessidades são crescentes a partir dos conjuntos de edifícios populares de quatro pavimentos, passando para os de oito e assim por diante( maiores detalhes estarão no anexo de nossa tese).

Se o poder municipal não foi capaz de proceder esse equilíbrio, como estamos provando nesta tese, foi porque seus órgãos gestores e seus responsáveis técnicos e políticos, utilizando-se do seu centralismo e tecnocratismo como escudo legitimador das suas ações, negligenciaram o interesse público coletivo, se omitiram do seu papel de guardiões dos interesses comuns da maioria e passaram a se comprometer e defender especificamente os interesses da minoria beneficiada que possui a propriedade da terra e os meios de produção do espaço. Dessa forma, houve transferência e apropriação de valores que pertenciam ao público para a propriedade privada e o poder municipal foi o braço direito dessa transação especulativa. Eis, pois, mais uma das “voçorocas do poder público” em questão.

A questão ambiental, no seu sentido amplo, tem evoluído e tomado grande parte das discussões urbanísticas nessas últimas duas décadas no Brasil. Nesse contexto de ampliação em torno do seu debate, as conseqüências devastadoras do mau planejamento urbano das grandes cidades levado, a cabo pela intensificação da especulação imobiliária, falta de solução pelo mercado e pelo poder público sobre as grandes demandas habitacionais no País, falta do controle jurídico e técnico dos extensivos parcelamentos legalizados ou clandestinos que foram se incorporando à cidade, falta de fiscalização do poder municipal e mesmo a sua conivência e aceitação das ocupações em áreas de reservas e de preservações permanentes58, tem aguçado maiores discussões na atualidade. A conivência dita anteriormente se explica, porque sendo o poder do Estado hoje, em suas diferentes instâncias, incapaz de resolver na

58 - MARICATO, Ermínia . Metrópole na Periferia do Capitalismo; São Paulo, HUCITEC Ltda, 1996, pg 73 a 95.

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forma capitalista da propriedade privada do solo, de maneira a não interferir diretamente nos interesses privados, faz vistas grossas quando acontecem as invasões de terras, as ocupações em encostas, em áreas de alagamento, em áreas públicas de preservação etc. Sua interferência iria expor por demais as contradições sociais, a crítica maior e popular aos problemas políticos, econômicos e administrativos nas cidades, o que não interessa de fato àqueles que querem a perpetuação dos modos de produção atual.

No entanto, seja pela mobilização mundial globalizada hoje em torno dessa questão 59, seja pelos problemas concretos vividos nas grandes cidades, pelas enchentes, pelos desmoronamentos de encostas sobre favelas, seja pela ocupação desordenada ao redor de mananciais ou em áreas verdes (que demanda respostas atuais sobre questões maiores sobre as águas) de preservação permanente ou non aedificandi das beiras dos córregos e rios, seja pelos problemas gravíssimos conhecidos historicamente em Bauru, das erosões, voçorocas e assoreamentos de córregos e rios causados pelos maus tratos e formas inconvenientes de se parcelar o solo urbano60, fato é que essas questões se agravaram e vêm exigindo respostas cada vez mais contundentes do Estado, no geral, e do poder municipal em particular.

Grande parte dessas questões, no entanto, já eram conhecidas e previsíveis no início dos anos oitenta, o que fica demonstrado seja pelas leis aprovadas, anteriores à aprovação da lei 6766/79, e também pelas demais aprovadas imediatamente após a mesma, de caráter mais específico61.

Do ponto de vista geral, no entanto, a Lei Federal do Parcelamento do Solo Urbano 6766 / 79 sintetizou e criou as condições para que o poder municipal atuasse no sentido de exigir, orientar, definir e fiscalizar a necessidade de um conjunto de espaços

59 - NAISBITT, Jonh e ABURDENE, Patrícia. Megatrends 2000; Dez Novas Tendências de Transformação da Sociedade nos anos 90. São Paulo, Amanda Key editora,1990.

60 - SILVA, Manuel ; CRUZ, Roberto e CAVAGUTI, Nariaqui. Efeitos de tipos de urbanização na formação de voçorocas. In: 5.º Simpósio Nacional de Controle de Erosão. IPT, ABGE e UNESP, 1995, p.213 a 216.

ALVES, José Xaides de Sampaio. As erosões urbanas de Bauru como conseqüência da formade planejamento e expansão dos loteamentos privados e públicos. In: 5.º Simpósio Nacional de Controle de Erosão. IPT, ABGE e UNESP, 1995, p. 305 a 306.

61 - BRASIL. CONAMA e IBAMA.

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de caráter ambiental preventivo aos problemas que vinham sendo vividos nas cidades. Criou condições, além dos aspectos ressalvados na própria lei, de que, por meio daquilo que está denominado de coesão dinâmica das normas urbanísticas62, o poder municipal, se visse a necessidade, dispusesse das normas específicas existentes, bem como criasse as suas próprias condições de atuar de forma mais restritiva, quando for o caso.

Dessa forma, para aprofundarmos a discussão naquilo que nos interessa nesta tese, observamos que:

No inciso III do seu Art. 4.º temos:III – ao longo das águas correntes e dormentes e das faixas de

domínio público das rodovias, ferrovias e dutos, será obrigatório a reserva de uma faixa non aedificandi de 15 ( quinze) metros de cada lado, salvo maiores exigências da legislação específica:

No art. 5.º está disposto:Art. 5.º - O Poder Público competente poderá

complementarmente exigir, em cada loteamento, a reserva de faixa non aedificandi destinada a equipamentos urbanos.

Em primeiro lugar é preciso enfatizar que todas as áreas aqui consideradas como non aedificandi não se misturam ou jamais poderiam ser confundidas com aquelas definidas como espaços livres de uso público (as áreas verdes, praças ou jardins para implantação de sistema de lazer), muito menos como as áreas para implantação de equipamentos urbanos ( escolas, creches, postos de saúde etc) ou para sistema de circulação ( avenidas e ruas). A observação é pertinente porque em muitas cidades, mesmo em Bauru, essa compreensão deturpada foi utilizada favorecendo o interesse privado e prejudicando o interesse público em vários casos de parcelamentos executados no período estudado.

A dimensão da importância dessas áreas para a cidade de Bauru carece de um aprofundamento da nossa parte, tendo em vista que parte importante do nassa tese será demonstrada a partir dessa compreensão.

A cidade de Bauru vem crescendo e ocupando de forma rápida e desordenada exatamente a cabeceira dos córregos iniciais que formam a bacia do Rio Bauru. Esta condição hidrográfica particular, na qual a cidade vem ocupando os morros e os vales entre esses

62 - SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 2.ª Ed. São Paulo: Malheiros, 1995, p.52 a 60.

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córregos, implica por si só na necessidade de extremos cuidados no tempo, para que esses córregos se perpetuem, servindo funcional e paisagisticamente à cidade. O crescimento urbano desordenado, que a nosso ver tem no poder municipal um agente ativo de omissão, ostenta, entre outras questões relegadas do passado, a falta de investimentos públicos no sistema de tratamento de esgotos da cidade. Dessa forma, o lançamento dos esgotos tem ainda se dado in-natura nesses córregos e nascentes, que assim se transformam em esgotos a céu aberto, mau cheirosos e focos de doenças infecto-contagiosas.

A aceleração do crescimento urbano, com o conseqüente aumento da densidade populacional e ocupações dos antigos loteamentos, a falta de infra-estruturas de galerias de águas pluviais e pavimentação e a deficiência do desenho dos loteamentos “que não harmonizaram seus traçados de ruas com a topografia local” 63, trazem como conseqüência o aumento sucessivo, ano após ano, do volume e da velocidade das águas nas ruas, causando principalmente nas suas partes mais baixas e nas áreas públicas a jusante desses loteamentos, o início de novas erosões, bem como a ampliação de enormes voçorocas já existentes. Normalmente essas voçorocas se iniciam ou em uma área pública livre deixada por razões especulativas nos fundos de vales (como detalharemos posteriormente), em uma área de preservação permanente e non aedificandi, na parte baixa de uma rua não asfaltada ou ainda em áreas de vazios urbanos especulativos.

As características geológicas do solo urbano de Bauru64, muito propícias à formação de processos erosivos quando a camada superficial protetora do solo fica vulnerável, são também muito suscetíveis de assoreamento dos fundos de vales urbanos.

As erosões acontecem, normalmente, quando há desmatamento e retirada da camada vegetal superficial por execução de terraplenagem, em loteamentos ou arruamentos, que possibilita haver grande retirada de terras pelas enxurradas em períodos de chuvas. O transporte dessa terra pelas chuvas até os fundos de vales causa os 63 - BRASIL. Lei N.º 6766/79 Lei do parcelamento do solo urbano. Cap. II, Art. 4.º, inciso IV.

64 - RIDENTE JUNIOR, José Luís, RIBEIRO, Francisco Carlos. Boçoroca do Parque Bauru, Bauru SP. In: 5.º Simpósio Nacional de Controle de Erosão. IPT, ABGE e UNESP, 1995, p 493 a 496.

Outros artigos do mesmo Simpósio, p. 497 a 521.

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assoreamentos, que nada mais são que o depósito das terras nos fundos de vales, com a conseqüente elevação do nível do terreno original, mudança e alargamento do leito dos córregos e formação de enchentes em regiões mais propícias.

Erosões, assoreamentos e mesmo enchentes urbanas são, assim, “irmãos siameses” de problemas em toda época de chuvas em Bauru. Em janeiro de 1993, por exemplo, ocorreu uma das maiores voçorocas urbanas da história de Bauru, a voçoroca do Parque Bauru, que atingiu 800 m de comprimento, por cerca de 50 metros de largura e 15 metros de profundidade na região mais atingida. Em contrapartida ocorreu também um dos maiores assoreamentos da história de um fundo de vale urbano, causando o desaparecimento do lago do Lions Clube de Bauru, onde uma casa que era antiga estação de coleta de água ficou soterrada com areia até o beiral da sua cobertura. Nos anos de 1999, 2000 e 2001, no período de janeiro e fevereiro, esses fenômenos, ou já rotinas ambientais, se intensificaram por toda parte na cidade, mas a região conhecida como início da Av. Alfredo Maia e pátio ferroviário, além de em dias de chuvas ter sido alagada de forma violenta, sofreu processos de assoreamentos que, por conseqüência natural, levantam o nível do solo e pioram a situação das enchentes sucessivas. Tudo isso porque, assim como na voçoroca do Parque Bauru e assoreamento do Lions Clube, em 1993, na cabeceira ou montante a essas regiões alguns loteamentos populares foram implantados sem os devidos cuidados morfológicos e de infra-estruturas, o que ampliou o volume e a velocidade da incidência de água na parte mais baixa da cidade.

Portanto, pelos exemplos já citados e considerando que os fundos de vales urbanos de Bauru são áreas de intensos problemas, de enchentes, erosões e assoreamentos, sendo Bauru considerada no meio técnico científico, talvez a cidade de maior complexidade e problemas dessa ordem no Estado de São Paulo, “A Cidade das Voçorocas”, tendo por isso realizado em 1995 o 5.º Simpósio nacional de Controle de Erosão65, é que as questões das áreas non aedificandi, de preservação permanente, de áreas verdes de lazer, de nascentes, de reservas de matas nativas, de parques ecológicos, de APAS – áreas de preservações ambientais, se tornam como nunca elementos de extrema importância para a cidade.

65 - BAURU. 5.º Simpósio Nacional de Controle de Erosão. Bauru:IPT, ABGE e UNESP, 1995,546 p.

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Muitos têm sido no entanto, os descasos com as questões ambientais. Desde a não exigência pelo poder municipal de melhores modelos de assentamento de loteamentos em relação à topografia dos terrenos, que hoje tem privilegiado ruas perpendiculares às curvas de nível, como nos casos de loteamentos recentes, como o Bauru 2000 e Bauru 1, causando erosões antes do primeiro ano de inauguração66, passando pela não exigência em separado das áreas non aedificandi em relação às áreas verdes de lazer e institucionais, a colocação das áreas para equipamentos públicos e áreas de lazer nos fundos de vales e sobre nascentes ou áreas de erosões, etc., como no caso dos loteamentos das Pousadas da Esperança I e II . Até mesmo a Prefeitura executou de forma intempestiva e injustificável desapropriações de áreas de preservação permanente comprometidas por minas, causando assim imensos problemas financeiros para os cofres públicos municipais, como foi o caso ocorrido no fundo de vale do córrego da Água Comprida, que será aprofundado adiante67. Ou, ainda, não exigiu nos parcelamentos das glebas maiores da cidade, em áreas que eram antigas propriedades rurais e que possuíam matas nativas de cerrado, a reserva legal de 20% prevista em lei dessas matas68, antes mesmo de parcelar o solo de acordo com a Lei 6766/79 ou mesmo a lei municipal de 198269, critério que somente agora o DPRN e o IBAMA também vêm se ocupando de cobrar na sua íntegra.

As normas e leis sobre essas questões ambientais, além do conhecimento técnico e científico inegável sobre as mesmas, estavam postas ao poder público para serem aplicadas há bastante tempo, algumas delas antes mesmo da Lei 6766/79.

Mais uma vez ficará provada, portanto, a omissão, o comprometimento do poder municipal e de outros orgãos

66 - BAURU. 1.ª Plenária Popular sobre enchentes, erosões, buracos e asfalto de Bauru. Anais da OAB, 2001.

67 - JORNAL DIA D. O grande mico: área da família Duque, que já custou mais de R$ 2 milhões

aos cofres municipais e originou vários processos na justiça, vira um elefante branco. Bauru. 04/04 de 1999.

68 - BAURU. CONDEMA – Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente. 2001. Vale ressaltar que sobre esta questão, pudemos comprovar pessoalmente durante uma vistoria da área para construção do loteamento da Chácara Odete, como representante da AGB – Bauru no CONDEMA, que os atuais responsáveis pela SEPLAN não levavam em conta esta questão que foi levantada e discutida a partir das intervenções dos responsáveis pelo DPRN e IBAMA.

69 - BAURU. Lei 2339/82. Lei de parcelamento do solo urbano de Bauru. Bauru 1982.

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governamentais, na não aplicação integral das leis em defesa do espaço coletivo e da qualificação do espaço público urbano. Em contrapartida houve benefícios econômicos para uma minoria privilegiada, dona da terra privada e dos meios técnicos, econômicos e políticos. Assim, fica claro que o que estava escrito não necessariamente se cumpriu. De certa forma, a própria existência da lei foi um meio de se ganhar tempo e sobrevida do processo especulativo desenfreado, havendo no entanto por trás da lei uma certa institucionalização do descontrole sobre o espaço70. Sob uma ótica pública e coletiva que aqui nos interessa, essas são mais algumas das voçorocas do Poder Público que estamos aprofundando nesta tese.

A bem da verdade, antes mesmos de demonstrarmos com exemplos concretos em profundidade o que neste capítulo estamos afirmando da dialética entre a forma, a lei e a gestão urbana, fica por último uma questão: se o conhecimento técnico básico sobre urbanismo, sobre o desenho ou a forma urbana mais adequada existia num corpo técnico formado por arquitetos, urbanistas, engenheiros etc., e se existiam leis regulamentadoras básicas capazes de qualificar o espaço nas suas diversidades funcionais, ambientais, estéticas, sociais e econômicas, que outros elementos principais foram os propiciadores dessa desqualificação que ocorreu e que estamos a entender?

Antes de aprofundarmos de forma objetiva o caráter e o papel da gestão urbana, enquanto modo, forma e papel ideológico e político do poder municipal gerir o espaço urbano, queremos considerar a importância histórica para a nossa tese de algumas das exceções que ocorreram em termos de parcelamento da terra urbana, que mostram, pelo menos em parte, preocupações ideológicas, formais e técnicas quando da execução dos projetos pelos loteadores e investidores privados, nas aprovações pelo poder municipal, e que resultaram numa percepção objetiva de qualidades incomuns não existentes na maior parte da cidade projetada.

Várias são, a nosso ver, as qualidades de alguns desses projetos que estamos denominando de “Projetos Exceções” de Bauru. Em primeiro lugar porque são projetos ou intervenções no espaço da cidade, que ocorreram em momentos históricos distintos, em situações

70 - BATAGLIA, Luísa. A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil. Tese de Doutorado da FAU-USP, 1991.

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econômicas, sociais, políticas, culturais e tecnológicas distintas, portanto, não será o caso de aprofundarmos cada uma delas sob esses planos, mas aqui caberá demonstrar apenas que essas exceções guardaram qualidades básicas de respeito ao espaço coletivo, de certo controle do poder municipal sobre a especulação da terra e organização do espaço privado e do seu reconhecimento de que a boa organização dos espaços públicos urbanos deveria ser exigência necessária para se fazer equilíbrio econômico entre terra pública e privada, na organização dos equipamentos, na justa distribuição desses equipamentos para o coletivo da população, na boa articulação com o sistema viário de acessos, na integração e socialização das pessoas no espaço e na formação de identidade coletiva da população, etc.

Esses “Projetos Exceções”, que serão destacados em alguns aspectos fundamentais nos outros capítulos, como contraposição às “voçorocas” do período de estudo, são:

1 - A organização do espaço do centro antigo da cidade iniciado no início do século, com sua esplanada ferroviária 71, suas três praças, a Machado de Mello, a Rui Barbosa e a “Praça do Rolo”, os seus edifícios públicos integrados com essas praças, a estação ferroviária da Noroeste inaugurada em 1939, o Museu Ferroviário que foi antiga estação, A Igreja Matriz do Divino Espírito Santo que depois de destruída no início do século para alargamento da praça e continuidade da Rua Batista de Carvalho foi definitivamente implantada na situação atual, e a partir do final dos anos 80 a construção do Calçadão da Rua Batista de Carvalho e a modificação ou remodelação da Praça Rui Barbosa, modificações últimas desses espaços que buscaram reforçar o seu caráter coletivo privado de “passagem” do centro da cidade, em vez de “público e de “permanência”. .................................................................(Figura 13 – Centro histórico).

71 - GHIRARDELO, Nilson. À beira da linha. São Paulo, 1999.Tese de Doutorado; Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo.

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2- O projeto para o conjunto habitacional do Jardim Redentor, executado nos anos 60 por meio do financiamento do BNH, que por ser um dos primeiros conjuntos habitacionais da “era BNH” e mesmo de Bauru se torna significativo pelas suas qualidades excepcionais, que não foram apreendidas e nem foram capazes de nortear o desenvolvimento da maioria dos conjuntos habitacionais ou posteriores investimentos privados em habitação popular de Bauru. O Conjunto Habitacional Jardim Redentor segue influências da “Cidade Linear”72 industrial e das “Cidades Jardins”73 européias da virada do século XIX para o século XX. Sua estrutura urbana viária segue um rígido sistema hierárquico entre avenidas primárias, vias coletoras, vias de bairro e vias mais particulares. A organização desse sistema viário, dos lotes com casas geminadas, se estrutura “a partir” da organização ou da concepção fundamental e protagonista de uma estrutura da organização dos espaços públicos de praças de lazer, de praças com escola, de praças com igreja, etc. Esse conjunto de espaços públicos acaba por marcar, de tão expressivo que é na organização urbanística do bairro, a própria identidade coletiva geral do mesmo; mas a riqueza dos microespaços urbanos “em torno” de cada espaço público individualizado define personalidades próprias a cada situação particular.

............................( Figura 14 - Conjunto habitacional Jardim Redentor).72 - BENEVOLO, Leonardo. História da arquitetura moderna. Tradução de Ana M. Goldberg, São

Paulo: Ed. Perspectiva, 1976, p.362 a 364.

73 - Ibid., p.356 a 362.

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O Jardim Redentor é um conjunto que dignifica o projeto, que dignifica o real sentido do papel dos espaços públicos e do poder público em contraposição à especulação imobiliária e aos interesses capitalistas. Contudo, talvez pelo enfraquecimento, erosão ou voçorócas do próprio sentido do papel do poder público, poucas vezes mais se experimentou soluções tão ricas para a produção habitacional em Bauru.

3 – O loteamento privado Jd. Estoril 2, executado no início dos anos 80, portanto já sobre influência da Lei 6766/79, é um loteamento de “ alto padrão”, com lotes grandes, em área de intensa especulação imobiliária da zona sul da cidade, que foi destinada a abrigar pessoas de maior poder aquisitivo de Bauru naquele momento. De certa forma foi um parcelamento excepcional, que rompeu com a estrutura urbana histórica de Bauru formada por quadras regulares quadradas, e que influenciou uma dispersão e fragmentação do desenho urbano. Acabou por virar uma referência de parcelamento pseudo-modernizador, principalmente para a elite bauruense, especialmente porque de forma objetiva, na sua concepção de projeto, na concepção comercial, na concepção do “marketing”, na concepção jurídica e legal, possibilitou pela primeira vez em Bauru a introdução da idéia do espaço “exclusivo dos ricos”, do espaço segregado e segregador, limitado ou fechado ainda não por muros ou cercas dos futuros

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loteamentos ou condomínios fechados como o Parque das Paineiras, o Jardim Samambaia, o Shangrilá, que foram aceitos e aprovados de forma questionável pelo poder público, na falta de uma melhor definição do seu papel público e mais pela pressão dos investidores e especuladores de terra. Mas o Jardim Estoril, de forma histórica, seguindo um modelo metropolitano, cada vez mais especulativo, criou uma barreira de classes na forma “Invisível”, onde o limite aparente era o sucesso econômico pessoal e familiar. Esse conjunto, na forma sociológica da sua compreensão não carece de maiores necessidades de ter perto qualquer equipamento público ou áreas de lazer, uma vez que o acesso a esses equipamentos pode ser conquistado pelo menos pela maioria da sua população, por veículos particulares luxuosos e do ano, com seus motoristas particulares, levando seus filhos preferencialmente a escolas particulares, clubes de lazer particulares, shopping centers fechados, chácaras equipadas longe da cidade, etc. No entanto, paradoxalmente às suas necessidades, esse parcelamento do solo permitiu a organização de um espaço público que corta o conjunto perpendicularmente à organização do seu sistema viário. Vale fazer aqui algumas considerações a mais sobre esse loteamento. Seu traçado de vias está harmonizado com a topografia do terreno74, o que impede a deterioração das vias e os problemas ambientais de enxurradas, tão comuns na maioria dos loteamentos públicos ou privados de Bauru; a estrutura central dos espaços públicos cortando perpendicularmente o sistema viário ali possui apenas e somente um caráter paisagístico contemplativo, sem funções objetivas de abrigar equipamentos públicos ou sequer uma praça pública aberta ao conjunto da população. O espaço público ali deixado é um meio, ainda, de permitir por servidão pública a retirada das águas pluviais e dos esgotos de parte do conjunto e fazê-los chegar ao fundo de vale do rio Bauru.

..........................................................( Figura 15 – loteamento Estoril 2 )

74 - .BRASIL. Lei N.º 6766/79 Lei do parcelamento do solo urbano. Cap. II, Art. 4.º, inciso IV.

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4- O loteamento executado para o “Desfavelamento de Bauru” – Conjunto Fortunato Rocha Lima, cujo estudo urbanístico foi por nós desenvolvido75 e repassado para término às empresas que o construiriam, retomou a idéia do espaço público como protagonista da organização do loteamento, tendo em vista um conjunto de questões sociais e econômicas discutidas com os representantes das secretarias e órgãos que davam atenção às necessidades dos favelados, que, morando às margens de córregos sujeitos a enchentes, erosões e assoreamentos, tiveram que ser deslocados em regime de urgência pela administração municipal de 1993 a 199676. A escolha da área central do loteamento para a implantação dos equipamentos urbanos, justamente a melhor área do ponto de vista 75 - XAIDES, José. Anteprojeto urbanístico do Fortunato Rocha Lima. O anteprojeto foi por

mim definido levando- se em conta os critérios ambientais, tendo em vista que era conhecida a situação erodível do solo e especialmente por se tratar de conjunto habitacional popular onde as condições financeiras para realização das infra-estruturas de pavimentação e galerias só poderiam ser conquistadas ao longo do tempo. Por outro lado, privilegiamos as áreas públicas para equipamentos sociais , tendo em vista que o projeto originalmente prezou a necessiade de dar condições de desenvolvimento social e econômico às famílias como forma de fixação das mesmas naquele espaço.

76 - JORNAL DA CIDADE. Favelas crescem e assumem “cara” de bairro. JC nos Bairros: Bauru, 01 de julho de 2001, p.1.

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topográfico, a mais plana, a menos suscetível de problemas erosivos e a enxurradas, a que mais permitia visuais valorizados de toda a região ao seu redor, portanto a mais valorizada do ponto de vista econômico, teve objetivamente vários motivos e significados que queremos apresentar. Simbolicamente foi rompida a tradição com que o poder público veio tratando a organização do espaço público em benefício dos lotes privados na maioria das produções dos espaços da cidade, especialmente da absoluta maioria dos conjuntos habitacionais executados pelos “órgãos sob influência política governamental” como a COHAB. Mas longe de ser um posicionamento apenas ideológico, essa escolha atendeu a um propósito social e político, que talvez pela carência-limite da situação dos favelados nos permitiu visualizar os papéis objetivos dos espaços públicos e também o do poder municipal no cumprimento público das suas prerrogativas. A situação a nós apresentada pelo prefeito, pelos agentes sociais e das demais secretarias municipais, especialmente pela Secretaria do Bem-Estar Social, para pensar o projeto urbanístico, extrapolava a idéia tradicional do mero abrigo, ou da concessão de um lote ou da construção da casa humilde e barata para atender um mero compromisso numérico de unidades, ou um fazer de contas de compromisso eleitoreiro ou político do prefeito municipal da época, o engenheiro Antônio Tidei de Lima.

O que estava em pauta, que era conhecido por aqueles agentes sociais e teve atenção do prefeito foi que a questão a ser resolvida era um processo de integração social, de criar formas de contatos e de trabalhos sociais integradores com o poder municipal e com entidades organizadas da cidade no sentido de potencializar o desenvolvimento daquela comunidade que seria, formada sem o que o risco de ampliar o problema social, devido às precárias condições econômicas e sociais daquelas famílias, era muito grande, até mesmo de seu retornos à favela. Desde a organização da produção das habitações, em processo inicialmente de mutirões, com fornecimento de alimentação e de técnicos por entidades como as universidades, as igrejas de várias religiões, a maçonaria, os funcionários do Banco do Brasil, etc. se criou condições não só para aquele momento da produção compartilhada das casas, mas também a perspectiva de ir-se construindo, no espaço público destinado no conjunto habitacional, escolas de formação profissional, centros de atividades culturais e sociais, áreas de apoios de saúde pública, de lazer e esporte para as crianças, de integração social e de cultos religiosos.

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Dessa forma o espaço público tomou significado como nunca, era a própria razão fundamental da organização coletiva daquela gente no espaço.

O “sonho”, no entanto, foi quebrado com a transição de governo, de 1996 para 1997. Na busca de destruição do projeto político anterior, para “não colocar azeitona na empadinha do outro” 77, seus sucessores fizeram com que o caráter socializador não acontecesse. Perdeu-se o entusiasmo, o apoio político e econômico, e o que era para ser a diferença, voltou a ser apenas a organização habitacional para um agrupamento de pessoas humildes abandonadas à própria sorte. Aquela conceituação parece hoje estar sendo recuperada, depois do bairro ter se deteriorado e marginalizado, e o conjunto de espaços públicos criados na área central e privilegiada do conjunto parecem voltar a cumprir um propósito próprio aglutinador.

O projeto urbanístico do conjunto habitacional Fortunato Rocha Lima tinha de antemão um desafio ambiental a ser resolvido com conhecimento. O projeto partia do fato de que as condições econômicas disponíveis não permitiriam que todas as infra-estruturas fossem disponíveis antes da ocupação do loteamento. Sabíamos que a maior parte das ruas não receberiam tão cedo galerias de águas pluviais e asfalto e que nessas condições o projeto não poderia ser feito com os erros tradicionais dos loteamentos de Bauru, pois senão sofreria processos erosivos como todos e aquela gente que havia saído das margens de córregos e rios com os problemas de enchentes e erosões não teriam motivos para entender qualquer situação de mudança provocada pelo novo espaço de vida. Executamos o projeto com o rigor fundamental de dispor a maioria das ruas quase paralelas às curvas de níveis do terreno, harmonizando-se com esses como previa portanto a lei 6766 em seu inciso IV, art. 4.º. Esse fato provocou, de forma por nós prevista, uma necessidade de maior movimento inicial de terra, entre corte do lado superior das ruas e aterros na parte baixa. Essa situação não era esperada pelos encarregados de empreiteiras e construtoras que participavam dessa fase do projeto78, ao ponto de, após o início da primeira rua, 77 - XAIDES, José. “Não colocar azeitona na empadinha do outro”. O conceito em questão é

jargão conhecido em Bauru e no Brasil e significa que a maioria dos políticos não gostam de terminar obra iniciada por seu antecessor, especialmente em se tratando de adversário político. Essa atitude tem por objetivos duas questões complementares, a primeira que com isso o antecessor pode ser questionado e prejudicado politicamente por não terminar suas obras, a segunda é que, em terminando a obra, os ganhos políticos em tese vão para o antecessor que a iniciou, o que torna essa atitude “ politicamente indesejada”.

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convocarem uma reunião na obra, para a qual fomos convidados, juntamente com o prefeito, para nos propor a mudança do projeto, buscando adequá-lo à forma tradicional de execução de projetos da COHAB e CDHU que conheciam, que, por razões econômicas iniciais da obra, dispunham as ruas perpendiculares às curvas de níveis, e assim os lotes individualmente tinham pouca movimentação de terra. O impasse criado permitiu-nos um intenso debate, com uma planta aberta sobre um “capô” de carro, entre a nossa posição, que projetava os problemas futuros, e a visão imediatista e especulativa dos empreiteiros, na frente do prefeito, que afinal deveria decidir o impasse. O bom senso do prefeito, que via nesse projeto uma das suas maiores realizações políticas de governo, deu-nos felizmente razão. .................................( Figura 16 – planta do projeto “ desfavelamento” )

Hoje, passados cerca de sete anos da realização daquela obra, com toda a falta de infra-estrutura prevista, e todas as intensas chuvas desses inícios de anos, verifica-se que ela realmente não possui os problemas erosivos enormes comuns de outros loteamentos de Bauru. 78 - XAIDES, José. O fato em questão teve a minha participação , do prefeito Tidei de Lima,

do responsável pelos serviços de terraplenagem, chamado popularmente de “Pirajú”, e do responsável da COHAB e Prefeitura pela obra, o Eng. José Cardoso Neto.

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Problemas que já ocorreram em outros conjuntos executados posteriormente, que foram feitos à “maneira tradicional”, como os Conjuntos Bauru 1 e Bauru 2000.

5 - O quinto “Projeto Exceção”, do qual fomos autores das diretrizes urbanísticas, foi Vila Tecnológica de Bauru. Foi um dos doze únicos desenvolvidos do Brasil, idealizado e conquistado junto ao governo federal pelo presidente da COHAB de Bauru na época79. Tinha como metas fundamentais ser um centro de difusão tecnológica de técnicas construtivas para a habitação popular e principalmente ser um elemento de teste e decisão para a escolha de tecnologias mais adequadas à realidade climática, social e econômica da região de Bauru................................................................( Figura 17 – Vila Tecnológica )

O projeto da Vila Tecnológica de Bauru envolveu a parceria de instituições de ensino, órgãos técnicos, agentes financeiros e

79 - BAURU. COHAB. A presidência da COHAB no período de 1993 a 1995, nomeada pelo prefeito Tidei de Lima, foi exercida pelo eng. civil Celso Marta.

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Prefeitura. Enquanto projeto urbanístico, teve como metas fundamentais recuperar uma área degradada por erosões urbanas e retirada de solo sem melhores critérios técnicos, bem como ser um elemento urbanístico capaz de criar um centro urbano numa região pobre formada por vários bairros populares, desestruturados e que haviam passado por um dos maiores traumas de ocorrências de voçorocas urbanas da história de Bauru, a “Erosão do Parque Bauru80, assunto que iremos ainda analisar em capítulo próprio nesta tese. Assim, na sua concepção urbanística, privilegiou-se também o seu espaço coletivo público, formado por praça, área de difusão tecnológica, de formação e área de lazer e esporte.

6 - O sexto “Projeto Exceção” refere-se diretamente a uma política de intervenções públicas em áreas de vazios urbanos, desenvolvida em Bauru, entre os anos de 1993 e 1996. Esta política partiu da necessidade do poder público construir vias de circulação primária, tipo avenidas, desafogando fluxos urbanos, integrando bairros, criando parques públicos, desenvolvendo regiões urbanas mais pobres da zona norte urbana, combatendo a especulação imobiliária existente na zona sul da cidade e promovendo equilíbrio urbano com os benefícios do dinheiro coletivo da população. Esse projeto, que já apresentamos no início desta tese, e que ainda mencionaremos em capítulo posterior, será lembrado agora apenas para confirmar alguns aspectos de sua importância histórica, para demarcar a relação entre a lei, o desenho e a gestão urbana. Partimos do princípio da existência de inúmeras experiências urbanísticas no Brasil81, onde o poder público para buscar melhor equilíbrio entre ônus e benefícios das ações urbanísticas82, ao invés de se utilizar apenas de uma norma isolada, no caso a que nos referiremos, da prerrogativa da desapropriação, buscava ter uma visão dinâmica83 e mais geral do conjunto das normas urbanísticas.

80 - RIDENTE JUNIOR, José Luís, RIBEIRO, Francisco Carlos. Boçoroca do Parque Bauru, Bauru SP. In: 5.º Simpósio Nacional de Controle de Erosão. IPT, ABGE e UNESP, 1995, p 493 a 496.

81 - SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 2.ª Ed. São Paulo: Malheiros, 1995, 421p.

82 - Ibid.

83 - Ibid.

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A norma da desapropriação de terras para conquista de terras públicas tornou-se um vício jurídico em Bauru e nas cidades brasileiras, por causa de vários fatores que aprofundaremos em outro capítulo, a tal nível que os agentes de planejamento, de negócios jurídicos e de finanças têm desprezado as diversas outras formas e possibilidades de conquistas de terras públicas, como aquelas previstas na lei 6766/79, que se refere à relação entre densidade populacional de um parcelamento e a sua proporcionalidade em termos de terras públicas para espaços públicos, ou ainda, os acordos bilaterais entre proprietários de terras e o poder público para viabilizar doações em casos de valorizações imobiliárias por obras públicas desenvolvidas, e mesmo a não aplicação das contribuições de melhorias também nos casos da valorização dos terrenos por obras públicas construídas, entre outras84. Fato é que, por esses vícios desapropriatórios, podemos falar hoje em uma certa “indústria da desapropriação de terras” das cidades, onde quem sai de fato com os maiores benefícios são os donos de terra. O poder municipal e a coletividade ficam com os prejuízos econômicos desse processo. Em alguns casos, inclusive, a municipalidade se vê muitas vezes em vias de ter suas finanças bloqueadas judicialmente por conta da necessidade de pagar altíssimos valores outorgados por perícias judiciais que também prezam muito mais os interesses particulares que os públicos e coletivos.

A ação exceção da qual tivemos o papel intelectual central partiu do princípio de só desenvolver um conjunto de projetos para construção de avenidas, especialmente a Avenida D`oeste ( Jânio Quadros ) e Av. Nações Unidas Norte, após a doação pela maioria dos proprietários de terras das partes necessárias para as áreas públicas por onde passariam os leitos carroçáveis, bem como as áreas non aedificandi e de preservação permanente de fundos de vales, assim como aquelas necessárias para a construção de praças rotatórias e de um grande Parque Urbano da cidade. Vale dizer aqui que, após dois anos de ações ininterruptas, até o momento de nossa saída do poder municipal, em 1995, tínhamos conquistado cerca de 400.000 metros quadrados de terras sem qualquer ônus para a Prefeitura Municipal, ônus que, se fosse pago em valores atuais de mercado, após a realização das obras atingiria cerca de 25 milhões de reais. Esse processo, enquanto uma política de gestão pública diária e

84 - Ibid.

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coordenada, acabou com a nossa decisão de saída naquele momento. Na gestão seguinte, ao contrário, as desapropriações de terras foram retomadas inescrupulosamente em Bauru, e sobre elas será descoberto em 1997 um grande esquema de corrupção, que inclusive serviu para iniciar a incriminação do próprio prefeito municipal85, que foi destituído do poder, perdeu seus direitos políticos e acabou sendo incriminado e preso.

.......( Figura 18 – Doação para Av. D`Oeste e Nações Unidas Norte).

Os “Projetos Exceções ”, apontados anteriormente, realizados em vários períodos históricos e mesmo dentro do período estudado nesta tese, demonstram, portanto, que independentemente das questões legais mais específicas de cada época, quando o poder público teve consciência e vontade política de defender o interesse público, as qualidades de projeto ou do desenho e a forma urbana dos espaços coletivos e públicos, um certo rigor com as condições ambientais e a qualidade de vida da população, além de intervir no controle direto da especulação da mais valia privada, ele o fez

85 - DIÁRIO DE BAURU. Negócio suspeito envolve gabinete. Bauru: 26/04/1998, p. A1 e A8.

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objetivamente. Por outro lado, a existência desses “Projetos Exceções” em Bauru, não deixa qualquer margem de dúvida, no nosso entender, de que na maioria da produção dos espaços urbanos da cidade que iremos tratar no período selecionado a partir da aprovação da Lei 6766/79, não faltaram conhecimento técnico urbanístico, conceitos formais ou tecnológicos para os agentes que coordenaram o desenvolvimento urbano, sejam eles os políticos ou os técnicos das secretarias responsáveis pela aprovação, pela coordenação, pela fiscalização daquilo que se aprovou de parcelamentos privados ou públicos na cidade. Tampouco faltaram leis ou normas que pudessem garantir a interferência do poder público no controle da produção privada dos espaços. Esse corpo jurídico sintetizado e aberto em suas necessidades foi apontado pela Lei 6766 /79; bastava o interesse em interpretar a lei não como instrumento acabado, único, mas fazê-lo dentro de uma visão da coesão dinâmica das demais normas existentes, sejam elas as normas ambientais específicas, sejam as normas de parcerias entre público e privado, sejam as normas que vinham há muito tempo sendo discutidas e aprofundadas no Brasil, como as sobre o solo criado. O que faltou mesmo, e isso não há lei ou conjunto de leis, nem conhecimento técnico sobre urbanismo que resolvam isoladamente, foi o interesse da maior parte dos integrantes do poder municipal em exercer uma forma de gestão comprometida com o coletivo da população mais humilde e com as verdadeiras causas públicas, que privilegiasse os interesses públicos sobre os interesses privados, os interesses da organização dos espaços públicos em vez dos espaços individuais e privados.

A gestão urbana assim é exercida, diretamente pelo prefeito e um ou dois mais agentes técnicos ou políticos, nas cidades pequenas que não possuem um órgão como uma secretaria de planejamento. Em Bauru, antes dos anos 70, essa gestão se deu também sentindo a falta de um órgão técnico mais independente dos desejos e influências políticas. Ao contrário, houve mesmo certa “promiscuidade” naquela relação público-privado, pois, foi comum que vários dos próprios agentes públicos realizassem os desenhos e projetos de loteamentos privados, agentes esses do setor de aprovação de plantas, da fiscalização ou de obras. Nessa promiscuidade, deve-se lembrar até mesmo que alguns prefeitos e vereadores foram grandes especuladores de terra e promotores do crescimento desordenado da cidade86, o que gerou, simbolicamente ao nosso ver, inclusive o título de “Cidade Sem Limites”.

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No final dos anos 70 e início dos anos 80, as preocupações com a urbanização da cidade, a instituição da lei 6766 e a busca de uma legislação municipal sobre o parcelamento do solo urbano encontraram um grupo de técnicos, arquitetos e urbanistas, um deles que se tornou vice-prefeito87, que além da lei municipal 2339 de 1982, desenvolveram uma base real de controle do solo urbano. Promoveram a institucionalização de um Escritório Técnico que posteriormente passou a ser Secretaria de Planejamento. Naquele período, foram executados ainda a legislação atual de zoneamento urbano e uma diretriz de Plano Diretor que mais tarde foi ampliada e aprovada em 1996.

Portanto, todas as condições legais, técnicas e institucionais estavam disponíveis ou tiveram a oportunidade de uma concepção e exercício pleno do planejamento, da gestão compromissada e correta do papel do poder público e a valorização da qualificação da vida na cidade, especialmente para a maioria da população de Bauru, que por sinal se ampliou demasiadamente nas faixas mais humildes, especialmente por influência da forma de gestão habitacional promovida pela COHAB naquele período.

Mas a essas condições ideais dadas e possíveis, não correspondeu um aprofundamento ideológico e político do modelo de gestão que esses órgãos e técnicos deveriam exercer.

As leis, as normas, o aparato burocrático estamental88, o perfil da maioria dos técnicos que exerceram as funções controladoras, não foram capazes em todos os momentos de superarem o modelo tecnocrático e centralizador desses órgãos, até porque o regime centralizador e a atitude desses órgãos ficaram quase sempre subalternos ao centralismo político dos prefeitos. E quando por alguma razão maior de discordância o desejo do prefeito e desses técnicos de carreira não batiam, prevaleceu o interesse político do prefeito e o da

86 - Segundo nos relatou em julho de 2001, o Editor do Bauru Ilustrado, Sr. Luciano Dias Pires, O Ex-Prefeito Nicola Avalloni.Junior (Nicolinha) além de ter sido prefeito entre 1956 e 1959, era dono de imobiliária e grande comerciante de terras em Bauru. Foi Nicolinha quem adotou o “slogan” e título de “Cidade Sem Limites” para Bauru, título esse originalmente de um poema do Poeta Eusébio Guerra.

87 - BAURU. O grupo de técnicos formados na FAU-USP. Contava com vários profissionais,dentre eles o arquiteto Jurandir Bueno Filho, que se tornou vice prefeito da gestão de Osvaldo Sbegen no início dos anos 80.

88 - FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Vol. 1 e 2.5.ª ed. Porto Alegre, Globo, 1979. 750 p.

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manutenção nos cargos dos técnicos, que quase nunca foram capazes sequer de tomarem uma atitude de rompimento ou de denúncia pública sobre os fatos acontecidos intra–gabinetes , a não ser quando um ou mais membros foram convocados judicialmente para depor na câmara ou no judiciário, mas aí não por índole própria ou compromisso ético maior com o interesse público, mas por força maior e pressão jurídica e popular, como no caso da denúncia contra o prefeito que foi preso89.

É fácil deduzir que a desqualificação do espaço urbano de Bauru, na maior parte dos parcelamentos urbanos no período após a aprovação da Lei 6766/79, portanto, dependeu e foi resultado direto das formas de gestão do espaço urbano. Estas formas de gestão, na maior parte do tempo, subordinaram os aspectos técnicos e jurídicos aos aspectos políticos. Subordinaram os interesses públicos aos privados, os interesses sociais coletivos aos interesses econômicos de poucos.

A análise da estrutura de poder que regeu a atuação do poder municipal nesse tempo demonstra alguns aspectos fundamentais de como foi a atuação desses órgãos gestores do espaço, que causou as “voçorocas” em análise.

Em primeiro lugar, a representação política de Bauru, seja na ocupação do cargo maior de prefeito, seja no “órgão político” que mais construiu e parcelou terras no período, a COHAB, quase sempre foi exercida direta ou indiretamente por compromissos e apoios econômicos de campanha por representantes da classe industrial, comercial e dos proprietários de terras urbanas.

Esses dois cargos políticos quase sempre impuseram seus desejos à frente de qualquer maior discussão urbanística ou técnica dos órgãos aprovadores ou fiscalizadores, como as Secretarias de Planejamento, de Obras, de Negócios Jurídicos, de Finanças ou de Meio Ambiente e outros.

Em raras vezes, como no caso da realização do projeto da Vila Tecnológica de Bauru, a COHAB cedeu à SEPLAN a autonomia de realização intelectual e técnica dos seus projetos. Ela quase sempre realizou os projetos por meio de empresas que os monopolizavam no 89 - XAIDES, José. No caso da desapropriação de terras conhecido como “ Caso Mobaid” em

1997 , apesar dos órgãos da SEPLAN responsáveis pelos setores de desapropriação e uso e ocupação do solo terem conhecimento dos malefícios econômicos daquele ato de desapropriação, seus responsáveis só se manifestaram publicamente na imprensa e na Câmara Municipal quando, apesar do escândalo do cheque de propina, eles foram convocados a se posicionarem.

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Estado e que eram externas à cidade. Selecionava áreas para compra combinada ou desapropriada à revelia de uma consulta ou política de terras mais comprometidas com um todo de planejamento, quase sempre distante das áreas já urbanizadas, influindo diretamente na formação de vazios urbanos especulativos. Quase sempre, quando levava esses projetos até o órgão aprovador da SEPLAN, estes já estavam compromissados com recursos financiadores e com apertadas agendas políticas do prefeito, o que impunha uma “obrigação” para que, independentemente da qualidade dos projetos em relação a sistema viário, áreas públicas, áreas de proteção ambiental, etc., fossem aprovados pela SEPLAN. Claro está que esse fato não isenta de forma alguma uma certa omissão dos responsáveis por esse órgão dirigente da qualificação urbana em ter tomado para si a responsabilidade antecipada de acompanhar e se integrar com a discussão dos projetos habitacionais promovidos pela COHAB.

Por outro lado, os proprietários de terras urbanas, as construtoras e agentes imobiliários urbanos sempre exerceram pressão política direta sobre os prefeitos, seja na forma de apoios políticos de campanha, seja em organização de apresentações dos projetos aos prefeitos antes de sua aprovação, seja na hora de se fazer propaganda dos investimentos, seja na pressão sobre os técnicos que apresentavam diretrizes de planejamento segundo a lei 6766/79. Quase sempre se utilizaram de um discurso pseudo desenvolvimentista , onde, “vestidos em pele de cordeiros” procuravam sempre criar e dissimular a necessidade social dos projetos para ganhar menor rigor do poder público sobre exigências de caráter público, como a localização e dimensões das áreas públicas, etc. Essa pressão privada e uma visão distorcida dos agentes políticos, que buscavam sempre se apresentar como desenvolvimentistas e realizadores, não de aspectos qualitativos mas quantitativos sobre a cidade, tinha a conquista do maior número de votos o seu maior interesse, seja sobre as realizações da COHAB, seja sobre o investimento privado no espaço. Estes interesses privados e políticos, quase sempre impuseram uma ótica que desvalorizaram o espaço público e também a qualificação integral dos parcelamentos da terra urbana o que beneficiou os interesses especulativos.

A gestão do espaço, assim, seguiu por um lado um centralismo político e por outro um centralismo técnico e burocrático. Fiscalizava-se e projetava apenas parte da produção urbana. É exemplo disso a

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conivência e falta de rigor do poder público com as construtoras a respeito dos coeficientes de aproveitamentos na produção de edifícios verticais. Apesar da cidade possuir uma legislação de zoneamento questionável, é sabido que o poder municipal tem feito vistas grossas quanto à normalidade da possibilidade da construção em até 10% acima do coeficiente estipulado em lei.

Por outro lado, a gestão centralizada e tecnocrática tem tido vida longa e predominou no período de estudo. Quando de alguma forma foi questionada, não o foi por um processo político e social maior das bases da sociedade, formada pela maioria mais humilde, carente e necessitada, mas o foi por agentes produtivos que encontraram algumas barreiras à manutenção de seu privilégio histórico. Alguns desse exemplos aconteceram no final dos anos 80 e início dos 90, quando alguns empresários e investidores enxergaram um potencial de investimentos em Shopping Centers e hotéis na cidade. Para tal, usando-se de um artifício pseudo-legal e pseudo-democrático, o poder municipal formou uma comissão de zoneamento urbano, que deveria analisar os projetos novos para o desenvolvimento da cidade, além de um adequação de leis urbanísticas à nova realidade da cidade. Fato é, no entanto, que essa comissão, extrapolando seu papel de consultora, aprovou projetos que extrapolava em muito os coeficientes de aproveitamentos, taxas de ocupações e recuos, em nome do “tal desenvolvimento e geração de empregos urbanos”. Contudo esses novos critérios nunca viraram normas gerais e sim constituíram-se em privilégios isolados a poucos, sendo que em alguns casos essa comissão possuía na sua estrutura de participação inclusive interessados privados nos investimentos90. Quando em 1994 e 1995, desenvolvemos projetos para eliminar esses privilégios, criando os projetos de leis de Permuta de Benefícios e o IPTU Progressivo, estas propostas, apesar de discutidas com diversos setores91, ficaram paradas nas mãos do prefeito da época por falta de interesse político em suas continuidade.

Notória também tem sido a permeabilidade do poder público à reivindicação da organização de uma comissão da área central da cidade, representada por comerciantes do “Calçadão”, que vêm ao longo do tempo conseguindo investimentos públicos significativos naquela área. Em 1999, apesar das enormes carências sociais dos bairros populares da cidade, o governo conseguiu desviar a atenção de parte da população, especialmente a da elite da cidade, para uma discussão extemporânea sobre o centro urbano, que afinal visava

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apenas revalorizá-lo para os comerciantes e sua exploração da mais-valia sobre a população mais humilde da cidade.

Dentro ainda dessa linha, tecnocrática e elitista dos órgãos gestores da produção da cidade, em 2000, foi montada uma comissão de desenvolvimento urbano, o fato marcante é que essa comissão, da qual fazemos parte representando o Departamento de Arquitetura e Urbanismo, foi montada a convite do prefeito e por orientação da Secretaria de Planejamento, e é uma comissão na qual não existe uma representação das populações mais humildes dos bairros que mais possuem problemas de falta de infra-estruturas urbanas, ou da maioria da população que mais tem problemas. No entanto, todos os órgãos representantes da classe dos construtores, dos agentes imobiliários e das instituições e agentes técnicos da cidade lá estão representados e defendendo os seus interesses mais especulativos e corporativistas. Interesses diante dos quais a maioria dos representantes das entidades públicas também lá representadas, fica intimidada e evita confrontar como a própria coordenação da Secretaria de Planejamento. O que se busca, portanto, não é a criação verdadeira de debates públicos abertos e formadores da opinião pública sobre os assuntos, mas a legitimação na forma de uma votação pseudo-democrática, a favor dos interesses especulativos.

É notório que não tem havido um interesse de fato, nem do poder político nem do interesse tecnocrático dos órgãos gestores atuais, em se buscar formas de auto-controle social das atividades do poder público, dentro de um caráter representativo real das necessidades da população. Nem mesmo de democratizar ou popularizar uma discussão sobre prioridades de projetos, de necessidades sociais dos mais humildes. Nem mesmo fazem parte da

90 - XAIDES, José. Sobre a comissão de zoneamento. Pudemos comprovar entre 1993 e 1995, como secretário de planejamento da cidade de Bauru, que essa comissão concedeu no período anterior condições especiais equivocadas para vários empreendimentos de profissionais que nela possuíam assento. Como por exemplo para a construção do Garden Plaza e Macksoud Plaza entre outros, sem contudo transformar a legislação para que houvesse uma regularização tecnica e socialmente aceitável dessas Liberações. A partir dessas constatações, criamos uma discussão aberta sobre o que denominamos de projeto de Permuta de Benefícios, que nada mais era que uma operação urbanística possível com contrapartida social bem e claramente definida, baseada no valor da terra.

91 - JORNAL DA CIDADE. Câmara recebe anteprojeto de Permuta de Benefícios. Bauru: 01/02/95, p.4.

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discussão urbanística conceitual da cidade outras formas já adotadas no Brasil de gestão, como a idéia do orçamento participativo92.

Assim, a maioria dos conselhos são nesse caso apenas mais uma forma intermediária de dificultar avanços reais transformadores de uma visão tecnocrática para uma visão verdadeiramente popular e participativa. O que permanece de fato é uma resistência em defesa dos interesses de poucos que possuem os meios de produção e mantém no poder municipal seu braço forte para a viabilização de benefícios. Em nome dessa garantia, qualquer mecanismo enganador, como um conselho decretado pelo prefeito, vale o esforço. Desta forma, cria-se uma situação onde aparentemente o governo municipal fica asséptico, não interfere no destino da cidade, e este destino toma ares de democrático. Mas isso é na verdade um grande engano, pois a escolha desse conselho na origem é concentrada em interesses privados da minoria, e a posição de certa forma neutra da própria secretaria de planejamento, nesse contexto, nada mais é que uma tomada de posição em favor dessa minoria privilegiada. É, assim, uma posição sem critério social ou econômico, sem interesse real de defesa da maioria mais humilde não presente e não representada. Portanto é falsa, é um faz de contas.

Finalizando as considerações conceituais sobre a “Tríade do Desenvolvimento Qualificado do Espaço Urbano”, a Lei, a Forma e a Gestão Urbana, temos hoje a convicção de que, seja pelas considerações conceituais desenvolvidas até aqui, mas também pelos aprofundamentos que faremos nos capítulos posteriores, há uma complexidade importante de interação crítica e dialética entre essas três unidades para formar um referencial capaz de se fazer entender a produção passada e promover no futuro uma mais segura e contínua qualificação do espaço urbano. No entanto, pelos resultados até aqui conseguidos, frutos da nossa pesquisa e trabalhos práticos, somos levados a considerar que somente uma democratização real das discussões urbanísticas, uma luta popular e política para a abertura da participação direta das populações mais carentes e necessitadas em todas as instâncias de decisões do poder municipal, poderá contribuir de fato e de direito para essa qualificação do espaço.

A forma de gestão, naquele momento social, político e econômico de Bauru, foi a principal responsável pela desqualificação

92 - GENRO, Tarso e SOUZA, Ubiratan de . Orçamento Participativo: A experiência de Porto Alegre. 2 .ª ed. Porto Alegre: Ed. Fundação Perseu Abramo, 1997.

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do espaço urbano. As exceções desenvolvidas comprovam este fato e é por isso que, sob uma perspectiva ou ponto de vista que represente os maiores anseios de uma multidão mais carente, podemos falar em “Voçorocas do Poder Público”, mesmo tendo mais certeza do que nunca de que essas desqualificações não se trataram de desvios de funções episódicas ou isoladas do poder municipal, mas na verdade o que aconteceu, na forma e no resultado físico da desqualificação urbana, na não aplicação ou no não aprofundamento daquilo que estava no espírito da lei ou no conhecimento científico disponível, na adoção do modelo tecnocrático, centralizado, burocratizado e enganador das formas de gestão, foi a defesa pelo poder municipal, consciente e organizada, dos interesses de uma minoria privada e detentora dos meios de produção, especialmente dos proprietários de terras urbanas e das maiores construtoras e especuladores imobiliários.

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Notas:

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