Capítulos 5

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- Capítulo 5 - A BORBOLETA VAI À ESCOLA Nos meados do século passado, na pequena cidade de Amaraji, havia apenas duas escolas do ensino primário: o Grupo Escolar Dom Luiz de Brito, pertencente à Secretaria de Educação do Estado e o Instituto Cônego Aníbal Santos, escola particular, dirigido pela professora Lourdes Barbosa. Os jovens da elite e parentes da Professora Lourdes iniciavam seus estudos naquele Instituto e as demais crianças, na escola do Estado. O ensino supletivo também fora introduzido no final dos anos 40. Funcionava à noite e era destinado prioritariamente a jovens e adultos que não tinham tido oportunidade de ter sido alfabetizado na infância. O D. Luiz de Brito marcou a vida de todos aqueles que passaram por suas salas. O prédio, de dois pavimentos, fora adaptado da antiga cadeia pública do município no final da década de 1940 e recebeu o nome do primeiro arcebispo a visitar a cidade. Suas carteiras, fabricadas de sucupira, eram ortopedicamente desconfortáveis; um estudante que fosse mais gordinho, nela se acomodava com bastante dificuldade. Mas já era uma grande conquista para o setor educacional. Na parte de trás do prédio, onde se localiza o Fórum Municipal, havia uma campina verde que era usada como campo de futebol. Dona Maria Nely Gomes de Sá, a primeira diretora do grupo, etariamente idosa, de idéias pré-jurássicas, formação acadêmica paleoliticamente dinossáurica e

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- Capítulo 5 -

A BORBOLETA VAI À ESCOLA

Nos meados do século passado, na pequena

cidade de Amaraji, havia apenas duas escolas do ensino

primário: o Grupo Escolar Dom Luiz de Brito, pertencente

à Secretaria de Educação do Estado e o Instituto Cônego

Aníbal Santos, escola particular, dirigido pela professora

Lourdes Barbosa. Os jovens da elite e parentes da

Professora Lourdes iniciavam seus estudos naquele

Instituto e as demais crianças, na escola do Estado. O

ensino supletivo também fora introduzido no final dos

anos 40. Funcionava à noite e era destinado

prioritariamente a jovens e adultos que não tinham tido

oportunidade de ter sido alfabetizado na infância.

O D. Luiz de Brito marcou a vida de todos aqueles

que passaram por suas salas. O prédio, de dois

pavimentos, fora adaptado da antiga cadeia pública do

município no final da década de 1940 e recebeu o nome

do primeiro arcebispo a visitar a cidade. Suas carteiras,

fabricadas de sucupira, eram ortopedicamente

desconfortáveis; um estudante que fosse mais gordinho,

nela se acomodava com bastante dificuldade. Mas já

era uma grande conquista para o setor educacional. Na

parte de trás do prédio, onde se localiza o Fórum

Municipal, havia uma campina verde que era usada

como campo de futebol.

Dona Maria Nely Gomes de Sá, a primeira diretora

do grupo, etariamente idosa, de idéias pré-jurássicas,

formação acadêmica paleoliticamente dinossáurica e

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métodos pedagógicos bem pessoais, devendo ter

nascido em mil novecentos e bauzes bauzes, época em

que o arco-íris era preto e branco.

Segundo a tradição histórica das más línguas, ela

era prima distante do Noé da arca e teria sido uma

parenta sua muito remota que, após o dilúvio, teria

soltado a pombinha, lá do alto do monte Ararat. Conta-

se também que uma de suas tias em grau muito afastado

e há alguns séculos atrás, fora auxiliar de copeira da

Santa Ceia; a encarregada de lavar as taças.

Baixinha, gorda, descenturada, voz estridente e

gasguita, trajando sempre saia justa de tecido escuro e

blusa clara sobre corpetes pontiagudos, com dois eternos

bendengós, na época, chamados de “cachorro-quente”

ornando-lhe o penteado. Usava óculos de grau muito

forte numa armação estilo olho de gato. Sua arma

pedagógica mais presente e sempre às mãos, pronta

para ser utilizada, não era a obra de Arnaldo Niskier e sim

uma sombrinha. Pela quantidade de sombrinhas

danificadas nas costas dos alunos “levados da breca”,

acreditava-se que ela as comprava em grosso.

Seu rigor administrativo extrapolava toda a noção

moderna de recursos humanos. O tratamento dado às

outras mestras era bem glacial e o relacionamento com

as duas funcionárias que auxiliavam na administração,

dona Maria do Carmo e Maria da Paz, mãe de Aline e

Ana, não ficava atrás.

Só quem estava a salvo de suas sombrinhadas era

Rosinha sua filha. Dona Nely e seu esposo eram, na

época, os únicos que possuíam um veículo na cidade e

desfilavam no automóvel de marca ford pelas ruas da

cidade aos domingos.

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A cada dois meses, geralmente num domingo à tarde,

ela visitava seu Ernesto Coelho e dona Iaiá, meus avós,

para tomar um cafezinho, fazer uma oração de

agradecimento e acender uma velinha para a minúscula

imagem de santo Antônio que dona Iaiá havia herdado

de seus avós e que, segundo muitos devotos, concedia

graças àqueles que lhe invocassem. Sendo santo Antônio

o padroeiro dos casamentos, imaginava-se que ela ia

agradecer ao canonizado algo muito especial. Afinal

muitas dezenas de semestres separavam ela de seu

esposo, o servidor municipal José de Assunção.

As outras mestras da época: Rita de Souza,

Bernadete Silva, Nieta Tabosa, Das Dores Teixeira, Isaura e

Carmita, Mara Vasconcelos e Salete Coelho, formadas

por último, ensinavam no engenho Garra e na antiga

escola rural da cidade. Todas eram um doce de pessoa.

Também Abiacy e Neide Lins, formadas bem jovens

iniciaram-se no magistério no final dos anos 50. O regime

era de ordem, disciplina e assiduidade. Os instrumentos

de tortura: palmatória, caroço de milho e longas horas de

pé ou ajoelhado versus parede na diretoria e a famosa “

sombrinha ” de Dona Nely, que mais se assemelhava ao

coelhinho da Mônica.

Os livros didáticos: “Vamos Estudar” e “Lili, Lalau e

o Lobo.” Na quinta série, a bíblia: “Admissão ao Ginásio.”

As aulas transcorriam dentro de uma programação

contínua e sempre se tinha algo que fazer. Decorava-se

a tabuada, os pontos de geografia e história, e faziam-se

descrições, tendo como tema figuras e paisagens de um

álbum ilustrado gigante que era colocado sobre um

cavalete na frente dos alunos. Não se tinha outra

alternativa: estudava-se e aprendia-se. Com mil perdões

das “meninas da gre”, a coisa funcionava. Mesmo

pronunciando Vasingtón, quem decorou e aprendeu que

Washington é uma capital, nunca esqueceu.

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Outra atividade interessante eram as aulas de trabalhos

manuais. Desenhos, quadros de vidro pintados de preto e

com complementos de papel laminado de um tipo de

chocolate em forma de peixinho em várias cores. Havia

ainda uns quadros de madeira compensada nos quais se

desenhava algum tipo de paisagem e trabalhava o

quadro com uma massa de alvaiade, óleo de linhaça e

pó secante, formando as figuras em alto relevo. Uma vez

seco, pintava-se o trabalho de belas cores. Havia ainda

trabalhos feitos em azulejo branco. Colocava-se o azulejo

sobre a chama de uma vela acesa e quando estava

todo tisnado, desenhava-se alguma figura, retirando o

excesso e tisna preta e deixando o verniz copal escorrer

sobre a silhueta desenhada.

Os colegas de sala: Aline e Ana Costa Gomes,

Alzerina Silva, Amara (Lala), Amara e Edite Araújo, Amara

Pereira, Antonieta, Aspásio, Francisca e Margarida Carlos,

Carlos Alberto, Carlos Eduardo e Cláudio Leonardo

Vasconcelos, Conceição Silva, Eleusis e Dirceu

Vasconcelos, Enedina (Neném) de seu Delmiro, Heleno

Amaro e Zuleide, Amara Hulda e Vicente Ramos, Ivonete,

Joaquim (Quincas) Fabrício, Luís (Lula) Benigno, Márcio e

Márcia Bandeira de Melo, Maria Celeste, Maria de seu

Saul, Neide, Roberto Barbosa, Rômulo Ferraz, Santo e

João Martins, Sônia e Airton Brito, Sônia e Giselda Santos,

Terezinha, Vilma Brito, Wilton.

As classes eram multisseriadas. O uniforme era

obrigatório para todos: dos mais carentes, passando

pelos emergentes até os de famílias mais afortunadas.

Para as meninas, saia azul de pregas, blusa branca com

a logomarca da escola no bolso; para os meninos, calça

no joelho, camisa branca com as mesmas letras. Sapatos

pretos e meias brancas para todos.

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Não dá para esquecer o final de horário escolar

do Grupo. Dona Maria do Carmo tocava a campainha e

a professora anunciava que a aula estava terminada.

Livros arrumados, alunos de pé, formando fila única em

cada sala de aula.

Na porta de entrada da escola Dona Nely de

mãos para trás, uma delas segurando seu inseparável

bibelô, a sombrinha, dizia:

- Pode sair a terceira série! ”

E os alunos deixavam a sala em fila indiana,

marchando em formas de “cobrinha” pelo hall e

cantando o hino Ardor do Infante de Castro Alves:

Onde vais tu, esbelto infante

Com teu fuzil lesto a marchar

Cadência certa, o peito arfante

Onde vais tu a pelejar?

Pra longe eu vou, a Pátria ordena

Sigo contente o meu tambor,

Cheio de ardor! Cheio de ardor!

Pois quando a Pátria nos acena

Vive-se só da própria dor.

É no combate que o infante é forte

vence o perigo despreza a morte.

Outras classes iam acompanhando a primeira que

havia iniciado a marcha e, quando o hall estava quase

cheio ela batia duas palmas fortes e dizia:

- Podem sair! Devagar! Quem correr, eu chamo

de volta.

A essa altura, a diretora postada no portão de

saída, já estava segurando a sombrinha em estado de

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alerta. Não era permitido sequer pular de dois em dois

degraus da longa escada do grupo. De repente, ouve-se

um grito estridente de Dona Nely:

- Amaro Cavalcante, volte já aqui! Ele apenas

acelerara o passo lá próximo do último degrau. E lá vem

o menino cabisbaixo, cenho franzido, e ainda foi

alcançado de raspão pela sobrinha da diretora ao

caminhar para a diretoria.

- Ai, dona Nely, doeu!

- Cale a boca, seu moleque insubordinado e

atrevido, puxe para diretoria e fique de joelhos virado

para a parede. Deve ter saído da diretoria lá pelas duas

horas da tarde.

A gente esperava com ansiedade as datas

comemorativas do ano escolar: carnaval, semana santa,

São João, Semana da Pátria, dia da árvore, a visita da

inspetora escolar, dona Hilda Brandão e, em dezembro, a

entrega dos resultados das provas finais.

O dia da pátria era comemorado com muita

alegria e participação da comunidade. Ensaiavam-se

durante muitos dias os passos da marcha, a divisão dos

pelotões, etc. Seu Luís Soldado era o instrutor. A banda

era composta de um surdo, um tarol e uma caixa e uma

corneta que tocava os comandos. Os meninos

disputavam uma vaga na banda, mas quem escolhia era

o instrutor. Os ensaios se realizavam no campo de futebol.

Aline, muita sabida, mas bastante pequena ainda

ficava num pé e noutro pra saber onde ia ser o seu lugar

no desfile. A bandeira ela não podia carregar. Imagine

um pé de vento mais forte: bandeira e porta-bandeira

iam voar pelos céus da província. Aliás, carregar a

bandeira do Brasil era mesmo que disputar um concurso

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de miss. Todos queriam usar luvas brancas pra carregar o

lábaro nacional. Geralmente o escolhido era algum

“peixinho” da diretora ou de alguma professora. Tinha de

ser um aluno alto, garboso e saber marchar, claro. Fazer

o esquerda, direita, esquerda, direita, no ritmo certo.

Havia também uma estudante mais baixa que, de luvas,

marchava à direita do porta-bandeira segurando

delicadamente a ponta da bandeira.

O desfile saia da frente do grupo e dirigia-se até o

prédio da prefeitura para a solenidade especial de

hasteamento da bandeira, discursos e uma demorada

hora de arte. A borboleta que já havia passado o mês

mexendo com os pauzinhos, conseguiu abrir o desfile,

marchando na frente da bandeira com luvas brancas e

uma faixa auriverde. Sem contar que foi uma das

oradoras na prefeitura e, de quebra, ainda declamou

uma poesia. E, claro, com todos aqueles aplausos, a filha

de J.L. e dona Dapaz, desceu as escadas do Paço

Municipal e dirigiu-se ao seu lugar no desfile com aquele

“oco patriótico”. E o desfile continuou pelas ruas e praças

da cidade até retornar ao ponto de saída. Depois da

solenidade, o lanche patrocinado pela escola e pela

prefeitura municipal. Naquele momento, todo mundo

amava Dom Pedro II, o rio Ipiranga e o brado

retumbante.

A comemoração do dia da árvore era outra

solenidade muito esperada. Naquela data, professores e

alunos dirigiam-se ao campo de aviação, o campo de

pouso da cidade, para o plantio de árvores. O ambiente

era verde e bucólico; de um lado a mata das Três Bacias,

do outro, as matas da ladeira de Riachão, e, por trás, as

matas de Sete Ranchos e engenhos circunvizinhos.

Cânticos, declamações, discursos e, na volta, aquela

gostosa salada de frutas. Esta música de Arnaldo Barreto

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era cantada, tradicionalmente, enquanto as árvores

eram plantadas:

Cavemos a terra, plantemos nossa árvore,

Que amiga e bondosa ela aqui nos será!

Um dia, ao voltarmos pedindo-lhe abrigo,

ou flores, ou frutos, ou sombras dará!

O céu generoso nos regue esta planta;

o Sol de dezembro lhe dê seu calor;

a terra, que é boa, lhe firme as raízes

e tenham as folhas frescuras e verdor!

Plantemos nossa árvore, que a árvore amiga

seus ramos frondosos aqui abrirá,

Um dia, ao voltarmos, em busca de flores,

com as flores, bons frutos e sombra dará

O céu generoso nos regue esta planta;

o Sol de dezembro lhe dê seu calor;

a terra, que é boa, lhe firme as raízes

e tenham as folhas frescuras e verdor!

As alunas mais velhas apresentaram sketches,

poesias e cânticos. Professoras também participavam

ativamente. No final da solenidade, a diretora franqueou

a palavra, com a tradicional pergunta: alguém quer fazer

uso da palavra ou apresentar alguma atividade? Não é

preciso dizer que alguém lá de trás, com os cabelos

desalinhados pelo vento forte, o rosto avermelhado com

o calor do sol respondeu quase gritando:

- Claro que eu quero, dona Nely. Preparei uma

poesia que está na ponta da língua.

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- Pronto, lá vai aquela baixinha metida de novo,

reclamou uma menina no meio da turma.

- Deixa de ser invejosa, Severina, pior é você que

não sabe apresentar nada. Só pensa em encher a

barriga com salada.

- E apoi, mulé, tô me acabando de fome. Eu nem

tomei café direito pensando na salada de fruta. As tripas

estão quase brigando no meu bucho.

- Mas você é muito ignorante mesmo, nossa,

como é que pensa em se formar, casar ter filhos e educá-

los?

- E quem disse que estou pensando em nada

disso, eu vou é fugir com trapezista do circo. Já tá tudo

acertado. E ai de você se contar a mãe, dou-lhe uma

pisa de lascar.

E Isabel saiu de perto da colega horrorizada com

tanta ignorância e irresponsabilidade.

A essa altura, Aline já estava posicionada no

pequeno palco improvisado. Dona Nely, já perdendo a

paciência, mandava os alunos calar a boca, os

professores se abanavam com os cadernos, o calor era

escaldante.

- Pode começar a declamação, Aline, comandou

a diretora que suava às bicas e enxugava o rosto e o

pescoço gorducho com um minúsculo lencinho de linho:

- Senhores professores, prezados alunos, a poesia

que vou apresentar é da autoria de Raul Aroeira Serrano.

E começou:

A Árvore

"Criança, a árvore merece

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A nossa estima sincera

Dá frutos doces no outono

E flores na primavera.

Nunca maltrates uma árvore

A quem tudo nós devemos

Desde a madeira da porta

Ao lápis com que escrevemos.

Na sombra da árvore amiga

Pensa bem no teu destino

Pois dela foi feito

O teu berço pequenino."

Terminada a apresentação, muitos aplausos,

palmas e alguns apitos e assovios de alguns alunos. Dona

Nely, olhando inquisidoramente para os responsáveis

pelos apitos e assovios, quase que histérica, gritou:

- Se não acabarem com a baderna e a falta de

educação, eu acabo com a salada e o lanche e ainda

deixo vocês até às três horas na diretoria.

Santo remédio. Um silêncio sepulcral reinou

durante todo o trajeto, desde o campo, até a escola.

Formou-se a fila da merenda e foi distribuída uma salada

de frutas, biscoitos e bastante ponche de laranja.

Havia sempre algum estudante meio abusado

que tentava furar a fila ou, simplesmente, se servir mais de

uma vez. Dona Nely, porém, estava de plantão

permanente distribuindo cascudos, puxões de orelhas e

“muxicões” nos mais alvoroçados. Nada lhe escapava.

Lá pelas duas da tarde, os alunos começaram a deixar a

escola. A diretora estava tão absorta em manter a

disciplina no interior do prédio que nem notou a correria

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e bagunça de alguns alunos pela escada de saída do

grupo.

Amaraji, na época, apesar de ser uma minúscula

cidade da zona da mata sul possuía um campo de pouso

para aviões de muito pequeno porte. Era o único da

região. Uma curiosidade a respeito do campo de pouso.

Ele foi construído no início da década de 1950 na gestão

do prefeito Dr. Jorge Coelho da Silveira. No dia da festa

da inauguração, toda a população da cidade dirigiu-se

para o local do evento para ver a descida de um avião

monomotor, na época, chamado de “teco-teco”.

Algumas autoridades da cidade foram convidadas pelo

piloto para um pequeno voo. Dona Toinha Coelho,

esposa do secretário da prefeitura, cheia de euforia,

candidatou-se para um pequeno tour sobre a cidade.

Quando tentou subir na aeronave, pra sua grande

decepção, não conseguiu passar pela porta e quase

que fica presa. Ela era meio “fortinha”. Frustrada, desistiu

e a multidão que presenciou a cena não pode conter o

riso que não foi nem um pouco discreto.

Aline e suas colegas, pra lá e pra cá, loucas por

um convite pra subir aeronave, mas é claro que aquilo

não era nenhuma canoa ou jaú de parque de diversões.

Só pra os adultos que fossem autoridades. Paciência,

Aline, um dia você cresce, perdão, fica com mais idade

e vai poder fazer tudo isso, voar à vontade.

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- Capítulo 4 -

SÓ DANÇO SE EU FOR MESTRA, EXIGIU ABORBOLETA

A primeira infância da pequenina Aline, bem

baixinha, cintura roliça, bochechinhas acentuadas e já

usando seus óculos miudinhos no estilo olho de gato, foi

passada no solar da Rua 15 de Novembro, sob os olhares

atentos e cuidadosos da dileta mamãe, da secretaria

Mery, substituta de Ivanise, e dos bons vizinhos: seu

Corocochô, do “hotel estrela única” da esquina; seu

Luizinho, alfaiate, e dona Terezinha; dona Maria do

Carmo; seu Eurico, Corina e Corinto; dona Elvira Fontes e

Maria Andrade (Neném, a guardiã da família); seu

Avelino da padaria; seu Mário Telegrafista, dona Áurea e

Aurinha; seu Zé Goiana e dona Laura; seu Manoel Firmino

chefe do clã dos Amaros e Amaras Silveira; os fervorosos

crentes da Igreja Batista; dona Olindina, Permínia e

Claudionor; dona Toinha e as tias Zezé e Santinha, e

Alaíde Brito da vendinha da esquina.

O dia a dia na província era mais ou menos

corriqueiro. Pela manhã, as aulas no Grupo Escolar Dom

Luiz de Brito, à tarde, os deveres escolares de casa, cujas

dúvidas eram tiradas com as mestras Bernadete e Rita,

hóspedes do hotel.

À tardezinha, auxiliadas por Mery, elas se

aprontavam, penteando os cabelos cortados à moda

capelinha, que eram presos por diademas de galalite ou

ligeiras largas, vestidinhos de organdi bordados de crivo

ou ponto de cruz, com faixa de tafetá na cintura e

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sapatinhos de pulseira, impecavelmente polidos por seu

João Engraxate.

Depois de prontas, as duas sentavam-se na

calçada, saboreando os deliciosos pãezinhos da padaria

de seu Alcides, recheados de manteiga e açúcar,

gentilmente preparados pela bondosa Mery. Assim, as

duas manas esperavam o retorno da mamãe, que

passava o dia trabalhando no Grupo Escolar.

À noite, em frente ao solar, as manas Aline e Ana

e as amigas Denise, Lourdes Alves, Elêusis, Cleide da

Borboleta, Maria Ângela e outras coleguinhas, brincavam

de roda, de pega, de academia, de manja, barra-

bandeira, boca de forno ou de esconder.

De longe se escutavam os sons das cantorias:

“Pai Francisco entrou na roda...” ou

“Samba Lelê, tá doente, tá com a cabeça

lascada.. .” ou

“Apareceu a Margarida, olê, olê, olâ...”, ou ainda

“Boca de forno! Forno! Tirando o bolo! Bolo!...”

Quando não corriam na rua, simplesmente

sentavam-se na calçada, brincando de anel, contando

estórias ou arrepiando-se de medo, ao falar sobre a

“Comadre Florzinha”, o “Pantel” da mata ou o último

capítulo do Mistério do Além.

Às vezes, comentavam sobre algum estranho que

havia aparecido na rua de mochila nas costas e mal

encarado. Será que não era o “papa-figo” mandado

pelos Amorim da capital para pegar criancinhas e

arrancar-lhes o fígado, paliativo para aquela doença

horrível que fazia suas orelhas crescerem?

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Em dias de chuva, reuniam-se em torno de dona

Quinquina, mãe de Maria Andrade, para ouvirem,

atentas, as estórias de Trancoso, narradas pela bondosa

velhinha.

De vez em quando, em torno das oito horas,

escutava-se a voz de dona Elvira que gritava:

- Denise, está na hora da novela, venha prá casa!

Ninguém perdia o horário de “O Direito de

Nascer” e todas suspiravam com Albertinho Limonta e

Isabel Cristina, seus amores e desventuras.

Em outras ocasiões, era Maria Andrade que

aparecia perguntando:

- Oh, Aline e Ana, vocês já fizeram o dever de

casa? E a poesia da hora de arte, Aline? Já decorou

toda?

Quando Aline chegava atrasadas à brincadeira,

significava que estava escutando o Repórter Esso. Mesmo

sem entender tudo ainda, adorava uma notícia.

Uma ocasião ela atrasou-se uma meia hora. As

outras coleguinhas que já se sentavam na calçada e

iniciavam a brincadeira do anel, estranharam a ausência

da baixinha. De repente lá vem a menina respirando

com dificuldade, erguendo os ombros, com os olhos

marejando. As amigas ficaram preocupadas e Denise

aproximando-se perguntou curiosa:

- Que é isso, Aline, você está com puxado? Ave

Maria, será que isso pega?

Aline, enraivecida, respondeu irritada:

- Deixe de ser lesa! Que puxado, que nada? Estou

com uma crise de asma alérgica.

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As outras colegas havia se aproximado e

cercavam, receosas, a pequena enferma. Denise

continuou insistente:

- É não, isso é puxado. Eu vi o menino de Bau

Amaro lá em Estivas, impando desse mesmo jeito, e era

puxado.

E a menina foi se irritando mais ainda.

- Vamos perguntar a mamãe?

Nesse momento, Maria Andrade ia passando.

Aline, cada vez mais brava, gritou:

- Oh, Neném, isso que eu tenho não é uma asma

alérgica?

E Maria Andrade, sem dar muita atenção,

abanando a saia, respondeu:

- Sei lá, Aline, é uma dessas coisas mesmo. Mas

você devia era estar dentro de casa agasalhada por

causa da frieza. Entre logo, vamos.

- Oh, Dapaz ...

Aline vestiu um agasalho e teimosa como ela só,

ainda voltou para a prosa. O assunto da noite foi a briga

do padre.

O vigário da paróquia de origem holandesa fora

avisado de que dona Serafina, uma viúva muito devota e

membro do apostolado da oração, estava se ultimando.

Decidiu, então, fazer uma visita à enferma para confessá-

la e dar a santa extrema unção. Seus familiares eram

evangélicos. Na porta da residência da enferma foi

barrado pelos parentes da moribunda que não queriam

sua presença. O reverendo muito bravo e muito

revoltado e com a rudez flamenga à flor da pele, não

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teve a menor dúvida; saiu empurrando todo mundo que

estava em sua frente, chegou até o quarto da

agonizante e, mui calmamente, fez sua orações. As

meninas comentavam com orgulho a atitude do padre.

De repente, duas das meninas do grupo

começaram a cochichar e rir o que chamou a atenção

do restante do grupo.

- Que cochicho é esse? Grande falta de

educação, reclamou Aline.

- Você não pode saber, Aline, é muito criança

ainda.

- Essa não, apartou Ana Maria tomando as dores.

O que? Aline não tem nada de criança, ele é muito

inteligente e sabida.

- Depois de muita adulação ficaram sabendo que

uma das garotas mais velhas do cochichado havia “sido

moça” recentemente. Foi uma festa, todo mundo queria

saber os mínimos detalhes do acontecimento. Mas nem

todas concordaram com aquele tipo de conversa.

- Ave Maria, isso é conversa de moça direita,

minha gente. Já pensou se a chefe da cruzada sabe que

vocês estão falando disso? Não quero nem pensar...

Muitas vezes a brincadeira se estendia até depois

das nove, quando as pequenas infantes começavam a

retornar a seus lares, pois às 22 horas em ponto, Corinto,

encarregado do motor que fornecia energia elétrica

para a cidade, dava o sinal, fazendo as lâmpadas

piscarem três vezes e, em seguida, as luzes eram

desligadas.

Vinte e duas e trinta, luzes apagadas, grilos e

sapos se orquestrando, a província se entregava aos

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braços de Morfeu. Durante a noite, o máximo que podia

acontecer, era alguma moçoila noiva ou comprometida,

ser roubada pelo pretendente, evitando, com essa fuga,

as despesas do casamento.

E nessa tranqüilidade paradisíaca, o ano

transcorria e chegava o mês de dezembro com seus

festejos natalinos e folclóricos. O pastoril religioso era um

deles. Era um acontecimento que movimentava toda a

comunidade provinciana. Papais e mamães torciam

para que suas filhas pequenas fossem escolhidas para

fazer parte do evento organizado por algumas jovens e

senhoras da comunidade católica. Afinal, tudo tinha de

sair perfeito para as pessoas que participavam e torciam

pelo “encarnado” ou “azul”, comprassem muitos lacinhos

de fita de sua cor preferida para ajudar a vencer o

cordão escolhido, no qual, normalmente dançava uma

de suas filhas. A renda era destinada as obras paroquiais.

Usando vestidos confeccionados de papel

crepon, saias rodadas, muita areia prateada ornando as

orlas dos babados franzidos e fitas da cor do partido que

enfeitavam a indumentária. Os pandeiros, enfeitados de

fitas das duas cores, ajudavam a marcar o ritmo da

dança. Era uma trabalheira a sua confecção. As

senhoras Belisa Rolin, Sônia Dantas, Salete Coelho e

Dasdores, entre outras, eram as encarregadas do evento

folclórico.

Rômulo Barbosa, sempre no comando da

animação, fazia a platéia ir ao delírio aos gritos de: azul,

azul, azul, ou encarnado, encarnado, ou o taxativo já

ganhou. Era um verdadeiro leilão de venda de lacinhos,

para a alegria geral das pastorinhas.

A pequena Aline já chegando aos oito anos foi

convidada para fazer parte do tradicional festejo. Pela

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sua estatura “mignon”, e para que se cumprisse a

previsão de seu João Severo no dia de seu nascimento,

ela deveria ficar balançando as asinhas em volta das

pastoras, no papel da borboleta.

No dia da reunião para escolha das pastoras e do

personagem de cada uma no evento, o papel da

borboleta ficou para ela, claro. Pelo seu tipo, sua altura,

ia ser a borboleta mais qualificada dos últimos tempos.

Mas, de personalidade forte que tinha, já desde

criança, a menina embirrou, emperrou fez ver que só se

apresentaria se lhe dessem o papel da “mestra”.

Nenhuma das promotoras do pastoril conseguia

convencê-la do contrário. A reunião parou e ninguém

sabia o que fazer.

Dasdores Teixeira, com muita calma e delicadeza,

tentou convencer a pequena pastorinha:

- Olhe, Aline, você vai ficar uma gracinha de

borboleta. A saia franzidinha, as asinhas douradas e as

sapatilhas também. Já pensou, Dapaz vai lhe achar linda.

Ainda vamos colocar uma coroa de pedrinhas em sua

cabeça. Vai ficar parecendo uma rainha, não é

meninas?

E as outras pastorinhas responderam em coro:

- É, dona Dasdores.

A essa altura ela já tinha se levantado, ido para

frente do grupo com passadas largas, firmes e

determinadas e com uma das mãos na cintura e o dedo

da outra mão apontando para as senhoras, bateu o pé e

falou em tom decidido e definitivo:

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- De jeito nenhum, se eu não for a mestra, não

danço, pronto! Podem arranjar outra borboleta que eu

estou indo embora.

E a baixinha deu dois sopapinhos na cabeça,

ajeitou o franzido da saia e encarou as organizadoras

uma a uma. Em seguida, deu meia volta, apanhou seu

chale minúsculo e caminhou em direção à saída do

salão paroquial.

Dona Sônia Dantas tentou argumentar, mas

quando sentiu o olhar de desafio da quase borboleta,

calou-se e comentou baixinho:

- É melhor não insistir, Dasdores, deixa ela ser a

mestra e Denise fica sendo a borboleta. E agora, quem

vai avisar a ela?

E Dasdores saiu apressada alcançando a menina

que já estava passando ao lado do bilhar de seu Aristeu.

- Oh, Aline, um momento, por favor, exclamou

Dasdores.

Ela virou-se e já se sentiu vencedora.

- Escute, Aline, o pessoal resolveu que você vai ser

a borboleta. Vamos voltar para o salão e agradeça a

dona Sônia, pois foi ela quem decidiu.

O que? Eu mesma não. Ela queria que a mestra

fosse a filha de dona Minervina. Só porque ela é maior do

que eu e já tem busto, é? Grande coisa, eu sou pequena,

mas canto muito melhor do que ela.

E assim ela voltou para o salão e terminou de

assistir a reunião.

Na volta para casa, uma das colegas falou, tu é

peia, não é, Aline? Consegue tudo que quer...

Page 20: Capítulos 5

Pois é, e você acha que ia ficar balançando

asinhas pra lá e pra cá, eu mesma não. Está pensando

que eu sou zig-zag, é? Ora, pinóia!

E nos primeiros dias de dezembro, depois de

muitos ensaios, o pastoril começou a se apresentar no

palanque construído em frente ao salão paroquial.

E lá se foi Aline triunfante, puxando o cordão

encarnado. O seu fã clube era imenso. Vinha até

torcedores da vizinha Caracituba. Seu padrinho João Ito

e o jovem Luiz Jacinto. Maria Andrade, a mamãe Dapaz

e Mery eram do mesmo modo, torcedoras exaltadas, sem

contar dona Bernadete Silva, sua professora. Denise

Fontes foi por muito tempo, a detentora das asinhas da

borboleta. E quando a apresentação começava e

chegava a vez da mestra, a voz da menina ecoava pela

praça:

Boa noite meu senhores todos,

Boa noite senhoras também,

Somos pastoras, pastorinhas belas

Que alegremente vamos a Belém.

Somos pastoras, pastorinhas belas

Que alegremente vamos a Belém.

Sou a mestra do cordão encarnado,

O meu cordão eu sei dominar,

Eu peço palmas, peço bis e flores

Aos partidários peço proteção.

Eu peço palmas, peço bis e flores

Aos partidários, peço proteção.

- Mas a mestra canta demais, comentava Maria

Joaquina. É verdade, a filha de dona Dapaz canta que

nem um passarinho, comentou Durrei.

Page 21: Capítulos 5

E a festa prosseguia noite afora até o final da

apresentação, com muitos gritos e palmas dos partidários

do cordão azul e do cordão encarnado.

Depois, a troca de roupa, os parabéns e a alegria

dos familiares e amigos e a “mestra” mal cabia em si de

contente. Estava bestinha, não tirava o sorriso da boca e,

de vez em quando, davas umas piscadinhas mais

agitadas.

O vigário apareceu e dona Belisa passou para ele

a renda da noite. Tinham conseguido vender muitos

lacinhos.

Dasdores havia preparado um lanche e lá se

foram os participantes do show tomar guaraná Fratelli

Vita com sanduíches de pão com carne enlatada e

bolinhos de bacia.

Era uma alegria só. Cada uma que de se exibisse

mais. E a mestra já se imaginava, no próximo ano, indo se

apresentar na usina Nossa Senhora do Carmo e em

Bonfim.

Page 22: Capítulos 5

- Capítulo 3 -

A PRIMEIRA INFÂNCIA E SEU “DÉBUT” CATÓLICO

Os primeiros anos da infância da mini “ninha”

foram dentro da normalidade. Ela havia perdido o pai, J.

L., quando tinha dois anos de idade. A mamãe Dapaz foi

uma grande guerreira e batalhou muito para criar e

educar as duas manas. Trabalhou no comércio e depois

foi contratada pela Secretaria de Educação para prestar

serviços no Grupo Dom Luiz de Brito.

As festinhas de aniversário ficavam restritas aos

primos e amiguinhos mais próximos da família, sem muita

badalação. Mesmo depois de um dia de trabalho na loja

de tecidos e miudezas “A Borboleta”, Dapaz ainda

encontrava tempo para ensinar as primeiras letras às

duas meninas. Aline, aos quatro anos de idade, já havia

aprendido a ler as primeiras palavras e, mais tarde,

quando se matriculou no Grupo Escolar para estudar a

primeira série primária com a professora Maria Bernadete

da Silva, já estava alfabetizada. Ela idolatrava a mestra.

Ainda hoje, ela lembra a fragrância do perfume usado

por ela. Olha a profecia de sinhá Fronina se realizando.

Dona Bernadete era de Caruaru. Uma jovem de

pele clara, olhos esverdeados, cabelos encaracolados,

extremamente paciente e dedicada aos alunos. Ela era

hóspede de Hotel de Seu Corocochô, que ficava

localizado no local onde, hoje, existe o supermercado da

Praça Pereira de Araújo. Lembro da professora, pois eu

estudava na mesma turma.

Page 23: Capítulos 5

Naquela época, o sonho de muitas famílias

católicas era ter um padre ou uma freira na família.

Aqueles que não conseguiam tal “benção”, ficavam

conformados com a “dádiva dos céus”, se uma de suas

filhas pequenas pudessem participar da coroação de

Nossa Senhora no último dia do mês maio.

Aos oito anos de idade, como filha de toda boa

família cristã, a ainda pequenina Aline, foi convidada

pelo vigário para coroar Nossa Senhora, naquele

inesquecível dia 31 de maio. Ela era detentora das

características exigidas pela tradição da igreja e possuía

o perfil perfeito para colocar a coroa sobre a cabeça da

Virgem. Cor branca, cabelos claros, e voz maviosa. Na

época, ninguém deu muita atenção ao fato, mas nunca

uma menina de cor “morena” ou afro-descendente

legítima, foi escolhida para coroar a santa. Preconceito?

Não, apenas “tradição” da igreja. Os anjos do céu

tinham a pele branca desde a criação.

E assim, a borboletinha foi escolhida para

participar daquele evento tão disputado pelas meninas

de sua idade. Seria o seu “début” católico na sociedade

infantil da Igreja.

O ato litúrgico exigia toda uma preparação. Ela

foi auxiliada por Santinha Silveira, responsável pela

Cruzada Eucarística e com o assessoramento da

professora Belisa Rolin, Sabina Andrade, do Apostolado

da Oração, da professora Dasdores Teixeira e de Maria

Joaquina.

Os noiteiros, famílias encarregadas da decoração

da igreja e da organização geral da festa do

encerramento do mês de maio, eram: seu Raul e dona

Lourdes do engenho Riachão do Sul; seu Bequinho do

engenho Sete Ranchos e a família de seu Luiz Dubeux da

Page 24: Capítulos 5

Usina Bonfim. Já à tarde, a pequena coroante e demais

colegas de solenidade, após participar do ensaio final

com o coro, ajudavam na decoração do altar,

fabricando buchas de papoula para a incrustação de

cravos e céssias em forma de meias guirlandas que eram

colocadas em todos os recantos da matriz. Os castiçais

eram polidos e longos brandões de espermacete neles

colocados. Feita a limpeza final da igreja, espalhavam-se

folhas de canela e eucalipto pelo chão para que o

ambiente ficasse naturalmente aromatizado.

A solenidade religiosa era preparada com

bastante antecedência, desde o ensaio dos cânticos até

o da coroação propriamente dita. No coro da igreja, os

hinos, cantados em latim, estavam sob o comando da

organista Ivone Oliveira que era coadjuvada pelas

cantoras Teresinha, Dos Anjos, Agenilda e Quiterinha,

entre outras. Na ocasião, encontrava-se na cidade um

missionário alemão, responsável pela celebração da

solenidade, enquanto o cura local, Padre José,

acompanhava os cânticos com o violino.

O altar de nossa senhora fartamente decorado de

branco e azul, reunia um verdadeiro séquito de acólitos,

solenemente paramentados de vermelho, com seus

roquetes impecavelmente brancos, além de uma dúzia

de anjinhos espalhados por toda parte. Integrava a corte

de celeste: Ana Maria, irmã da coroante, Denise Fontes,

Cleide da Borboleta, Eleuses Vasconcelos, Neném de seu

Belmiro, entre outras. E após a ladainha, o magnificat e a

coroação propriamente dita.

A pequena “anjinha” trajando uma túnica longa

de laquê branco, ornada de galões dourados; portando

um par de asas brancas nas costas e uma coroa de flores

claras na cabeça, um pouco de carmim nas bochechas

e uma leve sombra de batom nos lábios era elevada

Page 25: Capítulos 5

delicadamente por um dos fiéis e colocada no suporte

que ficava ao lado da santa. A mamãe, do lado de

baixo do suporte, olhava ansiosa e repetidamente para

cima, receosa de que a garotinha pudesse escorregar.

Silêncio sepulcral no adro da matriz. O missionário

teutônico elevava a voz de barítono e dizia:

- Caríssimos irmaos, agôra vamos iniciarr a

coroaçon de Nôssa Senhôra.

Do alto do coro, a organista dedilhava uns

acordes da melodia na velha sarafina e o público,

atento, dirigia os olhares para o altar da virgem. O coro

iniciava a solenidade, cantando a primeira estrofe da

conhecida música. Aí, então, a pequena cantora com

voz um pouco tímida, mas bastante firme cantava a

segunda:

“Virgem recebe esta coroa,

Que te oferece o nosso amor,

Seja do céu, ó mãe tão boa,

Pra todo nós feliz penhor”.

O coro apresentava a segunda estrofe e a

garotinha prosseguia com a última parte, desta vez, já

bastante desenvolta e dona da situação:

“Aceitai esta coroa,

Virgem santa mãe querida,

Para que seja a rainha.

O penhor de eterna vida.”

Ao tempo em que entoava os versos do hino, sua

mão direita ia aos poucos erguendo a coroa de Nossa

Senhora até a mesma ser depositada sobre a cabeça da

santa. Naquele momento, o vigário bradava vivas à

santa, a São José, à igreja, ao papa, etc.

Page 26: Capítulos 5

A essa altura, a coroante já havia concluído sua

missão, e estava sendo conduzida para baixo do suporte,

quando se ouviu um grito:

- Cuidado com o “barandão”! Vai queimar a asa

do anjo! Era a voz aflita e estridente de Maria Joaquina,

uma beata, membro da Pia União das Filhas de Maria,

Mas nada de mais grave aconteceu. A asinha da

coroante foi levemente chamuscada pela chama de um

brandão, no momento em que seu José Fiel trazia a

menina para baixo. Todos respiraram aliviados,

principalmente a mamãe que ainda olhou apreensiva

para a asinha atingida pela chama.

- Cadê meus óculos? Não estou enxergando

nada. Questionou a menina.

- Está aqui, Aline, apressou-se a mãe.

E a coroante, já refeita do susto, colocou os óculos

de armação estilo olho de gato e foi cercada por todo

um pelotão de coleguinhas aladas, que se

acotovelaram, hilariantes, barulhentas e quase histéricas

em torno da pequena “star”, elogiando sua atuação.

Muitas delas já fazendo planos para ser a sucessora da

coroante no próximo ano. Frei Johann Werner, o

celebrante, olhava de lado para os anjos e meio

impaciente repetia:

- Silência, meninos, a coroaçon ainda non acabar,

silência!

Naquele instante, o vigário parou o solo de violino

e do alto do coro bateu palmas três vezes com força e

sibilou aquele conhecido:

Page 27: Capítulos 5

- “Pixiiiiiiit”. Funcionou: anjos, arcanjos e querubins

se reorganizaram em seus lugares e mais uma vez a corte

celeste estava em ordem.

O frade terminou a solenidade, abençoando os

presentes e ajudantes, acólitos e anjos posicionaram-se

em fila dupla para retornar à sacristia. Começa

novamente a barulheira de anjos e ajudantes. Mais uma

vez o Padre José entra em cena, determinando que as

batinas e roquetes fossem guardados nos armários, as

asas e túnicas dos anjos nas caixas. Em seguida,

agradeceu a colaboração de todos e desejou que no

próximo ano a solenidade tivesse o mesmo brilho.

Coroar a santa era como “concurso de miss”. Só

acontecia uma vez na vida de uma criança e a mãe

estava sempre por perto com medo que garotinha

despencasse do suporte ou alguma vela pudesse

incendiar suas asinhas. Entretanto, anos depois de Aline

houve uma menininha que entrou no livro dos recordes

local, repetindo a proeza por três vezes. Quem foi? A

pequena Alice Batista, filha de Gilberto e Niza Batista.

Mas a festa de último dia de maio não parava por

aí. No final da solenidade a apresentação do show

pirotécnico: girândolas barulhentas, fogos de lágrimas,

etc., todo aquele espetáculo, comandado por seu João

Bracinho. O auge do espetáculo era a soltura dos

famosos balões de Seu Né Coelho. A subida daqueles

artefatos coloridos e iluminados fazia a alegria da

garotada.

Ainda na calçada, alguns políticos locais se

acercavam de seu Luiz Dubeux, um dos donos da usina

Bom Fim, tentando puxar conversa e solicitando dele que

o trenzinho de passageiros passasse a trafegar

diariamente, em vez de apenas três vezes por semana.

Page 28: Capítulos 5

Dona Lourdes Araújo, responsável pelas flores da

decoração da igreja, cercada por meia dúzia de

senhoras que se desmanchavam em elogios e pediam

mudinhas de rosas e outras variedades para seus jardins.

Seu Bequinho, com aspirações políticas para o futuro,

cumprimentava a todos, esbanjando simpatia.

O padre José e o Frei Werner passam pelos meio

da multidão em direção à casa paroquial. Seu Né

Coelho, o fabricante de balões, anuncia a subida do

último da noite. Um enorme balão de papel de seda

multicolorido. Precisa da ajuda de várias pessoas para

segurá-lo e atear fogo na bucha. O balão subiu e a

multidão acompanhou com os olhos até o seu

desaparecimento no firmamento.

Naquela época, soltar balões não era ilegal nem

politicamente incorreto. A cidade era cercada de matas

verdes e úmidas. O inverno, muito rigoroso e, no mês de

maio, as chuvas eram intensas. Quando os balões

entravam em combustão e caiam, suas chamas eram

apagadas pela umidade do solo ou simplesmente eram

molhados pela neblina permanente do inverno.

São os bons tempos que não voltam mais; hoje, só

na foto e na “telinha da TV”. Quem, entretanto, viveu

aqueles momentos, conserva na memória para sempre.

Page 29: Capítulos 5

- Capítulo 2 -

O BATIZADO DA BORBOLETA

Naqueles velhos tempos, a religião católica que

pretendia ser a única, era levada muito a sério. Ou se era

católico ou crente e, estes, nunca eram bem aceitos

entre os membros da santa madre igreja. A segregação e

discriminação eram explícitas e tinha a aprovação geral

de todos. Havia até uns mais radicais que apelidavam os

não seguidores do Vaticano de “bodes”. E é claro que na

hora das compras básicas o bom católico não ia buscar

o pão da tarde na padaria do irmão Joab ou comprar

rendas e bicos na lojinha da irmã Midiã.

E foi nesse ambiente de Irlanda do Norte sem

arsenal bélico que, novinha ainda, a pequenina mini

Aline foi levada à Pia Batismal, por seus zelosos pais,

guardiães da fé cristã.

Na época do batizado, a família havia mudado

de residência e estava habitando uma ampla casa, estilo

solar, na Rua 13 de Maio.

Quebrando uma tradição da época, os pais de

Aline não tiraram o nome da criança da folhinha de

nomes de santos. Seu nome tem a seguinte origem.

Maria, por que a menina havia nascido laçada e, caso

não lhe fosse dado aquele nome, ela poderia vir a morrer

queimada. Quanto à Aline, originou-se de um desejo da

mamãe, quando estava grávida da pequena. Dapaz

sentiu desejos de comer goiabas e juntamente com J. L.

dirigiu-se à casa de seu Né Coelho e dona Toinha, onde

Page 30: Capítulos 5

frutificavam as melhores goiabas da região. Na

realidade, não era época da fruta e todos, olhando

ansiosos para os galhos mais altos da goiabeira,

começaram a procurar uma frutinha por pequena que

fosse. De repente, papai João Luiz exclamou eufórico e

entusiasmado:

- “Ali, Né”, tem uma goiaba madura!

Foi daquela exclamação que a mamãe Dapaz,

além de obter a fruto do seu desejo de gestante,

conseguiu uma boa inspiração para colocar o segundo

nome do futuro rebento: Aline. Este fato desconhecido

de muitos, foi fruto de longa pesquisa da estudiosa de

genealogia e heráldica, Leda Maria.

Os padrinhos da garotinha, escolhidos entre

amigos próximos, moravam no vizinho distrito de

Caracituba, futura cidade de Primavera de Santo

Antônio. Seu José Rocha e dona Nina, juntamente com o

jovem Luiz Jacinto e outros convidados, vieram de “carro

de linha”, gentilmente cedido por seu Frederico Dubeux.

Padre Clodoaldo oficiou a liturgia, colocando os sais e os

santos óleos e vertendo a água benta sobre as louras

madeixas da garotinha, que se esganava de tanto gritar,

sem contar que, dona Nina sua madrinha, quase que

deixa a pequena se afogar na pia batismal, não fosse o

rápido auxílio de Cila Rodrigues que ajudou a segurá-la. A

neo batizanda tinha seis meses de idade e já pesava

doze quilos e meio. Todos os presentes elogiavam o timão

branco, decorado de renda francesa e lacinhos cor-de-

rosa, obra-prima de dona Elvira Fontes, a mais famosa

modista da cidade.

Era dia de festa no solar de J. L. e Dapaz. Um

grande almoço, com aquele cardápio regional:

buchada, cabidela, peru assado, fritada, bolo de milho,

Page 31: Capítulos 5

pé-de-moleque, manuê, grude de goma, ponches de

limão e laranja, os “pirulitos” de dona Toinha e as

“chupetas de açúcar” de seu Heleno para a criançada.

Na cozinha, aquele exército de comadres e

afilhadas: dona Severina Cavalcanti, Maria Calixto,

Santa, Zefinha e outras, ajudando a mexer o pirão,

decorar os pratos, encher a buchada e carregar os

copinhos de bebidas fortes para os homens, e as

garrafinhas de gasosa e guaraná para as damas e os

pimpolhos. Afinal, à época, o uso de bebidas fortes não

havia se tornado moda ainda entre as damas e estas, só

ingeriam bebidas leves, tipo ponches e refrigerantes

como Fratteli Vita e Gasosa.

Maria Andrade e dona Quinquina cortavam os

doces de batata e as goiabadas em lata, verdadeiras

delícias da culinária de seu Laurindo Doceiro.

Na sala o papai J. L. recepcionava os convidados

do sexo masculino, oferecendo bebidas quentes; doses

de vinho Quinado Imperial e conhaque Palhinha e

Castelo, além de cerveja Pielsen esfriada. Os canapés

eram torresmo, bode assado, e sarapatél. Para os

fumantes, caixas de cigarilhas, cigarros Petisco, Caruso,

Bom Marché, Cara Preta e charutos Suerdick Bahia. Havia

até uns maços de Gesira e Pour la Noblesse, importados

raros da época. Presentes o prefeito da cidade, Dr. Plínio

Araújo e a esposa, seu José de Assunção e dona Nely

Gomes de Sá, seu Erasmo e dona Levina, seu Alcides

Rodrigues e Saló, além de alguns amigos da prefeitura,

comerciantes, senhores de engenhos e, naturalmente, os

primos e parentes do engenho e de Recife.

Em meio à festança, enquanto os convivas se

deleitavam bebendo e dançando a polca, a porta se

abriu e adentrou o recinto, bastante irritada, “Sinhá

Page 32: Capítulos 5

Sinfronina”, uma antiga lavadeira da família, que tinha

fama de ser catimbozeira e fazer uns despachos.

- Dando uma festa e nem mim convidam, né? Inté

eu que ajudei a engomar os lençó de linhe do enxová da

criança!, berrou a velha. Qui ingratidão. Cadê a minina?

Cadê cumade Santa. To a pui de dá um bale nela.

- Sente-se, Sinhá Fronina, convidou dona Elvira.

Aceita um pedacinho de peru assado ou uma fatia de

bolo?

- Inhora não, já cumi meu prato de pirão de ovo,

respondeu ela, fumaçando de raiva. Só vim dá uma

ispiada e rezar a minima pru meu Padim Ciço e Mãe

Dasdore portregê a bruguela. Adonde ela tá?

- Venha comigo, Sinhá Fronina, convidou dona

Elvira. E as duas se dirigiram para o quarto onde estava o

berço da neném.

- Oxente, mai qui tanta caxa é essa dento do

beço?

“São as lembrancinhas que ela recebeu, Sinhá

Fronina!

- Mai num pode não, essa tuia de brebote vai

terminá sofocando a minina”. E a velha foi logo retirando

as caixas e os presentes e jogando tudo na cama ao

lado. Agora sim, nói pode vê ela. Meu Padim Ciço, cuma

ele gorda. Benza Deus!”

A benzedeira concentrou-se e olhou a recém-

nascida demoradamente. Então puxou um galhinho de

arruda preso pelo turbante junto da orelha e começou a

aspergir a garotinha, enquanto rezava sua prece. Depois

persignou-se e exclamou solenemente:

Page 33: Capítulos 5

- Ela vai sê muito intiligente, vai estudá e se formá,

vai sê muito populá, vai vencê na vida, vai viajar muito

por esse mundo de meu Deus, vai inté se casar, mai num

vai passá de um metro e meio de artura. Mai aiguente os

povo vai impelidá-la de Baxinha e Nina Bolinha.” Tem mai

ainda, ela vai sê muito braba; quando ela apontar o

dedo fura bolo, der três piscadinha cum as pestana e um

piqueno supapo no peito, corram de perto, que vai sobrá

pra arguém. É o castigo pru tere se isquecido de mim.

E a velha Fronina retirou-se como um pé-de-vento,

deixando os convidados pasmos.

Será que os augúrios da velha iriam se tornar

realidade? Os convidados entre assustados e pasmos

não paravam de cochichar entre si, mas o papai J. L.

logo pediu que o sanfoneiro tocasse um baião e a festa

voltou à animação inicial.

Já quase uma hora da tarde, os homens iam se

animando com os repetidos tragos e com grandes

baforadas de charuto e cigarros. As senhoras,

acomodadas na sala, conversavam discretamente

enquanto enxugavam o suor do colo e do pescoço com

toalhinhas de feltro. As crianças, já “adocicadas” de

tanto pirulito e chupeta de açúcar, corriam enquanto

esbarravam nos mais velhos e promoviam a aquela

baguncinha organizada.

Num recanto da sala, sentado numa poltrona, o

padre Clodoaldo de batina preta com dezenas de

botões que iam do colarinho até o abanhado, barrete

preto na cabeça, enxugava o rosto com um lenço e se

abanava com o breviário. De vez em quando dava uma

olhada no relógio de algibeira. Salomé de seu Alcides

notou aflição do reverendo e correu esbaforida para a

cozinha:

Page 34: Capítulos 5

- Dapaz, minha santa, já está passando muito da

hora do padre Clodoaldo comer. Ele tem gastrite e

terminar passando mal se não forrar logo o estômago.

Maria Andrade logo tomou a frente e começou a

preparar um prato para o vigário. Colocou numa

bandeja e levou até a mesa da sala. O reverendo foi

convidado para sentar e recebeu o prato sorrindo, já

estava passando o lenço na testa e na iminência de ter

uma oria. Maria Andrade, apressada, gritou para dona

Zefinha:

- Prepara uma sangria para o padre.

E dona Zefinha, espantada, respondeu:

- Mas dona Maria, o sangue todo foi colocado na

cabidela.

- Santa ignorância, Zefinha, sangria é um ponche

de vinho com água e açúcar. Não bote gelo, o padre

tem problemas de garganta.

Afinal, toda a comunidade religiosa tinha um

histórico completo da saúde do pároco. Padre

Clodoaldo começou a se servir e, quando, preparava o

copo para tomar o primeiro gole de sangria, passa um

menino correndo e bate no braço do reverendo. A

toalha de linho da mesa ficou lilás. Dapaz apareceu na

sala e lamentou o estado se sua toalha de linho

engomada. O padre, pálido, quase perdeu o apetite,

ficou sem ação. Mais uma vez Maria Andrade contornou

a situação.

- Não se preocupe, padre, aqui está outra sangria.

Vou ficar por aqui pra domar estes meninos.

Page 35: Capítulos 5

- Ô minha gente, esses filhos de vocês não tem

estilo não, é? Ficam todas de beleza aí na sala enquanto

os meninos parecem que estão correndo no prado.

O padre almoçou, fez uma rápida leitura no

breviário e começou a se despediu dos convidados e dos

anfitriões. Ao sair ainda benzeu os que estavam por perto.

Quase catorze horas, estava na hora de servir o

almoço. Mas como iria caber tanta gente à mesa? Foi

quando apareceu dona Frederica Faneca, esposa do

prefeito, e apresentou a solução.

- Por que vocês não fazem um almoço

americano?

Os nativos entreolharam-se e ficaram sem

entender nada. De novo Maria Andrade em cena.

- Que história é essa de almoço americano, dona

Frederica?

- Muito simples, colocam-se os pratos e talheres na

mesa, em seguida, vão trazendo os pratos das iguarias e

cada um se serve e vai comer em algum lugar da casa

que não seja na mesa.

- Que idéia maravilhosa, dona Frederica,

exclamou Dapaz.

Os pratos, talheres, guardanapos e as iguarias do

almoço foram colocados na mesa da sala de jantar

sobre a toalha de linho branco engomada e com uma

enorme mancha de sangria. Os convidados famintos

como estavam, nem perceberam.

- O Clodomiro, cadê as grades de coca-cola?

Perguntou dona Lita.

Page 36: Capítulos 5

- É verdade, estão na mala do carro, Alguém me

ajude aqui, por favor!

E os convidados que já se preparavam pra fazer

os pratos, pararam e ficaram admirados com as

garrafinhas de coca.

- Eu vou tomar uma coca em lugar da gasosa,

fala dona Minervina, enquanto enchia o copo,

espantada com a espuma.

- Ave Maria, fica fervendo no copo e na boca.

Queima e arde.

- Dona Minervina, fala seu Clodomiro, é pra tomar

gelada. Quente, ninguém agüenta. Quando nada, bote

uma pedra de gelo no copo.

- E a coca-cola roubou a cena do almoço. Afinal

ela só tinha chegado ao Brasil há dois anos e, na

província, pouca gente tinha experimentado o novo

refrigerante.

E assim foi servido o primeiro almoço no “estilo

americano” em Amaraji.

- De repente, um grito estridente e um choro de

criança. Dapaz e outras mães correram para o quarto e,

espantadas, viram a mini “nina” muito vermelha, se

debatendo no berço, engasgada e quase sufocada com

uma chupeta de açúcar.

- Quem foi que fez uma barbaridade dessas?

Perguntou a mamãe. Deve ser cria de alguma daquelas

indolentes que estão na sala e não se levantam para

nada.

Page 37: Capítulos 5

Difícil descobrir, afinal tinha criança demais na

festa. Ela trocou o timão da menina e foi falar com J. L.

sobre o ocorrido.

- Tá bom de tanta festa e de dança, João Luiz,

esses meninos já bagunçaram demais e a casa está um

lixo, além do que a bebida já acabou. Tá na hora de

todo mundo voltar pra suas casas.

João Luiz pediu que o sanfoneiro parasse que a

festa já ia acabar. Aos poucos os convidados iam

agradecendo e se retirando.

Lá pelas quatro da tarde não restava mais

ninguém, a não ser os familiares e as comadres que

começavam a fazer a faxina. Dapaz, bastante cansada,

repetia:

- Outra festa dessas aqui em casa, nunca mais.

Teve gente que pareciam não ter se alimentado há um

mês. Parece que vieram tirar a barriga da miséria mesmo.

O filho de dona Regina estava lavando as mãos na jarra.

Tem jeito? E a sobrinha de dona Davina, usou metade do

meu vidro de Madeira do Oriente. Quem era aquele de

bigode que fumava e cuspia lá no canto da sala? João

Luiz convidou cada um...

E os comentários foram se amenizando, enquanto

a faxina estava quase concluída.

O tempo passou e muitos esqueceram aquela

cena insólita e curiosa da velha Fronina, histérica,

saracoteando pela sala, mas algumas pessoas ainda se

perguntavam: será que algo daquilo iria acontecer?

Page 38: Capítulos 5

- Capítulo 1 -

JINGLE BELLS, NASCEU A “MINI” NINHA...

Era uma vez, numa cidadezinha da mata sul,

torrão bendito, cercada de montanhas, poesia, matas

verdejantes e rio a correr, um casal muito feliz que trouxe

ao mundo uma “mini” garotinha, fim de rama, caçulinha,

cheia de graça e encantamento.

A menininha veio ao mundo na residência de seus

genitores, situada à Rua Prefeito Rocha Pontual, juntinho

do cartório de seu Samuel Coelho.

Seu papai era comerciante do ramo da

panificação e assessor do prefeito da província, e a

mamãe, de prendas domésticas.

Como rezava a tradição da época, ela foi

“pegada” por Mãe Dedé, a parteira mais famosa da

região e nasceu tão miudinha, tão bolotudinha, tão

rechonchudinha, que cabia na palma da mão. Era, no

todo, de aparência muito saudável, com madeixas

galegas e tez rosada. Parecia uma calunga de louça.

Os felizardos pais, João Luiz e Maria da Paz, deram

à nenenzinha, o nome de Maria Aline. Era o dia 27 de

outubro de mil novecentos e bauzes, exatamente dois

anos após a chegada da coca-cola no Brasil.

Como acontece em todo lugarejo do interior, a

notícia espalhou-se com rapidez e, pelo fato do casal ter

muitos amigos, logo começou a aparecer pessoas para

ver a mais nova moradora da casa.

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As primeiras visitas recebidas foram: Maria

Andrade, Quinquina e Dona Elvira; seu Alcides, Saló, Cila,

já mocinha, e Concinha, bem novinha. Do vizinho distrito

de Caracituba: seu João Rocha e dona Nina, futuros

padrinhos da recém-nascida. Do engenho Amora: seu

João Vieira, dona Mariinha e as pequenas, Socorro,

Josete e Anália. Da capital: os tios Clodomiro e Lita, e a

prima Maria Alice ainda de braço.

Cada visitante que aparecia (os homens

evidentemente) eram agraciados pelo pai da garotinha,

com um cálice de excelente cachimbada de mel de

uruçu com cachaça de cabeça preparada na hora,

charutos Suerdick Bahia ou cigarros Asa, dependendo do

gosto de cada um.

Um fato inusitado é que a menina era tão

pequenina, tão curtinha, que todos os presentes ficaram

curiosos a respeito do futuro da garotinha. O que ela iria

ser quando crescesse? E, em meio ao cochichado geral

das visitas, uma voz fanhosa e estridente gritou lá de trás:

“Ela vai ser borboleta de pastoril!” A exclamação havia

sido proferida por seu João Severo, o dono do

enchimento, que estava entrando para ver a neném e

escutara parte da conversa dos presentes. “Oxente, seu

João Severo, ela vai ser é uma fleira, uma madre

superiora, isso sim, se Deus quiser,” afirmou a jovem e boa

Aurinha, futura moradora da Vila São Vicente, que havia

chegado correndo para ver o novo rebento.

Os presentes recebidos: lençóis e camisinhas de

pagão, mamadeiras, toucas e consolos coloridos,

sapatinhos de crochet, chiquitos, maracás e uma figa de

ouro. Maria Andrade levou uma boneca de pano

graúda, confeccionada por Amara da Boneca e um

vidro de alfazema da loja de seu Alcides. Levou também

um capão gordo, para a canja do resguardo da mamãe.

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Aline e a maninha Ana Maria, primogênita do

casal, encheram de alegria a vida dos pais e de todos os

vizinhos de rua.

Maria Andrade, amiga e guardiã da família,

ajudava a mamãe Dapaz na criação da “mini” Ninha e

Dona Maria Calixto, foi a sua ama-de-leite.

Quando a gordinha começou a ficar mais

pesada, mamãe Dapaz contratou a ama Ivanise para

cuidar das duas manas. Como ela teria de dormir no

solar, Dapaz encomendou uma cama-de-lona a seu

Amaro Feitosa e, na feira, comprou um baú amarelo

ornado de gregas, daqueles fabricados lá para as

bandas do agreste, para as fardas da ama.

A menininha crescia (perdão), se tornava a cada

dia, mais saudável e rechonchuda, cabeleira farta com

madeixas louras e as bochechas rosadas.

A essa altura ela já se alimentava do leite gordo e

nutritivo da vacaria de seu Samuel, que, todas as manhãs

era distribuído por meio de uma carrocinha, puxada por

um robusto carneiro.

A cidadezinha era muito pequena e quase nada

de novo acontecia. As notícias eram trazidas por

algumas pessoas, geralmente comerciantes e

autoridades municipais, que viajavam semanalmente

para a capital e, no retorno, compravam algum jornal ou

revista que era repassado para amigos. Havia poucos

rádios na cidade, mas duas pessoas possuíam aparelhos

de rádio possantes da marca RCA Victor, seu João Luiz e

seu Victor Alves. Muitas noites, o casal João Luiz e Maria

Dapaz convidava a jovem Elza Dorotéia e algumas

amigas para ouvirem a programação do rádio que era

composta de serestas e transmissão de apresentações de

programas de calouros ou de outros artistas que vinham

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do sul do país, sem esquecer naturalmente o Repórter

Esso, responsável pelo noticiário do que estava

ocorrendo no Brasil e no mundo.

Nestes saraus radiofônicos, escutavam-se novelas,

programas de auditório e músicas de sucesso da época.

Um dos programas inesquecíveis foi quando se

apresentou “Dilu Melo”, famosa artista de São Paulo, que

veio daquele estado apresentar-se na PRA-8, Rádio

Clube de Pernambuco. E deleitou a todos os ouvintes,

cantando:

“Fiz a cama na varanda,

Esqueci o cobertor

Deu o vento na roseira

Me cobriu todo de flor.”

Nas noites de verão, cadeiras eram colocadas nas

calçadas, onde amigos e vizinhos se reuniam para a

tradicional prosa. Naquelas ocasiões, os homens falavam

sobre a administração do prefeito, as notícias nacionais e

internacionais escutadas no Repórter Esso e, as senhoras,

discutiam as atividades da paróquia, os sermões do

padre Teodoro, as últimas peças bordadas ou alguma

receita culinária nova recortada do Diário de

Pernambuco.

Nossa história se passa no final da primeira

metade do século passado. Não é um tempo tão

distante, mas a realidade das pequenas cidades do

interior era bem diversa. Na zona urbana uma população

pequena, poucas casas e um comércio diminuto.

Na zona rural, grande engenhos com seus

casarões e muitos moradores. Estas propriedades

assemelhavam-se a pequenos feudos da idade média. O

senhor de engenho era o patrão, o conselheiro, o juiz que

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decidia sobre todas as questões e acontecimentos da

propriedade.

Tempos amenos, bucólicos e românticos A

inexistente poluição ambiental e mental fazia com que o

meio se conservasse puro e paradisíaco; puras e arejadas

eram também as mentes e o pensar da época.