Capítulo VII de Gervaise Nona Revisão Em 02-09-2015 Terminado Versão Word 97 2003

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Capítulo VII A festa de Gervaise calhava a 19 de junho. Em casa dos Coupeau, nos dias de festa, punha-se a mesa com dois pratos para cada pessoa, um mais pequeno por cima, outro maior por baixo; eram sempre patuscadas de onde se saía bêbedo como um cacho e com a barriga cheia para uma semana. Nessas ocasiões estourava-se o dinheiro todo. Naquela casa, enquanto houvesse alguns vinténs, eram para ser comidos. Inventavam-se santos no calendário, para aqueles glutões era só uma questão de encontrar pretextos. A Virginie aprovava sempre entusiasticamente as iniciativas de Gervaise de se locupletar com uns bons nacos de iguarias. Quando se tem em casa um homem que estoura tudo em bebida, não é ? é ato abençoado não deixar que o lar se desfaça todo em líquidos, e tratar de guarnecer primeiro o estômago como deve ser. Uma vez que o dinheiro acabava sempre por desaparecer, tanto valia dar a ganhar ao dono do talho como ao dono da adega. E Gervaise, que se tinha tornado gulosa, atinha-se a essa desculpa. Bem feito ! a culpa era do Coupeau, se eles já não economizavam um pataco. Ela tinha engordado ainda mais e mancava mais, porque a perna dela, inchada de tanta gordura, parecia encurtar-se proporcionalmente. Naquele ano, com um mês de antecedência, só se falava na festa. Escolhiam-se os pratos, e lambiam-se os beiços só de pensar neles. Com sofreguidão, a loja inteira só ansiava pela boda. Era preciso uma pândega de cair para o lado, alguma coisa de extraordinário e de conseguido, por Deus ! não era todos os dias que as coisas corriam de feição. A grande preocupação da lavadeira era saber quem iria convidar; desejava ter doze pessoas à mesa, nem mais, nem menos. Ela, o marido, a Mãe do Coupeau, a Mme. Lerat, já dava quatro pessoas da família. Teria também os Goujet e os Poisson. De início, tinha jurado a si mesma não convidar as operárias, a Mme. Putois e a Clémence, para não lhes dar

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Capítulo sétimo do Romance naturalista de 1877 de título 'L'Assommoir' da autoria de Émile Zola -- traduzido do original em língua francesa para língua portuguesa de Portugal por José Manuel de Almeida Freitas no ano de 2015.

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Capítulo VII

A festa de Gervaise calhava a 19 de junho. Em casa dos Coupeau, nos dias de festa, punha-se a mesa com dois pratos para cada pessoa, um mais pequeno por cima, outro maior por baixo; eram sempre patuscadas de onde se saía bêbedo como um cacho e com a barriga cheia para uma semana. Nessas ocasiões estourava-se o dinheiro todo. Naquela casa, enquanto houvesse alguns vinténs, eram para ser comidos. Inventavam-se santos no calendário, para aqueles glutões era só uma questão de encontrar pretextos.

A Virginie aprovava sempre entusiasticamente as iniciativas de Gervaise de se locupletar com uns bons nacos de iguarias. Quando se tem em casa um homem que estoura tudo em bebida, não é ? é ato abençoado não deixar que o lar se desfaça todo em líquidos, e tratar de guarnecer primeiro o estômago como deve ser. Uma vez que o dinheiro acabava sempre por desaparecer, tanto valia dar a ganhar ao dono do talho como ao dono da adega. E Gervaise, que se tinha tornado gulosa, atinha-se a essa desculpa. Bem feito ! a culpa era do Coupeau, se eles já não economizavam um pataco. Ela tinha engordado ainda mais e mancava mais, porque a perna dela, inchada de tanta gordura, parecia encurtar-se proporcionalmente.

Naquele ano, com um mês de antecedência, só se falava na festa. Escolhiam-se os pratos, e lambiam-se os beiços só de pensar neles. Com sofreguidão, a loja inteira só ansiava pela boda. Era preciso uma pândega de cair para o lado, alguma coisa de extraordinário e de conseguido, por Deus ! não era todos os dias que as coisas corriam de feição. A grande preocupação da lavadeira era saber quem iria convidar; desejava ter doze pessoas à mesa, nem mais, nem menos. Ela, o marido, a Mãe do Coupeau, a Mme. Lerat, já dava quatro pessoas da família. Teria também os Goujet e os Poisson. De início, tinha jurado a si mesma não convidar as operárias, a Mme. Putois e a Clémence, para não lhes dar demasiada confiança; mas, como se falava sempre da festa à sua frente e como elas morriam de desejos, acabou por lhes dizer para virem. Quatro e quatro, oito, e dois, dez. Então, querendo decididamente chegar aos doze, reconciliou-se com os Lorilleux, que já há algum tempo a andavam a engraxar; pelo menos, foi combinado que os Lorilleux desceriam para jantar e que se fariam as pazes, de copos na mão. É verdade que não se pode ficar zangado para sempre com a família. E, depois, a ideia da festa enternecia todos os corações. Era uma oportunidade impossível de recusar. Simplesmente, quando os Boche souberam da reconciliação projetada, aproximaram-se imediatamente de Gervaise, com delicadezas, com sorrisos obsequiosos; e foi necessário convidá-los também para a ocasião. Pois bem ! seriam catorze, sem contar com as crianças. Nunca ela tinha dado um semelhante jantar, e sentia-se ao mesmo tempo inquieta e em glória.

A festa calhava precisamente numa segunda-feira. Era uma sorte: Gervaise podia contar com a tarde de domingo para começar os cozinhados. No sábado, já que as engomadeiras atabalhoavam as tarefas, discutiu-se na loja longamente a fim de se saber o que é que, afinal, iriam comer. Só um prato tinha ficado decidido já há três semanas: um gordo ganso assado. Falava-se dele com olhos gulosos. O ganso até já estava

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comprado. A Mãe do Coupeau foi buscá-lo para que a Clémence e a Mme. Putois lhe tomassem o peso. Houve exclamações, por o bicho parecer tão enorme e ter uma pele tão notável, inchada de gordura amarelinha.

«Antes disso, o cozido, não é ?» disse Gervaise. «A sopa e um pouco de cozido, é sempre bom ... Depois, ficava bem um guisado.»

A grande Clémence propôs coelho; mas isso era o que se comia sempre; toda a gente estava farta disso até à ponta dos cabelos. Gervaise sonhava com algo mais distinto. Quando a Mme. Putois falou num fricassé de vitela, olharam todas umas para as outras com um sorriso que se ia abrindo cada vez mais. Era uma ótima ideia; nada faria tanto efeito como um fricassé de vitela.

«Para terminar, deveria haver também um prato de guisado.»

A Mãe do Coupeau ansiava por um prato de peixe. Mas as outras fizeram uma careta, carregando com os ferros em cima das peças de roupa ainda com mais força. Ninguém gostava de peixe; não enchia o estômago, e vinha cheio de espinhas. Quando a vesga da Augustine ousou dizer que gostava de raia, a Clémence calou-lhe o bico com um murro. Finalmente, a patroa acabou por se lembrar de um lombo de porco com batatas, o que novamente alegrou as caras, no momento em que a Virginie entrava como um furacão pela porta dentro, de cara toda excitada.

«Chega em boa hora !» exclamou Gervaise. «Mãe Coupeau, mostre-lhe lá o bicho.»

E a Mãe do Coupeau foi buscar pela segunda vez o gordo ganso, que a Virginie teve de agarrar, sopesando-o. E exclamou: «Santo Deus! como é pesado!» Mas pousou--o logo na beira da mesa de trabalho, entre um saiote e um pacote de camisas. Tinha a cabeça noutras coisas; e conduziu Gervaise para a divisão dos fundos.

«Ora bem, minha querida», segredou ela rapidamente, «eu quero preveni-la ... Nem vai acreditar quem é que encontrei ao fundo da rua ! Ele anda por aí a vaguear, a espiar ... E foi por isso que eu vim a correr. Ele fez-me temer por si, compreende ?»

A lavadeira ficou muito pálida. Que queria ele dela, esse infeliz ? E vinha isto acontecer em plenos preparativos da festa. Ela nunca tinha tido sorte, realmente; nunca a deixavam gozar um prazer tranquilamente. Mas a Virginie retorquia-lhe: que ela ainda era de bom tempo, para se estar a preocupar. Pois bem ! se o Lantier se atrevesse a segui-la, bastava chamar um polícia e mandá-lo prender. Depois que o marido dela, um mês antes, obtivera colocação como agente da polícia, a grande morenaça tinha ganho umas atitudes de soberba e falava em mandar prender qualquer um. E como ela erguia a voz, quando andava pela rua, desejando que alguém a beliscasse, com o único propósito de conduzir o insolente à esquadra e de o entregar ao Poisson. Gervaise, com um gesto, suplicou-lhe que se calasse, porque as operárias podiam estar a ouvir. Foi ela a primeira a voltar à loja; e retomou, afetando muita calma:

«E, agora, é preciso escolher um legume, não acham ?»

Hein ? umas ervilhas com toucinho», disse a Virginie. «Cá por mim, não me importava de comer sempre só disso».

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«Sim, sim, ervilhas com toucinho !» aprovaram todas as outras, enquanto que a Augustine, entusiasmada, aplicava grandes golpes com o atiçador no mécanique.

No dia seguinte, domingo, a partir das três da tarde, a Mãe do Coupeau acendeu os dois fogareiros que havia em casa, e um terceiro, de barro, emprestado pelos Boche. Às três e meia, o fricassé fervia numa grande panela, emprestada pelo restaurante do lado, pois a panela de casa lhe tinha parecido demasiado pequena. Tinha-se decidido cozinhar de véspera o fricassé de vitela e o guisado de lombo de porco, porque esses pratos sabiam melhor feitos de véspera; apenas o molho do fricassé é que só se prepararia no momento de ir para a mesa. Ainda ficava bastante trabalho para segunda-feira: a sopa, as ervilhas com toucinho, o ganso assado. A divisão das traseiras estava toda iluminada pelo lume dos três fogareiros; nas caçarolas, os refogados lançavam seus cheiros a gordura quente, com os fumos fortes das farinhas a alourar; enquanto que a panela grande soprava jatos de vapor como uma caldeira, com os bordos agitados por uns glu-glus graves e profundos. A Mãe do Coupeau e Gervaise, de aventais brancos bem atados, andavam numa tal roda-viva que fazia a divisão parecer pequena, apressando-se a limpar a salsa, a dosear a pimenta e o sal, a virar a carne com a colher de pau. Tinham mandado o Coupeau sair, para não as estorvar. Mas mesmo assim tiveram uma quantidade de mulheres toda a tarde atrás delas. Da cozinha, cheirava tão bem por toda a casa, que as vizinhas vinham umas atrás das outras e entravam, sob qualquer pretexto, unicamente para saberem o que estava a ser cozinhado; plantavam-se ali, à espera que a lavadeira se visse obrigada a levantar os testos. Depois, pelas cinco da tarde, a Virginie apareceu; tinha voltado a avistar o Lantier; decididamente, não se punha os pés na rua sem o encontrar. A Mme. Boche, também ela, acabava de o ver na esquina do passeio, com a cabeça inclinada, a espreitar, com um ar fingido. Então, Gervaise, que nesse momento ia sair para comprar cebolas torradas para o fricassé, começou a tremer e já não teve coragem de sair; tanto mais porque a porteira e a costureira a tinham assustado bastante ao contarem umas histórias terríveis de homens que faziam esperas às mulheres, com facas e pistolas escondidas debaixo do gabão. Oh mulher !, sim ! liam-se histórias dessas todos os dias nos jornais; quando um desses tratantes fica enraivecido por encontrar uma sua antiga querida com um novo companheiro, fica capaz de tudo. A Virginie ofereceu-se cortesmente para ir a correr buscar as cebolas torradas. Era preciso as mulheres ajudarem-se umas às outras, não se podia deixar massacrar esta amiga, coitada. Quando voltou, disse que o Lantier já se tinha ido embora; deve de se ter raspado, sabendo-se descoberto. A conversa, ao redor das caçarolas, não voltou a ser sobre ele até à noite. Tendo a Mme. Boche aconselhado a dar conhecimento do caso ao Coupeau, Gervaise mostrou um grande receio e suplicou-lhe que não deixasse escapar nem uma palavra sequer sobre aquele assunto. Ah, pois sim ! ia ser o bom e o bonito ! O marido devia de andar já a desconfiar daquilo, pois que, desde há alguns dias, fazia juras e ao mesmo tempo dava murros na parede. E ficava de mãos todas a tremer, com a ideia de dois homens irem dar cabo um do outro por causa dela; conhecia bem o Coupeau, ele era tão ciumento que seria bem capaz de se atirar ao Lantier e de o cortar com as cisalhas de telhador. E, enquanto todas as quatro mergulhavam naquele drama, os molhos, em cima dos fogareiros alimentados pelo borralho, iam apurando lentamente; da vitela de fricassé e do guisado de lombo, quando a Mãe do Coupeau os destapava, saía um ligeiro ruído, uma vibração discreta; o fricassé mantinha o seu ressonar de corista adormecido ao sol, de barriga pró ar. E acabaram por provar a sopa, cada uma comendo uma tigela, para verem como estava a cocção.

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Por fim, a segunda-feira chegou. Agora que Gervaise ia ter catorze pessoas para jantar, receava não conseguir acomodar toda a gente. E decidiu-se por servir o jantar na mesa da loja; e, por precaução, pôs-se desde manhã cedo a medir com um metro o espaço que havia, para ver em que posição haveria de colocar a mesa. Em seguida, foi preciso transferir toda a roupa para o quarto e desmontar a tábua de engomar; era essa mesma tábua de engomar que, colocada sobre uns cavaletes, ia servir para aumentar a mesa. Mas, precisamente a meio daquelas mudanças no arranjo da casa, apareceu uma cliente a fazer uma grande cena, porque já estava à espera desde sexta-feira que lhe entregassem a roupa; estavam a gozar com ela, dizia, e por isso queria a sua roupa imediatamente. Então, Gervaise pediu desculpa, e mentiu-lhe com ousadia; que não tinha culpa daquilo ter acontecido, que estava a fazer uma limpeza geral à loja, que as operárias só viriam no dia seguinte; e conseguiu que a cliente se fosse embora mais calma, prometendo tratar da roupa dela logo na primeira hora do dia seguinte. Depois da cliente ter saído, desatou a protestar, revoltada e furiosa. Que era assim, que se se dessem sempre ouvidos a todas as reclamações, não se teria sequer tempo para comer, passar-se-ia a vida inteira a matarmo-nos só pelos bonitos olhos das madames ! Mas que não eram cachorras de trela ! Ora essa ! nem que o Grão-Turco em pessoa viesse trazer-lhe um colarinho postiço, ainda que o serviço fosse pago por cem mil francos, não iria sequer tocar no ferro naquela segunda-feira, porque ao fim e ao cabo aquele era o seu dia de disfrutar um pouco.

Toda a tarde foi empregada a terminar as compras. Por três vezes Gervaise saiu e voltou carregada como uma mula. Mas, no momento em que ia voltar a sair para encomendar o vinho, apercebeu-se de que já não tinha dinheiro suficiente. Podia facilmente comprar o vinho a fiado; só que a casa não podia ficar sem dinheiro nenhum, por causa das mil e uma pequenas despesas que iam surgindo sem se contar. E, no quarto dos fundos, a Mãe do Coupeau e ela, com tristeza, calcularam que lhes eram precisos mais vinte francos pelos menos. Onde os encontrar, a essas quatro moedas de cem sous ? A Mãe do Coupeau, que outrora tinha trabalhado de mulher-a-dias para uma atrizeca do teatro das Batignolles, foi a primeira a falar da casa de penhores. Gervaise teve um riso de alívio. Como era burra ! aquilo já nem lhe passava pela cabeça. Dobrou alegremente o seu vestido preto de seda num lenço, que prendeu com alfinetes. Depois, ela mesma escondeu o pacote debaixo da bata da Mãe do Coupeau, recomendando-lhe que o segurasse bem achatado sobre a barriga, por causa dos vizinhos, que não precisavam de saber; e veio ela mesma espreitar à porta, para ver se ninguém seguia a velha mulher. Mas esta ainda nem tinha chegado em frente do carvoeiro, quando Gervaise a chamou.

«Mãe ! mãe !»

Fê-la voltar a entrar na loja, tirou do dedo a aliança, e disse-lhe:

«Tome, junte isto para levar lá. Assim teremos mais dinheiro.»

E, quando a Mãe do Coupeau lhe trouxe vinte e cinco francos, Gervaise até dançou de alegria. Ia encomendar mais seis garrafas de vinho lacradas, para serem bebidas com o assado. Os Lorilleux iam ser desfeiteados.

Nos últimos quinze dias, era o sonho dos Coupeau: desfeitear os Lorilleux. Não era que aqueles sonsos, homem e mulher, um bonito par, sem dúvida, não se fechavam, quando comiam um bom manjar, como se o tivessem roubado ? Sim, fechavam a janela com uma manta para taparem a luz e fazerem crer que estavam a dormir. Naturalmente, isso impedia que as pessoas subissem a visitá-los, e alambazavam-se sozinhos,

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empanturrando-se o mais depressa possível, sem deixarem escapar sequer uma palavra mais alta. No dia seguinte, até evitavam deitar fora no lixo os ossos, porque as pessoas poderiam então ficar a saber o que é que eles tinham comido; a Mme. Lorilleux ia atirá--los a um bueiro, ao fim da rua; uma manhã, Gervaise tinha-a surpreendido a despejar lá o cesto, cheio de cascas de ostras. Ah ! não !, era evidente, aqueles gananciosos não eram mãos largas, não, e todas aquelas manigâncias vinham da sua grande paixão de quererem parecer pobres. Pois bem, dar-se-lhes-ia uma lição, ia-se provar-lhes que não éramos cães. Gervaise, por ela, poria mesmo a mesa em plena rua, se pudesse, convidando até todos os passantes. O dinheiro, na verdade, não tinha sido inventado para criar mofo. E é belo, quando reluz ao sol, novinho em folha. E conseguia juntar tão pouco, ultimamente, que nos dias em que tinha vinte sous, arranjava as coisas de modo a fazer crer que tinha quarenta.

A Mãe do Coupeau e Gervaise falaram dos Lorilleux enquanto punham a mesa, a partir das três da tarde. Tinham pendurado umas cortinas na montra; mas, como estava calor, mantinham a porta aberta, de modo que a rua inteira, ao passar, podia ver a mesa. As duas mulheres não pousavam ali uma infusa, uma garrafa de vinho, um saleiro, sem colocarem, nos gestos de os posicionar, uma intenção vexatória em relação aos Lorilleux. Tinham posto cada objeto de modo a que aqueles, ao chegarem, pudessem ver a disposição magnífica do serviço de mesa, e reservaram para eles a louça mais rica, sabendo bem que os pratos de porcelana lhes iam provocar um choque.

«Não, não, mãe», exclamava Gervaise, «não lhes ponha esses guardanapos ! Tenho ali dois que são adamascados.»

Ah, bom !» murmurou a velha mulher, «vão ter uma surpresa de morte, tenho a certeza.»

E sorriram uma para a outra, de pé, cada uma do seu lado daquela grande mesa branca, onde os catorze lugares, todos completamente guarnecidos do serviço e bem alinhados, as inchavam de vaidade e de orgulho. Fazia um efeito como se fosse um altar no meio da loja.

«Também», recomeçou Gervaise, «porque é que eles são tão avarentos ? ... sabe, eles mentiram, no mês passado, quando a mulher andou a contar por toda a parte que tinham perdido um bocado de cordão de ouro, quando iam entregar a obra. Não há dúvida ! como se aquela perdesse jamais alguma coisa ! ... Era simplesmente uma maneira de se chorarem, de se fazerem de miseráveis, e de não lhe darem a si os seus cem sous.»

Eu ainda não os consegui ver mais que duas vezes, os meus cem sous», disse a Mãe do Coupeau.

Quer apostar ? ... no mês que vem, vão inventar outra história ... isso explica porque é que eles tapam a janela, quando comem coelho. Não acha ? estaríamos no direito de lhes dizermos: “Visto que vocês comem coelho, bem podiam também dar os cem sous à vossa mãe”. Oh ! como eles são viciosos ! ... Que teria sido feito de si, se eu não a tivesse acolhido aqui connosco ?»

A Mãe do Coupeau abanou a cabeça. Naquele dia, estava totalmente contra os Lorilleux, por causa da grande boda que os Coupeau iam dar. Gostava muito de cozinhar, da tagarelice em redor das caçarolas, da casa virada de pernas pró ar por causa das patuscadas dos dias de festa. Além do mais, habitualmente entendia-se bem com Gervaise. Havia dias, porém, quando elas se chateavam uma com a outra, como

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acontece em todos os lares, que a velha mulher resmungava e se dizia terrivelmente infeliz por estar assim, à mercê da nora. No fundo, certamente guardava uma certa afeição pela Mme. Lorilleux; ao fim e ao cabo, era sua filha.

«Hein ?» repetiu Gervaise, «você não estaria assim gordinha, em casa deles, não acha ? E não teria café, nem rapé, nem prazer nenhum ! ... Diga lá, será que eles lhe teriam posto dois colchões na cama ?»

Não, claro que não», respondeu a Mãe do Coupeau. «Quando eles vierem a entrar, vou-me pôr de frente para a porta para ver as caras que fazem.»

As caras que fariam os Lorilleux alegravam-nas antecipadamente. Mas era necessário não se deixarem ficar para ali plantadas, a admirar a mesa. Os Coupeau tinham almoçado muito tarde, cerca da uma da tarde, um pouco de charcutaria, porque os três fogareiros já estavam ocupados, e por não quererem sujar a loiça que já estava lavada para o jantar. Às quatro horas da tarde, as duas mulheres partiram para a etapa final do seu duro trabalho. O ganso assava, no fornilho colocado no chão junto à parede, ao lado da janela aberta; e o bicho era tão grande que tinha sido preciso enfiá-lo à força dentro da assadeira. A vesga da Augustine, sentada num banquinho, apanhando em cheio de frente com o reflexo do fogo do fornilho, ia regando solenemente o ganso com uma colher de cabo comprido. Gervaise, ocupava-se das ervilhas com toucinho. A Mãe do Coupeau, de cabeça perdida no meio de todos aqueles pratos, andava às voltas, esperando pelo momento de pôr a aquecer o guisado de lombo e o fricassé de vitela. Pelas cinco horas, os convidados começaram a chegar. As primeiras foram as duas operárias, a Clémence e a Mme. Putois, ambas de roupas domingueiras, a primeira de azul, a segunda de preto; a Clémence trazia um gerânio, a Mme. Putois um heliotrópio; e Gervaise, que naquele momento tinha as mãos brancas de farinha, teve de dar a cada uma dois grandes beijos, com as mãos afastadas atrás das costas. Depois, nos calcanhares destas entrou a Virginie, arranjada como uma grande senhora, com um vestido de musselina estampada, écharpe e chapéu, apesar de ter só de atravessar a rua. Esta, trazia um vaso de cravos vermelhos. Foi ela que logo agarrou a lavadeira com os seus dois grandes braços e a abraçou com toda a força. Por fim, apareceu o Boche, com um vaso de amores-perfeitos, e a Mme. Boche, com um vaso de reseda, a Mme. Lerat com erva-cidreira, um vaso cuja terra lhe tinha sujado o vestido de merino roxo. Toda esta gente se abraçava, se amontoava no pouco espaço da cozinha, no meio dos três fogareiros e do fornilho, dos quais subia um calor asfixiante. Os ruídos dos refogados nas caçarolas sobrepunham-se às vozes. Um vestido que se prendeu na assadeira causou uma grande emoção. Cheirava tanto a ganso assado que as narinas se dilatavam. E Gervaise era muito amável com todos, agradecia a cada um as flores que tinham trazido, sem por isso parar de preparar o molho para o fricassé de vitela, num prato muito fundo. Tinha colocado os vasos na loja, na extremidade da mesa, sem lhes retirar os invólucros altos, de papel branco, que os enfeitavam. Um perfume doce a flores misturava-se aos odores da cozinha.

«Quer que a ajude ?» disse a Virginie. «Quando me lembro que você anda há três dias a trabalhar para preparar toda essa comida, e que se vai fazer uma razia disso tudo num abrir e fechar de olhos !»

Mulher !» respondeu Gervaise, «isto não se cozinhava por si mesmo ... Não, não suje as mãos. Está a ver, está tudo pronto. Apenas falta a sopa ...»

Então, puseram-se todas à vontade. As mulheres pousaram os xailes e os chapéus em cima da cama, depois subiram as saias com alfinetes, para não as sujarem.

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O Boche, que tinha mandado a mulher regressar para tomar conta da portaria deles até à hora do jantar, já ia encurralando a Clémence no canto onde estava o mécanique, e ia-lhe perguntando se tinha cócegas; e a Clémence arquejava, torcia-se, encolhia-se, com os seios a quererem rebentar o corpete, porque a simples ideia das cócegas fazia-lhe correr um frémito pelo corpo todo. As outras mulheres, para não incomodarem as cozinheiras, tinham acabado por vir para a loja, onde iam ficando, encostadas às paredes, a admirar a mesa; mas, como a conversa continuava através da porta aberta, e como não se ouviam bem umas às outras, estavam constantemente a voltar às trazeiras, invadindo a divisão que estava a servir de cozinha, em gritarias bruscas, rodeando Gervaise, que se esquecia de lhes responder, de colher de pau fumegante na mão. Riam-se, e lançavam ditos picantes. Como a Virginie dissesse que já não comia há dois dias, para criar um vazio na barriga, a grande indecente da Clémence contou uma ainda mais difícil de acreditar: que se tinha esvaziado, tomando um clister de manhã ao levantar, como fazem os ingleses. Em seguida o Boche deu uma receita para se fazer a digestão rapidamente, que consistia em se apertar a barriga contra uma porta, a seguir a cada prato; também era prática corrente dos ingleses, e permitia comer durante doze horas seguidas sem cansar o estômago. «É assim, não é ? A boa educação manda que se coma bem, quando se é convidado para jantar. Não se põem na mesa vitela, porco, e ganso, para depois se deitar tudo aos gatos.» Sim, a dona da casa podia estar tranquila: ia-se deixar-lhe tudo tão limpinho, que no dia seguinte nem ia precisar de lavar a loiça. E o grupo parecia abrir o apetite vindo re-cheirar à volta das caçarolas e da assadeira. As senhoras chegaram a portar-se como raparigas novas; brincavam a empurrar-se umas às outras, fazendo abanar o soalho, revolvendo e espalhando os odores da cozinha com as saias, numa algazarra ensurdecedora em que os risos se misturavam ao ruído do facalhão com que a Mãe do Coupeau ia picando o toucinho.

O Goujet apresentou-se à porta, no preciso momento em que toda a gente saltava e gritava, por brincadeira. Não ousava entrar, intimidado, com uma grande roseira branca nos braços, uma planta magnífica cujo caule lhe chegava ao rosto, e com as flores a misturarem-se com a barba loura. Gervaise correu para ele, de faces coradas pelo fogo dos fogareiros. Mas ele não atinava a desembaraçar-se do vaso que trazia; e, quando ela lho retirou das mãos, gaguejou, não se atrevendo a beijá-la. Foi ela que teve de se esticar, e de encostar a face aos lábios dele; e mesmo assim, ele ficou tão atrapalhado ao beijá-la, e fê-lo com tanta força e sem jeito, que a magoou numa vista. E ficaram trémulos os dois.

«Oh ! senhor Goujet, é tão bonita !» disse ela, colocando a roseira ao lado das outras flores, às quais suplantava, com todo o brio da sua abundante folhagem.

Nada disso, nada disso», repetia ele, sem encontrar outra coisa que dizer.

E, depois de dar um grande suspiro, um pouco restabelecido, avisou que não contassem com a mãe dele; estava com uma crise de ciática. Gervaise ficou desolada; falou em pôr de lado um pedaço de ganso, pois fazia questão que a Mme. Goujet comesse do bicho. Entretanto, não se estava à espera de mais ninguém. O Coupeau devia de andar a flainar por aí, no bairro, com o Poisson, que foi chamar a casa, a seguir ao almoço; eles não tardariam, tinham prometido chegar às seis horas em ponto. Então, como a sopa estava quase pronta, Gervaise chamou a Mme. Lerat e disse-lhe que lhe parecia chegado o momento de subir a chamar os Lorilleux. A Mme. Lerat, então, pôs-se muito séria: tinha sido ela quem tinha levado a cabo as negociações, e regulado, entre os dois lares, a forma como as coisas se iriam passar. Pôs o xaile e o chapéu; subiu, muito hirta, com ares de importante. Em baixo, a lavadeira continuou a mexer a sopa de

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massas italianas, sem dizer uma palavra. O grupo, de repente sério, esperava com solenidade.

E foi a Mme. Lerat quem primeiro apareceu à porta. Tinha ido à volta, pela rua, para dar mais pompa à reconciliação. Segurava com a mão a porta da loja, aberta de par em par, enquanto a Mme. Lorilleux, de vestido de seda, parara na soleira da porta. Todos os convidados se tinham posto de pé, Gervaise avançou para a porta e beijou a cunhada, conforme estava combinado, dizendo:

«Vamos, entrem. Já passou tudo, não é verdade ? … Seremos amigas, nós as duas».

E a Mme. Lorilleux respondeu:

«Não desejo outra coisa, e que seja para sempre».

Depois da mulher entrar, o Lorilleux parou igualmente na soleira da porta, e esperou também para ser beijado, antes de entrar para dentro da loja. Nem um nem outro tinham trazido nenhum ramo de flores; tinham-se recusado a fazê-lo, achavam que isso os faria ficar demasiado com ar de se estarem a submeter à Banban, se chegassem a casa dela, logo da primeira vez, de flores na mão. Entretanto, Gervaise berrou para a Augustine que lhe trouxesse dois litros de vinho. Depois, numa ponta da mesa, encheu os copos de vinho e chamou todos. E cada um pegou num copo, e brindou-se à boa amizade dentro da família. Fez-se silêncio, o grupo bebia, as senhoras levantando os cotovelos, dum trago, até à última gota.

«Nada sabe melhor antes da sopa», declarou o Boche, com um estalido da língua. «Vale mais que um pontapé no traseiro.»

A Mãe do Coupeau tinha-se colocado de frente para a porta, para ver as caras que fariam os Lorilleux. E puxava Gervaise pela saia, levando-a para a divisão das trazeiras. E, ambas debruçadas sobre a panela da sopa, falavam baixinho, mas com muito entusiasmo.

«Hein ? que cachola !», dizia a velha mulher. «Você não conseguiu vê-los como eu. Só visto !, eu estava atenta … Quando ela viu a mesa, aí é que foi ! a cara dela torceu-se toda, assim, com um canto da boca subido, a chegar quase até à orelha; e a ele, isto foi como se o estivessem a estrangular, e pôs-se a tossir … Agora, repare bem neles, ali; até já nem têm saliva, e parece que vão comer os próprios lábios, de tanto se morderem.»

Aquilo até mete pena, gente assim invejosa àquele ponto», murmurava Gervaise.

De facto, os Lorilleux faziam umas caras esquisitas. Ninguém, é claro, gosta de ser humilhado; principalmente nas famílias, quando uns fazem sucesso, os outros ficam com raiva, é natural. Só que, as pessoas contêm-se, não é verdade?, não se dá espetáculo. Pois bem, os Lorilleux não se conseguiam conter. Era mais forte do que eles, trocavam os olhos, tinham o nariz à banda. Enfim, aquilo via-se tão claramente, que os outros convidados olhavam muito para eles, e perguntavam-lhes se não estavam com alguma indisposição. Nunca iam conseguir engolir aquela mesa assim posta, com catorze lugares, a toalha branca, as fatias de pão já cortadas. Parecia que se estava num restaurante das grandes avenidas. A Mme. Lorilleux deu uma volta completa em redor

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da mesa, e baixou os olhos quando passou junto das flores; e, à sucapa, apalpou a grande toalha, atormentada com a ideia de que devia ser nova a estrear.

«Já cá estamos todos !», exclamou Gervaise, reaparecendo, sorridente, de braços destapados, com os seus cabelos loiros, curtos, soltos sobre as fontes.

Os convidados estacavam à volta da mesa. Todos estavam com fome e bocejavam ligeiramente, com ar aborrecido.

«Se o patrão chegasse», recomeçou a lavadeira, «poderíamos começar.»

Ah, bem !» disse a Mme. Lorilleux, «a sopa vai acabar por ficar fria ! … O Coupeau esquece-se sempre das horas. Não o deviam ter deixado sair.»

Eram já seis e meia. Estava tudo a ficar queimado; o ganso ia ficar demasiado assado. Então Gervaise, desolada, falou em mandar alguém dar uma volta pelo bairro para perguntar, nos taberneiros, se não teriam visto o Coupeau. Depois, como o Goujet se ofereceu, quis ir com ele; a Virginie, que também estava preocupada com o marido, acompanhou-os. Os três, em cabelo, ocupavam toda a largura do passeio. O ferreiro, que levava o gabão, dava o braço esquerdo a Gervaise e o braço direito à Virginie: parecia uma cesta de duas pegas, dizia ele; e aquele dito pareceu-lhes tão engraçado que tiveram de parar, com as pernas a dobrarem-se com o riso. Olharam para a imagem que deles se refletia na montra da charcurtaria, e riram-se ainda mais. Ladeando o Goujet, que estava todo de preto, as duas mulheres pareciam duas galdérias sarapintadas, a costureira com a sua toilete de musselina semeada de buquês côr-de-rosa, a lavadeira em vestido de percal branco com pintas azuis, de mangas curtas, com uma gravatinha cinzenta de seda ao pescoço. As pessoas viravam-se para os verem passar, tão alegres, tão frescos, de roupas domingueiras num dia de semana, furando pelo meio da multidão que congestionava a rue des Poissonniers, naquele tépido fim-de-tarde de junho. Mas o caso não era para brincadeiras. Dirigiam-se à porta de cada taberna, esticavam o pescoço, procuravam entre os que estavam ao balcão. Será que aquele animal do Coupeau teria ido beber para longe, teria ele ido lá para os lados do Arco do Triunfo ? Já tinham batido todo o cimo da rua, procurando em todos os lugares prováveis: no Petite-Civette, famoso pelas ameixas; no mère Baquet, que vendia vinho de Orléans a oito sous; no Papillon, lugar de encontro dos senhores cocheiros, gente difícil. Mas nada do Coupeau. Então, quando desciam em direção à avenida, Gervaise, ao passarem em frente de chez François, o taberneiro da esquina, lançou um pequeno grito.

«Que se passa ?» perguntou o Goujet.

A lavadeira tinha deixado de se rir. Tinha ficado muito pálida, e, de tão emocionada, quase ia caindo. A Virginie compreendeu imediatamente, ao ver, no tasco chez François, sentado a uma mesa, o Lantier, que jantava tranquilamente. As duas mulheres puxaram pelo ferreiro.

«Torci o pé», disse Gervaise, quando conseguiu falar.

Finalmente, ao fundo da rua, descobriram o Coupeau e o Poisson no Assommoir du père Colombe. Estavam de pé, no meio de uma quantidade de homens; o Coupeau, de blusa cinzenta, vociferava, com gestos furiosos e dando murros no balcão; o Poisson, que naquele dia não estava de serviço, metido num velho casaco justo castanho, escutava-o, com uma expressão terna e silenciosa, bebendo uma imperial, que lhe deixava a espuma nos bigodes ruivos e eriçados. O Goujet deixou as mulheres na beira do passeio e veio pousar a mão no ombro do telhador. Mas, quando este último viu

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Gervaise e a Virginie na rua, ficou muito zangado. Quem é que lhe tinha fisgado umas fêmeas daquela espécie ? Eis que as saias o vinham agora importunar ! Pois bem, que não ia sair dali, que podiam comer sozinhas a tal porcaria de jantar que tinham arranjado. Para o apaziguar, foi preciso que o Goujet aceitasse uma rodada de alguma coisa; e o Coupeau ainda teve a maldade de se demorar mais cinco minutos em frente ao balcão. Quando, por fim, saiu, disse à mulher:

«Não me convém nada ir ... Esteja eu onde estiver, é porque aí tenho que fazer, entendes ?!»

Ela não respondeu. Estava toda a tremer. Tinha de conversar sobre o Lantier com a Virginie, mas não podia, pois esta tinha empurrado o Poisson e o Goujet, ordenando-lhes que fossem caminhando à frente. A seguir, as duas mulheres puseram-se uma de cada lado do telhador, para o distraírem e o impedirem de olhar para o lado. Estava apenas alegre, mais atordoado por ter estado a berrar do que por ter bebido. Por impertinência, como elas pareciam querer seguir pelo passeio da esquerda, ele empurrou-as, e passou para o passeio da direita. Tiveram de correr atrás dele, assustadas, e procuraram tapar a porta do tasco chez François. Mas o Coupeau já devia saber que o Lantier lá estava. Gervaise ficou estupefacta, quando o ouviu protestar:

«Sim, não é ? minha querida ! está ali um fulano nosso conhecido. Não tens de fazer de mim parvo ... Ai de ti que eu te volte a apanhar a vadiar, a andares por aí a fazer olhinhos !»

E soltou uma série de frases cruéis. Que não era ele de quem ela andava à procura, de cotovelos à mostra e com as ventas borradas de pintura; andava à procura era do seu antigo rufia. Depois, bruscamente, foi tomado duma fúria louca contra o Lantier. Ah ! o bandido !, ah ! o crápula ! Um dos dois tinha de acabar estendido no passeio, com as tripas de fora como um coelho. Entretanto, o Lantier parecia não dar conta de nada, continuando a comer lentamente uma vitela com azedas. Ia começando a juntar-se gente. A Virginie conseguiu finalmente levar o Coupeau dali, e este, subitamente, acalmou-se, a partir do momento em que virou a esquina da rua. Mesmo assim, voltaram à loja com menos alegria do que quando dela tinham saído.

À volta da mesa, os convidados esperavam, de fisionomias carregadas. O telhador deu apertos de mão a todos, meneando-se perante as mulheres. Gervaise, um tanto vexada, falava a meia-voz, e guiava todos aos seus lugares. Mas, de repente, apercebeu-se de que, como a Mme. Goujet não tinha vindo, um lugar ia ficar vazio, o lugar ao lado da Mme. Lorilleux.

«Somos treze !» disse ela, muito comovida, vendo ali uma nova prova da infelicidade de que se sentia ameaçada, desde há algum tempo.

As mulheres, já sentadas, levantaram-se, com um ar inquieto e aborrecido. A Mme. Putois ofereceu-se para se retirar, porque, segundo ela, não se devia brincar com aquelas coisas; além disso, não iria comer nada, nem mesmo provar um só bocadinho dos vários cozinhados, pois não lhe iriam trazer benefício nenhum os bocados que comesse. Quanto ao Boche, zombava: preferia que fossem treze do que fossem catorze; que as porções de cada um seriam maiores, e nada mais importava.

«Esperem !», recomeçou Gervaise. «Isto vai-se compôr.»

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E, saindo para o passeio, chamou pelo tio Bru, que ia justamente a atravessar a rua. O velho operário entrou, curvado, mal se aguentando de pé, com o rosto inexpressivo e silencioso.

«Assente-se ali, meu bravo homem», disse a lavadeira. «Não se importa de comer hoje connosco, pois não ?»

Ele abanou simplesmente a cabeça. Não se importava, para ele estava tudo bem.

«Hein ?! Mais vale ser ele do que ser outra pessoa qualquer», continuou ela, baixando a voz. «Não é muitas vezes que come até saciar a fome. Pelo menos, vai-se regalar nem que seja só desta vez ... Agora, já não teremos de sentir remorsos por nos irmos encher.»

O Goujet ficou de olhos húmidos, por aquilo o ter tocado tanto. Os outros compadeceram-se, acharam muito bem, acrescentando que aquilo iria trazer felicidade a todos. Entretanto, a Mme. Lorilleux não parecia satisfeita de ficar à beira do velho; afastava-se dele, lançava olhares de aversão às suas mãos calosas, e à blusa que ele trazia, remendada e desbotada. O tio Bru continuava de cabeça baixa, incomodado sobretudo com o guardanapo que enchia o prato à sua frente. Acabou por o levantar e o pousar lentamente na beira da mesa, sem sequer imaginar pô-lo sobre os joelhos.

Por fim, Gervaise começou a servir a sopa de macarrão, os convidados pegavam nas colheres, e foi então que a Virginie fez notar que o Coupeau tinha voltado a desaparecer. Certamente, tinha voltado para o Assommoir du père Colombe. O grupo não achou piada nenhuma àquela sugestão. Ficaram todos chateados. Desta vez, melhor assim ! não se iria correr atrás dele, podia ficar na rua à vontade, se não tinha fome. E, quando as colheres já batiam no fundo dos pratos, o Coupeau reapareceu, com dois vasos, um debaixo de cada braço, um goivo e uma balsamina. A mesa inteira bateu palmas. Ele, galante, foi colocar os vasos, um à direita e o outro à esquerda do copo de Gervaise; depois, debruçando-se sobre ela, disse, ao beijá-la:

«Tinha-me esquecido de ti, minha querida ... Isso não impede, amamo-nos mesmo assim, e num dia tão especial como hoje».

─ Está muito fino, o senhor Coupeau, hoje», murmurou a Clémence ao ouvido do Boche. «É um homem a sério, e tem exatamente o suficiente para o fazer ser um amor.»

As boas maneiras do dono da casa restabeleceram a alegria, por momentos comprometida. Gervaise, tranquilizada, voltou a ficar toda sorridente. Os convivas acabaram de comer a sopa. Depois, as litrosas circularam, e bebeu-se o primeiro copo depois do início da refeição, quatro dedos de vinho puro, para fazer assentar o macarrão. Na divisão de trás, ouviam-se as crianças à bulha. Estavam lá o Étienne, a Naná, a Pauline, e o pequeno Victor Fauconnier. Tinha-se decidido colocar uma mesa só para eles os quatro, com a recomendação de se portarem bem. A vesga da Augustine, que vigiava os fogareiros, tinha de comer em cima dos joelhos.

«Mamã !, mamã !» berrou bruscamente a Naná, é a Augustine que deixou cair o pão dela na assadeira !»

A lavadeira acorreu à cozinha, e surpreendeu a vesga a queimar as goelas, para engolir o mais depressa possível uma fatia de pão toda embebida na gordura fervente do

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ganso. Deu-lhe um tabefe, porque aquela garota endiabrada berrava tanto que era incrível.

Quando apareceu a vitela de fricassé, servida numa saladeira, por não haver travessa suficientemente grande na casa, um riso correu por entre os convivas.

«Isto vai ser um caso sério», declarou o Poisson, que raramente falava.

Eram sete e meia da tarde. Tinham fechado a porta da loja, para não serem espionados pelos vizinhos; sobretudo de frente, o relojoeiro baixinho arregalava muito os olhos, e era como se estivesse a tirar-lhes os pedaços da boca, com uns olhares tão glutões que até os impediam de comer. As cortinas penduradas nos vidros deixavam passar uma luz branca, difusa, sem uma sombra, na qual a mesa era banhada, com os seus couverts ainda simétricos, os seus vasos de flores envolvidos nos folhos altos de papel; e esta claridade pálida, este lento crepúsculo, dava ao grupo um ar distinto. A Virginie encontrou o termo adequado: observou em redor a divisão, fechada e forrada a musselina, e declarou que estava muito graciosa. Quando passava na rua uma charrete, os copos abanavam sobre a toalha e as senhoras eram obrigadas a falar tão alto quanto os homens. Mas conversava-se pouco, todos se estavam a portar bem, e trocavam-se gestos corteses. Apenas o Coupeau estava em blusa, porque, dizia ele, não é preciso estar-se a fazer cerimónia com os amigos, e que a blusa é, de resto, a roupa de honra do operário.

As senhoras, apertadas nos seus corpetes, tinham os bandós empastados de cremes, onde se refletia a claridade; enquanto que os senhores, sentados um tanto afastados da mesa, faziam peito e abriam muito os cotovelos, com receio de pôr nódoas nos casacos.

Ah ! c’um raio ! que desbaste na vitela de fricassé ! Se não se falava quase nada, em compensação mastigava-se valentemente. A saladeira esvaziava-se, com uma colher grande mergulhada no molho espesso, uma ótima massa amarelada que tremia a cada colherada como se fosse geleia. De dentro pescavam-se os pedaços de vitela; e estes nunca mais acabavam, à medida que a saladeira ia passando de mão em mão e as caras se iam debruçando sobre ela, à procura dos cogumelos. Os pães enormes, encostados à parede por trás dos convivas, iam mingando tão rapidamente que pareciam gelo a derreter-se. Entre as garfadas, ouviam-se os fundos dos copos quando estes voltavam a ser pousados em cima da mesa. O molho estava um pouco salgado demais, foram precisos quatro litros para diluir aquele maldito fricassé, que escorregava como um creme e que lhes punha fogo na barriga. E não houve tempo para recobrar o fôlego, pois eis que o lombo de porco, colocado numa travessa funda, flanqueado de grandes batatas redondas, chegava no meio de uma nuvem de vapor. Alguém deu um grito. Pelo Santo Nome ! era um achado ! Toda a gente gostava muito daquilo. Com aquela surpresa, ia-se abrindo o apetite; e cada um seguia a travessa pelo canto do olho, enquanto limpava a faca com o pão, para estar a postos. Então, depois de terem sido servidos, davam toques de cotovelo uns nos outros, e falavam, mesmo com a boca cheia. Hein? que tenro aquele lombo, como manteiga! algo doce e sólido que se sentia a escorregar pelas tripas abaixo, até aos pés. As batatas estavam uma delícia. Não estava salgado demais; mas, precisamente por causa das batatas, aquilo pedia uma regadela de minuto a minuto. Partiu-se o gargalo a mais quatro litrosas. E os pratos foram de tal maneira limpos, que não foi preciso mudá-los para comerem as ervilhas com presunto. Oh! os legumes não ocupavam muito espaço no estômago. Tragava-se daquilo às colheradas, por divertimento. Uma verdadeira guloseima, enfim, um prazer de senhoras,

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por assim dizer. O que sabia melhor, no prato de ervilhas, eram os pedacinhos de toucinho esturricado, que cheiravam a cascos de cavalo. Dois litros bastaram.

«Mamã ! mamã !» gritou de repente a Naná, «é a Augustine, que está a meter as mãos no meu prato !»

─ Estás-me a chatear, prega-lhe uma bofetada !» respondeu Gervaise, que estava a atafulhar-se de ervilhas.

No compartimento pegado, à mesa das crianças, a Naná fazia de dona de casa. Estava sentada ao lado do Victor, e tinha colocado o seu irmão Étienne ao pé da pequena Pauline; assim, jogavam à casinhas, eram dois casais a fazer de conta que tinham organizado um banquete. Para começar, a Naná tinha servido os convidados muito gentilmente, com modos sorridentes de gente crescida; mas tinha acabado por ceder ao seu gosto por torresmos, e tinha-os guardado todos só para si. Aquela vesga da Augustine, que rondava sorrateiramente as crianças, aproveitou-se daquilo para apanhar os torresmos às mãozadas, com o pretexto de os repartir novamente por todos. A Naná, furiosa, mordeu-lhe o pulso.

«Ah! sabes», murmurou a Augustine, «vou contar à tua mãe que, a seguir ao fricassé, disseste ao Victor que te desse um beijo.»

Mas tudo re-entrou na ordem, pois Gervaise e a Mãe do Coupeau entraram para tirar o ganso do assador. À volta da mesa grande, recobrava-se o fôlego, todos recostados aos espaldares das cadeiras. Os homens desabotoavam os coletes, as senhoras enxugavam o rosto com os guardanapos. A refeição estava como que interrompida; apenas alguns convidados, com as maxilas em ação, continuavam a devorar grandes bocados de pão sem mesmo se darem conta disso. Estava-se a deixar a comida assentar, esperava-se. A noite, lentamente, tinha chegado; uma claridade fraca, de um cinzento pardo, ia-se carregando por detrás das cortinas. Quando a Augustine pousou dois candelabros acesos, um em cada ponta da mesa, a desordem da louça tornou-se visível sob aquela luz viva, os pratos e os garfos engordurados, a toalha com nódoas de vinho, coberta de migalhas. Asfixiava-se, ainda para mais com o odor forte que se desprendia dos cozinhados. Entretanto, todos se viravam na direção da cozinha, pois de lá vinham certas baforadas quentes.

«Podemos vos dar uma mãozinha ?» exclamou a Virginie.

Esta, levantou-se da cadeira e foi para a divisão seguinte. Todas as mulheres, uma a uma, a seguiram. Todas rodearam o assador e olhavam com profundo interesse para Gervaise e para a Mãe do Coupeau, que puxavam pelo bicho. Depois, subiu um clamor, no meio do qual se distinguiam as vozes agudas e os saltos de alegria das crianças. E houve uma re-entrada triunfal: Gervaise trazia o ganso, com os braços esticados para a frente e a face toda a suar, com um ar de realizada e um esgar de riso silencioso; as mulheres marchavam em fila atrás dela, e riam-se muito; enquanto que a Naná, no fim da fila, de olhos desmesuradamente arregalados, se punha em bicos de pés para ver. Quando o ganso foi posto na mesa, enorme, dourado, e a jorrar os seus sucos, não o atacaram imediatamente. Era um espanto, uma surpresa de respeito, que tinha cortado o pio a todo o grupo. Apontavam para o ganso com piscares de olhos e com ergueres de queixos. Abençoado dia ! que bicharoco ! que pernas, e que peito !

«Este bicharoco não engordou a lamber as paredes, de certeza !» disse o Boche.

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Então, entrou-se a contar os pormenores sobre o bicho. Gervaise ia detalhando os factos: o animal era o mais belo exemplar que ela tinha conseguido encontrar na loja do galinheiro do bairro Poissonnière; deu de peso doze libras e meia na balança do carvoeiro; tinha-se queimado um alqueire de carvão para o assar; e tinha dado três tijelas de gordura. A Virginie interrompeu-a para se gabar de ter visto o bicho cru: tinha-lhe apetecido comê-lo mesmo assim, por ter uma pele tão fina e branca, como a pele duma loira, por assim dizer ! Todos os homens se riam, com um riso que parecia uma polifonia de lambareiros, e que lhes fazia inchar os beiços. Enquanto isso, o Lorilleux e a Mme. Lorilleux coçavam o nariz, sufocados de inveja por verem um ganso daqueles a ser servido à mesa da Banban.

«Pois bem, vejamos, não o vamos comer inteiro, pois não ?», acabou por dizer a lavadeira. «Quem é que o parte ? … Não, não, eu não ! É muito grande, tenho medo.»

O Coupeau oferecia-se. Por Deus ! Era muito fácil: segurava-se o ganso pelas pernas, e cortava-se de qualquer maneira; os pedaços ficavam bons à mesma, fosse como fosse. Mas protestaram, e tirou-se à força a faca de cozinha das mãos do telhador; quando ele trinchava, deixava tudo uma miséria, a travessa parecendo um autêntico cemitério. Por momentos, procurou-se um homem que se oferecesse. Finalmente, a Mme. Lerat disse, com uma voz muito amável:

«Escutem, é tarefa para o senhor Poisson … com toda a certeza, calha ao senhor Poisson …»

E, como o grupo parecia não compreender, acrescentou, com um argumento ainda mais lisonjeiro:

«Claro que calha ao senhor Poisson, que está habituado a manejar armas.»

E passou ao polícia o facalhão da cozinha, que segurava na mão. Toda a mesa teve um riso de descontração e de aprovação.

O Poisson inclinou a cabeça com uma tensão militar, e recebeu o ganso, pousando-o à sua frente. Gervaise e a Mme. Boche, suas vizinhas de mesa, afastaram-se um pouco, dando-lhe espaço para os cotovelos. Ia trinchando lentamente, com gestos amplos, de olhos fixos no animal, como para o pregar ao fundo da travessa. Quando enterrou o facalhão na carcaça, que estalou, o Lorilleux teve um impulso de patriotismo, e exclamou:

«Hein ! e se isso fosse um cossaco !»

− O senhor Poisson já se bateu contra cossacos ?», perguntou a Mme. Boche.

─ Não, só contra beduínos», respondeu o polícia, que separava uma asa do ganso. «Já não há cossacos.»

Mas fez-se um grande silêncio. Os pescoços esticavam-se, os olhares seguiam os movimentos do facalhão. O Poisson reservava-lhes uma surpresa. Bruscamente, deu um último golpe, e o quarto traseiro do bicho, ao separar-se, assentou direito na travessa, com o uropígio levantado para cima: era a mitra do bispo. Nesse momento, todos exclamaram uns “ah!s” e uns “oh!s” de admiração. Não havia como os antigos militares para serem uns cavalheiros em sociedade. E foi então que o ganso deixou escapar um esguicho de sucos pelo buraco do rabo; e o Boche gozava.

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«Cá por mim, estou cliente», murmurou ele, «cliente de alguém que me faça assim chichi na boca.»

─ Oh ! que porco !» exclamaram as senhoras. «É preciso ser-se muito porco !»

─ Não, não conheço homem nenhum assim tão repugnante !», disse a Mme. Boche, mais furiosa do que as outras.

─ Cala-te, ouviste ?! És capaz de meter nojo a um exército ... Sabem, faz isto que é para comer ele tudo sozinho !»

Nesse momento a Clémence repetia, no meio de todo o barulho, insistentemente:

«Senhor Poisson, escute, senhor Poisson ... Guarde o rabo para mim, está bem ?»

─ Minha querida, o rabo será seu por direito», disse-lhe a Mme. Lerat, com um ar discretamente malicioso.

A verdade é que, apesar de todas aquelas brincadeiras, ficaram com o ganso completamente trinchado. O polícia, depois de ter deixado o grupo admirar a mitra do bispo por alguns minutos, tinha virado de lado as fatias e os pedaços, e tinha-os disposto em círculo à volta da travessa. Podiam-se servir. Mas as senhoras, que desapertavam os vestidos, queixavam-se do calor. O Coupeau exclamou que se podiam pôr à vontade como se estivessem em suas próprias casas, que ele já tinha adoçado o bico aos vizinhos; e escancarou a porta da rua; o banquete continuou, no meio do rolar das tipóias e da pressa dos transeuntes nos passeios. Então, com as maxilas repousadas, e arranjado novo espaço na barriga, recomeçou-se a jantar; atiravam-se ao ganso furiosamente. Bastou aquela espera, e estar a ver a trinchar o bicho, dizia aquele farsante do Boche, que tudo aquilo lhe tinha feito descer o fricassé de vitela e o guisado de lombo de porco para a barriga das pernas.

Todos atacavam às garfadas aqueles pedaços de ganso com a máxima gana; quer dizer, ninguém do grupo se recordava de ter jamais apanhado semelhante fartote; ninguém mantinha nem sombra de cuidado para não sofrer uma indigestão. Gervásia, a rebentar de cheia, esparramada contra a mesa e de cotovelos muito abertos, empanturrava-se de grandes pedaços de carne do peito, sem falar, com medo de perder alguma bucha; e apenas sentia um pouco de vergonha em relação ao Goujet, aborrecida por ele a estar a ver assim, glutona como uma ursa. O Goujet, aliás, estava ele próprio a empanturrar-se também, e só reparava que ela, com a comida, ficava toda rosadinha. E, além disso, ela com aquela glutonice ficava tão boa e gentil ! Gervaise não falava, mas a toda a hora se dava ao trabalho de olhar pelo tio Bru, pondo algum pedaço do melhor no prato dele. Era até comovente ver aquela glutona tirar um pedaço de asa da sua própria boca para dar ao velho, que não parecia ter grande prática de banquetes e que devorava tudo, de cabeça baixa, estupidificado de se estar a alambazar tanto, ele, cujo estômago já tinha perdido o gosto até do pão. Os Lorilleux descarregavam toda a raiva com que estavam, no assado; abasteciam-se em tal quantidade, que aquilo era como se estivessem a comer para três dias, e teriam engolido até a travessa inteira, a mesa e a loja inteiras, só para arruinarem a Banban de uma só vez. Todas as senhoras tinham querido comer da carcaça; a carcaça é a parte das senhoras. A Mme. Lerat, a Mme. Boche, a Mme. Putois, todas chupavam os ossos, enquanto que a Mãe do Coupeau, que adorava o pescoço, ia arrancando dele os pequenos pedacinhos de carne com os seus dois últimos dentes. A Virginie, por sua vez, gostava da pele, quando esta é tostada, e cada conviva lhe ia passando o seu pedaço de pele, por galanteria; a tal ponto que o Poisson começou a lançar para a mulher uns olhares severos, ordenando-lhe que parasse

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com aquilo, porque já tinha comido pele que chegasse: uma vez já tinha acontecido que, por ter comido demasiado ganso assado, tinha ficado quinze dias de cama, de barriga inchada. Mas o Coupeau chateou-se com aquela atitude do Poisson e serviu um cochão inteiro do ganso à Virginie, exclamando: que, com mil raios ! se ela não comesse aquilo até ao osso, que não era mulher nem era nada. Ganso, alguma vez fez lá mal a alguém ?! Pelo contrário, que ganso curava doenças do baço. E trincava-se aquilo sem pão a acompanhar, como se fosse uma sobremesa. Por ele, continuaria a comer daquilo durante a noite inteira, sem ficar indisposto; e, para fanfarronar, enfiou uma coxa inteira na boca. Enquanto isso, a Clémence tinha conseguido o seu rabo, e chupava-o com um cacarejar dos lábios, torcendo-se de riso na cadeira, por causa do Boche que, muito baixinho, lhe ia dizendo umas indecências. Ah ! pelo Santo Nome ! sim, todos se estavam a inclinar para o deboche ! Quando nos metemos nelas, já aí estamos metidos, não é verdade ? e, se não se consegue fazer melhor figura senão a de glutão, por outro lado, seria bem tolo quem não se enchesse até às orelhas. É certo que se viam as panças a inchar cada vez mais. As senhoras estavam que pareciam grávidas. Os homens estavam a ponto de rebentar, aqueles sacanas de lambões ! De bocas abertas, os queixos sujos de gordura, as caras deles pareciam cus, e tão vermelhos, que pareciam cus de ricos, a rebentar de prosperidade.

E o vinho, então, minha gente, corria naquela mesa como água corre pelo Sena. Um verdadeiro rio, como quando acabou de chover e a terra tem sede. O Coupeau deitava o vinho do alto, para ver o jato vermelho a fazer espuma; e, quando uma garrafa ficava vazia, fazia a brincadeira de virar o gargalo para baixo e de o espremer, com o gesto costumeiro das mulheres quando mungem as vacas. Mais uma escurinha que fica de boca partida ! Num canto da loja, a quantidade de garrafas vazias aumentava, um cemitério de escurinhas, para cima do qual se iam atirando os restos que ficavam na toalha. Quando a Mme. Putois pediu água, foi o próprio telhador a retirar da mesa as infusas. Por acaso será que as pessoas decentes bebiam água ? Então, queria ela criar rãs na barriga ? E os copos esvaziavam-se duma só golada; ouvia-se o líquido vertido de uma só vez a atravessar a garganta, como o ruído que faz a água da chuva nos canos de esgoto, em dias de tempestade. Chovia carrascão, ou quê ? um carrascão que a princípio tinha um gosto a pipa velha, mas ao qual se iam habituando com prazer, a tal ponto que deixava na boca um aroma de avelã. Ah ! Santo Deus ! por mais que os jesuítas preguem, o sumo da parreira, ainda assim, tinha sido uma ótima invenção ! O grupo ria-se, aprovando; porque, enfim, o operário não podia viver sem vinho, o velho Noé devia ter plantado a vinha para os telhadores, os pedreiros, e os ferreiros. O vinho limpava e dava repouso depois do trabalho, e punha fogo no ventre aos preguiçosos; e depois, quando o farsante nos prega um golpe baixo, pois bem ! o rei não é nosso tio, e há que pôr Paris inteira por nossa conta. Nesse tempo é que o operário, morto de trabalho, sem um tostão, desprezado pelos burgueses, tinha grandes motivos de alegria, e vinham depois sem razão lançar-lhe à cara apanhar uma bebedeira de vez em quando, apanhada com o único fim de ficar a ver a vida um pouco mais côr-de-rosa ! Hein ! e não era nesses momentos, justamente, que ninguém queria saber do imperador ? Talvez que também ele, o imperador, tivesse apanhado uma bebedeira, e fazia ele bem, mas isso não mudava nada, estavam a marimbar-se para ele, e desafiavam-no a ficar ainda mais bêbedo e a divertir-se ainda mais. Bolas para quem se julga mais que os outros ! O Coupeau mandava o mundo às urtigas. Achava as mulheres fixes, e sacudia o bolso, onde três sous chocalhavam, e ria-se, como se tivesse revolvido umas moedas de cem sous achadas no lixo. O próprio Goujet, habitualmente tão sóbrio, estava a apanhar uma piela. Os olhos do Boche iam ficando cada vez mais pequeninos, o Lorilleux estava cada vez mais pálido, enquanto que o Poisson lançava à volta uns olhares cada vez mais

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severos, com o seu rosto bronzeado de antigo soldado. Os homens estavam já todos a cair de bêbedos. E as senhoras estavam já bastante nubladas, oh ! uma embriaguez ainda ligeira, a destilarem vinho pelas bochechas, com uma vontade de se despirem que as fazia soltar os lenços do pescoço; só a Clémence é que começava já a não se comportar de forma conveniente. Mas, de repente, Gervaise lembrou-se das seis garrafas de vinho lacradas; tinha-se esquecido de as servir com o ganso; trouxe-as, e encheram-se os copos. Então, o Poisson levantou-se e disse, de copo na mão:

«Bebo à saúde da dona da casa.»

Todo o grupo, com um bulício de cadeiras a arrastar, se pôs de pé; estenderam-se os braços, entrechocaram-se os copos, no meio de todo um clamor.

«Que isto se volte a repetir daqui a cinquenta anos !» exclamou a Virginie.

─ Não, não», respondeu Gervaise, emocionada e sorridente, «nessa altura já serei demasiado velha. Vejamos, chega um dia em que se fica satisfeita por partir.»

Entretanto, pela porta escancarada, o bairro observava e parava perante toda aquela festança. No retalho de luz que se projetava sobre uma grande superfície da rua, alguns transeuntes ficavam a rir-se de satisfação, de verem aquelas pessoas a comer com tanta vontade. Os cocheiros, debruçados dos seus assentos, antes de chicotearem as pilecas, deitavam uma olhadela para dentro da loja, e lançavam umas graçolas: «Então, não pagas nada ? ... Ohé, aí, oh mãe prenhe, queres que vá chamar a parteira ?! ...» E o cheiro a ganso alegrava e animava a rua; os rapazes do merceeiro imaginavam-se a comer do bicho, especados no passeio em frente; a hortaliceira e a bufarinheira estavam constantemente a vir para a rua, a plantarem-se em frente das suas lojas, para farejar o ar, lambendo os beiços. A rua inteira estava positivamente farta, como se tivesse apanhado uma indigestão. As Madames Cudorge, mãe e filha, negociantes de guarda-chuvas duma loja em frente, que nunca eram vistas, atravessaram a rua uma atrás da outra, de olhos em bico, afogueadas como se tivessem estado a fazer crepes. O joalheiro baixinho, sentado no seu estabelecimento, já não conseguia trabalhar, bêbedo só de contar os litros que se tinham consumido naquela festa e, muito excitado, lá ia ficando parado, no meio dos seus alegres relógios de cuco. Sim, os vizinhos todos absorviam aquilo tudo como quem fuma tabaco !, exclamava o Coupeau. Ora, porque é que se haveriam de esconder ? O grupo, com o entusiasmo, já não tinha vergonha nenhuma de se mostrar à mesa; pelo contrário, aquilo lisonjeava-os e dava-lhes a volta à cabeça, eram agora como uma turba descontrolada, aparvalhados de tanta iguaria; dava-lhes ganas de desmontar a fachada da loja, de empurrar a mesa até ao meio da rua, e de comer lá a sobremesa, debaixo dos narizes do público, no meio do trânsito. Não eram asquerosos de se ver, não é verdade ? Portanto, não havia necessidade de se fecharem, como uns egoístas. O Coupeau, vendo o relojoeiro baixinho a cuspir grandes escarros, acenou-lhe de longe com uma garrafa de vinho; e, tendo o outro feito sinal com a cabeça de que aceitava, o Coupeau levou-lhe a garrafa e um copo. Estabelecia-se uma fraternidade com a rua. Chamavam-se os camaradas que tinham ar de bons compinchas. A comezaina espalhava-se, contagiava-se de um para um, de tal modo que o bairro da Goutte-d’Or farejava o festim e apalpava a barriga, numa orgia dos diabos.

Agora, era a Mme. Vigouroux, a carvoeira, que passava e voltava a passar em frente à porta.

«Eh ! madame Vigouroux ! madame Vigouroux !» gritou o grupo.

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Ela entrou, com um riso idiota, de rosto lavado, tão gorda que parecia estar sempre quase a rebentar o corpete. Os homens gostavam de a apalpar, porque podiam apalpá-la em qualquer parte que nunca conseguiam encontrar-lhe um osso. O Boche fê-la sentar-se junto a si; e, logo a seguir, sorrateiramente, debaixo da mesa agarrou-lhe um joelho. Mas ela, habituada àquilo, bebia tranquilamente um copo de vinho, e ao mesmo tempo contava que os vizinhos estavam todos a vir à janela e que os moradores do prédio começavam a ficar zangados.

«Oh ! isso é connosco», disse a Mme. Boche. «Nós é que somos os porteiros, não é verdade ? Pois bem, somos nós quem responde pela tranquilidade ... Eles que se venham queixar, que os receberemos com muito prazer.»

Na divisão do fundo, acabava de estalar uma disputa furiosa entre a Naná e a Augustine por causa da assadeira, que ambas queriam rapar. Durante um quarto-de-hora a assadeira tinha andado aos trambolhões pelo chão, com um barulho de tacho velho. Entretanto, a Naná foi acudir ao pequeno Victor, que tinha um ossito de ganso encravado na garganta; enfiava-lhe os dedos por debaixo do queixo, ao mesmo tempo que o obrigava a engolir grandes pedaços de açúcar, como remédio. Tudo isso não a impedia de vir espiar a mesa grande. Vinha constantemente a pedir vinho, a pedir pão, a pedir carne, dizendo sempre que era para o Étienne e para a Pauline.

«Toma ! que arrebentes !» dizia-lhe a mãe. «Deixa-me em paz agora, porra !»

Os miúdos já mal conseguiam engolir, mas mesmo assim continuavam a comer, batendo um ritmo de cantiga com os garfos, para se excitarem.

No entanto, no meio de todo aquele barulho, tinha-se estabelecido uma conversa entre o tio Bru e a Mãe do Coupeau. O velho, a quem a comida e o vinho tinham posto lívido, falava dos filhos mortos na Crimeia. Ah! se os rapazes estivessem vivos, teria pão todos os dias. Mas a Mãe do Coupeau, com a língua um pouco entaramelada, debruçando-se para ele, dizia-lhe:

«Passam-se muitos tormentos com os filhos, essa é que é essa! Veja o meu caso, tenho o ar de quem é feliz, aqui, não é verdade ? pois bem, choro muitas vezes ... Não, não vale a pena querer ter filhos.»

O tio Bru baixava a cabeça.

«Já não me querem em sítio nenhum para trabalhar», murmurou ele. «Sou demasiado velho. Quando entro numa oficina, os jovens fazem troça de mim e perguntam-me se era eu que engraxava as botas ao Henrique IV ... No ano passado, ainda ganhei trinta sous por dia a pintar uma ponte; tinha de se ficar deitado de costas, com o rio a correr por baixo ... Desde esse tempo que ando sempre com tosse ... Hoje em dia, acabou-se, em todo o lado me mandam embora.»

Olhou para as suas pobres mãos encortiçadas, e acrescentou:

«Compreende-se, pois já não sirvo para nada. Eles têm razão, eu faria o mesmo, se estivesse no lugar deles ... Está a ver a infelicidade qual é ? é eu não estar já morto. Sim, eu é que tenho a culpa. Uma pessoa, quando já não pode trabalhar, o que deve fazer é deitar-se ao comprido e morrer.»

─ Na verdade», disse o Lorilleux, que estava a escutá-lo, «não compreendo como é que o governo não socorre os inválidos do trabalho ... Foi o que também dizia noutro dia um jornal que eu li ...»

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Mas o Poisson achou que devia defender o governo.

«Os trabalhadores não são soldados», declarou ele. «As pensões dos Inválidos são para os soldados ... Não se deve pedir coisas impossíveis.»

A sobremesa foi servida. No centro havia um bolo de Sabóia, em forma de templo, com uma cúpula de fatias de melão; e, sobre a cúpula, estava colocada uma rosa artificial, junto da qual balançava uma borboleta de papel prateado, presa na ponta de um arame. Duas gotas de cola, no olho da flor, imitavam duas gotas de orvalho. Depois, à esquerda, uma grande forma inteira de queijo fresco nadava no seu soro, num prato fundo, enquanto que, num outro prato, à direita, se amontoavam uns morangos grandes cortados, cujo sumo escorria. Contudo, tinha ainda sobrado muita salada, largas folhas de orelhas-de-burro temperadas com azeite.

«Ora bem, madame Boche», disse cortesmente Gervaise, «coma mais um pouco de salada. É a sua predileção, eu bem sei.»

─ Não, não, obrigada ! estou cheia até aqui», respondeu a porteira, apontando para a garganta.

Quando a lavadeira se virou para o lado da Virginie, esta enfiou um dedo na boca, como que para tocar a comida.

«Estou cheia. De verdade.» Murmurou ela. «Já não tenho mais nenhum espaço. Nem mais uma bucha ia conseguir entrar.»

─ Oh ! esforçando-se um pouco», recomeçou Gervaise, que sorria. «Arranja-se sempre um espacinho. A salada, come-se mesmo sem fome ... Não vai perder esta orelha-de-burro deliciosa !»

─ Você pode comê-la azeitada, amanhã», disse a Mme. Lerat. «É ainda melhor azeitada.»

As senhoras suspiravam, olhando com um ar de pena para a saladeira. A Clémence contou que um dia tinha devorado três molhos de agriões ao almoço. A Mme. Putois era ainda mais forte, comia as pontas das orelhas-de-burro sem as desfolhar; pastava-as assim mesmo, só com umas pitadas de sal. Todas seriam capazes de viver só de saladas, oferecer-se-iam a si mesmas cestos e cestos. E, com a ajuda desta conversa, as senhoras esvaziaram a saladeira.

«Por mim, era capaz de me pôr de quatro num prado», repetia a porteira, de boca cheia.

A seguir, foi uma brincadeira com a sobremesa. Não contava, a sobremesa. Vinha um pouco tarde demais, mas não fazia mal; iam, mesmo assim, fazer-lhe umas festinhas. Quando já estavam todos quase a rebentar como uma bomba, não iam agora deixar-se impressionar por uns morangos e um bolo. Para mais, nada os apressava, tinham muito tempo, tinham até a noite inteira, se fosse preciso. Para irem fazendo tempo, encheram os pratos com os morangos e o queijo fresco. Os homens acendiam os cachimbos; e, como as garrafas lacradas já estavam vazias, voltavam a ser servidas as litrosas de vinho corrente, e iam bebendo vinho e fumando. Mas quiseram que Gervaise cortasse logo o bolo de Sabóia. O Poisson, muito galante, levantou-se para pegar na rosa, que ofereceu à dona da casa, perante os aplausos de todo o grupo. E ela teve de a prender com um alfinete, por cima do seio esquerdo, do lado do coração. A cada movimento seu, a borboleta volteava.

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«Ora vejamos!» exclamou o Lorilleux, como se acabasse de fazer uma descoberta, «mas é mesmo no seu estabelecimento que estamos a comer! ... Ah, bom! de certeza que nunca se trabalhou tanto aqui dentro!»

Esta brincadeira maliciosa teve um enorme sucesso. As alusões espirituosas começaram a chover: a Clémence já não comia nenhuma colherada de morangos sem dizer que era mais uma passadela de dar a ferro; a Mme. Lerat afirmava que o queijo fresco cheirava a goma; enquanto que a Mme. Lorilleux, entre dentes, repetia que tinha sido encontrada a maneira mais rápida de estourar dinheiro ─ em cima das próprias tábuas onde tanto tinha custado a ganhar. Uma enchurrada de risos e de gritos se seguiu.

Mas, de repente, uma voz forte impôs o silêncio a todos. Era o Boche, em pé, fazendo um ar debochado e canalha, que começava a cantar o Volcan d’Amour, ou le Troupier séduisant (‘Vulcão de Amor, ou o Soldado sedutor’).

Sou eu, o Blavin, que seduz as beldades ...

Uma saraivada de bravos acolheu a primeira estrofe. Sim, sim, iam cantar ! Cada um cantaria a sua. Era o que havia de mais divertido. E o grupo juntou-se ainda mais, uns de cotovelos apoiados à mesa, outros reclinando-se contra as costas das cadeiras, meneando os queixos nas passagens certas, bebendo um gole nos refrões. Aquele animal do Boche era especialista em canções cómicas. Era capaz de fazer rir as próprias garrafas, quando imitava o tourlourou ( 1 ) , com os dedos da mão abertos, e o chapéu atirado para a nuca. De repente, depois do Volcan d’Amour, começou a Baronne de Follebiche, um dos seus sucessos. Quando chegou à terceira estrofe, voltou-se para a Clémence, e cantou baixinho em voz lenta e voluptuosa:

A baronesa tinha muitos admiradores,Mas eram suas quatro irmãs,

Três morenas e uma loira,Quem tinha oito olhos muito sedutores.

Perante isto, o grupo, entusiasmado, atacou em côro o refrão. Os homens marcavam o compasso batendo com os tacões no chão. Todas as senhoras tinham pegado nas facas e batiam em cadência nos copos. Todos cantavam aos berros:

Irra ! quem será que vai pagarA pinga à pa ..., à pa ... pa ...,

Irra ! quem será que vai pagarA pinga à pa ..., à patru ... tru ... lha !

Os vidros da loja vibravam, o sopro dos cantores fazia ondear as cortinas de musselina. Entretanto, a Virginie já tinha desaparecido por duas vezes e, ao regressar, curvara-se a falar ao ouvido de Gervaise, para, muito baixinho, lhe dar uma informação. À terceira vez, quando regressou, no meio das batidas do ritmo, disse-lhe:

«Minha querida, ele continua no tasco chez François, e faz de conta que está a ler o jornal ... De certeza que está a preparar alguma maldade.»

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( 1 ) - Soldado, personagem-tipo das canções cómicas da tropa.

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Referia-se ao Lantier. Era ele quem a Virginie tinha ido assim espiar. A cada novo mexerico, Gervaise ia ficando mais séria.

«Está bêbedo ?» perguntou ela à Virginie.

─ Não», respondeu a grande morenaça. «Está com um ar sereno. É principalmente isso o que é inquietante. Hein ?! porque fica ele no taberneiro, se está calmo ?... Meu Deus ! meu Deus ! tomara que não aconteça nada.»

A lavadeira, muito inquieta, suplicou-lhe que se calasse. Um profundo silêncio, de repente, instalou-se. Era a Mme. Putois que se tinha posto em pé e que começava a cantar: À l’abordage ! Os convivas, mudos e muitos atentos, observavam-na; até o Poisson tinha pousado o cachimbo na beira da mesa, para melhor a escutar. A Mme. Putois tinha assumido uma postura rígida, pequena e furiosa, de rosto lívido sob o chapéu preto; erguia o punho esquerdo e projetava-o para a frente com um orgulho convincente, bramindo com uma voz mais forte do que a que habitualmente tinha:

Eis que um corsário temerárioNos persegue, com vento favorável !

Morte ao flibusteiro !Para ele não há quartel !Rapazes, aos canhões !

Rum às copadas !Piratas e corsários

Pró’s nossos cordames serão troféu !

Ah, aquilo sim, que era a sério. Mas, com mil diabos ! dava mesmo a ideia verdadeira da coisa. O Poisson, que tinha feito viagens de mar, meneava a cabeça aprovando os detalhes referidos na canção. E era bastante evidente que aquela canção era muito sentida pela Mme. Putois, e que tocava o sentimento a todos.

O Coupeau chegou-se para a frente para contar como, uma noite, a Mme. Putois, na rue Poulet, tinha esbofeteado quatro homens que a queriam violar.

Entretanto Gervaise, ajudada pela Mãe do Coupeau, serviu o café, embora ainda se estivesse a comer o bolo de Sabóia. Não a deixaram voltar a sentar-se; gritavam-lhe que era a vez dela. Gervaise defendeu-se, com o rosto pálido, com ar de quem estava pouco à vontade; perguntaram-lhe se por acaso se estava a sentir indisposta por causa do ganso. Então, ela disse: «Ah ! laissez-moi dormir !», com uma voz fraca e doce; quando chegou ao refrão, que expressava aquele desejo de ter um sono cheio de sonhos bonitos, as pálpebras dela fechavam-se um pouco, com um olhar perdido voltado para a escuridão da rua. Depois, de repente, o Poisson saudou as senhoras com um gesto brusco da cabeça, e entoou uma canção sobre bebida, chamada Vins de France; mas cantava muito mal; só quando chegou à última estrofe, a estrofe patriótica, é que teve algum sucesso, porque, ao falar na bandeira tricolor, ergueu o seu copo muito alto, agitou-o, acabando por o despejar para dentro da própria boca, completamente escancarada. A seguir, sucederam-se várias romanças; houve uma sobre Veneza e os gondoleiros nos seus barcos, que cantou a Mme. Boche, outra sobre Sevilha e os Andaluzes, um bolero pela Mme. Lorilleux, enquanto que o senhor Lorilleux chegou a falar sobre os perfumes da Arábia, a propósito de se terem cantado os amores de Fatma, a bailarina. Em redor da mesa, já toda engordurada, no meio de uma atmosfera pesada devido aos hálitos de indigestão, abriam-se horizontes dourados, desfilavam colos de marfim, cabeleiras de ébano, beijos à luz do luar ao som de guitarras, e bailarinas

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orientais que semeavam com seus passos uma chuva de pérolas e pedrarias; e os homens fumavam os cachimbos com um ar tranquilo e feliz, as senhoras mantinham inconscientemente uns sorrisos de prazer, e todos imaginavam estar lá longe, a respirar umas boas fragrâncias. Quando a Clémence se pôs a arrulhar a canção Faites un nid, com uns tremidos na voz, aquilo agradou imenso a todos; porque fazia lembrar o campo, as aves levezinhas, as danças sob as ramagens, as flores com seus cálices de mel, enfim, tudo o que se podia ver no bosque de Vincennes, nos dias em que se lá ia em piquenique a comer coelho. Mas a Virginie voltou a trazer a galhofa com Mon petit riquiqui; imitava uma vivandeira, com uma mão na anca, cotovelo para fora; e a outra mão como que despejando as bebidas nos copos, com movimentos no vazio, rodando o punho. De modo que o grupo, a seguir, suplicou à Mãe do Coupeau que cantasse La Souris. A velha mulher recusou, jurando que não sabia aquela brejeirice. No entanto, começou a cantar com a voz débil e trémula que tinha; e a sua face enrugada, com uns olhinhos pequenos muito vivos, ia frisando as alusões, os terrores da Mme. Lise, fechando as saias ao ver o ratinho. Toda a mesa se ria; as senhoras não se conseguiam manter sérias, deitando uns olhares insinuantes aos seus vizinhos; a canção até nem era obscena; ao fim e ao cabo, não continha expressões picantes. O Boche, para contar a verdade, fingia com os dedos que um ratinho subia pelas pernas acima da carvoeira. Aquilo podia ter dado um problema sério, se o Goujet, a um piscar-de-olho de Gervásia, não tivesse feito voltar o silêncio e o respeito com a Adieux d’Abd-el-Kader, que ele, com sua voz de baixo, fez troar. Aquele homem é que possuía uma caixa torácica sólida, por amor de Deus ! A voz saía-lhe daquela sua bela barba loura e abundante, como se de um trompete em cobre se tratasse. Quando lançava o brado: «Oh minha nobre companheira !» referindo-se à égua preta do guerreiro, os corações palpitavam; e aplaudiram-no sem esperar pelo fim, por ele cantar com tanta força.

«À sua saúde, tio Bru, à sua !» disse a Mãe do Coupeau. «Cante a sua. As canções antigas são as mais bonitas, vá !»

E o grupo virou-se para o velho, insistindo, encorajando-o. Ele, entorpecido, na sua máscara de imobilidade, a pele tisnada pelo sol, olhava para todos, sem parecer compreender. Perguntaram-lhe se conhecia as Cinq Voyelles. Deixou cair o queixo; já não se lembrava; todas as canções dos bons velhos tempos se misturavam dentro daquela cabeça dura. Como se decidiram a deixá-lo em paz, ele então pareceu recordar-se e, com uma voz cavernosa, tartamudeou:

Tru la la, tru la la,Tru la, tru la, tru la la !

«Vê lá tu, querida», veio a Virginie segredar ao ouvido de Gervaise, «sabes que acabo de voltar mais uma vez de lá ? O caso estava a arreliar-me … Pois bem, o Lantier já se foi embora do chez François.»

− Não o encontraste na rua ?» perguntou a lavadeira.

− Não, caminhei depressa, e não me lembrei de reparar com atenção.»

Mas a Virginie, que ergueu os olhos, interrompeu-se subitamente e soltou um suspiro, logo sufocado.

«Ah ! meu Deus ! … Ele está ali, no passeio em frente; e está a olhar para aqui.»

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Gervaise, muito impressionada, arriscou dar uma espreitadela. Tinha-se juntado uma pequena multidão na rua, para ouvir o grupo cantar. Os marçanos da mercearia, a bufarinheira, o relojoeiro baixinho, todos faziam grupo, e era como se estivessem a assistir a um espetáculo. Havia militares, burgueses de sobrecasaca, e três rapariguinhas de cinco ou seis anos de mãos dadas umas às outras, muito sérias, maravilhadas. E o Lantier, com efeito, encontrava-se lá plantado logo na primeira fila, a ouvir e a olhar com um ar tranquilo. Era preciso ter muita lata, para fazer aquilo. Gervaise sentiu um frio a subir-lhe das pernas ao coração, e não se atrevia a mexer-se do lugar, enquanto o tio Bru continuava:

Tru la la, tru la la,Tru la, tru la, tru la la !

«Ah, bem ! não, meu velho, já chega dessa !» disse o Coupeau. «Será que a sabe toda ? … Você há-de no-la cantar noutro dia, hein ?! quando estivermos muito, mas mesmo muito alegres.»

Houve risota. O velho ficou a meio da canção, olhou a toda a volta da mesa com seus olhos macilentos, e retomou o ar de bronco sonhador. Já todos tinham tomado o café, e o telhador voltou a mandar vir mais vinho. A Clémence voltava a servir-se de mais morangos e pôs-se a comê-los. Por uns momentos, as canções cessaram, e falava-se de uma mulher que tinha sido encontrada enforcada naquela manhã, no prédio ao lado. Era a vez da Mme. Lerat, mas ela precisou de fazer os seus preparativos. Molhou a ponta do guardanapo num copo de água e aplicou-a nas fontes, porque estava com muito calor. A seguir, pediu um dedal de aguardente, bebeu-a, e enxugou demoradamente os lábios.

«L’Enfant du Bon Dieu, está bem ?» murmurou ela, «l’Enfant du Bon Dieu … »

E, alta, masculina, com o seu nariz ossudo e uns ombros quadrados de gendarme, começou:

A criança perdida que sua mãe abandona,Encontra sempre asilo no lugar santo.Deus, que a vê, do Seu trono a defende.A criança perdida, é filha do Bom Deus.

A voz dela tremia ao pronunciar certas palavras, e demorava-se nos sons palatais; erguia os olhos ao céu, e ao mesmo tempo balançava a mão direita à frente do peito e pousava-a por cima do coração, com um gesto compenetrado. Então, Gervaise, torturada pela presença do Lantier, não conseguiu conter as lágrimas; parecia-lhe que aquela canção cantava os seus tormentos, que era ela aquela criança perdida, abandonada, de quem o Bom Deus ia tomar a defesa. A Clémence, muito bêbeda, desatou de repente a chorar; e, de cabeça pousada no bordo da mesa, abafava os soluços na toalha. Reinava um silêncio comovido. As senhoras tinham pegado nos lenços e enxugavam os olhos, mantendo os rostos erguidos, honrando as suas emoções. Os homens, de testas inclinadas, olhavam fixamente em frente, piscando muito as pálpebras. O Poisson, com um aperto na garganta e de dentes aferrados com força, partiu a boquilha do cachimbo por duas vezes, cuspindo depois os bocados partidos para o chão, sem parar de fumar. O Boche, que tinha deixado a mão pousada no joelho da

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carvoeira, parou de a beliscar, tomado por um remorso e um respeito vagos; ao mesmo tempo que duas grandes lágrimas corriam por suas faces abaixo. Aqueles comensais estavam rígidos como a justiça, e ternos como cordeiros. Era como se o vinho estivesse a sair-lhes pelos olhos ! Quando o refrão recomeçou, mais lento e mais queixoso, todos se entregaram ao sentimento e choravam como umas madalenas; deixavam pingar as lágrimas para os pratos, e desapertavam os cintos, vencidos pela ternura.

Mas Gervaise e a Virginie, por mais que quisessem, não conseguiam deixar de olhar para o passeio em frente. A Mme. Boche, por sua vez, vislumbrou o Lantier, e deixou escapar um ligeiro grito, sem parar de limpar as lágrimas do rosto. Então, as três ficaram de caras ansiosas, e trocavam entre si sinais de cabeça, automáticos. Meu Deus! se o Coupeau se virasse para trás, se o Coupeau visse o outro ! Que matança ! Que carnificina ! E disfarçaram tão mal, que o telhador lhes perguntou:

«Para onde é que vocês estão a olhar, então ?»

Voltou-se, e reconheceu o Lantier.

«Raios o partam ! esta é forte demais», murmurou. «Ah ! o estupôr do poltrão, ah ! o porco cretino ... Não, esta é forte demais, vou acabar com isto ...»

E quando se levantava, vociferando ameaças atrozes, Gervaise suplicou-lhe em voz baixa.

«Escuta, suplico-te ... Larga a faca ... Fica no teu lugar, não faças nenhuma desgraça.»

A Virginie teve de lhe tirar da mão a faca que ele tinha agarrado de cima da mesa. Mas não conseguiu impedi-lo de sair e se dirigir ao Lantier.

O grupo, numa emoção crescente, não via nada, chorava ainda mais, enquanto a Mme. Lerat continuava a cantar, com uma expressão pungente:

Orfãzinha, tinham-na perdido,E a sua voz só era escutada

Pelas grandes árvores e o vento.

O último verso passou como um rugido lastimoso de tempestade. A Mme. Putois, que ia a beber, foi tão tocada por ele, que entornou o vinho todo na toalha. Enquanto isso, Gervaise permanecia como uma estátua de gelo, com uma mão fechada a tapar a boca, para não gritar, piscando as pálpebras de terror, à espera de ver, de um instante para o outro, um daqueles dois homens, ali, cair no meio da rua com uma pancada do outro. A Virginie e a Mme. Boche seguiam também a cena, profundamente interessadas. O Coupeau, apanhado de surpresa pelo ar puro da rua, ao querer atirar-se ao Lantier, por pouco não acabava sentado na valeta. Este, de mãos nos bolsos, tinha-se simplesmente afastado. E os dois homens agora encostavam as caras um ao outro, e sobretudo o telhador punha o outro pelas ruas da amargura, tratava-o de porco doente, dizia que lhe ia trincar as tripas. Ouvia-se o barulho das vozes enraivecidas, distinguiam-se os gestos furiosos, como se os braços deles se fossem despegar do corpo, tal era a força das bofetadas; e Gervaise quase que desfalecia, de olhos fechados, porque aquilo já durava há demasiado tempo e achava que eles estavam o tempo todo prestes a morderem o rosto um do outro, de tanto aproximarem as caras. E depois, como não

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ouvia mais nada, reabriu os olhos e ficou como que estupidificada ao vê-los a conversarem tranquilamente.

A voz da Mme. Lerat elevava-se, gemente e lacrimosa, começando uma nova estrofe:

No dia seguinte, moribunda,Recolheram a pobre criança ...

«Sempre há mães que são umas vacas, ainda assim !» disse a Mme. Lorilleux, no meio da aprovação geral.

Gervaise trocou uns olhares com a Mme. Boche e com a Virginie. Pelos vistos a coisa resolvia-se. O Coupeau e o Lantier continuavam a conversar na beira do passeio. Ainda lançavam injúrias um ao outro, mas amigavelmente. Atiravam, por exemplo, com «estupôr de besta», num tom em que se percebia uma ponta de ternura. Como se tinha juntado muita gente a vê-los, puseram-se a passear lentamente lado a lado, ao longo do passeio, indo e vindo, de dez em dez passadas. Tinha-se estabelecido entre eles uma conversa muito animada. Bruscamente, o Coupeau pareceu zangar-se de novo, enquanto que o outro recusava algo, fazendo-se de rogado. E foi o telhador quem empurrou o Lantier e o forçou a atravessar a rua, para entrar na loja.

«Digo-lhe que é de boa vontade !» berrava o Coupeau. «Você vai beber um copo de vinho connosco... Somos homens, não é verdade? Fomos feitos para nos entendermos ...»

A Mme. Lerat estava a chegar ao último refrão. As senhoras, em côro, repetiam, enrolando os lenços:

A criança perdida, é filha do Bom Deus.

Deram muitos parabéns à cantora, que se sentou, afetando estar estoirada. Pediu que lhe dessem alguma coisa para beber, pois punha sempre muito sentimento naquela canção, e por isso tinha sempre muito receio de que se lhe desenganchasse algum nervo. Toda a mesa, entretanto, tinha os olhos postos no Lantier, pacatamente sentado ao lado do Coupeau, e já a comer a última porção do bolo de Sabóia, que ia humedecendo num copo de vinho. Para além da Virginie e da Mme. Boche, ninguém o conhecia. Os Lorilleux farejavam que havia ali alguma história vergonhosa; mas não sabiam; e assumiram um ar contrafeito. O Goujet, que se tinha apercebido da emoção de Gervaise, olhava de esguelha para o recém-chegado. Como se tinha instalado um silêncio desconfortável, o Coupeau disse, simplesmente:

«É um amigo.»

E, dirigindo-se à mulher:

«Vejamos, mexe-te lá, então ! ... Talvez ainda haja algum café quente.»

Gervaise ia contemplando, alternadamente, um e outro, meiga e aparvalhada. Primeiro, quando o marido empurrou o seu antigo amante pela porta da loja dentro, pôs ambas as mãos em punho fechado de ambos os lados da cabeça, no mesmo gesto instintivo que fazia nos dias de grande tempestade, a cada descarga de trovão. Aquilo

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não lhe parecia possível; as paredes iam desabar e esmagar toda a gente. Depois, ao ver os dois homens sentados, e tudo tão tranquilo que nem sequer as cortinas de musselina se mexiam, subitamente passou a achar natural todas aquelas coisas. O ganso assado estava a incomodá-la um pouco; decididamente, tinha comido demasiado ganso, e isso impedia-a de pensar. Uma preguiça feliz a invadia, entorpecendo-a, e mantinha-a ali, amassada contra o bordo da mesa, com uma única necessidade, que era a de que a não chateassem. Meu Deus! de que servia guardar rancores, uma vez que os outros não os guardam, uma vez que as histórias parecem resolver-se, por elas mesmas, com satisfação geral ? Levantou-se para ir ver se ainda havia café.

Na divisão do fundo, as crianças dormiam. Aquela vesga da Augustine tinha-as aterrorizado durante toda a sobremesa, surripiando-lhes os morangos, e intimidando-os com toda a espécie de ameaças abomináveis. Agora, estava a sentir-se muito doente, agachada sobre um banquinho, de cara lívida e sem dizer nada. A gorda da Pauline tinha deixado cair a cabeça contra o ombro do Étienne, e este, por sua vez, tinha adormecido sobre o bordo da mesa. A Naná estava sentada em cima do tapete do quarto, junto do Victor, a quem prendia, com um braço enrolado à volta do pescoço dele; e, ensonada, de olhos fechados, repetia continuamente numa voz débil:

«Oh ! mamã, tenho dói-dói ... oh ! mamã, tenho dói-dói ...»

─ Com mil diabos !» murmurou a Augustine, de cabeça tombada sobre o ombro, «estão todos bêbedos; beberam tanto como os grandes.»

Gervaise recebeu um novo golpe, quando viu o Étienne. Sentiu-se a asfixiar, ao pensar que o pai daquele rapaz estava ali, ao lado, a comer do bolo, sem que tivesse ao menos tido o desejo de beijar o rapaz. Esteve a ponto de acordar o Étienne e de o levar à sala em braços. Depois, mais uma vez, achou muito bem tudo aquilo, a forma tranquila como se resolviam as coisas. Não teria sido conveniente, de certeza, perturbar o final do jantar. Voltou com a cafeteira e serviu um copo de café ao Lantier, que aliás parecia não se importar com ela.

«Então, agora é a minha vez», gaguejou o Coupeau com uma voz pastosa. «Hein! reservaram-me o lugar de honra ... Pois bem, vou-vos cantar Qué cochon d’enfant ! ...»

«Sim, sim, Qué cochon d’enfant !» gritava a mesa inteira.

A algazarra voltava a instalar-se, o Lantier já tinha sido esquecido. As senhoras aprontaram os copos e as facas, para acompanhar o refrão. Riam-se antecipadamente, a olharem para o telhador, que se mantinha imóvel e de pé, com um ar de canalha. E imitava a voz enrouquecida de uma velha mulher.

Todas as manhãs, quando me levanto,Sinto o coração aos tripicalhos;

Mando o rapaz à loja do sindicatoComprar uma garrafa de quatro soldos.

Demora-me três quartos de hora no caminho,E depois, quando chega a casa,

Tinha-me bebido metade da gota:Que porcaria de criança !

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E as senhoras, batendo nos copos, repetiam em côro, no meio de uma alegria formidável:

Que porcaria de criança !Que porcaria de criança !

Agora, até a própria rue de la Goutte-d’Or inteira se juntava ao côro. O bairro inteiro cantava Qué cochon d’enfant ! Em frente, o relojoeiro baixinho, os marçanos da mercearia, a bufarinheira, a hortaliceira, que sabiam a canção, atacavam o refrão e batiam as palmas, para se rirem. Na verdade, a rua toda era como se tivesse também ficado bêbeda; era o cheiro a festim que saía da casa do Coupeau que fazia as pessoas nos passeios cambalearem e andar em zigue-zague. É preciso dizer que, àquela hora, ali dentro todos estavam bestialmente bêbedos. E aquilo tinha vindo a aumentar a pouco e pouco, desde que tinham bebido aquele copo de vinho puro, o primeiro a seguir à sopa. Naquele momento estavam no auge, todos a cantarem muito alto, todos a rebentar de comida, à luz fraca e avermelhada dos dois candelabros que iam ardendo. O clamor desta farra enorme sobrepunha-se ao ruído das últimas carruagens. Dois polícias, pensando tratar-se de algum motim, acorreram; mas, ao verem o Poisson, trocaram com ele uma pequena continência conivente. E afastaram-se lentamente, lado a lado, caminhando ao longo das fachadas negras dos prédios.

Nessa altura, o Coupeau ia na seguinte estrofe:

No domingo, na Petit-Villette,Depois do calor passado,

Fomos a casa do meu tio Tinette,Que é mestre limpa-latrinas.Pra trazermos no regresso

Uns caroços de cereja.E eis qu’ele escorrega na mercadoria:

Que porcaria de criança !Que porcaria de criança !

E então, o prédio quase que vinha abaixo, pois no ar tépido e calmo da noite ergueu-se uma tal gritaria, quando aqueles tagarelas se aplaudiam a si mesmos; impossível que se pudesse falar mais alto !

Ninguém do grupo jamais se conseguiu lembrar de como a boda terminou exatamente. Devia de ser muito tarde, era só o que recordavam, porque na rua já não passava viv’alma. Mesmo assim, foi bem possível que tivessem dançado em roda, de mãos dadas, à volta da mesa. Todas as memórias se esbatiam numa névoa amarelada, com rostos vermelhos a saltar, e bocas que se escancaravam de orelha a orelha. O certo é que se tinha bebido vinho à grande e à francesa, na parte final; só já não se sabia é se alguém não teria feito a partida de pôr nos copos algum sal. Quanto às crianças, estas devem ter-se despido sozinhas e ido deitar-se. No dia seguinte, a Mme. Boche gabava-se de ter aplicado dois tabefes ao Boche, a um canto, onde ele estava a conversar com a carvoeira, encostando-se demasiado a ela; mas o Boche, que não se lembrava de nada, dizia que aquilo era uma patranha. O que todos concordavam em dizer, era que o comportamento da Clémence tinha sido pouco digno; decididamente, uma moça a não voltar a convidar; tinha acabado por mostrar tudo o que tinha, quando subiu para cima

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da montra e se pôs a dançar e a levantar as saias; e a seguir tinha sentido vontade de vomitar, tendo acabado por estragar uma das cortinas de musselina. Os homens, esses, ao menos iam indo até à rua; o Lorilleux e o Poisson, mal dispostos do estômago, rasparam-se rapidamente em direção à loja do salsicheiro. Quando se recebeu uma boa educação, isso sempre se nota. Assim, as senhoras, a Mme. Putois, a Mme. Lerat, e a Virginie, incomodadas com o calor que fazia na loja, tinham simplesmente ido despir os corpetes a uma das divisões do fundo; a Virginie até teve de se estender na cama, só por uns instantes, para evitar piores consequências. Depois, o grupo parecia ter-se esfumado, desaparecendo uns atrás dos outros, e todos iam saindo acompanhados, perdendo-se o seu rasto na escuridão, lá para os confins da rua; com uma derradeira gritaria duma encarniçada discussão dos Lorilleux, e com um “tru la la, tru la la” teimoso e lúgubre do tio Bru. À Gervaise tinha-lhe parecido que o Goujet, ao partir, se tinha posto a chorar; o Coupeau continuava a cantar; quanto ao Lantier, deve ter ficado até ao fim, pois ela até tinha chegado a sentir um sopro nos cabelos, numa ocasião, mas não podia garantir se aquele sopro tinha sido do Lantier ou se tinha vindo da brisa quente da noite.

Entretanto, como a Mme. Lerat se recusava a regressar para Batignolles àquela hora, tirou-se um colchão da cama e estendeu-se-lho no chão a um canto da loja, depois de se ter arrastado a mesa. E dormiu ali, no meio dos restos do jantar. Toda a noite, durante o sono pesado dos Coupeau, a curar a ressaca daquela paródia, o gato duma vizinha, que se tinha aproveitado duma janela aberta, comeu os restos do ganso, acabando de enterrar o bicho com o ruído discreto dos seus dentes afiados.

F I M

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02-09-2015